Resumos
A partir de narrativas produzidas em redes digitais, analisamos formas de ações solidárias agenciadas por usuário(a)s da rede de saúde mental para enfrentar os problemas gerados pela pandemia de Covid-19 em um contexto de economia ultraneoliberal. Se, por um lado, é evidente o aumento do sofrimento psicossocial, por outro, foram surpreendentes as estratégias de enfrentamento organizadas, concebidas e geridas por essas pessoas que vivem tal sofrimento. Entre tais estratégias, observa-se a ativação e a criação de redes sociais para finalidades específicas em função do problema a ser solucionado. Dando primazia à noção de “dádiva”, essas estratégias vieram atualizar a illusio de militância do(a)s usuário(a)s nelas envolvidas. Porém, o afastamento físico entre os membros e a organização do diálogo em um espaço virtual dificultam as dinâmicas de interação propícias ao estabelecimento de vínculos interpessoais e resolução de conflitos.
Covid-19; Militância; Solidariedade; Saúde mental; Dádiva
A partir de narrativas producidas en redes digitales, analizamos formas de acciones solidarias agenciadas por usuarios(as) de la red de salud mental para enfrentar los problemas generados por la pandemia de Covid-19 en un contexto de economía ultraneoliberal. Si, por un lado, es evidente el aumento del sufrimiento psicosocial, por otro, fueron sorprendentes las estrategias de enfrentamiento organizadas por esas personas, muchas de ellas concebidas y generadas por ellas mismas. Entre ellas, se observa la activación y la creación de redes sociales para finalidades específicas en función del problema a solucionar. Dando prioridad a la noción de “dádiva”, estas estrategias actualizaron la illusio de militancia de los usuarios y usuarios envueltas en ellas. No obstante, la distancia física entre los miembros y la organización del diálogo en un espacio virtual dificultan las dinámicas de interacción propicias al establecimiento de vínculos interpersonales y resolución de conflictos.
Covid-19; Militancia; Solidaridad; Salud mental; Dádiva
Introdução
Com a pandemia do vírus SARS-CoV-2, anuncia-se o advento da multiplicação de casos de transtorno mental, atribuída aos variados tipos de sofrimento, desde a vivência inusitada da quarentena ao luto de pessoas queridas, chegando ao desemprego, às perdas financeiras, à redução do acesso aos serviços de saúde mental 11. Gopikumar V, Padgett DK, Sarin A, Mezzina R, Willford A, Jain S. Mental health and the coronavirus: a global perspective. World Soc Psychiatry. 2020; 2(2):88‐93. e/ou às consequências físicas advindas da própria doença Covid-١٩. Pesquisas destacam, inclusive, os riscos aumentados de contração da doença e morte pela Covid-19 entre pessoas com diagnóstico prévio de transtorno mental pela sua maior vulnerabilidade biopsicossocial, mas também indicam o agravamento da sua condição prévia de sofrimento 22. Moreno C, Wykes T, Galderisi S, Nordentoft M, Crossley N, Jones N, et al. How mental health care should change as a consequence of the Covid-19 pandemic. Lancet Psychiatry. 2020; 7(9):813-24. . Em função desse contexto, estudos revelam, entre outras medidas de enfrentamento, uma maior mobilização comunitária (redes de suporte social, voluntariado, fundos emergenciais, apoio mútuo, etc.), desencadeada em diversos países 33. Fisher EB, Miller SM, Evans M, Luu SL, Tang PY, Valovcin DD, et al. Covid-19, stress, trauma, and peer support - observations from the field. Transl Behav Med. 2020; 10(3):503-5. , 44. Bartels SJ, Baggett TP, Freudenreich O, Bird BL. Covid-19 emergency reforms in Massachussets to support behavioral health care and reduce mortality of people with serious mental illness. Psychiatr Serv. 2020; 71(10):1078-81. para fazer face aos problemas causados pela pandemia e que demonstram a sua crucial importância na sua gestão, reduzindo, inclusive, o impacto negativo da insuficiência de serviços. No campo da saúde mental, a ênfase atribuída às ações comunitárias voltadas para as pessoas que experimentaram algum sofrimento mental 55. Barreto AP, Ferreira Filha MO, Silva MZ, Nicola V. Integrative community therapy in the time of the new coronavirus pandemic in Brazil and Latin America. World Soc Psychiatry. 2020; 2(2):103-5. raramente é dirigida para as pessoas que são protagonistas dessas iniciativas.
Ainda que a rede de atenção psicossocial tenha permanecido em funcionamento, observou-se a diminuição da intensidade dos seus serviços pelos efeitos da pandemia, relacionada à necessidade inicial de um distanciamento social, o que demandou dos trabalhadores de saúde, em um momento no qual todos viviam momentos de grande angústia e incertezas, um esforço sobre-humano para criar novas estratégias de cuidado remoto, sem que tivessem uma formação para tal e sem necessariamente dispor de equipamentos nos serviços e de acessibilidade digital dos usuários da rede. Por outro lado, seja por estarem expostos ao vírus ou, ainda mais, por vivenciarem condições precárias de trabalho e uma superexposição ao sofrimento psicossocial dos usuários dos serviços, os trabalhadores de saúde mental também viram a sua saúde fragilizada com efeitos sobre a sua disponibilidade ao cuidado.
