Resumos
Este escrito se vale de modos de pensar presentes na filosofia de Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) para explorar alguns sentidos trágicos que compõem formulações denominadas de “promoção da saúde”, entre eles, a extravagante noção de qualidade de vida. Por meio de causos do trabalho em saúde, oferta falsos fragmentos de reais encontros de cuidado para anunciar uma trágica micropromoção da saúde como conceito-ferramenta para pensar a relação entre controle e risco, entre proteção e êxtase na produção da saúde. Por fim, a perspectiva da redução de danos é visualizada como possibilidade clínico-política para habitar e suportar criativamente o horror trágico da nossa condição humana em sua face sanitária.
Promoção da Saúde; Trágico; Nietzsche; Redução de danos; Micropolítica
Introdução
Em uma determinada ocasião, eu e minhas colegas do Consultório na Rua fomos interagir com um grupo de usuárias de crack que ganhavam algum dinheiro sendo pagas para fazer sexo com outras pessoas. Íamos lá produzir atos de saúde. Entre eles, atos de promoção da saúde. Quando chegávamos, várias delas já se aproximavam solicitando algum tipo de insumo ou cuidado em saúde. Não raro, mesmo quando não puxávamos o assunto, elas justificavam o “indesejado” uso de crack . Eram frases tipo: “Foi mal aí, mas hoje já fumei pedra; bah, queria parar, mas não consigo; eu sei que tô me prejudicando; eu jurei que não iria mais fumar, mas ontem voltei pra cá”. Circe era uma dessas mulheres. Porém, olhando de canto, ela apenas escutava em silêncio as justificativas das companheiras. Depois de ouvir algumas dessas falas, Circe disparou em alto e bom som: “Eu uso porque gosto, porque adoro, não vou ficar nessa de pedir desculpa pelo que faço com a minha vida. A vida é minha, gosto da pedra; fumo e pronto”! A equipe de saúde tomou um susto. Sorrindo de canto, agora eram as outras mulheres que, em silêncio, escutavam Circe. Esse causo é uma falsa verdade.
Sempre achei a promoção da saúde uma das noções mais escorregadias do grande campo da Saúde. Promover saúde seria promover qualidade de vida... quem ousaria discordar dessa afirmativa? Mas, convenhamos, a missão não é fácil; é trágica! Não raro, denominamos como “práticas de promoção da saúde” tudo aquilo que – ao fim e ao cabo – acaba se mostrando como práticas de prevenção de doenças. Raramente alguém escapa: promete promoção, entrega prevenção. Czeresnia 11. Czeresnia D , organizadora . Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências . Rio de janeiro : Fiocruz ; 2003 . O conceito de saúde e a diferença entre prevenção e promoção ; p. 39 - 54 . reconhece que existe um problema quando a Saúde Pública se tornou responsável pela promoção da saúde, inserindo a qualidade de vida nos seus objetivos. Todavia, suas práticas continuam organizadas em torno da eliminação ou diminuição das doenças.
A confusão e os deslizamentos entre prevenção e promoção parecem ocorrer não apenas nas grandes propostas, nos projetos e nas políticas públicas, mas também nos encontros de saúde do dia a dia; no corpo e na alma dos serviços de saúde. A promoção da saúde é um tipo apreciado de “estranho do ninho” do setor, uma audácia valorizada, mas que estorva. De um lado, escancara a insuficiência das tecnobiociências e do próprio setor para promover saúde – se autoproclama “intersetorial” e “interdimensional” – e, de outro, é uma commodity para as propostas e as práticas também nomeadas com o mesmo desígnio.
A promoção da saúde quer qualificar positivamente a existência individual e coletiva em suas dimensões biológica, econômica, política, educacional, cultural, estética, ética, psicológica, espiritual, entre outras... só isso! Uma medicalização da vida viabilizada a partir da “positivação da saúde” 22. Camargo KR Jr . As armadilhas da “Concepção Positiva de Saúde” . Physis (Rio J.) . 2007 ; 76 ( 1 ): 63 - 76 . . Um significativo momento dessa positivação foi quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) proclamou “saúde como completo bem-estar físico, mental e social”. O significado de saúde como ausência de doenças teria sido encolhido em sua relevância. A positivação da saúde seria um tipo de extravagância? De qualquer sorte, a perspectiva correu o mundo, pautou os sistemas de saúde no ocidente industrializado e o alvoroço começou. Agora, afirmar que algo visa à promoção da saúde é estratégia de dignificação da iniciativa, agrega charme e finesse aos atos de saúde. Porém, um dos grandes desafios de tal formulação é justamente sua missão apolínea de qualificar a vida; missão que pressupõe o exercício de avaliar o bem-estar e aquilo que dá qualidade à vida 33. Caponi S . A saúde como abertura ao risco . In: Czeresnia D , organizadora . Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências . Rio de janeiro : Fiocruz ; 2003 . p. 55 - 78 . . O que é uma vida de qualidade? Como avaliar a qualidade da vida? Quem faz tal avaliação?
