Resumos
Trata-se de estudo qualitativo sobre o papel da supervisão acadêmica do Grupo Especial de Supervisão do Projeto Mais Médicos para o Brasil de Roraima (GES-RR) durante a pandemia de Covid-19. Foi realizada uma cartografia, com entrevistas e uma roda de conversa. Durante a pandemia, a Atenção à Saúde Indígena passou por rearranjos e a supervisão acadêmica do GES-RR exerceu-se remotamente, o que reduziu seu potencial, mas manteve sua relevância. O acolhimento dos médicos pelos supervisores potencializou a capacidade transformadora da assistência e diminuiu a sensação de isolamento e abandono. O GES-RR foi importante para a mediação de conflitos com a gestão, para a qualificação do trabalho médico, para a reflexão sobre as relações e condições de trabalho e como espaço privilegiado de Educação Permanente em Saúde. O estudo mostrou a importância dos papéis exercidos e da retomada presencial em momento oportuno.
Palavras-chave
Educação médica; Povos indígenas; Programa Mais Médicos; Covid-19
We conducted a qualitative study to investigate the academic supervision role of the Special Supervision Group for the More Doctors Project for Brazil in Roraima (GES-RR) during the Covid-19 pandemic. We constructed a map based on interviews and conversation circles. During the pandemic, indigenous health care underwent reshaping and academic supervision was performed by the GES-PR remotely, reducing its potential but maintaining its relevance. The support provided to the doctors by the supervisors enhanced the transformative capacity of care and reduced the sensation of isolation and abandonment. The GES-RR played an important role in mediating conflicts with management, improving the quality of medical work, and stimulating reflection on working relations and conditions, and is uniquely positioned to provide permanent health education. The findings highlight the importance of the roles and of returning to face-to-face working at the appropriate time.
Keywords
Medical education; Indigenous peoples; The More Doctors Program; Covid-19
Se trata de un estudio cualitativo sobre el papel de la supervisión académica del Grupo Especial de Supervisión del Proyecto Más Médicos para Brasil de Roraima (GES-RR) durante la pandemia de Covid-19. Se realizó una cartografía, con entrevistas y una ronda de conversaciones. Durante la pandemia, la Atención de la Salud Indígena pasó por reorganizaciones y la supervisión académica del GES-RR se ejerció remotamente, pero mantuvo su relevancia. La acogida a los médicos por parte de los supervisores potencializó la capacidad transformadora de la asistencia y disminuyó la sensación de aislamiento y abandono. El GES-RR fue importante en la mediación de conflictos con la gestión, calificación del trabajo médico, para la reflexión sobre las relaciones y condiciones de trabajo y como espacio privilegiado de Educación Permanente de Salud. El estudio mostró la importancia de los papeles ejercidos y de la retomada presencial en momento oportuno.
Palabras clave
Educación médica; Pueblos indígenas; Programa Más Médicos; Covid-19
Introdução
A pandemia de Covid-19 surgiu em 2020 e desafiou os sistemas de saúde de todo o mundo. No Brasil, a crise sanitária instalada colapsou o Sistema Único de Saúde (SUS), que precisou de estratégias para manter a assistência à saúde de qualidade em todo o país. Até o início de 2022, o SUS enfrentou desafios institucionais, econômicos, políticos e tecnológicos que oscilaram e evidenciaram dificuldades, como piora nos indicadores da assistência às condições e agravos à saúde; dificuldades na produção e aplicação de vacinas; dificuldades no enfrentamento à desinformação e ao movimento antivacina; chegada de novas variantes do novo coronavírus; e redução do quantitativo de profissionais de saúde por adoecimento, óbito ou por isolamento devido às condições de risco11 Brasil. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Seminário estadual discute os desafios do SUS em tempos de pandemia [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2021 [citado 28 Jul 2021]. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/1929-seminario-estadual-discute-os-desafios-do-sus-em-tempos-de-pandemia
http://conselho.saude.gov.br/ultimas-not... .
Nas áreas indígenas, grande parte da assistência médica prestada no SUS é ofertada por médicos do Projeto Mais Médicos para o Brasil (PMMB), integrados às Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena (EMSIs)22 Luna WF, Ávila BT, Brazão CFF, Freitas FPP, Cajado LCS, Bastos LOA. Projeto Mais Médicos para o Brasil em áreas remotas de Roraima, Brasil: relações entre médicos e Grupo Especial de Supervisão. Interface (Botucatu). 2019; 23 Supl 1:e180029. doi: https://doi.org/10.1590/Interface.180029.
https://doi.org/10.1590/Interface.180029... .
No estado de Roraima, estão localizados o Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami-Ye´kwana (DSEI-Y) e o DSEI Leste de Roraima. O DSEI é a unidade gestora responsável pela gestão à saúde dentro dos territórios indígenas, em respeito ao princípio da Atenção Diferenciada33 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria Especial de Saúde Indígena - SESAI. Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2021 [citado 29 Set 2021]. Disponível em: https://saudeindigena.saude.gov.br/corona
https://saudeindigena.saude.gov.br/coron... ,44 Brasil. Ministério da Saúde. Fundação Nacional de Saúde. Política nacional de atenção à saúde dos povos indígenas. Brasília: Ministério da Saúde; 2002.. O DSEI é a principal estrutura na organização do Sistema de Atenção à Saúde Indígena do SUS (Sasisus) e deve ser operacionalizado, em um primeiro nível, pela atuação da EMSI, tendo como base o trabalho dos agentes indígenas de saúde (AIS) nas aldeias e, fora das terras indígenas, pela Casa do Índio (Casai) e demais serviços do SUS33 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria Especial de Saúde Indígena - SESAI. Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2021 [citado 29 Set 2021]. Disponível em: https://saudeindigena.saude.gov.br/corona
https://saudeindigena.saude.gov.br/coron... . O município de Uiramutã, apesar de ter administração convencional, tem cerca de 88,1% da população indígena55 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Os indígenas no Censo Demográfico 2010. Primeiras considerações com base no quesito cor ou raça [Internet]. Rio de Janeiro: IBGE; 2012 [citado 23 Set 2021]. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/
https://cidades.ibge.gov.br/... . Apesar disso, sua população não é assistida por meio deste sistema, mas sim por administração pública municipal convencional.
