Conflito distributivo: análise do Programa de Melhoria do Acesso e Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB) em duas capitais nordestinas

Conflicto distributivo: análisis del Programa de Mejora del Acceso y Calidad de la Atención Básica (PMAQ-AB) en dos capitales del nordeste de Brasil

Hugo Fanton Ribeiro da Silva Luciano Bezerra Gomes Adriana Falangola Benjamin Bezerra Mariana Olívia Santana dos Santos Helena Eri Shimizu Keila Silene de Brito e Silva Garibaldi Dantas Gurgel Everton Nunes da Silva Juliana Sampaio Sobre os autores

Resumos

Este artigo analisa a execução do PMAQ-AB a partir de sua contextualização em um cenário político nacional de profundas transformações, desde o reformismo fraco que promoveu lenta extensão de direitos até o contrarreformismo forte da restauração neoliberal. Para debater os elementos relacionados ao trabalho e às disputas pela distribuição dos recursos públicos, foi realizado estudo de caso com trabalhadores, gestores e conselheiros de saúde em duas capitais do nordeste brasileiro. Os resultados evidenciam o acirramento do conflito distributivo e o resultado desfavorável aos trabalhadores no contexto pós-golpe parlamentar de 2016. As dinâmicas locais expõem processos de contração salarial e individualização das relações de trabalho e a reafirmação da meritocracia como justificativa ideológica da precarização. A isso, trabalhadores se contrapõem pela reafirmação de sua condição coletiva de classe, em favor de benefícios derivados do PMAQ, como recomposição salarial para todos.

Palavras-chave
Avaliação em saúde; Financiamento da saúde; Gestão em saúde; Trabalhadores da saúde; Avaliação de desempenho profissional


Este artículo analiza la realización del PMAQ-AB a partir de su contextualización en un escenario político nacional de profundas transformaciones, desde el reformismo débil que promovió una lenta extensión de derechos contra el reformismo fuerte de la restauración neoliberal. Para discutir los elementos relacionados al trabajo y a las disputas por la distribución en los recursos públicos se realizó un estudio de caso con trabajadores, gestores y consejeros de salud en dos capitales del nordeste brasileño. Los resultados ponen en evidencia el recrudecimiento del conflicto distributivo y el resultado desfavorable para los trabajadores en el contexto post-golpe parlamentario de 2016. Las dinámicas locales exponen procesos de contracción salarial e individualización de las relaciones de trabajo y la reafirmación de la meritocracia como justificativa ideológica de la precarización. A eso se contraponen los trabajadores por medio de la reafirmación de su condición colectiva de clase, en favor del beneficio derivado del PMAQ con la recomposición salarial para todos.

Palabras clave
Evaluación en salud; Financiación de la salud; Gestión en salud; Trabajadores de la salud; Evaluación de desempeño profesional


Introdução

Desde a eclosão da crise financeira internacional de 2008, ainda que de maneiras heterogêneas, países do sul e norte globais têm passado por profundas crises políticas, sociais e econômicas, acompanhadas pelo aumento das desigualdades sociais e de medidas de austeridade fiscal; pelas privatizações de ativos estatais; e pela ascensão de políticas autoritárias, mesmo em regimes considerados democracias consolidadas11 Tooze A. Crashed: how a decade of financial crises changed the world. New York: Penguin Books; 2018.

2 Fraser N. The end of progressive neoliberalism [Internet]. New York: Dissent Magazine; 2017 [citado 2 Set 2022]. Disponível em: https://www.dissentmagazine.org/online_articles/progressive-neoliberalism-reactionary-populism-nancy-fraser
https://www.dissentmagazine.org/online_a...
-33 Brown W. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Politeia; 2019.. No Brasil, o período foi de profundas mudanças políticas e econômicas, definidas por Singer44 Singer A. O Lulismo em crise: um quebra-cabeça do período Dilma (2011-2016). São Paulo: Companhia das Letras; 2018. como de transição desde um “reformismo fraco” durante governos liderados pelo Partido dos Trabalhadores para o de “contrarreformismo forte” pós-2016.

O conceito de “reformismo fraco” é definido como um processo lento e contraditório de extensão de direitos e incorporação social de amplos setores populares pela adoção de políticas econômicas e sociais democratizantes, em uma conjuntura econômica externa favorável55 Erten B, Ocampo JA. Super cycles of commodity prices since the mid-nineteenth century. World Dev. 2013; 44:14-30.. Lula percebeu “uma janela de oportunidade para o reformismo fraco, graças ao boom das commodities, e aproveitou a brecha de maneira efetiva”, com execução de políticas como o aumento do valor real do salário-mínimo, a geração de empregos, “a extensão do Benefício de Prestação Continuada (BPC), o Programa Universidade para Todos (Prouni), o Minha Casa Minha Vida (MCMV)”, entre outras55 Erten B, Ocampo JA. Super cycles of commodity prices since the mid-nineteenth century. World Dev. 2013; 44:14-30. (p. 12). Isso se deu por uma forma de condução do governo conhecida como lulismo, um “modelo de arbitragem entre as classes fundamentais”, em que o então presidente Lula (2003-2010) buscou promover equilíbrio entre os interesses das variadas frações de classe, de modo que nenhuma delas tivesse “força para impor os próprios desígnios”66 Singer A. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras; 2012. (p. 144).

A ampliação da participação dos salários na composição do Valor Adicionado Bruto da economia brasileira foi outra consequência das políticas adotadas e teria produzido uma “revolução indesejada” no mercado de trabalho brasileiro77 Rugitsky F. The rise and fall of the Brazilian economy (2004-2015): the economic antimiracle [Internet]. Saint Louis: Ideas; 2017 [citado 2 Set 2022]. Disponível em: https://ideas.repec.org/p/spa/wpaper/2017wpecon29.html
https://ideas.repec.org/p/spa/wpaper/201...
,88 Saramago HA, Freitas FNP, Medeiros CA. Distribuição funcional da renda: aspectos conceituais e metodológicos e uma análise de decomposição para a parcela salarial no Brasil (1995-2015). In: Anais do 23o Encontro Nacional de Economia Política; 2018; Niterói (RJ). Niterói: Sociedade Brasileira de Economia Política; 2018. p. 1-25.,, com a tendência de os salários reais crescerem continuamente acima do crescimento da produtividade, o que acirrou progressivamente o conflito distributivo e reduziu as margens e taxas de lucros das empresas”99 Serrano F, Summa R. Conflito distributivo e o fim da “breve era de ouro” da economia brasileira. Novos Estud CEBRAP. 2018; 37(2):175-89. (p. 176). Conflito distributivo é estabelecido quando há um descompasso entre as expectativas de lucro e salário médio entre empregadores e trabalhadores.

