Resumos
O presente artigo objetivou analisar as representações sociais de médicos atuantes na Estratégia Saúde da Família sobre atendimento à saúde para pessoas com deficiência (PcD). Utilizou-se a Teoria das Representações Sociais, com abordagem estrutural da Teoria do Núcleo Central, a partir da técnica de evocação de palavras analisadas pelos softwares Evoc® e Iramutec®. Participaram da pesquisa 109 médicos, predominantemente jovens e mulheres. A atenção às PcD se orienta por uma prática incompleta, insegura e permeada pelo receio de médicos que referem lacunas no processo de formação profissional, além de haver dificuldades de comunicação com pacientes identificados como PcD. Poucos médicos apresentam relatos mais inclusivos na assistência de PcD. Predominam as percepções restritas ao corpo, normatizadas pelo modelo biomédico e que ignoram as estruturas sociais.
Atenção Primária à Saúde; Pessoas com deficiência; Avaliação da qualidade dos cuidados de saúde; Pesquisa qualitativa
El objetivo fue el análisis de las Representaciones Sociales de médicos actuantes en la Estrategia Salud de la Familia sobre atención de la salud para personas con discapacidad (PcD). Se utilizó la Teoría de las Representaciones Sociales, con abordaje estructural de la Teoría del Núcleo Central a partir de la técnica de evocación de palabras analizadas por los softwares EVOC® e IRAMUTEC®. Participaron 109 médicos, predominantemente jóvenes y mujeres. La atención a las PcD se orienta por una práctica incompleta, insegura, atravesada por el recelo de médicos que refieren lagunas en el proceso de formación profesional, además de dificultades de comunicación con pacientes identificados como PcD. Pocos médicos presentan relatos más inclusivos en la asistencia de PcD. Predominan las percepciones restringidas al cuerpo, normalizadas por el modelo biomédico y que ignoran las estructuras sociales.
Atención Primaria de la Salud; Personas con discapacidad; Evaluación de la calidad de los cuidados de salud; Investigación cualitativa
Introdução
A Atenção Primária à Saúde (APS) é o primeiro nível de um sistema de serviço de saúde e a forma preferencial de primeiro contato das pessoas com os cuidados de saúde 11. Starfield B . Atenção Primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia . Brasília : UNESCO ; 2002 . . Em princípio, uma APS forte e orientada pelos atributos que a definem (acessibilidade, longitudinalidade, integralidade e coordenação) está habilitada para prestar uma assistência de qualidade, mais economicamente viável e com ênfase na promoção da saúde para todos os grupos populacionais 22. Lima JG , Giovanella L , Fausto MCR , Bousquat A , Silva EV . Atributos essenciais da Atenção Primária à Saúde: resultados nacionais do PMAQAB . Saude Debate . 2018 ; 42 Spec No 1 : 52 - 66 . , o que inclui os grupos minoritários e as pessoas com deficiência (PcD).
No Brasil, conforme a Política Nacional de Saúde da Pessoa com Deficiência 33. Brasil . Ministério da Saúde . Secretaria de Atenção à Saúde . Departamento de Ações Programáticas Estratégicas . Política Nacional de Saúde da Pessoa com Deficiência . Brasília : Ministério da Saúde ; 2010 . , já se destacam importantes ações voltadas para esse público, com protagonismo das equipes de APS, operacionalizada pela Estratégia Saúde da Família (ESF). Porém, ainda são poucos os estudos que abordam o desenvolvimento dessas ações ou da atenção à saúde para as PcD, sendo relevante os que destacam dificuldades de acesso e baixa qualidade do cuidado em saúde, com desfechos clínicos desfavoráveiss 44. Almeida MHM , Pacheco S , Krebs S , Oliveira AM , Samelli A , Molini-Avejonas DR , et al . Avaliação da atenção primária em saúde por usuários com e sem deficiência . CoDAS . 2017 ; 29 ( 5 ): e20160225 . , 55. Quaresma FRP , Stein AT . Attributes of primary health care provided to children/adolescents with and without disabilities . Cienc Saude Colet . 2015 ; 20 ( 8 ): 2461 - 8 . .
Para um conhecimento mais profundo da situação, são necessários estudos que avaliem, entre outros aspectos, a percepção dos profissionais responsáveis pelos cuidados de saúde na APS sobre a atenção à saúde para PcD. Apesar de grandes avanços, sobretudo no acesso ao serviço e na provisão de médicos, a APS brasileira ainda convive com grandes desafios na organização do serviço, incompletude de oferta das ações, estrutura arquitetônica precária e dificuldades de provisão de pessoal 66. Facchini LA , Tomasi E , Dilelio AS . Qualidade da Atenção Primária à Saúde no Brasil: avanços, desafios e perspectivas . Saude Debate . 2018 ; 42 Spec No 1 : 208 - 23 . . Especialmente no atendimento às PcD, a má qualidade das adequações físicas/estruturais e organizacionais das unidades são importantes barreiras para a inclusão e acolhimento desses usuários 77. Mocelin G , Weigelt LD , Rezende MS , Borges AM , Krug SBF . Melhoria do acesso e da qualidade na atenção básica em saúde: inserção da pessoa com deficiência . Cinergis . 2017 ; 18 Supl 1 : 353 - 7 . .