A promoção da saúde extravasa a narrativa científica sanitária e suas institucionalizadas práticas cotidianas. Torna-se insuficiente responder que a vida com qualidade é aquela sem fatores de risco 44. Castiel LD , Diaz CA-D . A saúde persecutória: os limites da responsabilidade . Rio de Janeiro : Fiocruz ; 2007 . . Mostra-se minguada uma avaliação da existência que ocorre por meio da estatística epidemiológica, do cálculo dos padrões normais e dos desvios (pré)patogênicos. As tecnobiociências seguem produzindo respostas sobre o que é qualidade da vida, mas suas respostas parecem murchas, guiando práticas desidratadas no sentido de potencializar a existência. Para além das formulações tecnobiocientíficas, outras dimensões e perspectivas ganham relevo no campo discursivo da promoção da saúde.
A determinação social do processo saúde-doença-cuidado alcança fundamental pertinência, causando constrangimentos para quem tem alguma sensibilidade coletiva/comunitária e quer trabalhar com promoção da saúde. Por exemplo, qual qualidade de vida está sendo desejada – e para quem – quando se prioriza uma retórica que preconiza “boa alimentação”; “atividade física regular”; e redução/eliminação do uso de tabaco, álcool e outras drogas, mas não se consegue priorizar a eliminação da extrema pobreza e da violência contra as mulheres, contra a população negra, indígena, em situação de rua e LGBTQI+? Do jeito que os peritos tecnobiocientíficos propõem a promoção, ela parece um exercício de ascese direcionado ao público da classe média, masculino, branco e heteronormativo.
Dito de outra maneira: a conhecida prevenção de doenças é travestida de promoção da saúde, deixando de fora pessoas economicamente pobres, os/as diferentes, os/as anormais do desejo. Embretada pela força do capital e pelos valores morais vigentes, em boa medida, a promoção da saúde diz que é uma coisa e mostra-se outra; diz que é para todos, mas está ao alcance apenas de alguns.
Contudo, a determinação social que incide sobre o processo saúde-doença-cuidado não é o único dilema da extravagante missão apolínea de “promover saúde”. Ela também busca produzir subjetividades e universalizar condutas saudáveis. A promoção da saúde também se depara com a multiplicidade da existência e a imprecisão constituinte da avaliação humana sobre a vida. Aqui, os aspectos da não exatidão da existência parecem se infiltrar nos caminhos e descaminhos da promoção ao encontrar a “indizibilidade do real” 11. Czeresnia D , organizadora . Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências . Rio de janeiro : Fiocruz ; 2003 . O conceito de saúde e a diferença entre prevenção e promoção ; p. 39 - 54 . . Parafraseando Fernando Pessoa, “produzir saúde é preciso, promover não é preciso”.
Pensar no indizível e na imprecisão da vida implica em considerar os limites da consciência humana. O exercício de tentar abordar a dimensão em que nossa alma-corpo está sendo disputada: a micropolítica. Nietzsche é o principal intercessor das minhas perambulações no labirinto da micropolítica. Como é composta a avaliação humana da vida? Que vida se quer valorar? Essas são questões abordadas pelos modos de pensar da filosofia de Nietzsche. Uma caixa de ferramentas para pensar a consciência e a não consciência, a avaliação da vida, os riscos do “um” e do “múltiplo” que nos compõe. O “eu” como unidade plural e mutante do jogo da vida; da vontade de potência.
Consciência e vontade de potência
Certa ocasião, fui conversar com Calipso, que havia regressado à casa de sua família há pouco mais de dois meses. Havia passado muitos anos em situação de rua. Calipso era conhecida como a rainha da avenida, era para ela que mais carros paravam. Era ela quem fazia mais dinheiro como profissional do sexo. O dinheiro que Calipso ganhava era, em sua grande parte, destinado à compra de pedras de crack . Em um desses “programas”, foi vítima de violência sexual; escapou da morte por pouco. Então, tomou consciência, pensou muito e decidiu sair das ruas. Naquele encontro de saúde, na casa de sua família, perguntei como ela estava. Calipso respondeu: “Tô mais ou menos... na cabeça sei que tenho que estar aqui... mas tô que tô me rasgando de saudade de entrar no carro de um estranho!”. Calipso fez uma pausa, olhou-me nos olhos – como quem pedia um tipo de corrimão para guiar sua conduta – e finalizou: “Eu não devia estar pensando essas coisas, né?!”. Esse causo é outra falsa verdade.
Em Nietzsche 55. Nietzsche FW . A Gaia Ciência . Lisboa : Relógio D'Agua Editores ; 1998 . , é a consciência humana que avalia a vida. É ela que nos alerta dos riscos à saúde. Essa é nossa força e nossa fragilidade. Para o filósofo, a consciência seria a estrutura menos desenvolvida da espécie humana, entendendo não possuirmos “[...] nenhum órgão para o conhecimento, para a ‘verdade’: ‘sabemos’ (ou acreditamos ou imaginamos) precisamente tanto quanto pode ser útil no interesse do rebanho humano” (p. 271). É justamente esse órgão que estabelece os valores a serem considerados para compor as condutas humanas e, no caso da saúde, as referências de autovigilância inerentes ao autocuidado; agora somos nós que devemos promover a nossa própria saúde 44. Castiel LD , Diaz CA-D . A saúde persecutória: os limites da responsabilidade . Rio de Janeiro : Fiocruz ; 2007 . .