O princípio da Atenção Diferenciada é o principal tema da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI) e está intimamente relacionado ao princípio da equidade, do SUS, que indica que é preciso investir mais onde mais precisa22 Luna WF, Ávila BT, Brazão CFF, Freitas FPP, Cajado LCS, Bastos LOA. Projeto Mais Médicos para o Brasil em áreas remotas de Roraima, Brasil: relações entre médicos e Grupo Especial de Supervisão. Interface (Botucatu). 2019; 23 Supl 1:e180029. doi: https://doi.org/10.1590/Interface.180029.
https://doi.org/10.1590/Interface.180029... ,33 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria Especial de Saúde Indígena - SESAI. Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2021 [citado 29 Set 2021]. Disponível em: https://saudeindigena.saude.gov.br/corona
https://saudeindigena.saude.gov.br/coron... , sendo este um direito, não devendo ser confundido com privilégio. Compreende-se que as áreas indígenas necessitam de assistência à saúde diferenciada, com qualidade44 Brasil. Ministério da Saúde. Fundação Nacional de Saúde. Política nacional de atenção à saúde dos povos indígenas. Brasília: Ministério da Saúde; 2002. e com recursos de saúde e infraestrutura capazes de prevenir a disseminação da Covid-19 sem aumentar os riscos relacionados aos contatos33 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria Especial de Saúde Indígena - SESAI. Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2021 [citado 29 Set 2021]. Disponível em: https://saudeindigena.saude.gov.br/corona
https://saudeindigena.saude.gov.br/coron... .
Por serem contratualizados via PMMB, parte da carga horária dos médicos deste projeto é destinada ao cumprimento de atividades pedagógicas, relacionadas ao curso de especialização em saúde indígena e à supervisão acadêmica. Em Roraima, esta última é realizada por supervisores da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e pelo Grupo Especial de Supervisão de Roraima (GES-RR), subordinados ao Ministério da Educação (MEC). O GES-RR é responsável pela supervisão nas regiões de mais difícil acesso e algumas áreas indígenas do estado e foi criado em 2015 para garantir a qualificação da atenção médica nas localidades onde os supervisores não estavam conseguindo chegar. A realização de atividades acadêmicas e de supervisão é pré-requisito oficial para manutenção dos médicos do PMMB em suas funções, segundo a lei do Programa Mais Médicos66 Brasil. Presidência da República. Lei n° 12.871, de 22 de Outubro de 2013. Institui o Programa Mais Médicos, altera as Leis nº 8.745, de 9 de Dezembro de 1993 e nº 6.932, de 7 de julho de 1981, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 23 Out 2013; 206(seção 1):1-4..
Os médicos estiveram presentes nos territórios durante a pandemia, entretanto, a supervisão presencial do PMMB precisou ser suspensa para diminuir a circulação e contato dos profissionais em todo o território nacional. Assim, nos anos 2020 e 2021, todas as atividades de supervisão do GES-RR foram realizadas em formato virtual, por plataformas on-line.
A supervisão acadêmica tem papel fundamental na qualificação profissional e dentro do PMMB22 Luna WF, Ávila BT, Brazão CFF, Freitas FPP, Cajado LCS, Bastos LOA. Projeto Mais Médicos para o Brasil em áreas remotas de Roraima, Brasil: relações entre médicos e Grupo Especial de Supervisão. Interface (Botucatu). 2019; 23 Supl 1:e180029. doi: https://doi.org/10.1590/Interface.180029.
https://doi.org/10.1590/Interface.180029... ,66 Brasil. Presidência da República. Lei n° 12.871, de 22 de Outubro de 2013. Institui o Programa Mais Médicos, altera as Leis nº 8.745, de 9 de Dezembro de 1993 e nº 6.932, de 7 de julho de 1981, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 23 Out 2013; 206(seção 1):1-4.. Durante a pandemia, no entanto, esse papel foi questionado, uma vez que mudaram as condições dos encontros, que passaram de presenciais para remotos, via Whatsapp, plataformas on-line – como o Zoom e Google Meet – e plataforma viabilizada pelo MEC.
Este artigo apresenta um estudo qualitativo sobre o papel da supervisão acadêmica do GES-RR do PMMB, durante os anos 2020 e 2021, na vigência da pandemia de Covid-19, e sobre o distanciamento social, que impôs uma nova supervisão. Além disso, objetiva debater as estratégias de Educação Permanente em Saúde nesses contextos e os limites e potencialidades do formato remoto, sendo a pandemia de Covid-19, portanto, um analisador do papel da supervisão acadêmica do GES-RR nesse período.
A pesquisa foi financiada pelos próprios pesquisadores e é um dos resultados da pesquisa de tese de doutorado intitulada “Grupo Especial de Supervisão de Roraima: uma cartografia da supervisão do Projeto Mais Médicos para o Brasil em áreas de difícil acesso de Roraima”, do Programa de Pós-Graduação em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva (PPGBIOS), da Universidade Federal Fluminense. Foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Rio de Janeiro, campus Macaé, sob a CAAE n. 34654120.4.0000.5699.