A qualidade da assistência da APS no Brasil apresenta fragilidades, sendo necessários aperfeiçoamentos 88. Prates ML , Machado JC , Silva LS , Avelar PS , Prates LL , Mendonça ET , et al . Desempenho da Atenção Primária à Saúde segundo o instrumento PCATool: uma revisão sistemática . Cienc Saude Colet . 2017 ; 22 ( 6 ): 1881 - 93 . . Os profissionais de saúde da APS desconhecem a legislação brasileira para PcD 99. Sedlmaier BMG , Mourão DM , Ferreira CG , Silveira CLG , Borges GF . Percepção e conhecimento de profissionais de unidades básicas da saúde sobre acessibilidade das pessoas com deficiência . Temas Educ Saude . 2021 ; 17 ( 00 ): e021003 . e não se mostram preparados para o acolhimento e a comunicação com esse grupo de usuários, requisitos fundamentais para a assistência à saúde de PcD, o que contribui para um atendimento excludente 1010. Silva MJ , Camboim FEF , Nunes EM , Lima AKBS . Acolhimento e atendimento a pessoas com deficiência na atenção básica: análise das dificuldades apontadas pelos profissionais de saúde . Temas Saude . 2017 ; 17 ( 3 ): 293 - 309 .
11. Amorim EG , Liberali R , Medeiros Neta OM . Avanços e desafios na atenção à saúde de pessoas com deficiência na atenção primária no Brasil: uma revisão integrativa . HOLOS . 2018 ; 34 ( 1 ): 224 - 36 . - 1212. Benelli TES , Alves FQ , Valim ARM , Garcia EL , Krug SBF , Paiva DN . Assistência à saúde das pessoas com deficiência na atenção primária: uma revisão bibliográfica . Cinergis . 2017 ; 18 Supl 1 : 391 - 3 . . Embora muitos profissionais defendam a assistência integral às PcD, não reduzida a processos nosológicos, creditam a instituições especializadas e filantrópicas a melhor assistência desses indivíduos 1313. Othero MB , Dalmaso ASW . Pessoas com deficiência na atenção primária: discurso e prática de profissionais em um centro de saúde-escola . Interface ( Botucatu ). 2009 ; 13 ( 28 ): 177 - 88 . doi: 10.1590/S1414-32832009000100015 .
https://doi.org/10.1590/S1414-3283200900... .
É relevante destacar que a atenção à saúde das PcD denota, de forma eloquente, os princípios do Sistema Único de Saúde. Essa relação vai desde a universalidade, como requisito que não exclui ou discrimina, passando pela equidade da assistência – que traz em si uma estreita relação com os conceitos de igualdade e de justiça, com a proposição de atendimento aos indivíduos de acordo com suas necessidades – até a integralidade do cuidado, que preconiza o reconhecimento de cada indivíduo como um todo, na promoção da saúde, na prevenção de doenças, no tratamento e na reabilitação.
Para melhor compreensão das ações e resultados que os serviços da APS se projetam para os usuários, há que se conhecer e refletir sobre as percepções elaboradas pelos profissionais que atuam nesse contexto 1010. Silva MJ , Camboim FEF , Nunes EM , Lima AKBS . Acolhimento e atendimento a pessoas com deficiência na atenção básica: análise das dificuldades apontadas pelos profissionais de saúde . Temas Saude . 2017 ; 17 ( 3 ): 293 - 309 . , 1414. Soratto J , Witt RR , Pires DEP , Schoeller SD , Sipriano CAS . Percepções dos profissionais de saúde sobre a Estratégia Saúde da Família: equidade, universalidade, trabalho em equipe e promoção da saúde/prevenção de doenças . Rev Bras Med Fam Comunidade . 2015 ; 10 ( 34 ): 1 - 7 . . Nos últimos anos, a Teoria das Representações Sociais (TRS), proposta originalmente por Serge Moscovici 1515. Marková I . A fabricação da teoria de representações sociais . Cad Pesqui . 2017 ; 47 ( 163 ): 358 - 75 . , vem se tornando muito frequente em estudos que buscam avaliar os valores, as noções e as práticas de determinados grupos sociais, considerando que tais representações são entendidas como uma forma de conhecimento socialmente elaborada e partilhada, tendo uma orientação prática e concorrendo para a construção de uma realidade comum a um conjunto social 1616. Gazzinelli MFC , Marques RC , Oliveira DC , Amorim MMA , Araújo EG . Representações sociais da educação em saúde pelos profissionais da equipe de saúde da família . Trab Educ Saude . 2013 ; 11 ( 3 ): 553 - 71 . . Dessa forma, o conhecimento das representações sociais (RS) de um grupo possibilita caracterizar os fenômenos construídos coletivamente sem desconsiderar a individualidade dos sujeitos, mediados pela linguagem 1717. Taborda M , Rangel M . Representações sociais de profissionais da saúde sobre aprendizagem e internet . Rev Bras Educ Med . 2016 ; 40 ( 4 ): 694 - 703 . .