Entretanto, para Nietzsche, consciência é um tipo de fração efêmera da alma. Nietzsche 66. Nietzsche FW . Além do bem e do mal . 2 a ed. São Paulo : Companhia das Letras ; 1992 . entende a alma como um arranjo mutável do mundo. Um arranjo dinâmico e – em grande parte – inconsciente a nós. Para ele, somos um oceano desconhecido de nós mesmos. Um oceano no qual deságuam rios com águas-forças sociais, afetivas, instintivas, orgânicas e inorgânicas. É sobre as águas desse oceano em movimento que flutua a folha da consciência, ostentando a função de avaliadora e coordenadora da vida. As forças das marés, a dinâmica das correntes da vontade de potência.
A vontade de potência é um dos termos capitais da filosofia nietzscheana 77. Machado R . Nietzsche e a verdade . São Paulo : Paz e Terra ; 1999 . . Para os propósitos do presente texto, não será possível explorar muitos aspectos relevantes dessa formulação. Porém, vale destacar alguns elementos que permitem vislumbrar a vontade de potência como um jogo de forças, como uma política da vida. Em “Assim Falou Zaratustra” 88. Nietzsche FW . Assim falou Zaratustra . 9 a ed. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira ; 1998 . , o protagonista assevera: “[...] onde há vida também há vontade: mas não vontade de vida, senão, – é o que te ensino – vontade de potência” (p. 146). Uma diversidade de forças que agem e interagem compondo diferentes acontecimentos e corpos. Para Deleuze 99. Deleuze G . Nietzsche e a filosofia . Porto : Rés ; 1976 . , o “conceito de força é, portanto, em Nietzsche, o de uma força que se relaciona com outra força: sob esse aspecto, a força chama-se vontade” (p. 13). Ao negar os perigos da intensidade e da multiplicidade da existência, a consciência humana faz o duplo movimento de afirmação e negação no jogo da vida da vontade de potência. Afirma uma existência regulada, uma vida sem exageros; o exercício de poder de uma vontade, que nega a potência da vontade.
Nietzsche, antes de expressar uma interpretação da vida, advertiu que “aqui devemos pensar radicalmente até o fundo, e guardamo-nos de toda a fraqueza sentimental”. Com tal advertência, o filósofo interpreta a vida como “essencialmente apropriação, ofensa, sujeição do que é estranho e mais fraco, opressão, dureza, imposição de formas próprias, incorporação e, no mínimo e mais comedido, exploração” 55. Nietzsche FW . A Gaia Ciência . Lisboa : Relógio D'Agua Editores ; 1998 . (p. 171).
Atividade de apropriação, imposição, incorporação, exploração, dominação que deixa um rastro de sintomas; valores, corpos, ideias, comportamentos, projetos, teorias, instituições. Do ponto de vista de Nietzsche – escreve Marton 1010. Marton S . Extravagâncias: ensaios sobre a filosofia de Nietzsche . São Paulo : Discurso Editorial e Editora UNIJUÍ ; 2000 . –, “vida é luta, força é impulso agressivo, saúde é capacidade ofensiva e defensiva” (p. 156). Trata-se do embate entre as forças de conservação e as forças de expansão e criação. Um embate, uma dança, um jogo e uma guerra sem trégua configurando existências e, no específico deste trabalho, produzindo políticas de vida e saúde.
Em outras palavras, a pluralidade de forças constituintes da vontade de potência entra na dimensão da consciência humana de maneira superficial, apequenada, falsa. Desse modo, as produções do indivíduo moderno são marcadas pelas falsificações, generalizações, superficialidades. Avaliamos qualidade de vida dessa maneira. Como comentador de Nietzsche, Giacóia Júnior 1111. Giacóia O Jr . Nietzsche como psicólogo . São Leopoldo : Unisinos ; 2001 . entende que essa reflexão sobre o sujeito da consciência e da verdade revela uma crítica que deseja um efeito de estranhamento estendido até a moralidade dominante no projeto político da modernidade. As dimensões macro e micro das políticas de saúde não são exceção.
Micropolítica do cuidado e micropromoção da saúde
Em uma determinada ocasião, a equipe do Consultório na Rua foi pela primeira vez naquele terreno abandonado. O ambiente era só mato e lá habitava um coletivo que usava crack . Sempre andávamos no dia a dia identificados como trabalhadores da Saúde. Quando chegamos, Antínoo foi o primeiro que nos avistou e, ao nos identificar como agentes de saúde, gritou em alto e bom som: “Quem são vocês para virem entrar nas nossas cabeças?!”. A equipe levou um susto e paralisou. Meio de improviso, respondi: “Ué, tudo que existe não entra nas nossas cabeças de algum modo!?”. Antínoo me olhou, pensou um pouco e disse: “Tá; chega mais!”. Mais uma falsa verdade em forma de causo.