Não resta dúvida, porém, de que um dos maiores impactos negativos sobre a atuação dos serviços de saúde mental se deveu aos cortes financeiros progressivos que ela tem vivido no país. Esses cortes têm sido alvejados a partir de uma lógica da contrarreforma psiquiátrica em curso 66. Nunes MO, Lima JM Jr, Portugal CM, Torrenté M. Reforma e contrarreforma psiquiátrica: análise de uma crise sociopolítica e sanitária a nível nacional e regional. Cienc Saude Colet. 2019; 24(12):4489-98. , que reduz recursos para serviços comunitários e os aumenta quando se trata de financiar hospitais psiquiátricos e “comunidades terapêuticas”. Inexistem também editais que permitem a distribuição de recursos voltados para ações de economia solidária e ampliam-se dificuldades de acesso ao Benefício de Prestação Continuada (BPC) para pessoas com certos transtornos mentais, julgadas incapazes para o trabalho. Tudo isso impacta negativamente nos esforços de desinstitucionalização/inserção social de pessoas em sofrimento psíquico.
Neste artigo, debruçaremo-nos sobre o agenciamento próprio de usuário(a)s da rede de saúde mental manifestado em ações de solidariedade ativistas. Pretendemos analisar tessituras das ações solidárias no campo da saúde mental, contextualizando-as nos tempos da pandemia de Covid-19 e de economia ultraneoliberal, buscando suas bases político-sociais em experiências de militância, ativismo social e de redes de ajuda mútua em saúde mental. Propomos que essas iniciativas protagonizadas pelos usuários guardam uma tripla inscrição. De um lado, elas são fruto de um solo fertilizado pela trajetória de militância em coletivos que desenvolveram nessas pessoas sentimento de pertença a um grupo, consciência crítica, compreensão dos seus direitos, mas também muitas habilidades de reivindicação e de produzir táticas para solucionar problemas concretos. Por outro lado, percebe-se que a experiência de extrema vulnerabilidade diante das incertezas, sentimento de desamparo e situação de risco iminente de agravo ou de morte, desencadeados pela pandemia relançaram como vital a importância das ações de solidariedade entre as pessoas, ainda que estas não sejam livres de conflitos. Um terceiro aspecto de contexto diz respeito à situação sociopolítica e econômica extremamente grave do país, progressivamente desencadeada desde que uma coalisão da direita neoliberal ascendeu ao poder pela destituição de uma presidente eleita, pertencente a um partido de esquerda e popular, e, em seguida, aprofundada com a eleição de um governo ultraneoliberal, que vem desmontando as políticas de proteção social e precarizando as condições de vida da população.
O conceito de ultraneoliberalismo tem sido desenvolvido em estudos recentes, analisando a situação contemporânea do Brasil. Esses estudos colocam o caso brasileiro no âmbito de uma radicalização, observada em escala global, de políticas e ideologias neoliberais dentro de uma matriz política de extrema direita com traços de fascismo 77. Mauriel APO, Kilduff F, Silva MM, Lima RS, organizadores. Crise, ultraneoliberalismo e desestruturação de direitos. Uberlândia: Navegando Publicações; 2020. Introdução; p. 11-22. . De acordo com Silva 88. Silva RR. A dinâmica na neoliberalização e os ataques à seguridade social no Brasil. In: Mauriel APO, Kilduff F, Silva MM, Lima RS, organizadores. Crise, ultraneoliberalismo e desestruturação de direitos. Uberlândia: Navegando Publicações; 2020. p. 129-58. , a radicalização de lógicas neoliberais é bem visível já a partir do governo Temer (2016-2018). O bolsonarismo veio dar continuidade a essas medidas, aproveitando o contexto pandêmico para reforçar o poder do setor financeiro sobre a economia, com o efeito imediato de agravar a precaridade laboral 88. Silva RR. A dinâmica na neoliberalização e os ataques à seguridade social no Brasil. In: Mauriel APO, Kilduff F, Silva MM, Lima RS, organizadores. Crise, ultraneoliberalismo e desestruturação de direitos. Uberlândia: Navegando Publicações; 2020. p. 129-58. (p. 139). O ultraneoliberalismo manifesta-se então com maior intensidade, já que, para além da política financeira, o governo de Bolsonaro implementou medidas contrarreformistas em praticamente todos os setores da vida política e socioeconômica 88. Silva RR. A dinâmica na neoliberalização e os ataques à seguridade social no Brasil. In: Mauriel APO, Kilduff F, Silva MM, Lima RS, organizadores. Crise, ultraneoliberalismo e desestruturação de direitos. Uberlândia: Navegando Publicações; 2020. p. 129-58. (p. 143-144). Aspecto indissociável dessa investida, o governo ultraneoliberal vem promovendo discursos racistas, classistas, machistas e lgbtqfóbicos, aos quais podemos acrescentar uma perspectiva ecocida, que servem de base ideológica à vulnerabilização de grupos populacionais já fragilizados 77. Mauriel APO, Kilduff F, Silva MM, Lima RS, organizadores. Crise, ultraneoliberalismo e desestruturação de direitos. Uberlândia: Navegando Publicações; 2020. Introdução; p. 11-22. .