É preciso ressalvar, no entanto, que, apesar de tal acirramento e da expressiva redução da pobreza e da extrema pobreza, Carvalho1010 Carvalho L. Valsa brasileira: do boom ao caos econômico. São Paulo: Todavia; 2018. aponta que não houve proporcional redução de desigualdades, com crescimento da renda do capital concentrado nas frações mais ricas da população1010 Carvalho L. Valsa brasileira: do boom ao caos econômico. São Paulo: Todavia; 2018..

A partir de 2014, o cenário muda com uma política fiscal fortemente restritiva, medidas de austeridade e contração da demanda efetiva99 Serrano F, Summa R. Conflito distributivo e o fim da “breve era de ouro” da economia brasileira. Novos Estud CEBRAP. 2018; 37(2):175-89.. Ao ciclo de ampliação de direitos e oferta de serviços públicos, foi contraposta uma política macroeconômica de restauração neoliberal, com o desmonte das políticas públicas e a revisão do pacto social consolidado na Constituição de 198844 Singer A. O Lulismo em crise: um quebra-cabeça do período Dilma (2011-2016). São Paulo: Companhia das Letras; 2018.. Tal processo foi intensificado com o “golpe parlamentar” de 201644 Singer A. O Lulismo em crise: um quebra-cabeça do período Dilma (2011-2016). São Paulo: Companhia das Letras; 2018.,1111 Avritzer L. O pêndulo da democracia. São Paulo: Todavia; 2019.

12 Boito A Jr. Reforma e crise política no Brasil: os conflitos de classe nos governos do PT. São Paulo, Campinas: Unesp, Unicamp; 2018.
-1313 Santos WG. A democracia impedida: o Brasil no século XXI. Rio de Janeiro: FGV; 2017., que deu início à fase de “contrarreformismo forte”44 Singer A. O Lulismo em crise: um quebra-cabeça do período Dilma (2011-2016). São Paulo: Companhia das Letras; 2018.,1414 Rossi P, Teixeira L. O Brasil do futuro: incertezas críticas e cenários econômicos para as próximas duas décadas. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2021.

15 Krein JD, Oliveira RV, Filgueiras VA. As reformas trabalhistas: promessas e impactos na vida de quem trabalha. Cad CRH. 2019; 32(86):225-9.
-1616 Cardoso AM, Azais C. Reformas trabalhistas e seus mercados: uma comparação Brasil-França. Cad CRH. 2019; 32(86):307-24.: um conjunto de reformas iniciadas no governo Temer e aprofundadas no governo Jair Bolsonaro, que se contrapõem às mudanças gradativas e estruturais alcançadas no ciclo lulista. São exemplos disso a Emenda Constitucional 95 (EC-95), que estabelece um teto para gastos públicos (com exceção do pagamento dos juros da dívida pública), com contração das despesas públicas, que impactaram nas políticas sociais e na capacidade de investimento do Estado; a reforma trabalhista de 2017; e a reforma da previdência.

Na saúde, essa conjuntura favorece a passagem do histórico subfinanciamento público do sistema - e a luta por sua superação pela adoção de um piso nacional de investimento público no setor (2000-2015) – para o período de desfinanciamento imposto pela EC 951717 Funcia FR. Subfinanciamento e orçamento federal do SUS: referências preliminares para a alocação adicional de recursos. Cienc Saude Colet. 2019; 24(12):4405-14.

18 Massuda A, Hone T, Leles FAG, Castro MC, Atun R. The Brazilian health system at crossroads: progress, crisis and resilience. BMJ Glob Health. 2018; 3(4):e000829.

19 Ocké-Reis CO. Sustentabilidade do SUS e renúncia de arrecadação fiscal em saúde. Cienc Saude Colet. 2018; 23(6):2035-42.
-2020 Vieira FS, Piola SF, Benevides RPS. Vinculação orçamentária do gasto em saúde no Brasil: resultados e argumentos a seu favor. Brasília: Ipea; 2019., com desmonte das políticas públicas, produzindo aumento das hospitalizações e mortes infantis evitáveis2121 Malta DC, Duncan BB, Barros MBA, Katikireddi SV, Souza FM, Silva AG, et al. Medidas de austeridade fiscal comprometem metas de controle de doenças não transmissíveis no Brasil. Cienc Saude Colet. 2018; 23(10):3115-22.,2222 Rasella D, Basu S, Hone T, Paes-Sousa R, Ocké-Reis CO, Millett C. Child morbidity and mortality associated with alternative policy responses to the economic crisis in Brazil: a nationwide microsimulation study. PLoS Med. 2018; 15(5):e1002570..

Gomes e Merhy2323 Gomes LB, Merhy EE. A atenção básica no olho do furacão. In: Akerman M, Sanine PR, Caccia-Bava MCG, Marim FA, Louvison M, Hirooka LB, et al, organizadores. Atenção básica é o caminho! Desmontes, resistências e compromissos: contribuições das universidades brasileiras para a avaliação e pesquisa na APS - perspectivas: avaliação, pesquisa e cuidado em atenção primária à saúde. São Paulo: Hucitec; 2020. p. 38-47. apontam que os cortes orçamentários se somam à mudança na Política Nacional de Atenção Básica em 2017, ampliação das terceirizações, privatizações e focalização da oferta de serviços, com quebra dos princípios da universalidade, equidade e gratuidade que norteiam o Sistema Único de Saúde (SUS). Essas transformações afetam diretamente a gestão do trabalho em saúde e as políticas salariais em sua relação com os conflitos distributivos pelos fundos públicos.

