Um modelo teórico-metodológico para análises de políticas com longas trajetórias e ação de atores em prol da mudança e da estabilidade

Un modelo teórico-metodológico para el análisis de políticas con largas trayectorias y acción de actores en pro del cambio y de la estabilidad

Hêider Aurélio Pinto Soraya Vargas Côrtes Sobre os autores

Resumos

Políticas públicas, frequentemente, estão associadas a legados históricos constituídos em processos políticos nos quais atores agem em prol da mudança ou da estabilidade institucional. Este artigo apresenta uma proposta teórico-metodológica que usa o process tracing na identificação dos processos mais relevantes para o estudo da trajetória de políticas, por intermédio das lentes teóricas oferecidas pelos estudos sobre processo político e Teoria da Mudança Institucional Gradual. Essa abordagem teórico-metodológica possibilitou a identificação e a compreensão da influência de diferentes atores, de arranjos institucionais e mudanças na política para a força de trabalho médica (PFTM) da década de 1960 a 2010, bem como propiciou que se apreendesse na análise a importância da ação de atores que dirigiram o Ministério da Saúde, a partir de 2003, interessados em direcionar a PFTM às necessidades do Sistema Único de Saúde (SUS).

Palavras-chave
Recursos humanos em saúde; Análise de política pública; Metodologia


Con frecuencia, las políticas públicas están asociadas a legados históricos constituidos en procesos políticos en los cuales los actores actúan en pro del cambio o de la estabilidad institucional. Este artículo presenta una propuesta teórico-metodológica que usa el process tracing en la identificación de los procesos más relevantes para el estudio de la trayectoria de políticas por intermedio de las lentes teóricas ofrecidas por los estudios sobre proceso político y Teoría del Cambio Institucional Gradual. Ese abordaje teórico-metodológico posibilitó la identificación y la comprensión de la influencia de diferentes actores, de arreglos institucionales y cambios en la política para la fuerza de trabajo médica (PFTM) de la década de 1960 a 2010, así como propició que se captase en el análisis la importancia de la acción de actores que dirigieron el Ministerio de la Salud, a partir de 2003, interesados en dirigir la PFTM hacia las necesidades del Sistema Único de Salud.

Palabras clave
Recursos humanos en salud; Análisis de política pública; Metodología


Introdução

Este artigo tem como objetivos apresentar um modelo teórico-metodológico que permite analisar atores e arranjos institucionais que influenciam uma política com trajetória de longo prazo(c(c)O artigo é fruto de uma pesquisa de doutorado que analisou sessenta anos da trajetória da PFTM no Brasil, bem como as mudanças mais importantes que ocorreram nesse período e quais fatores foram responsáveis por elas.) e, usando como recurso a sua aplicação para a análise do Programa Mais Médicos (PMM) na trajetória da política para a força de trabalho médica (PFTM) no Brasil, apresentar resultados relacionados à trajetória dessa política. Trata-se de um quadro que pode ser aplicado na análise de políticas de longa duração, no setor saúde ou em outros.

Revisando a literatura, identificou-se que grande parte das pesquisas que abordam a política para força de trabalho em saúde (PFTS) e, especificamente a PFTM, foca em problemas da área de recursos humanos11 Observatório de Recursos Humanos em Saúde do Núcleo de Educação em Saúde Coletiva. Relatório final: estudo de levantamento de aspectos demográficos, de formação e de mercado de trabalho das profissões de saúde nível superior no brasil entre 1991 e 2010. Belo Horizonte: UFMG; 2014.,22 Girardi S, Carvalho CL, Maas LWD, Farah J, Freire JA. O trabalho precário em saúde: tendências e perspectivas na Estratégia de Saúde da Família. Divulg Saude Debate. 2010; 45:11-23., em soluções formuladas para enfrentá-los33 Maciel Filho R. Estratégias para a distribuição e fixação de médicos em sistemas nacionais de saúde: o caso brasileiro [tese]. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2007.,44 Petta HL. Formação de médicos especialistas no SUS: descrição e análise da implementação do programa nacional de apoio à formação de médicos especialistas em áreas estratégicas (Pró-Residência). Rev Bras Educ Med. 2013; 37(1):72-9. e em um conjunto de ações do governo federal para a área em um dado período55 Dias HSA, Lima LD, Teixeira M. A trajetória da política nacional de reorientação da formação profissional em saúde no SUS. Cienc Saude Colet. 2013; 18(6):1613-24.. Os estudos utilizam, principalmente, referenciais teóricos comumente usados na área de recursos humanos em saúde, em alguns casos combinados com elementos da sociologia das profissões; raramente utilizando instrumental teórico do campo de análise de políticas públicas. Quando abordam um programa específico, priorizam a análise das normas nacionais que o disciplinam, considerando seus objetivos, significados e efeitos potenciais ou alcançados e o contexto de criação do programa em estudo.

Ao analisar trajetórias de longo prazo de uma política como a PFTM, observou-se que muitas ações estatais que pareciam novas, como programas, mudanças normativas e decisões, já haviam sido propostas, analisadas e, frequentemente, bloqueadas em momentos anteriores. Em vez de “novidades”, tratava-se de legados históricos que retornavam ao debate público propostos em um momento no qual o bloqueio da proposta, realizado por atores interessados na manutenção do status quo, era passível de ser desafiado por atores interessados em mudança. Para compreender esse processo político, foi necessário caracterizar atores interessados na conservação ou na mudança institucional, em diferentes contextos históricos, identificar suas posições, seus interesses, seus projetos para área de Saúde, suas ideias e seus modos de atuação de longo prazo. Além disso, foi preciso analisar os arranjos institucionais e circunstâncias conjunturais que oportunizaram ou restringiram a mudança, ao longo do tempo, para entender como influenciaram as estratégias e os recursos desses atores.