Como outros autores notaram 99. Oliveira DL, Matos MC, Souza RO. Crise capitalista e desestruturação de direitos: seus efeitos na política de saúde e para os trabalhadores do setor. In: Mauriel APO, Kilduff F, Silva MM, Lima RS, organizadores. Crise, ultraneoliberalismo e desestruturação de direitos. Uberlândia: Navegando Publicações; 2020. p. 181-204. , essa investida configura aquilo que o filósofo camaronês Achille Mbembe caracterizou como necropolítica, isto é, a expressão de um poder soberano de matar ou expor à morte, seletivamente, segmentos da população. Enquanto a biopolítica, na conceptualização de Foucault, regula os fluxos da vida, segundo Mbembe 1010. Mbembe A. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: n-1 edições; 2018. , “a necropolítica orienta-se à decisão entre quem vive e quem morre” (p. 17), operando por meio da segmentação do território em “células de espaços de vulnerabilidade à morte” (p. 46). O fato de, em plena pandemia, o Governo Federal ter optado por canalizar recursos do setor social para o setor financeiro, deixando vastas camadas da população expostas à extrema vulnerabilidade e à morte – nomeadamente aquelas a que pertencem os sujeitos que participaram desta pesquisa –, é exemplar da natureza necropolítica do ultraneoliberalismo.
Estratégia metodológica
Os relatos de casos e extratos de narrativa utilizados nesse texto resultaram de uma pesquisa etnográfica de longa duração sobre processos de desinstitucionalização de pessoas com sofrimento mental, iniciada em 2015 e ainda em curso. Os casos estudados – 19 mulheres e homens acima de 18 anos – foram escolhidos por já terem vivido alguma experiência longa (seis meses ou mais) ou repetida (porta giratória) de manicomialização e/ou por relatarem vivências institucionalizadoras extra-asilares, que definimos como experiências de vida relacionadas a sensações de aprisionamento, destituição de si/despersonalização e/ou fortes impasses relacionais, gerando sentimentos de humilhação e revolta e produzindo atitudes de paralisia, imobilidade ou forte agressividade.
Escolhemos compreendermos o processo de (des)institucionalização a partir, principalmente, das dinâmicas produzidas por operadores de desinstitucionalização relacionados à autonomia dos sujeitos, à integralidade do cuidado e à equidade social. Definimos operadores de desinstitucionalização como processos, dinâmicas ou ações que produzem, executam ou disparam pontos de inflexão ou pontos de virada nas vidas e experiências dos sujeitos com histórico de institucionalização no sentido de favorecerem situações de inserção social e de recuperação.
Dentro do operador “autonomia”, apareceram nos relatos, com muita contundência, as ações de militância e ativismos, fundamentais para produzirem empoderamento, reconhecimento, de usuário/as da saúde mental e relações de interdependência deles com outros atores sociais, etc. Destacamos essas ações para analisar neste artigo pela relação e relevância que demonstraram com o tema do enfrentamento à pandemia de Covid-19. Para tanto, desenvolvemos uma análise hermenêutica crítica e reflexiva 1111. Bibeau G, Corin E, editors. Beyond textuality: asceticism and violence in anthropological interpretation. Berlin: De Gruyert; 1994. From submission to the text to interpretive violence; p. 3-54. das narrativas produzidas e das práticas concretas observadas e reconfiguradas a partir da presença implicada dos pesquisadores 1212. Nunes MO. Da aplicação à implicação na antropologia médica: leituras políticas, históricas e narrativas do mundo do adoecimento e da saúde. Hist Cienc Saude-Manguinhos. 2014; 21(2):403-20. .
Ao longo de vários anos, temos realizado uma etnografia do cotidiano dos casos escolhidos, transitando com estes nos espaços por eles franqueados aos pesquisadores do presente estudo, incluindo família, vizinhança, instituições de cuidado, igrejas, espaços de militância, grupos de ajuda mútua e outros, ampliando os participantes da pesquisa. Tendo em vista que a pandemia impôs restrições no contato físico e aprofundou a necessidade de pesquisas que fossem realizadas em ambiente digital 1313. Deslandes S, Coutinho T. Pesquisa social em ambientes digitais em tempos de COVID-19: notas teórico-metodológicas. Cad Saude Publica. 2020; 36(11):e00223120. doi: https://doi.org/10.1590/0102-311x00223120 .
https://doi.org/10.1590/0102-311x0022312... , passamos a estabelecer contato virtual com as pessoas, que já vínhamos acompanhando. Para este artigo, acrescentamos publicações em redes sociais, entre março e setembro de 2020, relacionadas às suas atuações.
As publicações em redes sociais contavam com a participação de usuários da rede de saúde mental, como grupos de WhatsApp e reuniões ocorridas de modo virtual, além de contatos pessoais, nos quais fomos acionados com o objetivo de participar de alguma mobilização específica para atender a necessidades de pessoas ou grupos de usuários. Nesses contatos, incluíram-se a organização de distribuição de cestas básicas, o encaminhamento para serviços de saúde de pessoas que apresentaram adoecimento físico, o socorro a pessoas que tiveram perdas materiais nas suas casas, etc. As narrativas estavam disponibilizadas nessas redes em forma de áudio (e foram transcritas), em forma escrita ou surgiram em conversas diretas por telefone com essas pessoas. Na elaboração do artigo, recolhemos essas narrativas nas redes e conversas diretas nas quais estivemos individualmente envolvidos. Em seguida, trabalhamos coletivamente cruzando esses materiais, com o objetivo de observar as regularidades que os atravessam, bem como as suas singularidades. A pesquisa foi aprovada em Comitê de Ética (n. 364.721, em 18/06/2013), com emenda para pesquisa on-line (no. 4.475.693, em 18/12/2020).