Tanto Gilles Deleuze quanto Michel Foucault leram Nietzsche antropofagicamente. Tanto Deleuze quanto Foucault tinham os jogos de força da vontade de potência para pensar a política. Foucault 1212. Foucault M . Microfísica do poder . 12 a ed. Rio de Janeiro : Graal ; 1996 . afirma que “as forças que se encontram no jogo da história não obedecem nem a uma destinação, nem a uma mecânica, mas ao acaso da luta”. Afirma na sequência que as forças “aparecem sempre na área singular do acontecimento” (p. 28). Foucault 1313. Foucault M . História da sexualidade I: a vontade de saber . 13 a ed. Rio de Janeiro : Graal ; 1999 . joga com a multiplicidade de correlações de forças imanentes ao formular sua perspectiva de poder.
Deleuze 1414. Deleuze G . Conversações . São Paulo : Editora 34 ; 1992 . , ao comentar a perspectiva da microfísica do poder de Foucault, entendeu que ocorre um tipo de prolongamento de Nietzsche, pois, em Foucault, o poder é informal, microfísico, passa pelo saber e por baixo dele; “ele é força e relação de forças, não forma” (p. 122). Ao analisar a dinâmica das forças da vontade de potência, Deleuze 99. Deleuze G . Nietzsche e a filosofia . Porto : Rés ; 1976 . também faz essa relação com a política ao dizer que “qualquer relação de forças constitui um corpo: químico, biológico, social, político” (p. 62).
Em Deleuze e Guattari 1515. Deleuze G , Guattari F . Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia . 5 a ed. Rio de Janeiro : Editora 34 ; 1996 . Vol. 3 . , toda a sociedade e todo o indivíduo são modulados por forças políticas: “tudo é político, mas toda a política é ao mesmo tempo macropolítica e micropolítica” (p. 82). O macro e o micro como duas faces da configuração da existência, sendo que “as duas efetivamente se distinguem, mas são inseparáveis, embaralhadas uma com a outra, uma na outra” (p. 90). A dinâmica micropolítica ocorre na dimensão consciente e inconsciente da vida psíquica; na carne humana e no tecido social; no virtual e no atualizado. Neste exato momento, nossas mentes, nossos corpos e nossos corações estão sendo disputados politicamente por forças orgânicas, morais, sociais, maquínicas e, claro, sanitárias.
Nessa perspectiva, falar do micro também é falar do macro e vice-versa. A macropolítica é composta privilegiadamente pelos interesses conscientes, racionalizados e estruturados; refere-se àquilo que as instituições sociais podem na existência individual e coletiva. A micropolítica é composta privilegiadamente pelo situacional e contextual; privilegia o próximo em detrimento do real; refere-se àquilo que o agir cotidiano pode. A singularização entre liberdade e controle. Nessa maneira de pensar, é possível vislumbrar dimensões macro e micro também nas políticas de saúde, perspectiva que, no Brasil, tem referência na produção de Emerson Elias Merhy.
Para Merhy 1616. Merhy EE . Saúde: a cartografia do trabalho vivo . 2 a ed. São Paulo : Hucitec ; 2005 . , “na micropolítica do processo de trabalho não cabe a noção de impotência”. Ao entender que o processo de trabalho vivo em ato está sempre aberto e atravessado por diferentes lógicas, percebe-se como um exemplo de potência “a criatividade permanente do trabalhador em ação numa dimensão pública e coletiva” (p. 61). Em Merhy, operar tecnologias leves (relacionais) é habitar a micropolítica da produção do cuidado. Porém, o autor também adverte que, no encontro de cuidado, “a polarização entre autonomia e controle é sem dúvida um lugar de tensão” (p. 165).
Feuerwerker 1717. Feuerwerker LCM . Micropolítica e saúde: produção do cuidado, gestão e formação . Porto Alegre : Rede Unida ; 2014 . , ao relacionar micropolítica e saúde, entende que tal perspectiva pode dar “visibilidade ao desenho e à dinâmica em ato do emaranhado de linhas e planos que configuram o real social em determinado momento e sob certos pontos de vista”. Direcionando mais diretamente ao campo da Saúde, ela diz que “as práticas de saúde, como toda atividade humana, são atos produtivos, pois modificam alguma coisa e produzem algo novo”, alterando tudo aquilo que é entendido como necessidade. Por fim, reconhece que as práticas de saúde são fortemente “orientadas pelos saberes científicos, são também constituídas a partir de sua finalidade social, que é historicamente construída” (p. 37).