Método
Trata-se de uma pesquisa cartográfica, de abordagem qualitativa e exploratória que foi feita por meio de entrevistas semiestruturadas e uma roda de conversa. O método de pesquisa foi inspirado na cartografia de Rolnik77 Rolnik S. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. 2a ed. Porto Alegre: Sulina; 2016. por permitir uma aproximação da experiência pela amplificação das variabilidades e multiplicidades provocadas – e não pela quantificação/categorização dos fenômenos –; e o acompanhamento de “percursos e processos de produção”77 Rolnik S. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. 2a ed. Porto Alegre: Sulina; 2016. e de “desterritorialização e reterritorialização”88 Deleuze G, Guattari F. Mil platôs. 2a ed. Guerra Neto A, Costa CP, tradutores. São Paulo: Editora 34; 2011., como vivenciado pela supervisão em um período no qual foi preciso o uso da criatividade e a ampliação da capacidade transformadora. Partimos também do saber da experiência dos supervisores e tutores tocados e ex-postos99 Bondía JL. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Rev Bras Educ. 2002; (19):20-8. às atividades do GES-RR e do resgate da memória de cada um, que passa a constituir um modo de experiência; um modo de ser e de existir do narrador, e não somente um arquivo de informações1010 Stelet BP. Medicina narrativa e medicina baseada em evidências na formação médica: contos, contrapontos, conciliações [tese]. Rio de Janeiro (RJ): Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2020..
A roda de conversa acrescenta corpo metodológico, uma vez que a pesquisa com grupos permite uma vivência diferenciada daquela com indivíduos, pois os grupos são constituídos por pessoas em interação que, ao interagirem diante do pesquisador, permitem o testemunho de situações reais similares às do cotidiano do trabalho em equipe1111 Brigagão JIM, Lúcia VN, Tavanti RM, Piani PP, Figueiredo PP. Como fazemos para trabalhar com a dialogia: a pesquisa com grupos. In: Spink MJ, Brigagão JIM, Nascimento VLV, Cordeiro MP, organizadoras. A produção de informação na pesquisa social: compartilhando ferramentas. Rio de Janeiro: Centro Edelstein; 2014. p. 73-96..
Após apresentação do projeto e esclarecimento aos participantes, foi solicitada a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Participaram das entrevistas – feitas por meio de plataforma on-line, gravadas e posteriormente transcritas – 32 pessoas (dois tutores, 14 supervisores, cinco apoiadores do MEC, três gestores e oito médicos). Foram incluídos nos critérios de seleção todos os supervisores, tutores e apoiadores que participam ou participaram do GES-RR; e três gestores e oito médicos participaram como informantes-chave. Foram excluídas pessoas que nunca participaram do GES-RR ou que não concordaram em participar da pesquisa. Entre os supervisores e tutores participantes, todos eram médicos, a maioria com formação geral em Medicina de Família e Comunidade e/ou em Medicina Preventiva e Social/Saúde Pública, sendo nove homens e cinco mulheres, com idades entre trinta e 41 anos. Entre os demais, há nove mulheres e sete homens, com a mesma faixa etária, cada qual com formação na respectiva área de atuação (Educação/Saúde, Gestão e Medicina).
Para a análise das entrevistas, foi feita a transcrição do material; seleção, ordenação e leitura exaustiva dos documentos; e Análise de Conteúdo de Bardin, adaptada por Gomes, subcategoria Análise Temática1212 Gomes R. Análise e interpretação de dados de pesquisa qualitativa. In: Minayo MCS. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes; 2016. p. 79-108., seguindo as seguintes etapas: identificação das unidades de registro e de contexto; dos núcleos de sentido e organização em categorias temáticas; elaboração de inferência e síntese interpretativa, permitindo o diálogo dos eixos identificados e a abordagem dos objetivos e de questões iniciais da pesquisa; e tratamento dos dados. No fim da análise das entrevistas, foram encontradas cinco categorias: “Trajetória e perfil do entrevistado”; “Cultura e cuidado”; “Papel do GES”; “Operacionalização dos processos de trabalho em equipe interdisciplinar e intersetoriais”; e “Infraestrutura, gestão e política”.
Para as rodas de conversa on-line, foram convidados todos os supervisores ativos do GES-RR nos anos de 2020 e 2021, ou seja, cinco; e a tutora desse período. Participaram, por fim, quatro supervisores, que atuavam nos dois DSEI (Y e Leste), e a tutora, totalizando cinco pessoas (três homens e duas mulheres). Quatro tinham formação em Medicina de Família e Comunidade e um, formação em Antropologia, com idades entre 32 e 64 anos. Um deles era morador do estado de Roraima e os demais, de outros estados – a saber, Pernambuco, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Dois eram recém-ingressados no GES-RR (2020), dois ingressaram em 2019 e um, em 2018. Para iniciar o debate, foi feita a seguinte pergunta disparadora: “Como foi a supervisão do GES-RR nos anos de 2020 e 2021, período no qual vivenciamos a pandemia Covid-19?”. Nenhum supervisor ou tutor ativos nesse período foi excluído do convite à roda.