O modelo teórico-metodológico proposto é capaz de identificar e tratar evidências referentes a longos períodos históricos e de apoiar a análise da ação e do protagonismo de atores sociais, individuais e coletivos, relacionando a análise com a realização ou o bloqueio de mudanças institucionais. Utilizou recursos teóricos oferecidos pelos estudos sobre processo político (public policy process)66 Birkland TA. An introduction to the policy process - theories, concepts, and models of public policy making. New York: Routledge; 2016. e pela Teoria da Mudança Institucional Gradual (TMIG)77 Mahoney J, Thelen K, editors. Explaining institutional change: ambiguity, agency, and power. Cambridge: Cambridge University Press; 2009. A theory of gradual institutional change; p. 1-37.. O primeiro referencial apoiou a análise das relações sociais entre organizações e atores, individuais e coletivos, societais e governamentais, ao longo do tempo; o segundo, a análise da mudança institucional considerando o arranjo institucional vigente, as mudanças realizadas, o contexto político e as estratégias dos atores visando à mudança ou à conservação do arranjo institucional diante das restrições e oportunidades que as circunstâncias estabeleciam para sua ação.

Na seção seguinte, apresenta-se o modelo teórico-metodológico que sintetiza os recursos teóricos, os conceitos e as estratégias metodológicas que o artigo propõe para a análise de políticas de longa duração. Utilizou-se a análise bibliográfica para embasar, conceituar e discutir as proposições teóricas e metodológicas do modelo proposto. A última seção oferece um exemplo de aplicação desse modelo proposto à análise do PMM na trajetória da PFTM no Brasil. Sendo uma aplicação, a metodologia desse estudo específico está detalhada na segunda seção. Importa destacar que foram realizados todos os procedimentos éticos. A pesquisa foi aprovada em Comitê de Ética em Pesquisa (CEP-UFRB-05760818.9.1001.0056). Foram realizadas análises bibliográfica e documental, de normas legais e administrativas de programas da PFTM, de textos publicados na grande mídia e sites de entidades da sociedade civil, com maior ênfase no período de 2003 a 2018. Foram feitas 19 entrevistas semiestruturadas com informantes-chave que, entre 2003 e 2018, foram protagonistas na formulação da PFTM (Quadro 1), tendo sido gravadas, transcritas e codificadas em algarismos arábicos.

Quadro 1
Entrevistados

A proposição de um modelo teórico-metodológico para análise de políticas com longas trajetórias

Com o intuito de analisar a trajetória de uma política que se estende por décadas, um dos desafios é definir qual é a estratégia metodológica de identificação, sistematização e análise de evidências. O modelo proposto neste artigo sugere o uso do process tracing88 Bennett A, Checkel JT, editors. Process tracing: from metaphor to analytic tool. Cambridge: Cambridge University Press; 2015., que permite examinar trajetórias históricas, documentos, transcrições de entrevistas e outras fontes para verificar se possíveis explicações derivadas de teorias são válidas ou devem ser refinadas ou modificadas, considerando as diversas variáveis que interferem em um caso. Tal estratégia busca identificar cadeias e mecanismos causais, entendidos como construtos teóricos elaborados pelos pesquisadores que focalizam dimensões da realidade apontadas pelas teorias como passíveis de influir ou determinar um evento ou um fenômeno. Tem o objetivo de formular teorias de médio alcance que expliquem o evento ou o fenômeno.

Outro elemento importante é identificar o espaço mesossocial que será considerado para estudo, concebido como uma ordem social que sofre influências do sistema político mais amplo e da estrutura social e econômica, mas tem autonomia relativa, regras específicas e determinados arranjos institucionais que são influenciados e influenciam as ações dos atores sociais, conforme a posição que eles ocupam nessa ordem social. No modelo proposto, o espaço “mesossocial” foi entendido como um subsistema, que pode ser definido como uma unidade setorial de produção de políticas públicas, uma estrutura de poder estratificada que distribui recursos políticos e materiais desiguais e é arena de embate entre os atores que defendem diferentes soluções para problemas de políticas públicas99 Adam S, Kriesi H. The network approach. In: Sabatier PA, editor. Theories of the Policy Process. Boulder: Westview Press; 2007. Chap 5, p. 129-54.,1010 True JL, Jones BD, Baumgartner FR. Punctuated-Equilibrium Theory: explaining stability and change in public policymaking. In: Sabatier PA, editor. Theories of the Policy Process. Boulder: Westview Press; 2007. Chap. 6, p. 155-88..

Com efeito, em um dado período e considerando um subsistema de políticas, uma parte de um subsistema ou mesmo interfaces entre subsistemas distintos, o foco da análise deve ser a caracterização da trajetória da política, examinando legados históricos e demais fatores que mais a influenciaram, relacionados, no mínimo, a duas dimensões explicativas: uma formada pela ação dos atores que agiram e/ou agem com vistas à sua estabilidade ou à sua mudança, e outra que considera o arranjo institucional vigente no subsistema, bem como as mudanças nele realizadas. Uma articulação entre a caracterização da trajetória, as dimensões analíticas e a reunião de evidências está no Quadro 2.