Agir para diminuir as aflições e os sofrimentos
Aretha* ddOs nomes seguidos de um asterisco são pseudônimos. telefona para avisar que Iasmin* está com fortes dores abdominais e precisa ser levada para um hospital que atende mulheres. “Iasmin* está muito resistente”, diz Aretha, “ela tem medo de ir para o hospital e ficar presa”. Iasmin já esteve por anos em situação de rua e teme reviver situações nas quais, durante internações, sofreu violências e constrangimentos. “Eu disse a ela que não tenha medo, porque agora ela é uma mulher empoderada. Ela faz parte do Papo de Mulher, da Comunidade de Fala (CdeF), ela é uma militante, ela não é mais sozinha, ela tem uma família!”, continua Aretha. Pede para que eu fale com outra participante, Suzana*, que tem uma irmã que trabalha no hospital. Decidem organizar uma vaquinha para subsidiar o transporte por Uber, por meio do qual Aretha e Suzana acompanham Iasmin* na consulta. O grupo de ajuda mútua CdeF, em que Aretha, Suzana e Iasmin participam e uma das autoras deste artigo colabora, também contribui financeiramente com Iasmin*, já que na sua casa falta alimento nesse momento de pandemia. É importante dizer que Iasmin* esperava a liberação da primeira parcela de auxílio emergencial, aprovado pelo Governo Federal, só no mês de setembro, enquanto a Covid-19 se manifestou na Bahia em março. A frase “a fome não pode esperar”, tantas vezes evocada pelo sociólogo Herbert José de Souza, o “Betinho”, no Brasil dos anos 1990, volta a ser uma máxima em um país que retornou a indicadores que o qualificam para inserção no mapa internacional da fome 1414. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de orçamentos familiares 2017-2018: análise da segurança alimentar no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE; 2020. .
Cenas como essa são frequentes desde que a pandemia assolou o Brasil. Já existiam anteriormente, mas foram muito acentuadas com o agravamento, durante a crise sanitária, da situação financeira e das condições de vida de boa parte da população, na qual se incluem o(a)s usuário(a)s da rede de saúde mental. Esse segmento apresenta elementos de vulnerabilização muito graves nesse momento no qual o distanciamento físico foi preconizado e o risco de contrair o coronavírus se torna uma ameaça vital. Trata-se de um grupo de pessoas que sofrem pelo frequente estigma atribuído àquele(a)s que apresentam algum sofrimento psíquico grave, o que lhes dificulta o acesso a empregos e à geração de renda; aumenta as barreiras de acesso a serviços gerais de saúde e de outros setores; dificulta o trânsito pela cidade e nega a eles a autonomia necessária para cuidarem de si e de outros que dependem de tais pessoas. Esse último aspecto não pode ser ignorado quando se têm evidências de que o BPC, que é o auxílio atribuído, entre outras, a pessoas com alguns tipos de transtorno mental graves, e o benefício do Programa de Volta para Casa (PVC), concedido àqueles que saíram dos manicômios depois de lá residirem, figuram como rendas fundamentais, se não as principais, em muitas famílias pauperizadas do país.
Com o advento da pandemia, essas dificuldades aumentaram para muitas dessas pessoas, tendo em conta que, ainda que os serviços de saúde mental tenham permanecido abertos, o seu funcionamento se modificou de modo a (embora mantivesse o atendimento necessário) evitar o deslocamento desnecessário para os serviços, protegendo usuário(a)s e equipes de profissionais, ambos mais expostos ao risco de contrair Covid-19. Ainda que compreendessem a necessidade do distanciamento físico, o(a)s usuário(a)s se ressentiram imediatamente dos benefícios do convívio mais cotidiano nos serviços, incluindo o exercício da sociabilidade com companheiros, auxílios na gestão das atividades rotineiras intermediados pelos trabalhadores desses serviços, refeições realizadas nesses locais (por vezes, a principal fonte de alimentação), atividades terapêuticas e oficinas, que organizavam o tempo desses usuários e produziam significado.
Os efeitos da pandemia sobre a qualidade e condições de vida dos usuários da rede de saúde mental se fizeram sentir com igual rapidez. Dificuldades financeiras e escassez de alimentos – pois muitos viviam de trabalhos informais (“bicos” e “corres”) –; falta de medicações (alguns usuários não tinham condições de buscá-los nos serviços e alguns medicamentos tinham seu fornecimento descontinuados); e inundações nas precárias residências em decorrência das chuvas foram problemas relatados.
A essas dificuldades materiais se acrescentavam aflições psíquicas pelas incertezas, perdas e medos, além do enorme sofrimento pela situação de confinamento (alguns manifestavam o reavivamento de sentimentos de segregação experimentados em tratamentos manicomiais). O medo do contágio também impedia o tratamento de doenças físicas, agravando o seu estado geral.
Se, por um lado, é evidente o aumento do sofrimento psicossocial produzido pela pandemia entre muitos usuários, por outro, foram inúmeras e surpreendentes as estratégias de enfrentamento organizadas e geridas por essas pessoas. Entre estas, observa-se a ativação de redes sociais preexistentes ou a criação de novas para finalidades específicas em função do problema a ser solucionado. Nessas redes se encontram pessoas de procedências variadas – como profissionais de saúde mental –, mas também pessoas ou agências entendidas como antigas ou possíveis aliadas, a exemplo da Rede Gerar de Economia Solidária, Associação Metamorfose Ambulante de usuários e familiares (Amea), Coletivo Baiano da Luta Antimanicomial, Defensoria Pública, Grupo Papo de Mulher, Trupe Os Insênicos e o gabinete de uma vereadora da cidade do Salvador.