A literatura registra alguns trabalhos que aclaram as RS de profissionais de saúde acerca da autonomia profissional e das práticas educativas no serviço 1616. Gazzinelli MFC , Marques RC , Oliveira DC , Amorim MMA , Araújo EG . Representações sociais da educação em saúde pelos profissionais da equipe de saúde da família . Trab Educ Saude . 2013 ; 11 ( 3 ): 553 - 71 . que envolvem o HIV/Aids na perspectiva de gênero 1818. Machado YY , Oliveira DC , Pereira ER , Pontes APM , Gomes AMT , Marques SC , et al . Representações sociais dos profissionais de saúde sobre HIV/AIDS: comparação entre homens e mulheres . Saud Pesqui . 2020 ; 13 ( 4 ): 861 - 9 . e na abordagem das doenças negligenciadas 1919. Santos CS , Gomes AMT , Souza FS , Marques SC , Lobo MP , Oliveira DC . Representações sociais de profissionais de saúde sobre doenças negligenciadas . Esc Anna Nery Rev Enferm . 2017 ; 21 ( 1 ): e20170016 . . Todavia, não foram identificados estudos que abordem as RS de profissionais de saúde sobre o cuidado de saúde às PcD. Esse aspecto salienta a invisibilidade das PcD na sociedade e no meio acadêmico e científico.
O presente trabalho teve como objetivo analisar as RS de médicos que atuam em equipes da Atenção Primária sobre o atendimento à saúde para PcD.
Métodos
Trata-se de um estudo qualitativo, fundamentado na TRS e com abordagem estrutural da Teoria do Núcleo Central (TNC), proposta por Jean-Claude Abric 1717. Taborda M , Rangel M . Representações sociais de profissionais da saúde sobre aprendizagem e internet . Rev Bras Educ Med . 2016 ; 40 ( 4 ): 694 - 703 . . A abordagem estrutural se apresenta na forma de dois sistemas que se complementam: o núcleo central e a periferia. O núcleo central é o que dá significado à representação, com elementos constituintes mais resistentes a modificações. Já a periferia constitui a maior parte dos elementos da evocação, sendo de caráter mutável e adaptável à realidade social vigente. A TNC sistematiza as representações sociais em torno de núcleos que estabelecem, ao mesmo tempo, sua significação e sua organização interna 1717. Taborda M , Rangel M . Representações sociais de profissionais da saúde sobre aprendizagem e internet . Rev Bras Educ Med . 2016 ; 40 ( 4 ): 694 - 703 . .
A pesquisa foi realizada em Montes Claros, ao norte de Minas Gerais. Trata-se da cidade-polo da região, referência na prestação de serviços e que conta com uma população estimada de 410 mil habitantes. No contexto da APS, a cidade possui 142 equipes da ESF, 132 urbanas e dez rurais, o que confere ao município uma taxa de cobertura superior a 100%.
Para o presente estudo, foram contabilizados aleatoriamente 109 médicos, alocados em equipes da ESF da zona urbana do município, os quais manifestaram interesse em participar do estudo. Essa amostra corresponde ao que recomenda a literatura para a análise prototípica 2020. Oliveira DC , Marques SC , Gomes AMT , Teixeira MCTV , Amaral MAD . Análise das evocações livres: uma técnica de análise estrutural das representações sociais . In: Moreira ASP , Camargo BV , Jesuíno JC , Nóbrega SM , editores . Perspectivas teórico-metodológicas em representações sociais . João Pessoa : Editora Universitária UFPB ; 2005 . p. 573 - 603 . , já que, apesar de não haver apontamentos exatos do número mínimo necessário de participantes, quanto maior o número, mais estáveis serão os resultados. O ideal para conclusões mais robustas é a existência de mais de 100 elementos na amostra 2121. Vergès P . Os questionários para análise das representações sociais . In: Moreira ASP , Camargo BV , Jesuíno JC , Nóbrega SM editores . Perspectivas teórico-metodológicas em representações sociais . João Pessoa : Editora Universitária UFPB ; 2005 . p. 201 - 28 . , 2222. Wachelke J , Wolter R . Critérios de construção e relato da análise prototípica para representações sociais . Psicol Teor Pesqui . 2011 ; 27 ( 4 ): 521 - 6 . . A coleta de dados foi realizada entre o período de junho de 2019 a agosto de 2020. Inicialmente, foram entrevistados 56 médicos, presencialmente, nas Unidades Básicas de Saúde, sendo previamente agendada uma data com os participantes, conforme disponibilidade, evitando-se, assim, a interrupção das atividades profissionais. Como a coleta de dados incluiu parte do período da pandemia causada pela Covid-19, optou-se pelo contato digital para as demais entrevistas. O questionário foi transcrito para a plataforma Google Forms e disponibilizado aos médicos por meio dos e-mails pessoais, fornecidos pela coordenação da ESF da Secretaria Municipal de Saúde. Nessa etapa, foram entrevistados virtualmente 53 profissionais, perfazendo o total de 109 profissionais.