Quadro 2
Estratégia de reunião de evidências no estudo

A depender do objeto, das questões e hipóteses da pesquisa, podem ser analisados documentos como leis, decretos, portarias e resoluções, textos publicados na mídia e meios próprios de comunicação dos governos e de organizações da sociedade civil. É oportuno realizar entrevistas com atores-chave, especialmente quando há pouca documentação que permita analisar mais profundamente as posições, as ideias, os projetos e as ações dos atores que protagonizaram a disputa da política em análise; ou quando essa documentação não é suficiente para compreender elementos do arranjo institucional que influenciaram de modo significativo o processo político. Na análise dos textos dos documentos e das entrevistas, além de utilizar uma técnica comumente usada na Saúde Coletiva, a Análise de Conteúdo1111 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2014., mostrou-se muito útil a técnica de Análise Crítica de Discurso Político1212 Fairclough I, Fairclough N. Political discourse analysis: a method for advanced students. New York: Routledge; 2012., dadas suas especificidades para o estudo dos objetivos, dos valores, das preocupações e circunstâncias de ação dos atores que protagonizam a disputa política (politics) de uma política pública (policy).

Além disso, o modelo teórico-metodológico proposto combinou, principalmente, recursos teóricos oferecidos pelos estudos sobre processo político (public policy process)66 Birkland TA. An introduction to the policy process - theories, concepts, and models of public policy making. New York: Routledge; 2016. e pela Teoria da Mudança Institucional Gradual (TMIG)77 Mahoney J, Thelen K, editors. Explaining institutional change: ambiguity, agency, and power. Cambridge: Cambridge University Press; 2009. A theory of gradual institutional change; p. 1-37.. O primeiro referencial apoiou a análise das relações sociais entre organizações e atores, individuais e coletivos, societais e governamentais. Subsidiou a análise do papel desses atores considerando seus objetivos, interesses, suas ideias e ações na formulação da política analisada, nos contextos em que regras, concebidas como instituições, balizam as possibilidades de definição de problemas de políticas públicas e suas soluções.

O modelo utiliza os conceitos de comunidade política1313 Cortes SV, Lima LL. A contribuição da sociologia para a análise de políticas públicas. Lua Nova. 2012; 87:33-62., de Rede Temática1414 Rhodes RAW. Policy network analysis. In: Goodin RE, Moran M, Rein M, editors. The Oxford handbook of public policy. Oxford: Oxford University Press; 2008. Chap. 20, p. 425-47. e de empreendedores de política1515 Kingdon JW. Agendas, alternatives and public policies. 2nd ed. New York: Longman; 2011. para identificar e analisar os atores que mais influenciaram a trajetória da política. Uma comunidade política é um grupo mais ou menos coeso de atores individuais e coletivos, com diferentes posições institucionais e relações entre si, que compartilham objetivos, interesses, ideias e se especializam sobre uma questão, desenhos e resultados de políticas setoriais, atuando de maneira coordenada para afetar processos decisórios e tornar seus posicionamentos predominantes no governo1313 Cortes SV, Lima LL. A contribuição da sociologia para a análise de políticas públicas. Lua Nova. 2012; 87:33-62.. Uma Rede Temática é um grupo no qual os membros participam de modo mais flutuante, dispõem de recursos desiguais e se reúnem para discutir, formular e propor soluções relacionadas a um tema sobre o qual há ausência de consenso e presença de conflitos1414 Rhodes RAW. Policy network analysis. In: Goodin RE, Moran M, Rein M, editors. The Oxford handbook of public policy. Oxford: Oxford University Press; 2008. Chap. 20, p. 425-47.. Empreendedores de políticas são atores-chave individuais que exercem liderança e podem produzir coordenação em grupos, que criam ou aproveitam oportunidades e meios para colocar problemas e soluções que defendem em evidência e, ainda, buscam viabilizar um processo político favorável para a decisão de entrada do problema e de solução na agenda governamental1515 Kingdon JW. Agendas, alternatives and public policies. 2nd ed. New York: Longman; 2011..

A TMIG77 Mahoney J, Thelen K, editors. Explaining institutional change: ambiguity, agency, and power. Cambridge: Cambridge University Press; 2009. A theory of gradual institutional change; p. 1-37. é uma teoria herdeira do neoinstitucionalismo histórico que enfatiza os legados históricos, assumindo que eventos anteriores estabelecem parâmetros e afetam decisões e eventos subsequentes, bem como a dinâmica da relação agente-estrutura. Apoiou a análise das instituições como regras e instrumentos de distribuição desigual de recursos e, por isso, carregadas de implicações de poder e repletas de tensões. Desse modo, atores em posições dominantes, no ambiente estatal ou societal, têm mais recursos para manter ou melhorar sua condição privilegiada e realizar seus objetivos. Porém, para garantir a estabilidade de um arranjo institucional, precisam mobilizar continuamente o apoio político, fazer que os responsáveis pela aplicação das regras as cumpram e resolver ativamente, a seu favor, as ambiguidades institucionais. Com isso, a “conformidade” (compliance) – entendida como efetivo cumprimento e subordinação às regras – é uma variável crucial para a análise da estabilidade e da mudança institucional. A mudança, segundo a TMIG, pode ser desencadeada por dispositivos distintos e acontecer devido a fatores externos e/ou internos ao espaço analisado, sendo resultado da ruptura dos equilíbrios então vigentes. Para os autores, as características do arranjo institucional e do contexto político – marcado pelo poder de veto que alguns atores e espaços de decisão exercem sobre as ações possíveis – influenciam quais estratégias de mudanças têm maior ou menor chance de êxito.

A depender das necessidades do estudo, outros conceitos e teorias podem ser combinados neste modelo teórico-metodológico, contanto que compartilhem pressupostos ontológicos e epistemológicos com os estudos do processo político e da TMIG, ou que os conceitos utilizados provenientes de teorias, que adotam outros pressupostos, sejam ressignificados. Na próxima seção, apresenta-se a análise da formulação do PMM, um caso no qual foi aplicado o modelo teórico-metodológico proposto neste artigo.