A dádiva das trocas e alianças na reconvocação da militância
Bom dia a todas as companheiras e companheiros de luta! Eu acho que todos nós fazemos, dentro de um grupo, tudo o que se possa para ajudar o próximo. Mas ninguém dá o que não tem. Tudo o que a gente tem e o que a gente pode dar, muitas vezes, é as nossas lutas e as nossas garras. (Jonga*)
Assim começa a mensagem em áudio de WhatsApp de Jonga, um usuário militante, dentro de um dos grupos dos quais participa, quando pede ajuda para conseguir um celular para outro militante, Ricardo*. Em um discurso contundente sobre dádiva, Jonga elenca uma diversidade de aspectos fundamentais que encerram o ato de dar e receber, inscritos em um contexto de militância e de solidariedade de um grupo constituído por iguais (os companheiros de militância) e por diferentes (profissionais e usuários: aqueles que têm mais condições financeiras, escolaridade e empregos; e os que têm menos), particularizado por uma situação de pandemia (de distanciamento e de necessidade de conexão mediada por máquinas).
Uma música de fundo habitualmente tocada em candomblés de caboclo confere ritualidade e solenidade ao discurso. Há alguns anos, Jonga, homem negro, aderiu à umbanda e tem crescentemente assumido uma postura semelhante àquela que caracteriza uma das entidades mais célebres dessa religião, o Preto Velho, conhecido por sua sabedoria de pessoa idosa 1515. Santos ECM. O Preto Velho na Umbanda. Debates NER (Porto Alegre). 2010; 2(17):121-45. . Jonga encadeia, na sua fala, necessidades – de bens, de contato, de presença, de afetos, de táticas, de luta– a valores – generosidade, desprendimento, compreensão, solidariedade, gratidão e sinceridade. Ao mesmo tempo, relembra aos participantes do grupo, militantes da luta antimanicomial, da existência de uma ética que deve atravessá-lo, pautada no reconhecimento e no respeito mútuo, e que nega a indiferença, o descaso ou a negligência.
Quem pode ajudar, ajude, quem não pode, não ajude. Eu já tô sendo ajudado, que as coisas já têm chegado até a mim, eu só tenho a agradecer. Mas, quando a gente fala em um áudio alguma coisa, e a gente não tem nenhuma resposta de um grupo, que é em um coletivo que já tem anos de pessoas... e o que a gente quer é só ser ouvido e muitas vezes os áudios e as falas ser retornadas com gratidão, mesmo que as palavras sejam um “não”. Mas isso aqui é um grupo, é um coletivo. Bom dia a todas as companheiras e companheiros. Tudo o que eu tenho na minha casa foi doado e pra mim hoje me serve. Como em muitas casas de militantes. Mas o grupo fica morto, ninguém diz nada... só poucos companheiros falando. Tchu! Essa é a luta verdadeiramente que nós precisamos repensar. (Jonga)
No discurso de Jonga, fica clara a solidariedade que já caracteriza o grupo e a importância desses gestos para a sustentabilidade de usuários que usufruem das doações realizadas. No entanto, ele reclama, para além dos bens materiais, a necessidade da troca de afetos e de consideração pela troca de palavras: o silêncio é uma desconsideração, o silêncio não é um ato compatível com a relação de companheirismo, que exige e suporta a sinceridade entre os pares. Ele atenta para a circulação de bens no interior do grupo e para as trocas existentes: todos dão, todos recebem e todos têm uma dívida no grupo e para com o grupo. Mas esse princípio tácito só acontece se as pessoas dispõem do que oferecer.
As palavras de Jonga assumem particular significado quando interpretadas à luz do primoroso ensaio de Marcel Mauss 1616. Mauss M. Sociologie et anthropologie. Paris: Presses Universitaires de France; 1968. Essai sur le don. Forme et raison de l’échange dans les sociétés archaïques; p.143-279. sobre a dádiva, publicado em 1924. Mauss explicitava então o princípio comum que regula as relações sociais em todas as sociedades: a obrigação de dar, receber e retribuir. Tal como postulava, a dádiva cria sociabilidade, porque, entre os bens que faz circular, encontra-se a amabilidade e porque dá sentido às relações pela dimensão moral que porta, além de produzir novas alianças e fortalecer antigas. A dádiva inscreve aqueles que participam da sua troca em uma relação de anfitrião e de potencial hóspede, estabelecendo entre eles, como sintetiza Lanna 1717. Lanna M. Nota sobre Marcel Mauss e o ensaio sobre a dádiva. Rev Sociol Polit. 2000; 14:173-94. :
[...] uma troca espiritual, uma comunicação entre almas. [...]. Ao dar, dou sempre algo de mim mesmo. Ao aceitar, o recebedor aceita algo do doador. Ele deixa, ainda que momentaneamente, de ser um outro; a dádiva aproxima-os, torna-os semelhantes. (p. 176)
Esse aspecto caracteriza uma espécie de alienabilidade garantida pelo sentido ontológico da troca e parece claro quando Jonga continua:
Do jeito que vier é de acordo que a pessoa que recebe deve aceitar de coração e a pessoa que dá também dê de coração. Não adianta fazer uma campanha para dar a mim e não fazer para dar ao outro companheiro. Ricardo, mesmo que eu esteja com tablet , precisa do aparelho primeiro do que eu. Se vocês puderem fazer a campanha pra ajudar o companheiro Ricardo, no caso que possa, porque a gente não dá o que não tem, a gente só dá aquilo que tem, dê a Ricardo. (Jonga)
Como em um mantra ou refrão, Jonga repete o que aparece como a mensagem central do seu discurso: “a gente só dá aquilo que tem”, uma espécie de artifício retórico a lembrar que sempre se tem algo a dar: um objeto, uma ajuda, o capital social, a luta, a garra, a interação, a fala... ou o silêncio. Este último, como ele afirma, atesta a morte do grupo, impele-o a repensar a sua luta. Em última análise, pode-se suspeitar de que Jonga indaga às pessoas do grupo se elas têm algo a dar, como a lembrar de que não se faz parte de um grupo de militantes se não se tem nada a oferecer. Podemos pensar tratar-se do que Bourdieu chamou de illusio – nesse caso, diríamos, a illusio da militância –, ou seja, as regras do jogo, que implicam em valer a pena para as pessoas jogar aquele jogo, apaixonar-se pelo jogo 1818. Bourdieu P. Razões práticas sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus; 2005. É possível um ato desinteressado? p. 137-56. , e que Jonga vem reavivar nesse momento, por estas regras do jogo parecerem esquecidas quando deveriam ser do conhecimento de todos e estarem incorporadas e em ato.