Os dados foram coletados a partir de um instrumento elaborado pelos pesquisadores que abordava o perfil sociodemográfico e de formação profissional, além de características da assistência médica para PcD e sua frequência. Adicionalmente, foram apresentadas questões específicas para o teste de evocação de palavras para análise das RS: (1) “Fale cinco palavras ou expressões que lhe vêm à cabeça ao pensar no atendimento à pessoa com deficiência”; (2) “Escolha uma palavra ou expressão que considera a mais importante entre as cinco citadas anteriormente”; e (3) “Justifique a importância da escolha da palavra que você considerou a mais importante”. A partir das evocações dispostas no quadro de quatro casas e das justificativas apresentadas pelos profissionais, procedeu-se à análise lexical desses excertos, visando compreender o significado desses termos para os médicos.
Os dados referentes ao perfil sociodemográfico e profissional foram estudados por análise estatística descritiva simples. Os dados provenientes da técnica de associação livre de palavras ou evocação de palavras foram examinados por meio da análise estrutural e apresentadas no quadro de quatro casas, construído com o auxílio do software Ensemble de Programmes Permettant l’Analyse des Evocations (Evoc®) versão 2005 2020. Oliveira DC , Marques SC , Gomes AMT , Teixeira MCTV , Amaral MAD . Análise das evocações livres: uma técnica de análise estrutural das representações sociais . In: Moreira ASP , Camargo BV , Jesuíno JC , Nóbrega SM , editores . Perspectivas teórico-metodológicas em representações sociais . João Pessoa : Editora Universitária UFPB ; 2005 . p. 573 - 603 . .
As entrevistas transcritas compuseram um único corpus , submetido ao Interface de R Pour Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionneires (Iramuteq), o qual originou a Classificação Hierárquica Descendente (CHD). Trata-se de uma análise construída por meio de classes, a partir de segmentos de texto de um corpus , que classifica e categoriza os vocábulos em função da frequência e conteúdo semântico destes 2323. Wachelke J , Wolter R , Matos FR . Efeito do tamanho da amostra na análise de evocações para representações sociais . Liberabit . 2016 ; 22 ( 2 ): 153 - 60 . , 2424. Abreu PD , Araújo EC , Vasconcelos EMR , Ramos VP , Moura JWS , Santos ZC , et al . Representações sociais de mulheres transexuais vivendo com HIV/Aids . Rev Bras Enferm . 2020 ; 73 ( 3 ): e20180390 . .
Todos os aspectos éticos foram considerados para a realização desta pesquisa. A realização do estudo obteve o consentimento da Secretaria Municipal de Saúde da cidade-sede do estudo. Os participantes concordaram com a participação, com registro de assinatura em Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O projeto foi aprovado por Comitê de Ética em Pesquisa com o parecer de número 3.332.823.
Resultados
O grupo de médicos participantes do estudo teve predomínio do sexo feminino (n = 78; 71,6%), a maioria com idade inferior a 30 anos (n=41; 37,6%) e referindo estado civil solteiro (n = 56; 51,4%). Cerca de metade desses profissionais são generalistas ou estão cursando a residência de Medicina de Família e Comunidade, sendo que 70% deles atuam na ESF há menos de cinco anos. Todos referiram ter contato com pacientes com deficiência durante suas atividades assistenciais. Em relação ao treinamento prévio, cerca de 10% dos respondentes relataram algum tipo de treinamentos para atendimento à PcD, mas sem caracterização do procedimento.
Em relação às evocações, os participantes em conjunto produziram 522 palavras ou expressões, sendo 171 palavras ou expressões diferentes. A frequência mínima de evocação para inserção no quadro de quatro casas foi igual a nove (representando 50% das frequências acumuladas de citações/evocações). A média das Ordens Média de Evocação (OME), ou seja, o rang , foi igual a 2,93 e o ponto de corte das OME foi de 2,70.