É nesse contexto conturbado que o Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB) foi elaborado e executado. Com vigência entre 2011 e 2019, seu objetivo foi ampliar o acesso aos serviços de Atenção Básica na Saúde e estabelecer um padrão de qualidade nacional, a partir de parâmetros comparáveis, com monitoramento e avaliação permanentes2424 Brasil. Portaria n° 1.645, de 2 de Outubro de 2015. Dispõe sobre o Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB). Diário Oficial da União. 03 Out 2015..

O PMAQ-AB foi implementado por um processo de negociação e pactuação entre as três esferas (federal, estadual e municipal) de gestão do SUS, por contratualização de compromissos e indicadores entre gestão, trabalhadores e usuários; da implementação do programa; da avaliação de acesso e qualidade; e da repactuação2424 Brasil. Portaria n° 1.645, de 2 de Outubro de 2015. Dispõe sobre o Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB). Diário Oficial da União. 03 Out 2015.

25 Cavalcanti PCS, Oliveira Neto AV, Sousa MF. Uma narrativa sobre o Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade na Atenção Básica. In: Gomes LB, Barbosa MG, Ferla AA. Atenção básica: olhares a partir do programa nacional de melhoria do acesso e da qualidade - PMAQ-AB. Porto Alegre: Rede Unida; 2016. p. 17-48.

26 Gomes LB, Merhy EE. Uma análise política do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica - PMAQ-AB. In: Gomes LB, Barbosa MG, Ferla AA. Atenção básica: olhares a partir do programa nacional de melhoria do acesso e da qualidade - PMAQ-AB. Porto Alegre: Rede Unida; 2016. p. 49-73.
-2727 Brasil. Portaria n° 1.654, de 19 de Julho de 2011. Institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde, o Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB) e o Incentivo Financeiro do PMAQ-AB, denominado Componente de Qualidade do Piso de Atenção Básica Variável - PAB Variável. Diário Oficial da União. 19 Jul 2011.. O programa passou por três ciclos (ciclo 1: 2011-2012, ciclo 2: 2013-2015 e ciclo 3: 2015-2019)2828 Russo LX, Powell-Jackson T, Barreto JOM, Borghi J, Kovacs R, Gurgel GD Jr, et al. Pay for performance in primary care: the contribution of the Programme for Improving Access and Quality of Primary Care (PMAQ) on avoidable hospitalisations in Brazil, 2009-2018. BMJ Global Health. 2021; 6(7):e005429., com variações nos processos de pactuação. Sua implementação foi permeada por “tensões constitutivas”, relacionadas ao crônico subfinanciamento da saúde; à negociação local dos processos de trabalho e a padrões de utilização dos recursos; à política de Educação Permanente; às dinâmicas de avaliação externa; e à reafirmação da Atenção Básica como coordenadora do cuidado e ordenadora das redes de atenção2626 Gomes LB, Merhy EE. Uma análise política do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica - PMAQ-AB. In: Gomes LB, Barbosa MG, Ferla AA. Atenção básica: olhares a partir do programa nacional de melhoria do acesso e da qualidade - PMAQ-AB. Porto Alegre: Rede Unida; 2016. p. 49-73..

Gomes e Merhy2626 Gomes LB, Merhy EE. Uma análise política do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica - PMAQ-AB. In: Gomes LB, Barbosa MG, Ferla AA. Atenção básica: olhares a partir do programa nacional de melhoria do acesso e da qualidade - PMAQ-AB. Porto Alegre: Rede Unida; 2016. p. 49-73. apontaram limites e possibilidades do PMAQ-AB na efetivação do direito à saúde: por um lado, o programa ampliou o financiamento e o apoio à melhoria dos serviços em municípios onde já havia projetos locais consistentes e boa capacidade de governo e, por outro, favoreceu a coerção institucional sobre trabalhadores e gestores, especialmente em localidades com cultura de gestão autoritária.

À luz desse debate, este artigo propõe compreender as execuções do PMAQ-AB em duas capitais do nordeste brasileiro como analisadoras deste cenário de transformações do país. Para tanto, buscaremos responder às seguintes perguntas: Quais reflexões são possíveis estabelecer entre a efetivação de política pública de saúde em âmbito local e o contexto político, econômico e social nacional? Como um programa nacional elaborado para ampliar o financiamento da saúde e a qualidade dos serviços se concretizou no trabalho local, em relação à distribuição dos recursos públicos?

Método

Este estudo apresenta uma análise qualitativa, do tipo estudo de caso, em uma investigação empírica de um fenômeno contemporâneo: a implementação do PMAQ-AB, em seu contexto real e espaço-tempo, cujos limites entre fenômeno e contexto não são claros; de natureza flexível, que se baseia em mais de uma fonte de evidências (entrevistas e grupos focais)2929 Yin RK. Estudo de caso: planejamento e métodos. 5a ed. Porto Alegre: Bookman; 2015.. Foi realizado em duas capitais de estados do nordeste brasileiro. Procuramos evidenciar no estudo elementos relacionados ao trabalho e às disputas pela distribuição dos recursos públicos.

A pesquisa contou com amostra intencional formada por dois representantes da gestão municipal da saúde, dois conselheiros de saúde e quatro grupos focais com trabalhadores das equipes de saúde da família (com uma média de seis participantes cada), totalizando trinta participantes.

As técnicas de entrevistas e grupos focais foram escolhidas por permitirem a expressão de visões de mundo relacionadas à inserção social, econômica e política no cenário estudado2929 Yin RK. Estudo de caso: planejamento e métodos. 5a ed. Porto Alegre: Bookman; 2015.. Ambas foram realizadas entre 2019 e 2020, nos locais de trabalho dos participantes da pesquisa por quatro entrevistadores (dois em cada estado), previamente treinados. Elas foram facilitadas por perguntas norteadoras sobre a implementação do PMAQ-AB, seus efeitos e limitações. Todas foram gravadas (por meio de gravador de voz) e transcritas na íntegra. O diário de campo foi utilizado pelos entrevistadores para registros das impressões percebidas durante a coleta.