Foi permitido o livre debate sobre o tema, a fim de dar passagem aos afetos que surgissem durante a conversa. A facilitadora-pesquisadora exerceu um papel de moderadora, com perguntas abertas e não direcionadas, por meio do método da problematização1313 Freire P. Pedagogia do oprimido. 17a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1987.; e de coordenadora do grupo, ao registrar dados, garantir a sala on-line, facilitar a expressão dos diferentes pontos de vista e solicitar esclarecimentos durante o debate1111 Brigagão JIM, Lúcia VN, Tavanti RM, Piani PP, Figueiredo PP. Como fazemos para trabalhar com a dialogia: a pesquisa com grupos. In: Spink MJ, Brigagão JIM, Nascimento VLV, Cordeiro MP, organizadoras. A produção de informação na pesquisa social: compartilhando ferramentas. Rio de Janeiro: Centro Edelstein; 2014. p. 73-96.. A roda teve duração de uma hora e oito minutos; foi gravada em áudio e vídeo; e posteriormente foi transcrita literalmente, permitindo focar a dialogia entre os participantes do grupo; a autoria; os posicionamentos sobre a questão disparada e sobre o efeito nos demais; e a leitura dos repertórios presentes nas interações e sentidos produzidos coletivamente, assim como as pausas, silêncios e expressões corporais1111 Brigagão JIM, Lúcia VN, Tavanti RM, Piani PP, Figueiredo PP. Como fazemos para trabalhar com a dialogia: a pesquisa com grupos. In: Spink MJ, Brigagão JIM, Nascimento VLV, Cordeiro MP, organizadoras. A produção de informação na pesquisa social: compartilhando ferramentas. Rio de Janeiro: Centro Edelstein; 2014. p. 73-96.. Após essa sequência, a transcrição foi organizada em um quadro com os nomes dos participantes e abaixo de cada nome, suas falas. Para a análise da roda de conversa, foram feitos o mapa dialógico e a análise dos repertórios e temas, com foco na negociação de sentidos, nos posicionamentos, nas relações de poder e na relação dessas dimensões1111 Brigagão JIM, Lúcia VN, Tavanti RM, Piani PP, Figueiredo PP. Como fazemos para trabalhar com a dialogia: a pesquisa com grupos. In: Spink MJ, Brigagão JIM, Nascimento VLV, Cordeiro MP, organizadoras. A produção de informação na pesquisa social: compartilhando ferramentas. Rio de Janeiro: Centro Edelstein; 2014. p. 73-96..
Os resultados a seguir se referem à categoria “O papel do GES”, encontrada na análise das entrevistas, com foco no período da pandemia; e foram acrescidos da análise da roda de conversa, feita por mapa dialógico.
O papel do GES durante a pandemia de Covid-19
Durante todo o trabalho da supervisão acadêmica, supervisores e tutores se perguntavam constantemente sobre o real papel do GES, qual o “nosso lugar” e “por que a gente estava ali”. Segundo a Portaria n. 585 de 15 de junho de 20151414 Brasil. Ministério da Educação. Portaria MEC n° 585/2015. Dispõe sobre a regulamentação da Supervisão Acadêmica no âmbito do Projeto Mais Médicos para o Brasil e dá outras providências. Diário Oficial da União. 16 Jun 2015; 112(seção 1):11., o papel do supervisor é acompanhar atividades dos médicos participantes, aplicar instrumentos de avaliação e exercer, em conjunto com o gestor do SUS, o acompanhamento e a avaliação da execução das atividades de ensino-serviço, estando disponível à distância de forma permanente. Na prática, o trabalho de supervisão assume papéis de controle/avaliação, apoio/suporte e aprimoramento técnico-clínico1515 Castro TF. Reflexões sobre a prática de supervisão no Programa de Valorização do Profissional da Atenção Básica (PROVAB) e no Programa Mais Médicos [dissertação]. Campinas (SP): Universidade Estadual de Campinas; 2015.,1616 Brasil. Ministério da Educação. Portaria Normativa nº 28/2015. Dispõe sobre a criação e organização do Grupo Especial de Supervisão para áreas de difícil cobertura de supervisão, no âmbito do Projeto Mais Médicos para o Brasil, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 14 Jul 2015; 133(seção 1):11-12..
Nessa experiência, os papéis exercidos pelo GES-RR foram alcançados a partir de construções que transcendiam as funções oficiais – o que os diferencia de certo modo das supervisões convencionais, fora dos GESs. O acolhimento foi um caminho potencializador da qualificação do processo de supervisão, e o compromisso e coesão do grupo contribuíram para seu êxito, na tentativa de qualificar o serviço de saúde, a atuação dos profissionais, e, ao mesmo tempo, os próprios supervisores. Para os entrevistados, o GES-RR deveria qualificar todos os profissionais das EMSI, inclusive AIS e gestores, e fortalecer o “senso de equipe”.
Para o supervisor 12, “o distrito não propicia um contexto de conhecer as outras pessoas, de capacitação, então, o programa, na verdade, é subutilizado”, e não há incentivo para que os demais profissionais da EMSI compareçam aos encontros de supervisão. Nas reuniões on-line, a participação da EMSI é menor ainda, sendo difícil convencer gestores e profissionais a comparecerem.
Outra potencialidade subutilizada relaciona-se ao fato de os supervisores do GES terem um número pequeno de médicos supervisionados e a oportunidade de singularizar as necessidades de aprendizado, centrando-o no profissional, de acordo com suas demandas e necessidades individuais. Para a portaria n. 28/20151616 Brasil. Ministério da Educação. Portaria Normativa nº 28/2015. Dispõe sobre a criação e organização do Grupo Especial de Supervisão para áreas de difícil cobertura de supervisão, no âmbito do Projeto Mais Médicos para o Brasil, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 14 Jul 2015; 133(seção 1):11-12., é papel da supervisão acadêmica “singularizar a vivência dos médicos participantes do Projeto, ofertando suporte para o fortalecimento de competências necessárias para o desenvolvimento das ações da Atenção Básica”1616 Brasil. Ministério da Educação. Portaria Normativa nº 28/2015. Dispõe sobre a criação e organização do Grupo Especial de Supervisão para áreas de difícil cobertura de supervisão, no âmbito do Projeto Mais Médicos para o Brasil, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 14 Jul 2015; 133(seção 1):11-12..
Tais necessidades singulares, no entanto, precisam ser reconhecidas também por gestores do trabalho médico localmente, além de identificadas e trabalhadas com os supervisores. A parceria e capacitação dos gestores durante a pandemia de Covid-19 é fundamental, uma vez que a situação sanitária demandou soluções gerenciais para problemas como afastamento de atividades laborativas por motivo de doença ou por pertencer ao grupo de risco; substituição de médicos; adaptação das escalas de trabalho; falha no apoio tecnológico e sinal de internet para o cumprimento de atividades acadêmicas do PMMB; organização antecipada das agendas; e dificuldade no cumprimento das pactuações estabelecidas.