A técnica de evocação livre de palavras possibilitou identificar os principais elementos associados à atenção à saúde de PcD pelos médicos da APS, gerando, a partir do software Evoc®, o quadro de quatro casas ( figura 1 ), que demonstra a relação das palavras evocadas, sua frequência e a ordem média das evocações (OME). Na abordagem estrutural da TNC, os elementos que se situam no quadrante superior esquerdo se destacam como o provável núcleo central das RS. Fundamentando-se nos pressupostos da TNC, os elementos semânticos situados no quadrante superior esquerdo representam as evocações com mais frequência e mais prontamente evocadas. O núcleo é constituído por elementos estáveis que não variam em função do contexto imediato 2525. Mendes FRP , Zangão MOB , Gemito MLGP , Serra ICC . Representações sociais dos estudantes de enfermagem sobre assistência hospitalar e atenção primária . Rev Bras Enferm . 2016 ; 69 ( 2 ): 343 - 50 . , 2626. Valença TDC , Santos WS , Lima PV , Santana ES , Reis LA . Deficiência física na velhice: um estudo estrutural das representações sociais . Esc Anna Nery Rev Enferm . 2017 ; 21 ( 1 ): e20170008 . .
Quadro de quatro casas – distribuição da frequência e ordem média de posição gerada pelo rangfrq do software Evoc® da evocação livre de palavras dos médicos da APS a partir da indução com os termos “atendimento à pessoa com deficiência” – Montes Claros (MG), 2019/2020.
Os elementos que compõem o provável núcleo central da RS foram: “dificuldade de comunicação”, “dificuldade”, “cuidado”, “acessibilidade” e “limitação”. Dentre essas, a mais evocada foi “dificuldade de comunicação” e a mais prontamente evocada (menor rang ) foi “acessibilidade”.
A primeira e a segunda periferias contêm cinco evocações assim distribuídas: “empatia”, presente na primeira periferia; e os elementos “equidade”, “despreparo”, “paciência” e “respeito”, os quais constituem a segunda periferia. As evocações “acesso” e “inclusão” estão no quadrante inferior esquerdo e representam os elementos de contraste das RS dos médicos das ESFs referentes à assistência de PcD.
O dendrograma de CHD representado na figura 2 demonstra as palavras mais frequentes e com maior associação nas classes e entre elas. Nesta figura, o corpus foi dividido em dois subgrupos: classe 4 e classes 1, 3 e 2.
Dendrograma da classificação hierárquica descendente do corpus sobre representações sociais de médicos da APS acerca do atendimento a PcD, Montes Claros, MG, 2019/2020.
Observa-se que, na CHD, os vocábulos mais incidentes na classe 4 remetem a palavras associadas ao trabalho do médico, dentro de aspectos da diagnose, semiologia e tratamento. Na classe 1, as palavras demonstram as dificuldades pelas quais passam as PcD ao necessitarem de serviços de saúde, especificamente nos quesitos acesso e acessibilidade. A classe 3 traz palavras que denotam aspectos inter-relacionais e comportamentais entre os médicos e PcD, introduzindo a palavra “graduação” nesse grupo, que possivelmente faz alusão à formação médica acadêmica. Por fim, a classe 2 remete às características e dificuldades próprias das pessoas com as suas respectivas deficiências.
Em relação à análise dos termos, expressões e suas justificativas, registra-se que, no primeiro quadrante, o qual caracteriza a RS do grupo investigado, é marcante a representação da dificuldade da assistência, ao mesmo tempo em que evidencia as limitações técnicas do médico em lidar com essa demanda, que reporta, especialmente, as falhas durante a graduação do profissional. Essa limitação também denota aspectos relacionados às restrições, anatômicas e/ou funcionais, peculiares às PcD.
[…] diante da dificuldade que a gente tem no atendimento desses pacientes, exatamente pela falta de preparo durante a graduação e após, dificulta o acompanhamento, a melhor adesão desse paciente ao tratamento que for proposto […]. (E53)
[...] “limitação” porque eu acho que é uma palavra que sugere a minha dificuldade em relação a alguns tipos de deficiência, por exemplo, a deficiência auditiva e a verbal, como eu não sei lidar com a Linguagem Brasileira de Sinais, da minha dificuldade de comunicação com o paciente; e a limitação quando eu vejo da parte do paciente também, em talvez conseguir algumas coisas, alguns direitos e benefícios na sociedade pela sua limitação mesmo. (E77)
No quadrante da primeira periferia, a análise remete à percepção do médico em experimentar, de forma subjetiva, os sentimentos pelos quais as PcD vivenciam, na tentativa de melhor compreender esse universo.
[...], mas, a partir do momento que você passa a se colocar no lugar do paciente, a olhá-lo com olhos diferentes, [...] e acredito que dessa forma seja mais fácil de tratá-lo, [...] então quando você olha o paciente com empatia, você passa a esquecer todos os problemas e dificuldades durante a consulta, […]. (E49)
No quadrante da segunda periferia, os elementos direcionam para a ideia de falta de preparo profissional no atendimento de PcD, o que, por sua vez, apoia-se em atitudes de “paciência”, “respeito” ou “equidade”, na tentativa de remediar a inabilidade técnica do médico.