Ocorre que, em determinado momento da história da saúde, é introduzida uma nova força que vai atuar também na micropolítica sanitária: a promoção da saúde. Para além da eliminação da doença, entram na agenda internacional da saúde a extravagância semântica da qualidade de vida – bem-estar, prazer, alegria, deleite, entre outros exuberantes sentidos – e a capacitação das comunidades para melhorar a sua qualidade de vida como uma das missões da promoção da saúde. Afirmação presente nas cartas das Conferências Internacionais de Promoção da Saúde, desde 1986. Assim, pensar a micropolítica no contexto da saúde é também considerar as forças que se apoderam da noção de qualidade de vida; é considerar uma micropromoção da saúde.
Micropromoção da saúde funciona como um conceito-ferramenta para pensar a arena íntima na qual a saúde positivada – mesmo defasada e contraditória – disputa nossa alma-corpo. Com a micropromoção da saúde, a força semântica da qualidade de vida adentra o espaço-tempo da micropolítica da produção do cuidado em saúde. Funciona também como estratégia cartográfica para mapear o encontro entre os impulsos, as tentações e a ordem sanitária; jogos da vida marcados, de um lado, pelos deleites dos prazeres do corpo e, do outro, pela ascese inerente ao controle de doenças e ao estilo de vida longevo.
Dito de outra maneira: o âmago da tensão entre a pluralidade das condutas embriagantes e a conservação biológica da espécie humana passa a compor a micropolítica do cuidado pela ação da micropromoção da saúde. O miolo dos dilemas como: dormir mais um pouco ou se levantar para fazer atividade física; comer ou não carne vermelha; acender um cigarro ou não; beber um copo de cerveja ou não; aguardar sentado ou em pé; ir de elevador ou escada, carro ou bicicleta; dilemas que retornam cotidianamente. Prosaicas banalidades como problemas de saúde; trágicas microdecisões.
Sempre retornam os incontáveis e trágicos dilemas da micropromoção da saúde. A cada momento, outro risco. O viver como uma jornada de exposição a perigos. Aqui, histórias ajudam. Não precisam ser verdadeiras, precisam instigar sensações, cutucar o pensamento, contaminar práticas. Por exemplo, as aventuras enfrentadas pela personagem da mitologia grega Ulisses.
A arte, Ulisses, as sereias e a perspectiva trágica da micropromoção da saúde
Por ocasião de uma aula da graduação, perguntei aos/às estudantes o que entendiam por “estilo de vida”. De maneira imediata, uma aluna respondeu: “São dois, né professor?”. Instigado, pedi para que ela explicasse um pouco melhor o que acabara de afirmar. Então, ela explicou: “Ué, meu avô me disse que são dois os estilos; o estilo de vida saudável e o estilo de vida... agradável”. Apolo e Dionísio acabavam de entrar na sala de aula. Outro causo, outra falsa verdade.
Esses dois deuses da mitologia grega são de enorme importância nas formulações nietzscheanas. Na mesma direção, aposto na potência de empregar mitos gregos para pensar a micropromoção da saúde, algo que está longe de ser inédito. Castiel 1818. Castiel LD . Dédalo e os Dédalos: identidade cultural, subjetividade e os riscos à saúde . In: Czeresnia D , organizadora . Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências . Rio de janeiro : Fiocruz ; 2003 . p. 79 - 96 . também já fez uso do pensamento mítico para pensar faces da relação entre saúde e risco. Se, por um lado, reconhece a mitologia como uma explicação incorreta e falsa do mundo, por outro, percebe que o mito “pode ser visto como uma forma de articulação e expressão de profundas verdades pessoais e culturais”. Na sequência, defende a função do mito como metáfora, “na qual o significado explícito é alcançado sem processos explicativos racionalizantes” (p. 80).
A tragédia grega compõe o percurso filosófico de Nietzsche. Apolo representa clareza, harmonia, forma, exatidão. Apolo é a verdade, a lei, as regras e os costumes. Dionísio representa a exuberância, o êxtase, a desordem, o caos. Dionísio é a alegria, a beberagem, a intensidade. Enquanto Apolo conserva a vida, Dionísio faz carnaval. Na análise de Safranski 1919. Safranski R . Nietzsche: a biografia de uma tragédia . São Paulo : Geração ; 2001 . sobre a relevância da arte trágica na produção de Nietzsche, ocorre a relação de poder entre a palavra e a música, sendo a palavra que não sai do mais interior, nem chega até lá.
Na avaliação apolínea que marca os sistemas peritos da modernidade 2020. Giddens A . As consequências da modernidade . São Paulo : Editora Unesp ; 1991 . , a linguagem pode ser enganosa. A verdade é narrada pela palavra, e não pela música. Os peritos tecnobiocientíficos falam, não cantam. Precisam ser racionalmente compreendidos para prescrever a segurança diante do perigoso, gerar o confiável diante do risco. Ocorre a rejeição do incompreensível. A lógica de oposição binária que compõe essa vontade prescreve o que causa o sofrimento humano. Tal identificação articula-se com a prescrição de uma existência menos sofrida. Um sentido sóbrio, austero, severo e profundo configura os discursos de verdade, pois a exclusão da dor, da deformidade, do aleijão da vida não é brincadeira. Acontece um rigor pesado nessa tradição secular. Surge a necessidade de negar aquela parte da vida que atrapalha, estorva, denigre a condição humana e, claro, ameaça a saúde. O falso.