Uma aplicação do modelo teórico-metodológico: a análise do Programa Mais Médicos na trajetória da PFTM

A maioria dos estudos sobre a emergência do PMM circunscreveu a análise ao período de seu lançamento1616 Pinto HA. O que tornou o Mais Médicos possível? Análise da entrada na agenda governamental e da formulação do Programa Mais Médicos [tese]. Porto Alegre: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2021., o que não permitiu identificar que a trajetória pretérita do processo político de construção da PFTM fora marcada por tensões relacionadas às necessidades do sistema público de saúde e às resistências a mudanças na política para atender tais necessidades. Também deram pouco destaque ao fato de que os esforços pela mudança no passado, com resultados limitados, se concretizaram em elementos já existentes em programas anteriores que foram incorporados ao desenho do programa. Ao examinar a PFTM no Brasil, ao longo do tempo, foi possível reconstituir o processo de construção desses legados históricos por meio da revisão da literatura que mostra, desde a década de 1960, que vêm sendo propostos programas e ações pontuais que conformaram a PFTM no país33 Maciel Filho R. Estratégias para a distribuição e fixação de médicos em sistemas nacionais de saúde: o caso brasileiro [tese]. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2007.,1616 Pinto HA. O que tornou o Mais Médicos possível? Análise da entrada na agenda governamental e da formulação do Programa Mais Médicos [tese]. Porto Alegre: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2021.. Nesta seção, apresenta-se uma aplicação do modelo teórico-metodológico defendida neste trabalho que analisa a estabilidade histórica de uma área de política pública, a PFTM, que, até então, sofrera apenas mudanças incrementais: as mudanças nessa política no período de 2010 a 2013, bem como a restauração, em grande medida, da situação anterior a partir de 2016.

A análise identificou que os subsistemas de políticas de saúde e de educação, entendidos como unidades setoriais de produção de políticas, são decisivos na formulação de programas, no processo decisório e na produção normativa da PFTM, o que ocorre não apenas no Brasil1717 World Health Organization. Increasing access to health workers in remote and rural areas through improved retention: global policy recommendations. Geneva: WHO; 2010.. O conceito de subsistema evitou que a análise se restringisse às ações do governo e às ações e reações das entidades médicas, possibilitando a compreensão da complexidade do cenário no qual atores e espaços institucionais dos dois subsistemas participam nas decisões e formulações das políticas públicas. Como outros estudos já apontaram1818 Almeida VP Jr. Uma análise do processo de formação das políticas de avaliação da educação superior no Brasil. Rev Aval Educ Super. 2005; 10(1):9-30.

19 Côrtes SV. Participação e saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2009.
-2020 Paim JS. Uma análise sobre o processo da Reforma Sanitária brasileira. Saude Debate. 2009; 33(81):27-37., identificou-se em ambos os subsistemas a atuação relevante de diversos atores, como parlamentares, dirigentes de órgãos do Executivo e outras instituições públicas, acadêmicos e líderes de organizações da sociedade civil. O modelo proposto mostrou que existiam tanto dirigentes governamentais, parlamentares, médicos e acadêmicos que defendiam a manutenção do status quo na PFTM, quanto aqueles que propunham mudanças para que ela respondesse às necessidades do Sistema Único de Saúde (SUS).

O conceito de comunidade política, por sua vez, foi fundamental para compreender como os atores agregados em comunidades se articulavam, quais eram as ideias que compartilhavam e o que os diferenciava. O estudo mostrou que os atores coletivos que mais influenciaram a trajetória das PFTM foram três comunidades políticas: Movimento Sanitário (CP-M Sanitário), Defesa da Regulação pelo Mercado (CP-R Mercado) e a Defesa da Medicina Liberal (CP-M Liberal). Além disso, utilizou-se o conceito de rede temática, que permitiu identificar e caracterizar a Rede Temática Educação Médica (Rede-EM), e o de empreendedores de política, para compreender a ação de atores individuais que tiveram importante papel de liderança na formulação dos programas analisados e na coordenação das comunidades e da rede temática1616 Pinto HA. O que tornou o Mais Médicos possível? Análise da entrada na agenda governamental e da formulação do Programa Mais Médicos [tese]. Porto Alegre: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2021..

A CP-M Sanitário defende que o SUS deve ordenar a PFTS em função das necessidades do próprio sistema. Na análise, foi possível identificar a existência de três subgrupos dentro da CP-M Sanitário, considerando componentes, prioridades e modos de atuação. O primeiro subgrupo é o mais comumente chamado de “Movimento Sanitário”, que reúne especialistas, pesquisadores, docentes e é liderado por entidades como a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e Rede Unida. Defende, desde o final dos anos 1970, a Reforma Sanitária e prioriza a mudança em aspectos estruturais do sistema que limitam a implementação do SUS de acordo com os princípios constitucionais. O segundo grupo é composto por atores individuais e coletivos que atuam no setor saúde, principalmente no Executivo, mas também no Legislativo. É liderado por gestores do SUS, marcadamente dirigentes do Ministério da Saúde (MS) e núcleos organizativos do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems). Tem uma atuação mais voltada para a defesa de ideias programáticas e soluções que superem as dificuldades da gestão cotidiana do SUS. O terceiro é liderado por dirigentes de sindicatos e organizações da sociedade civil que, segundo Côrtes1919 Côrtes SV. Participação e saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2009., a partir da década de 1990, focalizou nacionalmente sua atuação no Conselho Nacional de Saúde (CNS) e passou a defender propostas mais voltadas a objetivos específicos dos trabalhadores de saúde e de organizações de usuários do SUS.