Por sua vez, a militância está inscrita em um tecido social e responde àquilo que está posto, seja enquanto relações de poder e de interesse, seja enquanto lutas a serem travadas em função de necessidades, modos de operar da sociedade e formas de resistência. Podemos recordar que Mauss postulava que a dádiva pode operar no nível pessoal, pelas vias da retribuição, ou no nível coletivo – até no Estado – por intermédio da redistribuição de tributos. Se pensamos no Estado brasileiro atual, um Estado mínimo, que reduz sistematicamente as suas políticas de proteção social e o teto de gastos com educação, saúde, moradia, transportes, etc., que multiplica as privatizações e que favorece as elites econômicas, percebemos que todas essas ações se contrapõem à ideia de dádiva como redistribuição 1919. Neri MC. Qual foi o impacto da crise sobre a distribuição de renda e a pobreza? Rio de Janeiro: FGV Social; 2019. . Em uma tal estrutura social, não é de se estranhar que a compensação por essa ausência redistributiva seja buscada no nível individual e nas táticas de enfrentamento 2020. Certeau M. A invenção do cotidiano. Artes de fazer. 21a ed. Petrópolis: Vozes; 2014. , tipificadas culturalmente pelo que DaMatta 2121. DaMatta R. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco; 1984. chama do “jeitinho brasileiro”, ou que as organizações sociais ocupem o lugar do que Santos e Ferreira 2222. Santos BS, Ferreira S. A reforma do Estado-providência entre globalizações conflituantes. In: Hespanha P, Carapinheiro G, organizadores. Risco social e incerteza: pode o estado social recuar mais? Porto: Edições Afrontamento; 2001. p. 177-225. nomeiam de “sociedade-providência”.
O eclipse dos territórios sociais da militância e a virtualização das relações
Para Martinho*, usuário e militante da Amea, a noção de “ocupação do espaço público” constitui o princípio norteador das atividades específicas que coloca no campo da militância. Assim, quando inquirido sobre o que devem ser as prioridades da militância na saúde mental – e, concretamente, da Amea –, refere a iniciativa “Abraça Caps” e a sensibilização de profissionais e usuários para os princípios da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Foi precisamente em um Centro de Atenção Psicossocial (Caps) que Martinho teve contato com a Amea. O seu envolvimento com “Abraça Caps” ganha, pois, o sentido de retribuição de um dom que foi benéfico para a sua vida. A sua narrativa é pontuada por expressões como “o lugar do louco não é no hospício, é na sociedade”; “o lugar do usuário é ocupando os seus espaços, não em casa”. Ora, essa orientação para a reclamação e ocupação dos espaços públicos e de saúde pelos usuários só é possível por meio da união e da solidariedade. “Juntos e unidos venceremos” é outro dos seus motes.
No final de março de 2020, Martinho reportava que as pessoas não estavam indo aos Caps. As oficinas da Casa Gerar suspenderam as atividades e as reuniões da Amea foram interrompidas. Em dezembro de 2020, Martinho fazia o ponto da situação: as ações de militância encontram-se muito limitadas. Visita alguns Caps, mas com menor frequência, e mantém a distância sanitária, pois considera existir um risco elevado. Dado que vários militantes da Amea vivem em zonas periféricas na cidade, os encontros presenciais tornaram-se raros. A comunicação entre os seus membros passou a ser feita em um grupo de WhatsApp, que se tornou o seu principal fórum de discussão de ideias. Detectamos em Martinho uma certa frustração, relacionada à nova forma de comunicação. Em contrapartida, graças à CdeF, da qual também participa, mesmo socorrendo-se de um meio digital, e o WhatsApp, permanecem ativos e com capacidade de mobilização.