O papel do supervisor, portanto, é mais do que de um “promotor de capacitações” ou de “fornecedor” de referenciais teóricos; é também de um facilitador, de um agenciador do aprendizado, por todos os lados e de todos os profissionais envolvidos. Para atingir essa meta, é preciso transcender os papéis convencionais e se afetar com o contexto e com as situações-problema:
[...] eu acho que quando a gente trabalha como supervisor neste contexto, se a gente não for um pouco além do que é o papel formal a gente não consegue realizar nem sequer o papel formal.
(Entrevista com supervisor 9)
Mas o envolvimento com as questões “na sua integridade” implica um mergulho no cotidiano, nos tensionamentos, nas articulações dentro da Rede de Atenção à Saúde (RAS) e na mediação de conflitos. Esse envolvimento lembra o conceito de integralidade da Atenção Primária à Saúde (APS), na qual é preciso ver a pessoa como um todo dentro de seu contexto1717 Starfield B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: UNESCO; 2002., ao mesmo tempo que apresenta outros caminhos e possibilidades, amplia os olhares e agencia passagens para outros afetos. São as memórias construídas nos encontros da supervisão que vão desenhando o papel agenciador de aprendizados e de apoiador, a partir das mais diversas construções.
O apoio psicológico, emocional, de suporte e de incentivo é formado por trocas afetivas entre supervisor e supervisionado, nas quais existe empatia, confiança e reciprocidade, reduzindo a sensação de isolamento. Assim, o supervisor “cuida” do médico e o tutor “cuida” do supervisor, em uma conformação em rede de cuidados técnicos, mas também afetivos, que ajudam a encarar a solidão. O suporte diminui a sensação de isolamento dos profissionais que se queixam de inúmeras dificuldades e frustrações e aparece na fala da supervisora 3: “a supervisão a meu ver e no meu viver era um bote salva-vidas no meio desse caos, entendeu, era tipo um porto seguro ali para achar essa conversa nessa Torre de Babel, entendeu?”.
A Torre de Babel a que a participante se refere é a máquina gestora da saúde indígena e suas dificuldades. O papel do supervisor nesse espaço era de “bote salva-vidas”, ou seja, de fundamental apoio diante de condições difíceis.
Mas para a consolidação do apoio sólido, buscado pelos supervisionados, era preciso que os supervisores tivessem também uma compreensão sólida sobre seu papel, uma identidade bem-definida, e, principalmente, respaldo das instituições, além de conhecimento de todos sobre o PMMB e sobre os diversos papéis da supervisão, sendo um deles a própria discussão sobre o programa:
[...] passava por conversar com as Secretarias Municipais de Saúde, com os secretários, com quem era responsável, passava em animar também os colegas médicos, muito porque a gente via o desânimo por não entender como é que estava se dando este programa.
(Entrevista com supervisor 11)
Assim, era também papel do GES-RR qualificar médicos e gestores quanto às regras do programa e a aspectos operacionais da gestão do trabalho em saúde e nas articulações intersetoriais. A falta de clareza sobre os papéis gerava desconfortos para gestores e supervisores.
Apesar de o gestor ser responsável pela gestão do trabalho médico nos territórios de DSEI, os médicos do PMMB precisavam respeitar também as regras do programa que, algumas vezes, não estavam explícitas para os gestores.
O cumprimento de papéis burocráticos pelos supervisores, como a realização de relatórios de ocorrências aos órgãos do Ministério da Saúde, é também importante para o apoio dos médicos, que precisam de interlocuções com instâncias superiores para resolução de problemas específicos do programa. Porém, a incompreensão dos gestores sobre a função da supervisão acadêmica, sobre a necessária afiliação dos supervisores com os médicos como pré-requisito para permanência no PMMB e sobre as regras relativas à carga horária dos médicos do PMMB – diferente das dos demais profissionais – gerava tensionamentos.
Para a solução de tais tensionamentos e ampliação da capacidade resolutiva dos supervisores, o grupo demandava mediação e respaldo de instâncias superiores, como o MEC e MS, assim como apoio administrativo e tecnológico na resolução de problemas que unicamente a supervisão não teria condições de resolver. Essas indagações e tensionamentos se tornaram ainda mais desafiadoras durante a pandemia de Covid-19.
À medida que gestores dos DSEIs foram se apropriando do PMMB e dos papéis da supervisão, reconheciam a importância do GES-RR e sentiam a diferença que a supervisão fazia na qualificação do trabalho médico e da gestão; e a falta dela quando as atividades presenciais foram suspensas:
[...] a falta da supervisão afeta muito a continuidade do trabalho e as nossas dificuldades só vão aumentando, então a gente precisa... a supervisão é importantíssima tanto para o profissional quanto para o distrito Yanomami. E para o apoiador também.
(Entrevista com gestor 2)
Todos os gestores entrevistados reconheceram essa diferença na qualificação do trabalho dos médicos e gestores. Um dos objetivos da supervisão, inclusive, é a realização do diagnóstico situacional e a devolutiva ao gestor local, contribuindo com a qualificação da gestão em saúde1616 Brasil. Ministério da Educação. Portaria Normativa nº 28/2015. Dispõe sobre a criação e organização do Grupo Especial de Supervisão para áreas de difícil cobertura de supervisão, no âmbito do Projeto Mais Médicos para o Brasil, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 14 Jul 2015; 133(seção 1):11-12..
Outros papéis esperados pelos gestores eram os de avaliação e “controle” do trabalho do médico; e de fiscalização e regulação do cumprimento de regras e protocolos estabelecidos pelos órgãos de gestão de saúde indígena. Esse papel, no entanto, precisaria de um olhar presencial para o cotidiano das práticas dos médicos, o que era impossível no formato remoto.