CP-R Mercado é composta por atores vinculados ao complexo médico-industrial, ao capital financeiro na saúde, às mantenedoras e Instituições de Ensino Superior (IES) privadas e seus apoiadores nos meios de comunicação, academia, poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Defende a provisão privada de serviços de saúde e de educação e que a regulação seja feita pelo mercado, com o mínimo de interferência do Estado e sem a imposição de condicionantes extramercado que visam o controle de preços da força de trabalho e dos serviços médicos. Para a CP-R Mercado, é o mercado que deve regular a distribuição, remuneração, escopo de práticas e formação dos profissionais de saúde, incluindo o conteúdo da formação, a quantidade e a localização das vagas de graduação e pós-graduação.

A CP-M Liberal é composta pelas entidades médicas, principalmente Conselho Federal de Medicina (CFM) e Associação Médica Brasileira (AMB); por atores, em geral médicos, que participam na gestão federal da saúde e da educação, particularmente em órgãos colegiados, comissões e setores administrativos encarregados de discutir “assuntos médicos”; por parlamentares, também geralmente médicos; por dirigentes de serviços de saúde, especialmente nos hospitalares; e por médicos que atuam nas IES. Essa comunidade age para manter condições favoráveis, consideradas dominantes entre as profissões de saúde e conquistadas ao longo do tempo pelos médicos2121 Girardi SN, Fernandes H Jr, Carvalho CL. A regulamentação das profissões de saúde no Brasil. Espaç Saude. 2000; 2(1).

22 Carapinheiro G. Saberes e poderes no hospital. 4a ed. Porto: Edições Afrontamento; 2005.

23 Donnangelo MCF. Medicina e sociedade: o médico e seu mercado de trabalho. São Paulo: Pioneira; 1975.

24 Schraiber LB. O trabalho médico: questões acerca da autonomia profissional. Cad Saude Publica. 1995; 11(1):57-64.

25 Machado MH. Os médicos no Brasil: um retrato da realidade. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1997.
-2626 Campos GWS. Os médicos e a política de saúde. São Paulo: Hucitec; 1988., e se opõe a mudanças na PFTM então vigente. Defende o uso de mecanismos extramercado para controlar as remunerações e posiciona-se contra regulações do Estado e do mercado2121 Girardi SN, Fernandes H Jr, Carvalho CL. A regulamentação das profissões de saúde no Brasil. Espaç Saude. 2000; 2(1).

22 Carapinheiro G. Saberes e poderes no hospital. 4a ed. Porto: Edições Afrontamento; 2005.

23 Donnangelo MCF. Medicina e sociedade: o médico e seu mercado de trabalho. São Paulo: Pioneira; 1975.

24 Schraiber LB. O trabalho médico: questões acerca da autonomia profissional. Cad Saude Publica. 1995; 11(1):57-64.

25 Machado MH. Os médicos no Brasil: um retrato da realidade. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1997.
-2626 Campos GWS. Os médicos e a política de saúde. São Paulo: Hucitec; 1988.. A CP-M Liberal defende a Medicina como uma profissão liberal, demanda atuação do Estado para controlar o mercado privado de educação e impedir o aumento de vagas de graduação e residência médicas. Se, por um lado, defende a produção de legislação que proteja – ou amplie – as prerrogativas da profissão, à exceção da fiscalização para o cumprimento de tais prerrogativas, considera que deve ser mínima a atuação proativa do Estado na regulação profissional, na definição do escopo de práticas profissionais, no provimento de médicos e na definição do conteúdo da formação.

A análise permitiu, ainda, a identificação e a caracterização de atores individuais, empreendedores de políticas, que agiam liderando comunidades políticas e rede temática atuando tanto para a manutenção do status quo quanto para a promoção de mudanças na PFTM. Os empreendedores foram decisivos na criação de programas como o Revalida, Provab e PMM; em contraste, a ausência de empreendedores na defesa da proposta de Serviço Civil Obrigatório é uma das razões para sua não implementação1616 Pinto HA. O que tornou o Mais Médicos possível? Análise da entrada na agenda governamental e da formulação do Programa Mais Médicos [tese]. Porto Alegre: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2021.. No período 2003-2010, os empreendedores de mudança na PFTM integravam a CP-M Sanitário, enquanto, no período de 2011-2016, os principais empreendedores de mudança participavam da CP-M Sanitário e da Rede-EM. Após 2016, os empreendedores mais atuantes integravam a CP-M Liberal (Entrevistas 1; 2; 3; 4; 5; 6; 8; 9; 10; 12; 13; 14; 15; 16).

Integravam a Rede-EM, membros da CP-M Sanitário e da CP-M Liberal. A Rede-EM influenciou a ação e as ideias de diversos atores decisivos na formulação da PFTM. Cyrino et al.2727 Cyrino EG, Pinto HA, Oliveira FP, Figueiredo AM. The Project “Mais Médicos” and training in and for the Brazilian Health System (SUS): why change it? Esc Anna Nery Rev Enferm. 2015; 19(1):5-6. mostram que integrantes dessa rede lideraram a defesa e produziram as propostas que se tornaram as principais referências para os processos de mudanças na formação em saúde desde os anos 1970, particularmente no esforço de torná-la mais próxima das necessidades de saúde da população. Os núcleos organizativos da rede eram a Associação Brasileira de Educação Médica (Abem) e a Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina (Denem). A partir dos anos 1980, na Denem, foram sedimentados projetos e ideias, o que se tornou um espaço de formação política de médicos, reconhecidos por diversos atores, tanto da CP-M Liberal quanto da CP-M Sanitário, como “geração Denem” (Entrevistas 1; 2; 8; 7; 9; 10; 12; 13; 15; 16), que, mais tarde, passaram a atuar na gestão do SUS e na docência médica. Na década de 1990, integrantes da Rede-EM e, também, da CP-M Liberal e da CP-M Sanitário promoveram a criação da Comissão Interinstitucional Nacional de Avaliação do Ensino Médico (Cinaem), entidade da sociedade civil majoritariamente composta por entidades médicas que liderou a formulação de propostas de mudança dos cursos de Medicina.