[...] se a gente recebe treinamento, durante a graduação, no atendimento de pessoas que têm algum tipo de deficiência, a gente não recebe, e aí a gente forma e é exposto a situações em que a gente não sabe como agir […]. (E27)
[...] eu acho que, principalmente com a pessoa com deficiência, é preciso que os profissionais sejam humanos na hora de atendê-los porque são pessoas que requerem cuidados mais especiais do que as outras, então necessita muito deste quesito na hora do atendimento. (E91)
Por fim, o quadrante referente à zona de contraste mostra o movimento das ideias rumo a atitudes mais inclusivas dos médicos, tanto em reconhecer as barreiras do acesso quanto à necessidade da inserção das PcD no contexto da sociedade e do trabalho do profissional.
Escolhi a frase “inclusão social” devido à importância desta na condução dos pacientes, tanto profissionalmente quanto na conduta ética-médica profissional e na inclusão do seu meio social. (E50)
Discussão
A partir das análises realizadas, é possível inferir que a atenção às PcD na Atenção Primária se orienta por uma prática incompleta e insegura, permeada pelo receio e pelas dificuldades de médicos e pacientes. A dificuldade expressa pelos profissionais ora destaca lacunas no processo de formação, ora remete às dificuldades de comunicação (a propriedade de troca de informações durante o atendimento) e abordagem ao paciente, ora aborda características inerentes ao paciente (algumas PcD, especialmente surdos e pessoas com deficiência mental, podem não se fazerem compreendidas no momento da consulta). Nas expressões apontadas pelos profissionais, registra-se que as representações sociais constroem uma assistência que é mediada pelo médico a partir da demanda do paciente, sem considerações acerca do conhecimento de políticas públicas específicas sobre as quais essa prática também poderia se assentar.
Santos et al. 2727. Santos MLM , Fernandes JM , Vicente DP , Simionatto J , Sanches VS , Souza AS , et al . Barreiras arquitetônicas e de comunicação no acesso à atenção básica em saúde no Brasil: uma análise a partir do primeiro Censo Nacional das Unidades Básicas de saúde, 2012 . Epidemiol Serv Saude . 2020 ; 29 ( 2 ): e2018258 . , em estudo que avaliou os resultados do Censo Nacional das Unidades Básicas de Saúde, no que se refere às barreiras arquitetônicas e de comunicação na APS, registram que as condições arquitetônicas precárias comprometem o acesso ao serviço e, por conseguinte, a resolutividade do cuidado. Salientam também que as questões de comunicação e informação dirigidas às PcD na APS são fundamentais. Especialmente para as deficiências sensoriais, as unidades não apresentam caracteres em braile, figuras em relevo, ou intérpretes para os deficientes auditivos, demonstrando a inadequação dos serviços de saúde.
Para os profissionais de saúde, a assistência para PcD sensorial é mais complexa se comparada às pessoas com mobilidade reduzida ou deficiência cognitiva. Consideram que existe a necessidade de treinamento permanente para reduzir as barreiras na comunicação com os usuários, bem como políticas orientadas para o desenvolvimento de serviços de saúde com mais qualidade 2828. Condessa AM , Giordani JMA , Neves M , Hugo FN , Hilgert JB . Barreiras e facilitadores à comunicação no atendimento de pessoas com deficiência sensorial na atenção primária à saúde: estudo multinível . Rev Bras Epidemiol . 2020 ; 23 : e200074 . .
Na percepção dos surdos, a ausência de um intérprete, a ausência de um intérprete, seja pela presença de um acompanhante que traduza a comunicação para o médico ou o despreparo do profissional em comunicar-se na linguagem de libras, compromete sobremaneira o atendimento, a ponto de o indivíduo não buscar a assistência 2929. Santos AS , Portes AJF . Percepções de sujeitos surdos sobre a comunicação na Atenção Básica à Saúde . Rev Latinoam Enferm . 2019 ; 27 : e3127 . . Pessoas com deficiência auditiva queixam-se especificamente de problemas decorrentes da comunicação durante a anamnese e o exame físico, do entendimento sobre a prescrição e de dificuldades no agendamento de consultas 2828. Condessa AM , Giordani JMA , Neves M , Hugo FN , Hilgert JB . Barreiras e facilitadores à comunicação no atendimento de pessoas com deficiência sensorial na atenção primária à saúde: estudo multinível . Rev Bras Epidemiol . 2020 ; 23 : e200074 . .