Para Nietzsche 66. Nietzsche FW . Além do bem e do mal . 2 a ed. São Paulo : Companhia das Letras ; 1992 . , a “falsidade de um juízo não chega a constituir, para nós, uma objeção contra ele [...]. A questão é em que medida ele promove ou conserva a vida” (p. 11). O pensamento trágico nietzschiano mistura prazer e dor, verdade e mentira, saúde e doença, bem e mal. Não é nada moderno e não pretende separar o que, justamente por seu hibridismo, dá exuberância à existência. É nesse sentido que ganha destaque a figura mitológica de Ulisses na perspectiva de Nietzsche; retornando como personagem conceitual 2121. Deleuze G , Guattari F . O que é a filosofia? 2 a ed. Rio de Janeiro : Editora 34 ; 1997 . .
Ulisses, o mais safo dos Helenos, tinha sua astúcia reconhecida em toda a Grécia 2222. Brandão JS . Mitologia grega . 14 a ed. Petrópolis : Vozes ; 1999 . Vol. 2 . . O Rei de Ítaca já havia cumprido com louvor sua missão na guerra de Troia: fora dele a ideia do famoso “cavalo de Troia”. Agora, voltava para a casa e para os braços de sua amada esposa Penélope. Ulisses queria paz e sossego. Entretanto, na jornada entre Troia e Ítaca, muita coisa aconteceu. Foram mais de dez anos de aventuras e desventuras. O encontro com as sereias foi um desses desafios.
Circe, uma feiticeira com informações precisas, alertou Ulisses sobre os perigos e encantos das sereias. Elas estariam em seu caminho, mas seria possível evitá-las. Ou seja, Ulisses já estava avisado e conscientizado por uma “perita” que as sereias eram seres antropófagos. Ulisses sabia inclusive de seus expedientes sedutores: que atraíam as vítimas por meio de um belo e irresistível canto. Ele também já havia recebido as orientações de como se prevenir para evitar os tais danos e agravos à sua vida. Deveria tapar seus ouvidos com cera e recomendar a todos os seus marinheiros que fizessem o mesmo para não escutarem o fatídico canto das sereias e, assim, seguirem ilesos na viagem de regresso ao lar.
Porém, como Circe era feiticeira, também relativizou e fez uma segunda prescrição; uma mais mundana: “Se, todavia, o herói desejasse ouvir-lhes o canto perigoso, teria que ordenar aos seus nautas que o amarrassem ao mastro do navio e, em hipótese alguma, o libertassem das cordas” 2222. Brandão JS . Mitologia grega . 14 a ed. Petrópolis : Vozes ; 1999 . Vol. 2 . (p. 309). Será que Circe já era um tipo de “redutora de danos”? Então, com um canto que era, de fato, indelével e sendo as sereias muito belas, não deu outra! Ulisses, mesmo “civilizado”, gostava de tempero na existência. Assim, completamente atado ao mastro, deleitou-se com o canto daqueles seres marinhos de esfuziante beleza. Nietzsche gostava dessa história, um causo trágico. Safranski 1919. Safranski R . Nietzsche: a biografia de uma tragédia . São Paulo : Geração ; 2001 . analisou a admiração de Nietzsche pela personagem épica de Ulisses:
Arrebatado pelo dionisíaco com o qual a vida precisa manter contato para não virar um deserto; e ao mesmo tempo dependendo de seus instrumentos civilizatórios de proteção para não ficar entregue à força de dissolução de Dionísio. Não é de se surpreender que Nietzsche veja a imagem desta situação precária no destino de Ulisses, que se deixa amarrar num mastro para poder ouvir o canto das sereias sem ter que segui-lo e cair na própria destruição. Ulisses encarna a sabedoria dionisíaca. Ele escuta o inaudito, mas para proteger-se aceita as algemas da cultura. (p. 70)
Vislumbrar essa cena da Odisseia coloca alguns elementos no palco da trágica micropromoção da saúde: (i) não está ausente do pensamento trágico a responsabilidade diante da possibilidade de destruição da vida; (ii) entretanto, a sabedoria trágica, representada por Ulisses, reconhece que, sem a intensidade da alegria – o canto das sereias –, a vida se torna enfadonha, desértica; (iii) esses dois aspectos representam o duplo horror da sabedoria trágica. A consciência que oscila, que se dilacera nas duas direções. Ora, fita a proteção do conhecido, ora, aprecia o mar ardente, o êxtase, a aventura. O dilaceramento do viver responsavelmente atado para poder delirar; qualidade trágica da micropromoção da saúde.