O modelo teórico-metodológico proposto permitiu identificar que os empreendedores responsáveis pelas mudanças na PFTM, especialmente entre os anos de 2011 e 2016, eram membros da Rede-EM, egressos da Denem e adversários de integrantes da CP-M Liberal desde a década de 2000. Atuando em espaços institucionais distintos, compartilhavam trajetórias de ação política e profissional na área de Saúde – marcadas por conflitos com lideranças da CP-M Liberal na Rede-EM, na Cinaem, em eleições das entidades médicas, na posição quanto à Lei do Ato Médico, na criação do Provab e no PMM – e nas ideias de como considerar a questão da educação médica como prioritária para melhoria do SUS.

O modelo desenvolvido permitiu, ainda, que fossem analisados os arranjos institucionais dos subsistemas de políticas públicas de Educação e Saúde, particularmente no que se refere à PFTS e à PFTM. No caso da PFTS, a literatura mostra que, mesmo em países com forte tradição de intervenção estatal, como a França, há delegação de algumas funções regulatórias do Estado para as organizações profissionais1717 World Health Organization. Increasing access to health workers in remote and rural areas through improved retention: global policy recommendations. Geneva: WHO; 2010.,2121 Girardi SN, Fernandes H Jr, Carvalho CL. A regulamentação das profissões de saúde no Brasil. Espaç Saude. 2000; 2(1).,2222 Carapinheiro G. Saberes e poderes no hospital. 4a ed. Porto: Edições Afrontamento; 2005.,2525 Machado MH. Os médicos no Brasil: um retrato da realidade. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1997.. No Brasil, é o Congresso Nacional que legisla sobre as profissões, definindo escopo de práticas, modos de habilitação, atos exclusivos e pisos remuneratórios. A formação profissional é regulada pelo MEC que, por meio do Conselho Nacional de Educação (CNE), regulamenta a formação, estabelecendo pré-requisitos, currículos e normas gerais. A Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM), órgão colegiado do MEC, faz o mesmo para a residência médica. O MS participa pouco das decisões sobre as profissões de saúde; sua atuação se limita à emissão de pareceres, que podem ou não ser acatados pelo Congresso Nacional e pelo MEC, e à participação em fóruns de decisão no MEC que tratam da educação médica. Mesmo o CNS, vinculado ao MS, tem um papel menor do que aquele que a legislação estabelece. A lei de cada profissão costuma definir que a regulamentação infralegal e a fiscalização do exercício profissional sejam feitas pelo Conselho daquela profissão, como é o caso do CFM. Os conselhos são autarquias federais cujos dirigentes são eleitos pelos próprios profissionais fiscalizados. Em situações de conflitos de interesses, costumam atuar em benefício da profissão tendo importante dificuldade de se interpretarem e comportarem como agentes do Estado2121 Girardi SN, Fernandes H Jr, Carvalho CL. A regulamentação das profissões de saúde no Brasil. Espaç Saude. 2000; 2(1)..

A análise desse arranjo institucional, ao longo da trajetória da PFTM, desde a década de 1950, mostrou que a influência da profissão médica foi além das funções legalmente delegadas ao CFM e aos conselhos regionais de Medicina. No caso das decisões relacionadas às diretrizes curriculares das formações profissionais, por exemplo, notou-se uma tradição de considerar, principalmente, as orientações oferecidas pelas entidades profissionais e de compor instâncias técnicas de assessoramento com pessoas indicadas ou não vetadas por elas. No CNE, existem instâncias responsáveis por analisar e deliberar sobre temas da saúde, mas isso não ocorre no MEC, que lança mão de “comissões de especialistas” com funções consultivas, que fazem estudos e opinam sobre temas variados na área de educação. Decisões sobre diretrizes curriculares, instrumentos de avaliação, critérios e medidas para abertura e fechamento de cursos são tomadas com o apoio dessas comissões. Quando a questão é identificada como um “assunto médico”, decisores do MEC costumam demandar, ouvir e se aconselhar com essas comissões e com instâncias governamentais especializadas em saúde, como era o caso do antigo Departamento de Hospitais Universitários (a partir de 2011 integrante da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares/Ebserh) (Entrevistas 1; 2; 3; 6; 9; 16).

No caso da residência médica, embora as decisões normativas também caibam ao MEC, isso se dá por meio da CNRM, uma instância colegiada que tem a finalidade de regular, supervisionar e avaliar os programas de residência médica e as instituições que os abrigam. De 1985 a 2011, a CNRM foi composta por nove membros: quatro representavam o governo e cinco as entidades médicas – CFM, Abem, AMB, ANMR e Federação Nacional dos Médicos (Fenam). A CNRM constituiu-se como um espaço institucional controlado pelas entidades médicas, que tomava decisões principalmente em função dos objetivos particulares da profissão, considerando pouco os objetivos do SUS44 Petta HL. Formação de médicos especialistas no SUS: descrição e análise da implementação do programa nacional de apoio à formação de médicos especialistas em áreas estratégicas (Pró-Residência). Rev Bras Educ Med. 2013; 37(1):72-9.,1616 Pinto HA. O que tornou o Mais Médicos possível? Análise da entrada na agenda governamental e da formulação do Programa Mais Médicos [tese]. Porto Alegre: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2021.. Como o aumento do número de profissionais tende, a partir de um certo patamar, a reduzir os valores pagos no mercado pelos serviços das especialidades, o controle e a limitação da formação de médicos especialistas está entre as principais preocupações da CP-M Liberal, interessada em assegurar o status quo2222 Carapinheiro G. Saberes e poderes no hospital. 4a ed. Porto: Edições Afrontamento; 2005.