Para preservar o anonimato dos participantes, as cidades foram denominadas por capital 1 e capital 2 e os participantes foram identificados como: G para gestor, C para conselheiro e GF para os grupos focais, sendo adicionada a numeração da respectiva cidade.

Para a compreensão das variadas dimensões dos fenômenos observados, a análise considerou os diferentes níveis de integração dos participantes de pesquisa: 1. os “processos microssociais”, como a organização local para implementação do PMAQ-AB, “os participantes, institucionalidade, formas de organização, projetos políticos explícitos ou subjacentes” dos indivíduos que interagem na produção de uma realidade local; 2. os processos “mesossociais”, que remontam às formas de ação coletiva dos indivíduos em foco, assim como suas interações sociais e institucionais que extrapolam a dimensão local e participação em espaços públicos e de disputa pela implementação da política pública; e 3. os processos “macrossociais”, relacionados aos espaços de abrangência mais ampla e ao contexto histórico em que as interações sociais estão inseridas3030 Dagnino E, Olvera AJ, Panfichi A, organizadores. A disputa pela construção democrática na América Latina. São Paulo: Paz e Terra; 2006. (p. 33). Para analisar esses diferentes níveis de integração político-social, mobilizamos categorias analíticas de graus distintos de abstração: aquelas a que os próprios participantes da pesquisa recorrem para interpretar suas ações e contextos vividos; conceitos intermediários que possibilitam um caminhar analítico desde a realidade vivida até a abstração teórica exposta na definição política do momento atual; e conceitos gerais que definem o contexto histórico em que as interações observadas estão inseridas.

O material empírico permitiu a elaboração analítica em torno de uma categoria central: conflito distributivo. Por este, entendem-se as lutas políticas e econômicas pela distribuição dos bens resultantes do trabalho, tanto nas disputas pelos fundos públicos (por exemplo, distribuição social dos recursos arrecadados pelo Estado, que envolvem tributação, renúncia fiscal e direcionamento dos gastos governamentais) quanto pela relação direta entre capital e trabalho na composição do Valor Adicionado Bruto do país77 Rugitsky F. The rise and fall of the Brazilian economy (2004-2015): the economic antimiracle [Internet]. Saint Louis: Ideas; 2017 [citado 2 Set 2022]. Disponível em: https://ideas.repec.org/p/spa/wpaper/2017wpecon29.html
https://ideas.repec.org/p/spa/wpaper/201...
,99 Serrano F, Summa R. Conflito distributivo e o fim da “breve era de ouro” da economia brasileira. Novos Estud CEBRAP. 2018; 37(2):175-89.,3131 Salvador E. Fundo público e conflito distributivo em tempos de ajuste fiscal no Brasil. In: Castro JA, Pochmann M, organizadores. Brasil: Estado social contra a barbárie. São Paulo: Fundação Perseu Abramo; 2020. p. 367-88..

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CAAE 90331418.6.0000.8069, Parecer n. 2.960.514) e todos os respondentes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Resultados e discussão

A análise da implementação local do PMAQ-AB identificou um acirramento dos conflitos distributivos vivenciados na Atenção Básica, relacionado à mudança conjuntural do país durante a vigência do programa. Os grupos focais e as entrevistas explicitam esse processo por dois eixos conjugados: a referência à diminuição (no montante e na frequência) de recursos repassados pelo programa em contexto de estagnação salarial; e a individualização da avaliação e remuneração como contraponto à dimensão coletiva do trabalho. Em contraposição, houve a expectativa dos trabalhadores de que a remuneração do PMAQ-AB minorasse os efeitos das perdas salariais, conjugada com a luta em defesa da concepção coletiva do trabalho em saúde. Essas são expressões locais e setoriais das transformações no mercado de trabalho e da intensificação das disputas pelo orçamento público em contexto de crise.

A compreensão por trabalhadores e pela gestão de que os recursos do PMAQ-AB são complementação salarial, e não pagamento por desempenho, impõe limites à consecução dos objetivos do programa. “Como é uma renda extra, em termos financeiros, a gente tipo conta com esse valor para fazer alguma coisa diferente, o que com salário da gente, a gente não consegue” (GF1.1), afirma participante, ressaltando que, nos últimos oito anos, o prefeito “nunca deu um aumento”. Outros participantes da equipe corroboram:

Nunca tivemos aumento, entendeu? Então, quando vem esse dinheirinho é uma alegria total.

(G.1.1)

Até quando a gente [agentes comunitários de saúde] conseguiu o piso nacional, o que tinha por fora, ele [prefeito] saiu tirando. Então o PMAQ é um alívio para a gente, assim, do mês que a gente recebe o PMAQ é o mês que a gente consegue respirar.

(G.1.1)

O programa, pensado como incentivo/bônus atrelado ao desempenho, passa a ser disputado pelos trabalhadores para composição salarial.

De fato, o recurso dá uma forma de valorizar mais aquele profissional. A gente não tem aquela política do servidor público ter reajuste. Então o que o trabalhador viu? Ele viu que melhorando o seu serviço, ele iria ter uma nota maior, consequentemente, um recurso maior [...]. Então dá uma melhor qualidade de vida para ele e sua família e consequentemente um trabalho melhor é ofertado à população.

(C1)

Além da quebra na vinculação entre remuneração e desempenho decorrente do contexto de piora das condições de trabalho, houve a percepção de diminuição de valores repassados. Em virtude da avaliação das equipes ao longo dos ciclos, o programa prevê variações dos valores de incentivo, que ocorrem por aspectos locais, como modificação na periodicidade ou montante destinado aos trabalhadores; inclusão de outras categorias a serem remuneradas, entre outros. Ressalta-se que a manutenção de valores nominais fixos em períodos de aceleração inflacionária produz percepção de redução do poder de compra. Assim, por diferentes motivos, o trabalhador pode efetivamente passar a receber valores menores ou perceber o recurso como menos relevante. Isso produz entendimento de piora nos valores da remuneração e desincentivo, em um programa originalmente implementado para motivar o processo de trabalho e a melhoria da qualidade do serviço.