Esse é o dilaceramento trágico que sempre retorna nas grandes e pequenas banalidades do cotidiano. A passagem homérica em nada quer sintetizar a imagem de um equilíbrio constante ao bem viver. Não se trata do sossegado e imperturbável “um pouco disso e um pouco daquilo”. A imagem não é de uma ponderada harmonia entre o apolíneo e o dionisíaco, entre a proteção e o risco. A imagem é de desespero, de aflição. Ulisses quer se soltar, e as cordas são amarradas mais fortemente. Ele grita desesperadamente, mas seus companheiros não o escutam; e foi ele que planejou tudo isso. Será que Ulisses operou uma prática de redução de danos? A imagem representa a beleza da eterna ferida do existir; a perspectiva trágica da existência afirmada por Nietzsche.
O mar dionisíaco é sempre perigoso. Para a conservação e o prolongamento da vida biológica, as sereias são o próprio demônio. Em uma leitura ascética, o canto das sereias não tem função, não tem utilidade; é risco puro! Nessa perspectiva, seria uma irresponsabilidade, uma criancice de Ulisses, colocar em risco sua vida apenas para escutar um canto. Contudo, esse herói épico reconhece a potência da criança. A força do riso trágico; a divina regalia de apreciar o embriagante canto das musas do mar. A consciência oscila, a alma se dilacera. O mar ardente do dionisíaco e a exatidão do apolíneo, a vida como ela é, configuram a trágica micropromoção da saúde e estão longe de ser uma promessa de bom futuro.
A redução de danos como pista para habitar a trágica micropromoção da saúde
Certa vez, depois de muito insistir, eu e uma colega do Consultório de Rua conseguimos convencer e acompanhar Calipso a um serviço de pronto atendimento de saúde. Fazia alguns dias que ela não conseguia falar direito em virtude de uma forte inflamação na garganta. Calipso estava nervosa na sala de espera. Tentávamos acalmá-la destacando a importância de estar ali se cuidando. Diante da espera enfadonha, começamos a contar causos engraçados. Tentávamos conter o riso, buscando o comportamento pertinente ao ambiente. Calipso no meio, em silêncio. Em determinado instante, percebemos que a expressão do rosto dela começou a se alterar. Era uma expressão de perplexidade, de espanto. Também nos assustamos. Minha colega tratou rapidamente de perguntar o que tinha acontecido. Calipso respondeu: “É que eu tinha esquecido”. Perguntei: “Esqueceu o que?!”. E ela disse: “Eu tinha esquecido que dava pra sorrir sem usar pedra [de crack]!”. Dito isso, o riso substituiu a expressão de espanto no rosto de Calipso.
Pensar a trágica micropromoção da saúde é considerar o devir dionisíaco na promoção da saúde. Em uma direção, se não escutarmos a voz da consciência, não conseguiremos discernir o arriscado do não arriscado, considerando a redução dos riscos como elemento das condutas saudáveis que, como nos lembra Caponi 33. Caponi S . A saúde como abertura ao risco . In: Czeresnia D , organizadora . Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências . Rio de janeiro : Fiocruz ; 2003 . p. 55 - 78 . , são condutas que fazem parte do próprio nascimento da medicina social. Isso é algo que permitiu que as ações de saúde também fossem intervenções no promíscuo, alienado ou apenas irresponsável. Artimanhas da consciência compatíveis com o método científico moderno na sua grande meta-função: imprimir ordem ao caos.
Em políticas da promoção da saúde, ainda proliferam narrativas que colocam em jogo, luta e dança as deliciosas banalidades da vida e os riscos à saúde. Viver passa a ser arriscado. Para Cezeresnia 2323. Czeresnia D . Categoria vida: reflexões para uma nova biologia . Rio de Janeiro : Fiocruz ; 2012 . , “identificar e reduzir riscos” são questões centrais nessa política; ou seja, a gestão dos comportamentos arriscados aparece nesse contexto como elemento fundante do discurso da promoção da saúde. Caponi 33. Caponi S . A saúde como abertura ao risco . In: Czeresnia D , organizadora . Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências . Rio de janeiro : Fiocruz ; 2003 . p. 55 - 78 . complementa afirmando a implicação do ideário da saúde com o exercício do controle administrativo dos corpos. De um lado, tem-se uma gestão que encontra a limitação de conceituar a noção de bem-estar e, do outro, a falta de problematização dessa noção, que permite que a maquinaria da saúde intervenha em tudo na existência humana que seja concebido como arriscado e perigoso. A ascese da micropromoção da saúde.