De fato, era preciso fiscalizar o trabalho dos médicos, mesmo que por meio de uma postura crítica, com olhar atento e cuidadoso, evitando o mero exercício de “vigiar” e “punir”, que prejudicaria não só as relações, mas também a confiança e o vínculo entre supervisores e supervisionados. O papel da supervisão, para além da fiscalização de normas técnicas, é também estimular o desenvolvimento e a qualificação de habilidades e atitudes no trabalho em saúde e criar saídas para as situações não protocoladas, por meio da Educação Permanente em Saúde1818 Brasil. Ministério da Saúde. Política nacional de educação permanente em saúde: o que se tem produzido para o seu fortalecimento? Brasília: Ministério da Saúde; 2018., reconhecendo as capacidades criativas, construções singulares e subjetivações.
Antes da pandemia, os supervisores ainda eram confundidos nas visitas in loco com funcionários do DSEI, especialmente quando estavam acompanhados de tais profissionais. Com a chegada da pandemia e mudança do formato de supervisão, os médicos passaram a enxergar os supervisores a partir de sua função educacional e clínico-pedagógica.
Os integrantes do GES-RR, que não são funcionários dos DSEIs/municípios, tinham a função de pleitear e avaliar os supervisionados e gestores locais com o objetivo de fortalecer a integração ensino-serviço e a Atenção Básica1414 Brasil. Ministério da Educação. Portaria MEC n° 585/2015. Dispõe sobre a regulamentação da Supervisão Acadêmica no âmbito do Projeto Mais Médicos para o Brasil e dá outras providências. Diário Oficial da União. 16 Jun 2015; 112(seção 1):11., o que, de certa forma, era visto como positivo.
Contudo, os supervisores, por sua vez, também eram cobrados e avaliados, pelo tutor e pelos apoiadores do MEC regionais e centrais. A avaliação e controle do trabalho do tutor, por fim, estariam a cargo do MEC, que acompanhava o trabalho principalmente a distância, com algumas visitas pontuais. O controle social também serviu de controle e avaliação do trabalho dos médicos e do GES-RR, cujos atores principais são as lideranças indígenas:
A supervisão in loco para mim é um lugar muito importante para escutar o que os indígenas estão falando sobre a atuação dos médicos, e conversar com eles sobre isso. Porque se eu chego em Surucucu, né, os yanomamis vão reclamar; “esse médico não presta, não presta”. Então tinha um negócio assim que na verdade eu perdi um pouco que é a comunicação com as comunidades, com a pandemia.
(Entrevista com supervisor 12)
Para a maioria dos supervisores e tutor, o contato com as lideranças já era bastante pontual e, com a pandemia, ficou ainda mais distante, devido à dificuldade de comunicação com as lideranças nos momentos a distância, pela falta de internet e pela relação não estar constituída em bases sólidas, como a relação com os médicos.
A Educação Permanente em Saúde a distância encontra muitos desafios, na maioria relacionados à distância e às dificuldades técnico-operacionais, como observado em um estudo feito no SUS da Bahia1919 Vicente CA, Santos TBS, Vieira SL, Martins JS, Borges MNC, Duarte JA, et al. Educação permanente sobre abordagem clínica e cuidados precoces à Covid-19 na atenção primária e vigilância à saúde na Bahia. In: Vieira SL, organizadora. Educação, trabalho e gestão na saúde: reflexões, reflexos e ações [Internet]. São Paulo: Editora Científica Digital; 2021 [citado 26 Jun 2022]. Cap. 3, p. 46-62. Disponível em: https://downloads.editoracientifica.org/articles/210605129.pdf
https://downloads.editoracientifica.org/... . Neste, identificou-se a necessidade de ampliar o acesso aos equipamentos tecnológicos, contratar web designers ou qualificar os profissionais para o uso das tecnologias, além de acessar a rede de internet e aparelhos eletrônicos como notebook, computador e celular.
Presencialmente, o impacto direto dos supervisores nas comunidades parecia ser pequeno e pontual, mas o impacto dos territórios e das comunidades nos supervisores era enorme e transformador, pois mobilizava-os internamente a questionar suas próprias posições e revisar ações colonizadoras, eurocentradas e exclusivamente biomédicas.
No trabalho da supervisão, as mudanças se apresentam no cotidiano da supervisão; na revisão das ações em saúde e das condutas; na afetação dos profissionais; e nas articulações com a rede de saúde, de modo que, por fim, fez diferença para o cuidado à saúde dos indígenas, objetivo primordial.
Para a gestora 3, a presença dos supervisores no DSEI provocava os profissionais a se articularem e a reverem seus processos, em um processo “vivo” de criação, nas palavras de Merhy2020 Merhy EE. Em busca do tempo perdido: a micropolítica do trabalho vivo em saúde. In: Mehry EE, Onocko R, organizadores. Agir em Saúde, um desafio para o público. São Paulo: Hucitec; 1997. p. 71-112.. Outra articulação importante era com a UFRR, que mantinha a supervisão de médicos nas áreas mais próximas da capital.
Assim, o papel do GES-RR antes da pandemia foi muito importante para manter o PMMB em pé, funcionando e fazendo sentido. Com a chegada da pandemia, o grupo se concentrou em apoiar os médicos, especialmente nos estudos teóricos que contribuíam para o processo de aprendizado e para a prova de revalidação dos diplomas, que permite integrar tais profissionais ao corpo médico do país, independentemente do provimento emergencial do Mais Médicos.
O trabalho da integração ensino-serviço foi unanimemente reconhecido por todos os entrevistados, que reafirmaram a importância do GES e das parcerias realizadas. Quanto aos médicos, quando perguntados sobre aspectos negativos da supervisão, não apontaram nenhum.
É nesse ponto que fazemos a reflexão sobre a ausência do GES. Se o GES-RR impacta tanto e tão positivamente, sua ausência impacta ainda mais (nesse caso, negativamente):
O que eu quero dizer é que o GES é importantíssimo. E não dá para ser a distância. Porque papel aceita qualquer coisa. Uma coisa é eu escrever e outra coisa é chegar e observar aquilo. E fez toda a diferença no Programa Mais Médicos.