Tivemos reduções entre o primeiro ciclo e o terceiro ciclo, tivemos diminuição de valores […]. Principalmente do segundo para o terceiro ciclo houve, e foi motivo de reclamações e de dúvidas, às vezes até tivemos notas que se mantiveram e o recurso diminuiu […].

(C1)

Trabalhadores também questionam descontinuidades nos repasses dos recursos às equipes, sobretudo entre os ciclos do PMAQ-AB:

A gente recebia mensal, depois passou para trimestral, agora a gente não sabe, anual... Ficou uma época grande, a gente passou mais de um ano sem receber, todo mundo sabendo que a gente não recebia PMAQ.

(GF1.1)

Isso gera insegurança no trabalhador quanto ao recebimento do incentivo e, por consequência, desestímulo.

A periodicidade da remuneração também expressa uma tensão decorrente do pagamento por desempenho em contexto de arrocho salarial: a expectativa do trabalhador de que o programa minore efeitos de perdas salariais se contrapõe ao entendimento da gestão de que, se o repasse é mensal, a bonificação se torna reposição salarial, com decorrente quebra na lógica de incentivo às mudanças no desempenho.

Tal tensão também se apresenta na contraposição entre as dimensões individual e coletiva do trabalho, com pressão da gestão para individualizar a avaliação e a remuneração, e a resistência de parte dos trabalhadores em favor do benefício coletivo.

Ficava uma barganha como se fosse um aumento de salário. E a gente não queria trazer o PMAQ como um aumento de salário. Estou dizendo tecnicamente falando.

(G2)

No seu entender de G2, a proposta inicial era garantir uma gratificação aos trabalhadores relativa ao seu desempenho individual.

Os sindicatos traziam muito o exemplo de outras cidades. Inclusive da região metropolitana e do interior, que passaram a usar esse modelo do repasse do PMAQ ser dividido para os profissionais por mês, como um aumento de salário, vamos dizer assim. Saía como gratificação, mas era um valor que você já contava todo mês [...]. E acabou que o PMAQ virou um recurso a mais que o município tinha, para repassar para o profissional, para melhorar, vamos dizer, o salário do profissional. E era o que a gente não queria [...], que virasse um aumento de salário.

(G2)

Essa gestora destaca ainda que seu incômodo era remunerar com recursos do programa pessoas que não mereciam: “O que me incomodava era ‘tem que ganhar, senão eu não participo’. Não via o PMAQ como um processo de avaliação que ele é”, justifica com uma compreensão de avaliação individualizada do processo de trabalho. “Isso é bom para o trabalhador também. Enquanto eu estou, eu quero que o meu trabalho seja demonstrado, [...] se eu estiver falhando, que eu possa entender onde eu estou falhando, para eu poder melhorar”, complementa. Com base nisso, entende que o valor repassado não pode ser concebido como salário, mas sim “uma gratificação por desempenho” (G2).

Naquela conjuntura, havia um amplo debate nacional acerca da proposta de reforma trabalhista, aprovada no governo Temer (2016-2018), com implementação de uma nova política que individualiza a negociação salarial e dispensa a intermediação dos sindicatos na relação patrão-empregado. Ideologicamente, apesar de referir-se ao PMAQ-AB, um programa público, e à ideia de gratificação, a gestão local corrobora a defesa do processo de individualização das relações de trabalho em contraponto à sua dimensão coletiva, mesmo no serviço público.

O conflito também esteve presente na capital 1, apesar de sua solução em favor da compreensão do trabalho como resultado de um processo coletivo.

Não gostei da avaliação porque, a meu ver, seria por profissional, não por equipe, pois assim veriam realmente o desempenho de cada um, entendeu? Ninguém é melhor do que ninguém.

(GF1.2)

Essa defesa da avaliação individual foi contraposta no mesmo grupo focal, com ênfase à concepção coletiva do processo de trabalho, que prevaleceu na capital 1 como resultado das lutas dos trabalhadores. Um dos participantes destacou que existem meses em que a pessoa:

[…] não consegue desempenhar e não é culpa dela, acontece. Acontece com a enfermeira, com a dentista, a gente como equipe, a gente deve um para o outro.

(GF1.2)

A pactuação municipal do PMAQ-AB gerou conflitos intensos entre trabalhadores e gestores em relação ao repasse do recurso e à divisão de porcentuais entre os profissionais. Na capital 2, os trabalhadores realizaram boicote ao programa, levando à suspensão provisória no repasse de recursos do governo federal para o município e redução significativa dos mesmos após o terceiro ciclo do programa (cerca de um quarto do repasse no primeiro ciclo). Na capital 1, as disputas se desdobraram em ações de rua.

A última vez que a gente fez uma manifestação bem pesada queimou pneu, baixou polícia, baixou a guarda municipal, para a volta do PMAQ trimestral, porque naquela época a gente recebia anual. [...] Foi uma luta grande que a gente enfrentou com a gestão para a gente poder voltar a ter o PMAQ trimestral, dentre outras questões também.