No Brasil, Luis David Castiel tem uma produção singular – com seu estilo irônico e radical – de problematizar os temas labirínticos da pretenciosa promoção de uma vida sem riscos. Ao perguntar, em um texto autoral, se “quem vive mais morre menos?” 2424. Castiel LD . Quem vive mais, morre menos? Estilo de risco e promoção da saúde . In: Bagrichevsky M , Palma A , Estevão A , organizadores . A saúde em debate na educação física . Blumenau : Edibes ; 2003 . Vol. 1 . p. 79 - 97 . , o pesquisador quer indicar a presença de posturas moralizantes na ideia de promoção da saúde, que buscam retidão, pureza e evitação de máculas; trata-se de uma construção discursiva, na qual a noção de risco cumpre tal função responsabilizadora. Ao ironizar que “errar é humano, mas lançar a culpa nos outros é mais humano ainda” 44. Castiel LD , Diaz CA-D . A saúde persecutória: os limites da responsabilidade . Rio de Janeiro : Fiocruz ; 2007 . , pondera que a promoção da saúde enquanto política busca seu êxito retórico apelando a um massivo sentimento da culpa, aterrorizando o apreensivo e constrangendo o “embaraçável”. Aspectos que levam à necessidade de cada um de nós vigiar-se e prevenir-se, apoiados em uma lógica persecutória. Ao denunciar “as fantasmagorias dos riscos à saúde – contumaz, eu rezo... –” 2525. Castiel LD , Xavier C , Moraes DR . À procura de um mundo melhor: apontamentos sobre o cinismo em saúde . Rio de Janeiro : Fiocruz ; 2016 . , constata que os riscos à saúde colocam um manto pesado de responsabilidade na solidão dos indivíduos. As formulações de Castiel são flechas de sentidos intempestivos, arremessadas ao macro e ao micro da promoção da saúde.
Respeitar a vida trágica nos encontros de saúde, habitando a intensidade da micropromoção, implicava em desacelerar o tempo e a atenção. Uma desaceleração necessária para encarar e suportar que as respostas prontas e hegemônicas de evitação do risco não dão conta do excesso do mundo. Talvez seja necessário, por mais que insuportável, produzir certa porosidade aos excessos do mundo nos atos de saúde 2626. Coelho DM , Fonseca TMG . As mil saúdes: para aquém e além da saúde vigente . Psicol Soc . 2007 ; 19 ( 2 ): 65 - 9 . . Atitude presente no movimento da redução de danos.
Iniciada como estratégia de saúde na interação com o uso “problemático” de substâncias psicoativas, a “redução de danos” busca romper conceitualmente com a noção que tenta associar o uso de drogas ao desejo de morrer, e questionar a ideia apolínea de que usar drogas significa não se cuidar 2727. Souza TP . Estado e sujeito: a saúde entre a micro e a macropolítica de drogas . São Paulo : Hucitec ; 2018 . . Em sua história recente, a redução de danos já foi até criminalizada. Ao se distanciar da vertente hegemônica proibicionista do uso de drogas, a proposta clínico-política da redução de danos aposta em um cuidado instigador de liberdade e de corresponsabilidade 2828. Raupp L , Schneider DR , Pereira GT . A redução de danos como metodologia de promoção da saúde às pessoas em situação de rua . Rev Debates Insubmissos . 2021 ; 4 ( 14 ): 115 - 38 . . Em vez de proibir Ulisses de escutar as sereias, pretende fazer pensar e inventar junto estratégias outras de cuidado, de aprendizagem mútua.
Pensar a referência da redução de danos na trágica micropromoção da saúde é estar com os Ulisses no embate de criação diante do controle; desafio ético e estético que eternamente retorna. Na trágica micropromoção, está colocado o desafio ético de fazer valer a possibilidade individual e coletiva de afirmar a vida para além do bem e do mal.
Uma micropromoção da saúde com a capacidade íntima de resistir às forças macropolíticas para, assim, produzir novos mundos. Suas armas são, entre outras, a disponibilidade sensível para rever valores, a produção da diferença, os enunciados com potência criadora, o instituinte, a singularização, a arte, a alegria. Na trágica micropromoção da saúde, aquilo que o agir cotidiano pode fazer produz avarias, ruídos e rachaduras no institucionalizado que sempre busca anular a diferença.
Na trágica micropromoção da saúde, a experimentação dos novos projetos societários se dá por tateamentos, invasões, estranhamentos, avanços, recuos, tentativas, traições, ensaios e arrojamentos; um tipo de capoeira 2929. Bilibio LFS . Por uma alma dos serviços de saúde para além do bem e do mal: implicações micropolíticas à formação em saúde [ tese ]. Porto Alegre : Universidade Federal do Rio Grande do Sul ; 2009 . . Diante da extravagância do campo semântico da qualidade de vida, não seria mais inteligente e sensível habitar a micropromoção da saúde com o ethos e o pathos da redução de danos e alegremente suportar que, para cada qualidade da vida, corresponda – virtual e tragicamente – uma qualidade de morte?
Referências
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- 3Caponi S . A saúde como abertura ao risco . In: Czeresnia D , organizadora . Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências . Rio de janeiro : Fiocruz ; 2003 . p. 55 - 78 .
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- 29Bilibio LFS . Por uma alma dos serviços de saúde para além do bem e do mal: implicações micropolíticas à formação em saúde [ tese ]. Porto Alegre : Universidade Federal do Rio Grande do Sul ; 2009 .
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
05 Jun 2023 - Data do Fascículo
2023
Histórico
- Recebido
19 Maio 2022 - Aceito
17 Out 2022