Pessoas com deficiência visual também enfrentam grandes obstáculos no acesso aos serviços de saúde. Referem barreiras em relação à comunicação, à escassa informação de materiais escritos em braile e a barreiras atitudinais dos médicos que consideram os cegos incapazes de cuidarem de sua própria saúde 2828. Condessa AM , Giordani JMA , Neves M , Hugo FN , Hilgert JB . Barreiras e facilitadores à comunicação no atendimento de pessoas com deficiência sensorial na atenção primária à saúde: estudo multinível . Rev Bras Epidemiol . 2020 ; 23 : e200074 . . Os profissionais de saúde desejam e julgam importante o treinamento para habilitá-los a melhor atender às PcD. Essa capacitação deve ocorrer desde a graduação e não se limitar a algumas horas ou a algum momento pontual de uma disciplina, após a sua formação acadêmica 1010. Silva MJ , Camboim FEF , Nunes EM , Lima AKBS . Acolhimento e atendimento a pessoas com deficiência na atenção básica: análise das dificuldades apontadas pelos profissionais de saúde . Temas Saude . 2017 ; 17 ( 3 ): 293 - 309 . .
Nas RS dos profissionais médicos, é notória a reafirmação da assistência limitada pela dificuldade de acesso ao conhecimento, de comunicação e até de definição de condutas em relação a como orientar e ao quanto orientar. A prática assistencial é, nesse sentido, essencialmente fundamentada em um modelo biomédico de cuidado pontual, refletindo-se em uma assistência incompleta, na qual, aparentemente, o médico não entende e não consegue se fazer entender. Nesse contexto, surge o outro elemento da representação social: a busca por um atendimento mais humanizado e empático como tentativa de compensação por uma falha percebida. Todavia, é imperioso ponderar que uma postura empática, embora seja o ponto de partida, não é suficiente para assegurar a integralidade do cuidado na APS. Uma assistência integral pressupõe redes articuladas de atenção à saúde, em diferentes níveis de complexidade. Porém, para além da articulação de níveis assistenciais, as equipes de Atenção Primária, a partir dos seus atributos de orientação familiar e comunitária, e a competência cultural devem buscar possibilidades de conexões com outras redes de inclusão social.
Na abordagem estrutural da TRS, o núcleo central é constituído por elementos normativos e funcionais. Assim, ao analisar as evocações do núcleo central elaborado a partir das evocações dos profissionais de saúde, observa-se que as expressões manifestadas pelos médicos “dificuldade”, “dificuldade de comunicação” e “limitação” configuram-se como o mais pronunciado aspecto da assistência à PcD. Destaca-se, dentre essas, a expressão “dificuldade de comunicação” como a representação mais valorada pelos médicos por não disporem de habilidades fundamentais e básicas de comunicação para uma profícua e almejada interação médico-paciente.
O sistema periférico das RS, a partir das evocações apresentadas pelos profissionais, registrou na primeira periferia o termo “empatia”. Nesse quadrante, a palavra expressa uma conotação positiva relacionada à atenção à saúde de PcD, mas também pode-se inferir atitudes de insegurança e compensação que coexistem com uma prática médica bastante fragmentada na assistência à PcD.
Remetendo à perspectiva da equidade do cuidado, a expressão “equidade”, evocada de forma mais frequente na segunda periferia, infere a assistência centrada na pessoa e nas suas necessidades diversas e desiguais, em especial das PcD. Esse registro já denota uma reflexão mais propositiva no aspecto da inclusão social, uma vez que o desejo de atender PcD já é inclusivo. Juntamente com as demais palavras que constam nesse quadrante – “despreparo”, “paciência” e “respeito” – as atitudes dos médicos configuram-se também em tentativas de compensação ou justificação para uma prática permeada pela insegurança do médico, sem fundamentação teórico-prática. A literatura apresenta escassa referência a esse tema.
No quadrante denominado “zona de contraste” estão presentes os termos ou expressões que tiveram baixa frequência, mas com pronta evocação, ou seja, com maior OME. Esses termos são considerados muito importantes para os poucos que os evocaram. No contexto do tema abordado, denotam a angústia do profissional médico no reconhecimento das dificuldades do acesso e/ou acessibilidade das PcD ao serviço da APS, desencadeando prejuízos na assistência. Além disso, os médicos percebem a necessidade de maior inclusão social, associando a esse conceito aspectos positivos e salutares do relacionamento humano, como empatia e respeito. De forma complementar, os médicos podem atribuir sua inabilidade técnica no cuidado de PcD às situações de exclusão social que PcD enfrentam, bem como às dificuldades em transitar nos serviços de saúde diante de suas necessidades. Novamente, percebe-se uma ancoragem nas dimensões relacionais da assistência à PcD, configurando mais o aspecto vocativo da profissão do que propriamente técnico.
Os médicos expressam sentimentos ou atitudes ordeiras diante de suas inseguranças em lidar com PcD. As polarizações de cunho vocacional versus as de cunho profissional configuram um tensionamento que perpassa os relatos, caracterizando a ideia central que origina a representação social desse grupo diante de PcD. Essa inclinação para uma tendência natural de relacionamento com PcD, baseada na ideia de vocação, remonta à trajetória histórico-social de exclusão/eliminação, desde a Idade Antiga até a Idade Média, com o advento do Cristianismo. A partir daí, as PcD passam a ser consideradas “criaturas de Deus”, não mais se permitindo atitudes de extermínio secularmente destinadas a elas. Nesse momento, engendra-se um movimento piedoso de cuidar dessas pessoas, ainda consideradas infortunadas. Adentrando no Renascimento, o pensamento científico e as relações sociais passam por profundas mudanças 3030. Pereira JA , Saraiva JM . Trajetória histórico social da população deficiente: da exclusão à inclusão social . SER Soc . 2017 ; 19 ( 40 ): 168 - 85 . .