(GF1.1)

Ressalta-se que os mecanismos de participação social previstos pelo programa reproduzem aquilo que Fleury e Kabad3232 Fleury SMT, Kabad JF. Metonímias da Participação Pacificada. In: Anais do 29o Congresso Latino-Americano de Sociologia/ALAS; 2013; Santiago. Santiago: ALAS; 2013. definem como “metonímia da participação”. Nos contextos analisados, prevalecem formas de participação “convencimento” e “governança matricial”, pois a gestão mobiliza as instâncias formais de deliberação pública para legitimar decisões previamente tomadas, com limitadas possibilidades de incidência. Frente a isso, os trabalhadores desenvolvem outras formas de participação, que repõem o conflito como possibilidade concreta de distribuição dos recursos públicos de forma menos desigual. Os sujeitos coletivamente definem as múltiplas metonímias que expressam um terreno em disputa, material e de significados. Em tal contexto, o “repertório de interações” dos sujeitos em ação perpassa a formação de consensos e a coerção, o “diálogo” e a “enganação”, ações de barganha, de clientelismo ou de enfrentamento direto3333 Tatagiba L, Abers R, Serafim L. A participação na era Lula: repertórios de interação em um Estado heterogêneo. In: Anais do 35o Encontro Anual da Anpocs; 2011; Caxambu (MG). Caxambu: Anpocs; 2011.. No referido caso, as dificuldades no diálogo se desdobraram em enfrentamento direto. A queima de pneu é, nesse sentido, nova metonímia da participação, que recoloca a disputa de poder na relação direta entre trabalhador e Estado.

Os relatos dos participantes da pesquisa devem ser contextualizados em uma realidade de contração salarial, vínculos empregatícios frágeis e piora nas condições de trabalho, demarcando o PMAQ-AB como um bom analisador dos efeitos do conflito distributivo em curso no país, pensando-o na dimensão mesossocial da política. Com base nessa diferenciação dos diferentes níveis de integração político-social presentes no fenômeno observado, elaboramos um quadro-síntese dos principais resultados.

Figura 1
Quadro-síntese dos principais resultados

A crise política e econômica no Brasil tem uma de suas expressões no acirramento do conflito distributivo, em decorrência da recuperação salarial nos anos 2004-2014, com solução em favor do capital, pela adoção de políticas de austeridade, contração da demanda e consequente desemprego em massa a partir de 2015. Assim, a análise do PMAQ-AB e de outros programas que contemplem a remuneração por desempenho necessariamente deve ser contextualizada, de modo que a compreensão dos significados dos resultados só é possível pela discussão do cenário de disputas pela distribuição do orçamento público.

A dimensão central do conflito distributivo aqui analisado é a disputa pelo fundo público, que ocupa um lugar estrutural no capitalismo contemporâneo, envolvendo a capacidade de mobilização de recursos estatais para processos de acumulação. “O fundo público tornou-se pressuposto do financiamento da reprodução da força de trabalho, atingindo globalmente toda a população por meio dos gastos sociais”3434 Oliveira F. Os direitos do Antivalor: a economia política da hegemonia imperfeita. Petrópolis: Vozes; 1998. (p. 19-20). A complexificação do processo produtivo, somada à crescente financeirização da economia, dá à ação estatal sentido preciso: “impor” à sociedade “o peso da valorização exclusiva do setor econômico mais desenvolvido”3535 Gozzi G. Estado contemporâneo. In: Bobbio N, Matteucci N, Pasquino G. Dicionário de política. 13a ed. Brasília: Editora UnB; 2007. p. 401-9. (p. 404), com destinação dos recursos públicos à remuneração do mercado financeiro e reprodução do capital.

Perfazem o conjunto de “investidores institucionais” os “fundos de pensão, fundos coletivos de aplicação, sociedades de seguros, bancos que administram sociedades de investimentos”, entre outros3636 Salvador E. Fundo público e políticas sociais na crise do capitalismo. Serv Soc Soc. 2010; (104):605-31. (p. 616). O mercado impõe “novas normas de rentabilidade e exigências de redução de custos salariais, aumento de produtividade e flexibilidade nas relações de trabalho”3636 Salvador E. Fundo público e políticas sociais na crise do capitalismo. Serv Soc Soc. 2010; (104):605-31. (p. 610-611). Do intervencionismo do mercado no Estado decorre um duplo efeito: a canalização de recursos públicos para o setor privado e a precarização das relações de trabalho. Ambos impactam diretamente na seguridade social e, mais especificamente, nas políticas de saúde.

É nesse contexto que o PMAQ-AB se insere, representando, inicialmente, uma efetiva injeção de recurso novo, no âmago das políticas desencadeadas entre 2011 e 2014, que elevaram o orçamento global do governo federal para a Atenção Básica de R$ 9,2 bilhões em 2010 para pouco mais de R$ 20 bilhões em 2014. A Atenção Básica passou de uma representação de 13,9٪ para 18,9٪ no orçamento geral do Ministério da Saúde, apesar de se manter a mais subfinanciada das áreas da Atenção à Saúde do SUS3737 Pinto HA, Magalhães JRHM, Koerner RS. Evolução do financiamento federal da atenção básica a partir da implantação da Estratégia de Saúde da Família - 1998 a 2014 [dissertação]. Porto Alegre: Escola de Enfermagem, Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2014..

Tais aumentos foram relevantes para reduzir o subfinanciamento desse setor, especialmente nos municípios, que assumem partes desproporcionais dos investimentos na Atenção Básica, de mais de 50٪ dos investimentos globais, com os estados assumindo menos de 10٪, e o governo federal, entre 30% e 40%3737 Pinto HA, Magalhães JRHM, Koerner RS. Evolução do financiamento federal da atenção básica a partir da implantação da Estratégia de Saúde da Família - 1998 a 2014 [dissertação]. Porto Alegre: Escola de Enfermagem, Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2014.. Assim, o PMAQ-AB representou um alívio para gestores locais, que tentaram desafogar suas contas com o recurso novo. Ao mesmo tempo, da parte dos trabalhadores se manteve a disputa por melhores remunerações.

A característica do PMAQ-AB de favorecer a definição da destinação dos recursos pelo âmbito local2727 Brasil. Portaria n° 1.654, de 19 de Julho de 2011. Institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde, o Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB) e o Incentivo Financeiro do PMAQ-AB, denominado Componente de Qualidade do Piso de Atenção Básica Variável - PAB Variável. Diário Oficial da União. 19 Jul 2011., valorizando o princípio da descentralização, aguçou tensões, conforme expresso nas falas destacadas acima. Os resultados expostos mostram que a disputa pelo uso do fundo público foi deslocada para a arena de cada município, fazendo com que, em algumas ocasiões, a negociação se transformasse em um campo de batalha entre trabalhadores e gestores. Essas tensões se agudizaram quando o incremento do recurso público para a Atenção Básica foi reduzido, a partir do ajuste fiscal iniciado em 2015, e intensificado a partir de 2016, evidenciando o âmbito mesossocial da política em um contexto macro de desfinanciamento.