(Entrevista com gestora 1)
Uma vez suspensas as atividades presenciais, os gestores tiveram que reassumir funções de qualificação profissional, de controle e de avaliação que, a distância, eram muito difíceis para os supervisores.
O período de 2020 e 2021 foi constituído por uma intensificação das dificuldades já existentes, mais do que o surgimento de outras. Com a chegada da pandemia nas aldeias, a vulnerabilidade da população aumentou e o acesso aos serviços de saúde diminuiu, mesmo que por um curto período. No território Yanomami, o aumento do número de casos de desnutrição e malária, somado aos casos de Covid-19 e aos conflitos com garimpeiros, agravou a situação de saúde da população e preocupou médicos assistentes e supervisores.
A pandemia virou só mais um detalhe na configuração dos Yanomami, com 20 mil garimpeiros, os assassinatos, todo dia morrendo gente, né, de malária. [...] E a gente não sabe também das crianças que morreram tantas de diarreia, se não foi Covid também [...].
(Roda de conversa, supervisor 12)
Além disso, a ausência dos supervisores nos territórios contribuiu para a invisibilidade de algumas situações de saúde graves, que precisavam de medidas imediatas, a exemplo do conflito com os garimpeiros:
Um médico filmou, pelo que entendi, eles estavam no meio do mato, e passou um barco com um grupo de garimpeiros atirando ao léu para assustar os indígenas e ele teve que abortar a missão. Ele ficou um dia e voltou. Então essa questão dos garimpeiros também apareceu para nós na supervisão, que é um problema muito grave.
(Roda de conversa, supervisor 14)
O aumento da incidência de agravos à saúde nos territórios indígenas, somado à redução dos insumos, mudança de coordenação, alta rotatividade de gestores e apoiadores do DSEI e piora das condições de trabalho, caracterizou o período com uma grave crise na saúde indígena, em um momento em que a supervisão não poderia atuar presencialmente. Isso desmotivou muito os médicos supervisionados, que reduziram suas participações nos encontros de supervisão.
Além das dificuldades nos processos de trabalho, os médicos se encontravam com medo de se contaminarem com o novo coronavírus e se sentiram vulneráveis às mais diversas situações, considerando também que alguns pertenciam a grupos de risco para a Covid-19 e precisaram ser afastados do trabalho.
A fim de facilitar o trabalho da supervisão a distância, o MEC ofertou uma plataforma online específica para a realização dos encontros de supervisão on-line, que servia também como mecanismo de controle da participação dos médicos nas supervisões. A contabilização das presenças nos encontros de certa forma os pressionava a participarem, o que aumentou a assiduidade. No entanto, essa medida parece menos eficaz e potente, uma vez que os médicos se fazem presentes unicamente pela obrigatoriedade, e não pelo interesse na educação permanente. Além disso, a plataforma foi avaliada pelo grupo como “pesada” e com “dificuldades operacionais”, e o grupo precisou lançar mão de ferramentas alternativas, como o Zoom e WhatsApp.
Ainda assim, o aumento das presenças nos encontros foi um fator positivo, pois quando os participantes estão em grupo nas plataformas on-line, o encontro se potencializa. Neles, são feitas trocas de experiências do cotidiano, o que traz realismo às situações discutidas:
Sempre que eles estão juntos é muito legal, assim, rende, né? Eles começam a trocar entre eles e eu fico só mediando. Então é muito mais rico quando eles estão juntos e conversam sobre os casos, a gente coloca algum material que possa apoiar aquele tema que eles levantaram.
(Roda de conversa, supervisora 13)
O ponto negativo mais importante atribuído ao formato remoto foi que a supervisão se reduziu, por vezes, à revisão de conteúdos teóricos e pouco ou quase nenhum aprendizado prático. A mediação com a gestão também ficou enfraquecida nesse formato:
Então eu me comunico com o DSEI e o DSEI fala “eu não sei o que fazer”, a gente vai... é um processo que nem aquele do Kafka, sabe? Você nunca sabe o que é que está acontecendo. E isso é uma estratégia, isso a gente tem que reconhecer, que é uma estratégia muito competente. Ou seja, eles vão truncando. Você não consegue se mexer. Claro que isso redunda em mortes.
(Roda de conversa, supervisor 14)
A estratégia mencionada pelo supervisor foi o distanciamento da gestão para reduzir a função de controle dos supervisores sobre o trabalho da gestão. Os gestores, por sua vez, também se queixaram, nas entrevistas, desse distanciamento, que aumentou sua carga de trabalho na cobrança dos médicos.
Os mecanismos de controle e avaliação, quando distanciados dos afetos presenciais, da conversa informal e da compreensão mais aprofundada dos problemas, resumem-se a disputas de poder. Quando se fala em controle, e não em construção compartilhada, quem ganha a disputa é quem está em uma situação privilegiada na relação, havendo uma tendência a escolhas por posturas autoritárias:
A pandemia, eu acredito, ela autorizou, em uma dimensão ainda que a gente não entendeu, decisões mais monocráticas, decisões sem qualquer tipo de diálogo mais aberto, né? E isso, para cabeças mais totalitárias, é uma possibilidade imensa de fazer o que quer, né? Que não são mais contestadas, né? Não tem mais reunião, não tem mais, de alguma forma, protestos, o protesto fica restrito, fica com pouca margem.
(Roda de conversa, supervisor 11)
Para esse supervisor, a presença do GES-RR na sede dos DSEIs e nos territórios facilitava o diálogo e a democratização das decisões, e sua ausência, ao contrário, autoriza decisões monocráticas. O GES-RR funcionava também como uma espécie de “controle social” da instituição, que caminhava ao lado da democracia.