23 Donnangelo MCF. Medicina e sociedade: o médico e seu mercado de trabalho. São Paulo: Pioneira; 1975.

24 Schraiber LB. O trabalho médico: questões acerca da autonomia profissional. Cad Saude Publica. 1995; 11(1):57-64.

25 Machado MH. Os médicos no Brasil: um retrato da realidade. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1997.
-2626 Campos GWS. Os médicos e a política de saúde. São Paulo: Hucitec; 1988.,
e resistente a alterar a composição da CNRM, conforme era proposto pela CP-M Sanitário.

A análise da PFTM identificou continuidades resultantes de legados históricos, ideacionais e institucionais, bem como mudanças incrementais ocorridas no arranjo institucional, tentativas de mudança bloqueadas e as estratégias desenvolvidas pelos principais atores nos dois subsistemas interessados em influenciar a política pública em análise. Mais que nos momentos de estabilidade, as tentativas de mudança exigem que forças interessadas em manter o status quo se revelem e ajam para manter o equilíbrio vigente. Assim, é importante enfocar os momentos nos quais novos temas entram na agenda governamental, os processos de formulação e decisão que culminam em mudança institucional, as tentativas, bem-sucedidas ou não, de bloquear mudanças e as estratégias dos atores individuais e coletivos nesses processos.

A análise da PFTM nos anos de 2003 a 2010 revelou a atuação de atores e instituições que permitiram compreender melhor por que, mesmo com a criação do SUS, em 1990, e com membros da CP-M Sanitário assumindo a direção do MS, especialmente a partir de 2003, só foram acontecer mudanças mais significativas na PFTM em 2013, quando foi criado o PMM1616 Pinto HA. O que tornou o Mais Médicos possível? Análise da entrada na agenda governamental e da formulação do Programa Mais Médicos [tese]. Porto Alegre: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2021.,2828 Pinto HA, Côrtes SMV. Tendência à estabilidade institucional: regulação, formação e provimento de médicos no Brasil durante o governo Lula. Cienc Saude Colet. 2022; 27(7):2531-41.. Dirigentes do MS, durante esse período, identificaram quatro pontos de veto à mudança que pretendiam fazer: o Congresso Nacional, o MEC, a Presidência da República e a CP-M Liberal. A oposição ativa desta última foi considerada a maior responsável pela resistência à mudança nos demais pontos (Entrevistas 1; 2; 3; 5; 6; 9; 10; 12; 13; 14; 16).

O poder de veto do Congresso Nacional expressou-se nas mudanças que exigiram autorização legislativa. O Congresso costuma ser resistente a mudanças na legislação que trata das profissões, quando as organizações que as representam são contrárias a essas mudanças (Entrevistas 1; 3; 4; 6; 9; 10; 12; 13; 15). Além disso, a CP-M Liberal é muito influente no Congresso, parlamentares médicos integram a comunidade e têm a capacidade de reverberar suas posições na grande mídia, o que aumenta, sobremaneira, o custo político de fazer alterações legais a que se oponham (Entrevistas 1; 3; 4; 6; 7; 9; 10; 11; 12; 13; 15; 16). De fato, em todo o período analisado, a Lei do PMM foi a única que teve oposição da CP-M Liberal e que foi aprovada.

Tendo em vista a forte influência que a CP-M Liberal também teve no MEC, a direção do MS que, desde 2003, era composta, principalmente, por membros da CP-M Sanitário, tentou transferir atribuições do MEC ao MS nos primeiros dois anos do Governo Lula (2003-2004), quando foi criada a Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES) para ampliar o papel do MS nas decisões relacionadas à PFTS. Essa transferência foi frustrada devido, em grande parte, à resistência de dirigentes do subsistema educação e a oposição da CP-M Liberal (Entrevistas 6; 9; 10; 14). A estratégia adotada pela direção do MS, de 2005 a 2010, foi aceitar os limites estabelecidos pela direção do MEC e formular, em conjunto com ela, ações que previam a participação de ambos os ministérios (Entrevistas 1; 5; 9). De 2011 a 2016, a estratégia do MS foi tensionar esses limites, modificar e criar novas instituições que compartilhavam o poder do MEC com o MS, envolvendo, por vezes, Conass e Conasems. Exemplos disso foram a mudança na composição da CNRM, em 2011, que passou a ter representações desses dois conselhos, a criação do Provab e do PMM, respectivamente em 2011 e 2013, que tinham fóruns de governança com representantes do MS, do MEC, do Conasems e Conass (Entrevistas 3; 11; 12; 15).