Com a EC 95, houve redução em R$ 22,5 bilhões dos recursos federais em saúde, entre 2018 e 20203838 Moretti B, Funcia FR, Ocké-Reis CO. O Teto de Gastos faz mal à saúde. In: Dweck E, Rossi P, Oliveira ALM, organizadores. Economia no pós-pandemia: desmontando os mitos da austeridade fiscal e construindo um novo paradigma econômico no Brasil. São Paulo: Autonomia Literária; 2020. Cap. 12, p. 172-82.. A passagem do subfinanciamento para o desfinanciamento do SUS expressa, na saúde, a intensificação dos conflitos distributivos e sua solução em favor do capital, com impacto direto nas ofertas locais de serviços. O subfinanciamento da seguridade social no Brasil tinha como algumas de suas causas as desonerações tributárias e fiscais que, no setor saúde, beneficiam os agentes privados e enfraquecem a capacidade do orçamento público3131 Salvador E. Fundo público e conflito distributivo em tempos de ajuste fiscal no Brasil. In: Castro JA, Pochmann M, organizadores. Brasil: Estado social contra a barbárie. São Paulo: Fundação Perseu Abramo; 2020. p. 367-88.,3636 Salvador E. Fundo público e políticas sociais na crise do capitalismo. Serv Soc Soc. 2010; (104):605-31.. Com a EC-95 e o consequente desfinanciamento da seguridade, a situação se agravou. “Os gastos com saúde estão praticamente congelados, em termos reais, ao longo do período, apresentando uma pífia evolução de 0,39%, saindo de R$ 118,63 bilhões, em 2016, para R$ 119,10 bilhões, em valores pagos em 2019”3131 Salvador E. Fundo público e conflito distributivo em tempos de ajuste fiscal no Brasil. In: Castro JA, Pochmann M, organizadores. Brasil: Estado social contra a barbárie. São Paulo: Fundação Perseu Abramo; 2020. p. 367-88. (p. 381). A situação tende a se agravar com a aprovação, em 2019, de novas diretrizes políticas de caráter restritivo para o financiamento federal da Atenção Básica3939 Massuda A. Mudanças no financiamento da Atenção Primária à Saúde no Sistema de Saúde Brasileiro: avanço ou retrocesso? Cienc Saude Colet. 2020; 25(4):1181-8.,4040 Seta MH, Ocké-Reis CO, Ramos ALP. Programa Previne Brasil: o ápice das ameaças à Atenção Primária à Saúde? Cienc Saude Colet. 2020; 26 Supl 2:3781-6.. A análise do orçamento público federal mostra ainda que, de 2016 a 2019, houve maior canalização dos recursos anteriormente destinados à seguridade social, agora utilizados para pagamento das despesas primárias com o refinanciamento da dívida pública3131 Salvador E. Fundo público e conflito distributivo em tempos de ajuste fiscal no Brasil. In: Castro JA, Pochmann M, organizadores. Brasil: Estado social contra a barbárie. São Paulo: Fundação Perseu Abramo; 2020. p. 367-88..

Assim, as dinâmicas observadas no PMAQ-AB devem ser contextualizadas como expressões locais e setoriais dos resultados do “acirramento da disputa do fundo público brasileiro”, que têm sido desfavoráveis aos trabalhadores. “A não priorização das políticas sociais no âmbito do orçamento público torna-se ainda mais grave no quadro de acelerado aumento das desigualdades sociais, da queda dos rendimentos do trabalho e do aumento do desemprego”3131 Salvador E. Fundo público e conflito distributivo em tempos de ajuste fiscal no Brasil. In: Castro JA, Pochmann M, organizadores. Brasil: Estado social contra a barbárie. São Paulo: Fundação Perseu Abramo; 2020. p. 367-88. (p. 385). Por isso, não se pode dissociar a análise das políticas sociais da condução macroeconômica. “Enquanto a política social estiver submetida à lógica do ajuste fiscal permanente, não haverá possibilidade de garantias e expansão de direitos sociais, quiçá de políticas sociais universais”3131 Salvador E. Fundo público e conflito distributivo em tempos de ajuste fiscal no Brasil. In: Castro JA, Pochmann M, organizadores. Brasil: Estado social contra a barbárie. São Paulo: Fundação Perseu Abramo; 2020. p. 367-88. (p. 385).

O material empírico analisado evidencia as consequências político-sociais da austeridade fiscal sob regência neoliberal. O contexto local expõe o processo de individualização das relações de trabalho e a reafirmação da ideologia meritocrática como forma de distinção individual e justificação da desigualdade. Faz parte da política neoliberal o combate à proletarização por meio da “empreendedorização” dos trabalhadores, em que a “reindividualização” assume centralidade na esfera ideológica33 Brown W. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Politeia; 2019.. São três tendências conjugadas: a substituição da massa de trabalhadores por uma “multidão de empresas”, fundamentada na concepção de “portfólio de autoinvestimentos” como forma de inserção social do indivíduo; a economia de “compartilhamento” e a terceirização; e a delegação, às famílias, das tarefas de prover os dependentes33 Brown W. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Politeia; 2019..

Ao Estado, na acepção propriamente neoliberal4141 Laval C, Dardot P. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo; 2016., cumpre estabelecer o espaço de liberdade para indivíduos buscarem seus interesses particulares, e ao livre jogo econômico cabe legitimar as regras de direito público4141 Laval C, Dardot P. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo; 2016. (p. 107). Isso está “longe de condenar por princípio a intervenção do Estado como tal”. Os fundadores do neoliberalismo tiveram a “originalidade de substituir a alternativa da ‘intervenção ou não intervenção’ pela questão sobre qual deve ser a natureza das intervenções”4141 Laval C, Dardot P. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo; 2016. (p. 158). Ou seja, é preciso diferenciar as intervenções estatais ilegítimas das legítimas, que, no neoliberalismo, são as que estimulam a lógica concorrencial na mediação de todas as relações sociais, não mais restrita ao mercado.