O afastamento físico entre os membros e a organização do diálogo na forma de uma partilha-depósito de mensagens de áudio em um espaço virtual dificultam as dinâmicas de interação propícias ao estabelecimento de vínculos interpessoais e resolução de conflitos. Assim, a tão desejada união, condição necessária à força do grupo, torna-se mais difícil de alcançar. Nesse contexto, Martinho passou a investir mais na dimensão de voluntariado, individualmente, em instituições de saúde para crianças com câncer e com HIV. Por iniciativa própria, continua a ir aos Caps oferecer o seu auxílio, locais em que, respeitando as orientações sanitárias, realiza performances teatrais. Nas circunstâncias da pandemia, é a forma que encontra de fazer o bem ao próximo e de cumprir o seu ideal militante de ocupação do espaço público.
Iasmin*, também militante na Amea e no “Papo de Mulher”, valoriza igualmente a iniciativa “Abraça Caps”. A prioridade fundamental é formar “representatividade” e “lideranças” nos Caps, de forma a desenvolver, nesses centros, o espírito da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Sua narrativa destaca os valores do empoderamento dos usuários e de transformação da saúde mental. As condições de eficácia da militância são pontuadas por frases como “a união da gente é que está movendo” e “militância é mediar entre elites e classe populares”, lutando contra o que chama de “saúde mental elitizada”. O empoderamento dos usuários se faz, pois, por meio da união do coletivo e da sua ação nos espaços públicos da saúde mental. Para Iasmin, o confinamento não constituiu, em si mesmo, um problema, pois já estava habituada a sair pouco de casa. No entanto, a impossibilidade de distanciamento físico no bairro onde vive causa-lhe ansiedade; e a proximidade da morte provocou-lhe sofrimento. Aspectos da sua rotina mudaram, por necessidade de adaptação a condições de vida ainda mais precárias. Felizmente, sentiu a solidariedade vinda de pessoas que nem imaginava receber ajuda. A Amea estava fechada. No entanto, refere que, com outros militantes, continuava a trabalhar em rede, nomeadamente, com a Defensoria e o Ministério Público. Com uma colega da mesma associação, formou um grupo de ajuda mútua para distribuir cestas básicas para quem não estava coberto pelo programa da prefeitura. No início de dezembro, reitera as dificuldades de compatibilizar a satisfação das necessidades mais básicas com o “isolamento social”. A gente “ou morre de Covid ou morre de fome”. Essas circunstâncias tiveram, inevitavelmente, impacto na vida da Amea. As reuniões presenciais não foram retomadas, mas têm tido lugar por meio do Google Meet e do WhatsApp (“a gente passou para a era digital”). Essa nova modalidade nem sempre favoreceu a coesão do movimento associativo. Iasmin* acalentava a perspectiva de voltar aos encontros presenciais, ainda que afirmando que tem adquirido muito conhecimento na adaptação ao novo meio.
A situação pandêmica reforçou algumas das tensões estruturantes dos grupos de militâncias e das suas formas de subjetivação ao acentuar um dado preexistente – o da própria vulnerabilidade – e a percepção da vulnerabilidade de outros usuários e de vizinhos. O eclipse dos territórios sociais de atuação da militância (Caps, oficinas e rua) provocou uma certa crise de sentido, pois deixou de haver rua ou outros espaços públicos que os usuários possam ocupar. Simultaneamente, as condições de distanciamento físico dificultaram a atualização da axiomática política emergente do coletivo. O difícil equilíbrio entre empoderamento e inflação do ego, obtido em interações, por vezes conflituosas, entre os membros das associações, foi também perturbado. As plataformas digitais de comunicação têm, neste capítulo, um peso significativo, mostrando-se incapazes de produzir o sentimento de união obtido pela copresença física.
Trocas e alianças em um contexto de pandemia e de economia ultraneoliberal
Com o acirramento das más condições de vida, as pessoas voltam a lutar pela sobrevivência no cotidiano e a viver em um presente absoluto, lutando pelo pão de cada dia. A preocupação se volta para organizar coletas solidárias, que garantam a distribuição de cestas básicas, e acionar redes de amigos, que possam socorrer pessoas com necessidades mais urgentes, garantindo assim a satisfação das mínimas necessidades de sobrevivência. Esse nível da luta, por vezes, produz conflitos quando se julga que algumas pessoas buscam se beneficiar em maior grau do que outras, não respeitando as partilhas equitativas, gerando denúncias sobre alguns usuários militantes que, eventualmente, dispõem de seu maior poder simbólico ou capacidade de produzir artimanhas para tirar maior proveito pessoal, seja de bens materiais ou de capital social. Esses, contudo, não têm sido acontecimentos tão frequentes assim. Observam-se mais gestos de generosidade quando membros desses grupos identificam aquelas pessoas mais necessitadas dos Caps e que, por sua condição de grave adoecimento ou maior passividade, não são capazes de se mobilizar, nem mesmo de tornar visíveis suas carências. Não raramente, os profissionais dos serviços também se mobilizam nessa direção e são de grande ajuda.
Ainda que, como falam Gopikumar e colaboradores 11. Gopikumar V, Padgett DK, Sarin A, Mezzina R, Willford A, Jain S. Mental health and the coronavirus: a global perspective. World Soc Psychiatry. 2020; 2(2):88‐93. , em um texto sobre a crise humanitária causada pela pandemia, as redes sociais presenciais estejam reduzidas ao essencial diante do distanciamento físico imposto – ou pelo menos estiveram –, constata-se que elas foram, de alguma forma, remobilizadas por aqueles que detinham maior expertise nessa tecnologia social, especialmente na sua modalidade virtual.