Decisões estratégicas dos integrantes da CP-M Sanitário, que estavam na direção do MS, culminaram em mudanças na trajetória da PFTM e foram influenciadas pelas posições assumidas pela Presidência da República e de seu entorno (Casa Civil e Secretaria de Relações Institucionais). A direção do MEC vinha se mostrando contrária à criação de medidas de revalidação de diplomas de 2003 a 2009. Em 2010, o Presidente Lula demandou às direções do MEC e MS que resolvessem a questão. No mesmo ano, foi criado o Revalida que, mesmo com a oposição da CP-M Liberal, instituiu uma avaliação centralizada para a revalidação de diplomas de médicos formados em instituições de ensino estrangeiras (Entrevistas 3; 5; 12; 13). O mesmo aconteceu quando da mudança da composição da CNRM e implementação do Provab e do PMM, sendo o apoio da Presidenta Dilma e do entorno da Presidência fator importante para que se superasse a resistência de dirigentes do MEC (Entrevistas 2; 3; 6; 11; 12; 13; 16). Reconhecido pela literatura, o poder de agenda do Presidente é um fator de mudança institucional em subsistemas setoriais que, especialmente no Brasil, influencia na formação da agenda do Poder Legislativo e, mais ainda, a do próprio Poder Executivo2929 Limongi FMP, Figueiredo A. Poder de agenda e políticas substantivas. Belo Horizonte: Editora UFMG; 2019..

O período de maior mudança na PFTM – de 2011 a 2016 – reuniu uma série de fatores que se somaram para romper o equilíbrio que dava notável estabilidade ao arranjo institucional vigente até então. Os principais foram: mudanças na direção do governo federal posicionando um grupo muito interessado na mudança da PFTM, agravamento da insuficiência de médicos para atender às necessidades do SUS e o consequente aumento na relevância do tema no sistema político; resultados insuficientes dos programas implementados para enfrentar o problema; situação política conjuntural em 2013; ação estratégica de empreendedores apoiados pela Presidência; bem como aprendizados, legados ideacionais e institucionais produzidos na formulação de programas anteriores, implementados ou não1616 Pinto HA. O que tornou o Mais Médicos possível? Análise da entrada na agenda governamental e da formulação do Programa Mais Médicos [tese]. Porto Alegre: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2021.,3030 Pinto HA, Côrtes SMV. O que fez com que o Programa Mais Médicos fosse possível? Cienc Saude Colet. 2022; 27(7):2543-52..

É possível associar o desenho do PMM com legados ideacionais decorrentes de estudos sobre experiências no Brasil e no mundo de ações de provimento e formação de profissionais de saúde. Além disso, ideias, regras e recursos utilizados na construção do PMM decorreram, especialmente, de ações que resultaram da regulamentação da Lei do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), da implementação do Provab, ambos em 2011, e do Plano Nacional de Educação Médica, criado em 2012. O desenho do PMM também foi influenciado pelo histórico de acordos internacionais entre o MS e Opas e do acordo construído em 2013 entre MS, Opas e Ministério da Saúde Pública de Cuba3131 Pinto HA, Côrtes SMV. Análise do processo de formulação do Programa Mais Médicos. Saude Soc. Forthcoming 2022.. Esse acordo foi estratégico porque garantiu retaguarda ao recrutamento nacional e internacional de médicos que se imaginava que não seria suficiente para atrair a quantidade de médicos demandada pelos gestores municipais (Entrevistas 2; 3; 7; 12; 13; 15; 16).

Porém, alteradas as condições “desestabilizadoras” com o impeachment da Presidenta Dilma, com a saída da CP-M Sanitário da direção do MS e com o fortalecimento ímpar da influência da CP-M Liberal no MS no governo Temer e, mais ainda, no Governo Bolsonaro, a estabilidade foi restaurada e diversas mudanças realizadas no período de 2010 a 2016 foram desfeitas ou neutralizadas. O Provab foi encerrado ainda em 2016. O Revalida foi interrompido em 2017, só tendo voltado a ser realizado a partir de 2020, devido à imposição legal instituída pela Lei 13.959/2019. Diversas medidas do PMM foram suspensas administrativamente, como a expansão de escolas públicas de Medicina, a partir de 2016, e o amplo recrutamento internacional de médicos a partir de 2019. Por meio de mudanças na Lei do PMM, realizadas pelos Governos Temer e Bolsonaro, foram revogados dispositivos que buscavam orientar a formação médica conforme as necessidades do SUS, seja aqueles que induziam a implementação das novas diretrizes curriculares para os cursos de Medicina, seja aqueles que criavam um novo itinerário de formação dos médicos especialistas no Brasil. Em 2019, um MS muito mais influenciado pela CP-M Liberal do que o observado nos demais momentos do período estudado propôs e aprovou a criação do Programa Médicos pelo Brasil (PMPB), com o apoio explícito da CP-M Liberal, com a promessa de que seria um substituto do PMM. Apesar disso, o PMPB só começou a ser implementado em 2022, último ano deste governo. Não obstante, importantes legados históricos, ideacionais e institucionais foram construídos e poderão ser usados em novos processos de mudança que almejem reorientar a PFTM e a PFTS em função das necessidades do SUS e da população.

  • (c)
    O artigo é fruto de uma pesquisa de doutorado que analisou sessenta anos da trajetória da PFTM no Brasil, bem como as mudanças mais importantes que ocorreram nesse período e quais fatores foram responsáveis por elas.

Agradecimentos

Por meio das Universidades Federais do Rio Grande do Sul (UFRGS), da Bahia (UFBA) e do Recôncavo da Bahia (UFRB), agradecemos à corajosa, resistente, qualificada e necessária universidade pública brasileira.

  • Pinto HA, Côrtes SV. Um modelo teórico-metodológico para análises de políticas com longas trajetórias e ação de atores em prol da mudança e da estabilidade. Interface (Botucatu). 2023; 27: e220186 https://doi.org/10.1590/interface.220186

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    05 Maio 2022
  • Aceito
    29 Ago 2022
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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