Nesse sentido, o isolamento dos supervisores os torna impotentes diante da tomada de decisões na gestão da saúde e do trabalho dos médicos pela capacidade reduzida de atuação, o que levantou um importante debate na roda de conversa. A conclusão, no entanto, era a de que se a supervisão não fizesse diferença para os médicos e as comunidades, mesmo nesse formato a distância, os supervisores não continuariam o trabalho:
[...] se eu, pelo menos, considerasse que a nossa existência como supervisão acadêmica não fizesse nenhuma diferença, eu já não estaria mais aqui. Em algum nível a gente está resistindo e continuando, né?
(Tutora 2)
Nesses dois anos, a supervisão representou um movimento de resistência às adversidades e aos entraves encontrados tanto na micropolítica quanto na macropolítica; e reforçou a necessidade de se lutar pela melhoria da qualidade da supervisão e do próprio PMMB. Mesmo com todas as dificuldades, houve ganhos e avanços nesse período, que não podem ser esquecidos:
Acho que uma coisa que valeu a pena na pandemia foram as tentativas de flexibilização de gestantes e cardiopatas, grupo de risco, né? Para assumir a linha de frente. Talvez, eles encontraram em mim o apoio inclusive de dizer “Não” para a gestão. [...] E aí foram encontrados nesses casos específicos o apoio na supervisão necessário e que não encontraram no Ministério da Saúde para bater o pé e dizer: “A lei é isso aqui, tem que se fazer cumprir”.
(Roda de conversa, supervisor 11)
Esses ganhos não se relacionam tanto ao papel formal da supervisão, mas sim ao perfil de supervisores, preocupados com o cumprimento de leis trabalhistas e engajados com a defesa do Programa Mais Médicos, sendo cada supervisão “supervisor-dependente”, como definido pela supervisora 13. Esse perfil foi essencial para o avanço de algumas questões e para impedir retrocessos, como o descumprimento das leis do Programa Mais Médicos.
O período da pandemia foi importante para a consolidação do papel da supervisão do GES-RR – em sua essência, acadêmico –, para a delimitação dos limites gerenciais da supervisão e para a construção de uma melhor relação supervisor-supervisionado e de metodologias de aprendizagem mais sólidas. Por fim, para a criação de espaços de trocas, foi preciso desejo, motivação e muita criatividade.
Considerações finais
Diante dos desafios apresentados pela pandemia do novo coronavírus, a atenção à saúde nas áreas indígenas precisou passar por rearranjos, assim como a supervisão acadêmica do GES-RR, que passou do formato presencial para o remoto. Nos anos 2020 e 2021, tal supervisão encontrou limites, desafios e potencialidades, produzidos ou agravados pelo distanciamento social e pela ausência física de tutores e supervisores nos territórios.
O potencial da supervisão nessas circunstâncias foi bastante reduzido. No entanto, a manutenção das atividades de supervisão, mesmo em formato remoto, manteve a reflexão crítica dos médicos e médicas envolvidos, estimulou a melhoria do desempenho dentro do cuidado em saúde indígena e motivou os estudos individuais para a revalidação do diploma, no caso dos médicos formados no exterior.
A atuação da supervisão acadêmica nas EMSI e com gestores durante a pandemia Covid-19 ficou reduzida, havendo necessidade de sua retomada, uma vez que a supervisão deve ampliar o foco exclusivo nos médicos. Ao incluir outros supervisionados para além dos médicos, avalia e qualifica as relações interpessoais e o trabalho interdisciplinar, eixo estruturante da Educação Permanente em Saúde no SUS.
Observamos também um papel da supervisão para além da oficialidade, desenvolvido por atores comprometidos com SUS e com o Programa Mais Médicos. A postura de acolhimento e singularidade dos supervisores para com os médicos foi o elemento potencializador da capacidade transformadora da prática assistencial, diminuindo a sensação de isolamento e abandono acentuados pelo trabalho em territórios remotos. O apoio do GES-RR à gestão, por meio da informação sobre legalidades e direitos trabalhistas, a diminuição de tensões e a resolução de conflitos também foram elencados como uma forte potencialidade, mesmo a distância.
A pandemia de Covid-19 e o isolamento imposto acentuaram a necessidade de mediação de conflitos entre gestores e médicos; de retomada do acompanhamento presencial do trabalho dos médicos in loco; de qualificação do trabalho médico e da EMSI; e de refletir sobre as relações e condições de trabalho – papéis exercidos pelos supervisores e tutores do GES-RR desde sua criação, por meio das ações de Educação Permanente, integração ensino-serviço e articulações intersetoriais.
Concluímos que a supervisão acadêmica representa um espaço privilegiado de Educação Permanente e planejamento de ações de gestão para a saúde indígena quando compreendido pelo conjunto de ações exercidas por atores envolvidos e comprometidos com a qualificação da APS Indígena e o cumprimento dos preceitos da Atenção Diferenciada; e que a transição da supervisão presencial para o formato remoto, apesar de reduzir o potencial do grupo, não anulou suas potencialidades. Ao contrário, evidenciou a importância dos papéis exercidos pelo GES-RR – acadêmico; pedagógico; e de apoio emocional e técnico, tanto para os médicos do PMMB quanto para os demais profissionais das EMSI e gestores – e da retomada presencial em momento oportuno. Novos estudos serão necessários para acompanhar os passos nessa retomada.
Agradecimentos
Agradecemos a todos os participantes da pesquisa: supervisores, tutores, apoiadores, médicos e gestores, pela boa vontade e disponibilidade. Agradecemos também aos povos indígenas e a sua luta, pela preservação de seus grupos e saberes tradicionais.
- Freitas FPP, Dal Chiavon AC, Miranda CZ. Supervisão acadêmica de médicos em áreas indígenas durante a pandemia de Covid-19. Interface (Botucatu). 2023; 27: e220086 https://doi.org/10.1590/interface.220086
Referências
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
28 Out 2022 - Data do Fascículo
2023
Histórico
- Recebido
24 Mar 2022 - Aceito
20 Ago 2022