Esse processo está presente nos setores público e privado, e a ideologia meritocrática é uma das principais formas de legitimação social. As desigualdades de acesso a recursos e bens são recolocadas, pelo discurso meritocrático, como resultados de diferenças de méritos individuais. O meritocratismo é “mistificador”4242 Boito A Jr. Classe média e sindicalismo. Politeia. 2004; 4(1):211-34., pois a referência da gestão de saúde à remuneração fundamentada no mérito individual oculta as ações e relações de trabalho efetivamente operadas na Atenção Básica. Essas relações são coletivas e desempenhadas em contexto de extrema precarização e flexibilização, com arrocho salarial, número excessivo de usuários por equipe de saúde, jornadas de trabalho estafantes, entre outros fatores a incidir sobre os resultados alcançados. O discurso meritocrático busca operacionalizar, no plano ideológico, a legitimação da intervenção estatal que visa estimular a concorrência como fundamento da integração social, ao mesmo tempo em que redireciona para a reprodução do capital os recursos do orçamento público anteriormente destinados à remuneração do trabalho.

É justamente essa “promoção do princípio da concorrência” que acaba por introduzir, na fase neoliberal, “um deslocamento importante com relação ao liberalismo clássico: o mercado não é mais definido pela troca, mas pela concorrência. Se a troca funciona pela equivalência, a concorrência implica desigualdade”4141 Laval C, Dardot P. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo; 2016. (p. 111). No caso do trabalho no serviço público, tal desigualdade pode se expressar de duas formas: pelo acesso diferenciado a recursos no interior do sistema, entre aqueles que merecem ou não; e pelo acesso diferenciado a recursos estatais e aos fundos públicos, em favor do capital e da remuneração dos credores da dívida pública e em detrimento da remuneração do trabalho. No PMAQ-AB, estão presentes essas duas consequências do capitalismo neoliberal contemporâneo.

Considerações finais

A análise do PMAQ-AB expôs a importância do contexto na análise dos processos de implementação de políticas públicas. Entendemos que a combinação entre produção de material empírico por estudo de caso e contextualização é a principal potencialidade da pesquisa aqui apresentada, com limitações relacionadas às dificuldades de generalização em pesquisas qualitativas.

O PMAQ-AB foi concebido em uma lógica expansiva dos investimentos na Atenção Básica à Saúde, mas executado em momento histórico de profunda instabilidade política e inflexão da orientação macroeconômica, desde o reformismo fraco ao “contrarreformismo forte”. Tal processo macrossocial trouxe consequências para as formas de ação coletiva e de gestão dos recursos públicos (nível mesossocial) e para a organização local e os sujeitos participantes da política (nível microssocial).

A solução do acirramento do conflito distributivo no país em favor do capital produziu um deslocamento de conteúdo do PMAQ-AB: o que era previsto como pagamento “por desempenho” tornou-se compensação para minorar os efeitos das perdas salariais. Com a estagnação salarial, o valor recebido tornou-se “uma renda extra”, “uma ajuda”, na produção de uma metonímia em que pagamento por desempenho passa a ser compreendido como complementação salarial. Isso impôs limites à consecução dos objetivos do PMAQ-AB, pois os planejados vínculos entre remuneração e desempenho foram quebrados, em um contexto de impossibilidade de aferição de mérito. Esta, pelo contrário, manifestou-se como justificativa ideológica da adequação do trabalhador ao contexto de piora nas condições de trabalho. Assim, nova metonímia se produziu: a meritocracia como governança do litígio.

Tal processo ganhou contornos precisos na contraposição do individual ao coletivo na pactuação do programa. O deslocamento da disputa pelo uso do fundo público para o âmbito municipal em um contexto de retração orçamentária transformou as negociações em um campo de batalha entre gestores da saúde e trabalhadores que, situados em uma posição macrossocial desfavorável, encontraram nos espaços de que diretamente participam possibilidades de produzir efeitos sobre a política e minorar suas perdas. No âmbito mesossocial, a gestão pressiona para individualizar a avaliação e a remuneração com referência ao discurso do mérito como governança do litígio, e os trabalhadores se contrapõem pela reafirmação de sua condição coletiva de classe, em favor do benefício como recomposição salarial para todos.

A combinação do programa neoliberal ortodoxo com formas autoritárias de condução política tende a limitar a participação dos trabalhadores na gestão das políticas públicas, com garantia de acesso privilegiado do mercado aos recursos públicos. Outras consequências próprias do capitalismo neoliberal contemporâneo são a disseminação da concorrência como princípio de (des)integração social e o aumento das desigualdades. Frente a isso, recoloca-se a usuários, trabalhadores e gestores a importância de uma rearticulação em torno da defesa dos princípios da Reforma Sanitária Brasileira, como contraponto e horizonte de luta por uma saúde que é coletiva e, necessariamente, democrática.

  • (e)
    Departamento de Saúde Coletiva, Universidade de Brasília (UnB). Brasília, DF, Brasil.
  • (f)
    Núcleo de Saúde Coletiva, Centro Acadêmico de Vitória, UFPE. Vitória de Santo Antão, PE, Brasil.
  • (h)
    Curso de Saúde Coletiva, Faculdade de Ceilândia, UnB. Brasília, DF, Brasil.

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  • Financiamento

    Os recursos financeiros utilizados na pesquisa foram aportados por meio da Chamada Pública internacional Confap-MRC: Health Systems Research Networks, envolvendo entidades de fomento à pesquisa do Brasil e do Reino Unido. Do Brasil, por meio do Confap, participaram a Fundação de Amparo à Pesquisa do Distrito Federal (FAP-DF), Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco (Facepe) e Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado da Paraíba (Fapesq).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    20 Jun 2022
  • Aceito
    29 Ago 2022
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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