Um acontecimento recente atesta essa mobilização de trocas por meio da rede. Josuéliton de Jesus Santos, outro destacado usuário-militante baiano no campo da saúde mental, adoeceu gravemente e veio a falecer nesse interstício. Circulou muito cedo a notícia do seu internamento em hospital geral e muitas pessoas buscaram contribuir com recursos financeiros e com contatos na rede de saúde pública que facilitassem o seu deslocamento e de parte da família que o acompanhou nos hospitais onde esteve internado. Esse mesmo movimento ocorreu para ajudar no seu enterro. Todo esse processo culminou em uma cerimônia em sua homenagem na noite seguinte de sua morte, capitaneada de modo virtual por Renata Berenstein, diretora da trupe Os Insênicos, por intermédio da plataforma Zoom, reunindo dezenas de amigos e companheiros de luta. Poesias, vídeos, cards e mensagens de reconhecimento e de despedida foram trocados em um ritual de luto inventado para se adequar ao contexto da pandemia.
A morte de Josuéliton, capaz de mobilizar tantas pessoas para se reunirem e se reverem depois de tanto tempo dispersas, funcionou como um marco. Uma das imagens memoráveis que Josuéliton em vida usava para criticar momentos de inércia da rede de militantes, ou a deficiência de funcionamento da rede de saúde mental, era a da “rede furada”. Ele, que foi também pescador, sabia o significado de uma rede furada. O seu ritual de despedida nos fez relembrar essa metáfora. O sentimento de comunitas que experimentávamos naquele momento impulsionava o desejo de relançar a luta.
Naquela cerimônia virtual, também compareceram trabalhadores de saúde mental, reinvestindo na sua dupla ética do cuidado e da militância, comungando da dor da perda, mas também da esperança do ritual do luto de um amigo e da luta por (re)conquistar espaços e serviços em rede, fundamentais no acolhimento de velhas e novas necessidades sociais e de saúde mental agravadas pela crise sanitária.
A política da solidariedade: da lógica da sobrevivência à da resistência
A análise dos dados apresentados neste texto revela diversas formas de troca realizadas durante o período da pandemia pelo novo coronavírus entre pessoas com sofrimento mental, frutos de uma larga experiência de solidariedade precedente. Essa experiência se adquire, especialmente, pela participação em redes de militância e de ajuda mútua, em processos de aprendizagem prática que produzem novas sensibilidades, letramento em saúde e compreensão de táticas de ativismo na busca de superação de problemas do cotidiano. De um modo geral, o que se observa é que esses grupos não têm conseguido tempo, nem condições materiais e psicoemocionais para enfrentar os grandes desafios porque estão afogados em resolver as necessidades imediatas, sobretudo a fome e os riscos de morte, no ensejo de garantir a sobrevivência em uma sociedade marcada pela necropolítica. Isso coloca algumas questões: esse estado de coisas impede a resistência, ou a fomenta por intermédio de uma solidariedade que se afasta do individualismo exacerbado e da indiferença?
O que chamamos a “ illusio da militância” parece conferir regras do jogo que incitam interesses mais generosos, com expectativas de trocas mais fraternas e equitativas em função de reconhecimentos de diferenças entre as pessoas e os grupos que têm produzido desigualdades, especialmente aquelas de pertencimento de classe, já que gênero e raça ainda são dimensões menos reivindicadas. Os modos de trocas e partilhas já fazem evidenciar os benefícios da pertença a grupos organizados e dos seus efeitos de empoderamento 2323. Santos MRP. Juntos na luta: a trajetória de uma associação de usuários e familiares dos serviços de saúde mental na cidade de Salvador, Bahia [dissertação]. Salvador: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia; 2012. . Se, por um lado, pode-se evidenciar alguns resquícios de assistencialismo, herança de uma sociedade que naturalizou a desigualdade e a falta de direitos, por outro, nota-se o sentido de identidade e transmissibilidade conferido pela dádiva, pelo processo de semelhança e proximidade ontológica entre os que dão e os que recebem. A “illusio da militância” inscreve, também, na sua compreensão um sentimento de fratria/ família, que aparece frequentemente em grupos de apoio, nos quais o valor do amparo e do cuidado mútuo são primordiais, ao que se acresce, no grupo de militância, a ideia de “companheiros de luta” 2323. Santos MRP. Juntos na luta: a trajetória de uma associação de usuários e familiares dos serviços de saúde mental na cidade de Salvador, Bahia [dissertação]. Salvador: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia; 2012. , imprimindo o valor político das trocas, ou, no dizer de Jonga, “Tudo o que a gente tem e o que a gente pode dar, muitas vezes, é as nossas lutas e as nossas garras”.
Agradecimentos
Aos participantes e militantes da Associação Metamorfose Ambulante, da CdeF e do “Papo de Mulher” de Salvador, Bahia, e a Richard Weingarten pelo apoio inestimável à CdeF durante a pandemia. Os autores agradecem ainda o apoio no âmbito do projeto “PSYGLOCAL – Sofrimento psíquico e direitos humanos: epistemologias da saúde mental, políticas e ativismo na psiquiatria", financiado pela FCT - Fundação para a Ciência e Tecnologia. Referência PTDC/FER-HFC/3810/2021.
Referências
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- dOs nomes seguidos de um asterisco são pseudônimos.
- Financiamento: Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb); bolsa de estudos da Capes obtida pela autora principal para realizar estágio sênior na Universidade de Coimbra, Portugal.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
20 Jan 2023 - Data do Fascículo
2023
Histórico
- Recebido
27 Abr 2022 - Aceito
10 Ago 2022