Em uma análise histórica do modelo de assistência às PcD, a interpretação religiosa de corpos marcados pela diferença estética, tidos como malditos, passou a ser substituída pelos conceitos biomédicos ou anatômicos, os quais interpretavam esses corpos como “doentes”. Nascia aí o Modelo Médico da Deficiência, conceito marcado pelas desvantagens do corpo disforme dos deficientes. Porém, a partir da década de 1960, em contraposição a esse modelo, tem início o Movimento do Direito dos Deficientes, que se fundamentou em reflexões no campo acadêmico a partir dos Disability Studies. Esses estudos abordavam a opressão social da pessoa deficiente, a partir de ideias capitalistas que enalteciam a independência por meio de corpos produtivos e funcionais, além de uma construção cultural e ideológica dos corpos atípicos 3131. Gaudenzi P , Ortega F . Problematizando o conceito de deficiência a partir das noções de autonomia e normalidade . Cienc Saude Colet . 2016 ; 21 ( 10 ): 3061 - 70 . . Ao aprofundar o debate das limitações sociais vividas por essas pessoas, os autores também discutiam a articulação política de pessoas com deficiência e questionavam a ideologia da normalização. Reconhece-se, a partir de então, um novo paradigma: o Modelo Social. Tal modelo baseou-se nos pressupostos do materialismo histórico e defendia a ideia de que o modelo médico significava uma realidade de opressão e intensas desigualdades em relação à participação de PcD na pesquisa e nas decisões políticas que as envolviam 3232. França TH . Modelo Social da Deficiência: uma ferramenta sociológica para a emancipação social . Lutas Soc . 2013 ; 17 ( 31 ): 59 - 73 . , 3333. Bampi LNS , Guilhem D , Alves ED . Modelo social: uma nova abordagem para o tema deficiência . Rev Latinoam Enferm . 2010 ; 18 ( 4 ): 816 - 23 . .
Essa ancoragem no modelo vocacional, ou seja, na visão filantrópica representada pela empatia e pelo acolhimento no atendimento de PcD, todavia, não representa uma atenção efetiva. É possível inferir que coexiste a insegurança e o trabalho não é eficaz em si. As palavras “empatia”, “paciência” e “respeito” evocam um sentimento de “querer ajudar”. Nesse sentido, a empatia é complementar ao núcleo central da representação social. Na análise do quadro de quatro casas, é possível perceber que na primeira periferia e na zona de contraste surgem os elementos que compensam as “dificuldades” registradas no núcleo central.
O dendrograma apresentado corrobora a dualidade da representação social exposta no campo semântico do quadro de quatro casas. A classe 4 da CHD explicita aspectos da semiologia médica entremeados com as referidas “dificuldades” no “atendimento” e “entendimento” de PcD, à semelhança das associações registradas no primeiro quadrante. Na classe 3, estão evidenciadas palavras que traduzem atitudes empáticas, em contraponto à dificuldade do manejo desses pacientes, considerado aqui como uma lacuna na “graduação”. O quadro de quatro casas reafirma essa representação, na medida em que isola as diversas dificuldades diante de um atendimento de PcD no seu principal quadrante e desloca para a periferia atitudes comportamentais de compensação frente à angústia da impotência do médico.
Um outro aspecto que merece destaque diz respeito ao fato de a maioria dos profissionais médicos compostos nesta pesquisa serem representados pelo sexo feminino. A feminilização do mercado de trabalho em saúde já é um fenômeno reconhecido 3434. Wermelinger M , Machado MH , Tavares MFL , Oliveira ES , Moyses NN , Ferraz W . A feminilização do mercado de trabalho em saúde no Brasil . Divulg Saude Debate . 2010 ; ( 45 ): 54 - 70 . . Aspectos ligados ao gênero podem influenciar nesses discursos. Historicamente, é atribuído à mulher o ato de cuidar nas suas mais variadas conotações 3535. Borges TMB , Detoni PP . Trajetórias de feminização no trabalho hospitalar . Cad Psicol Soc Trab . 2017 ; 20 ( 2 ): 143 - 57 . . São necessários mais estudos que corroborem o aspecto do cuidado em saúde de médicas frente às PcD.
Nas associações registradas, são recorrentes as constantes justificativas dos médicos em não terem sido devidamente treinados na graduação para o atendimento de PcD, resultando em dificuldades técnicas na abordagem desses indivíduos. As escolas médicas tendem a enfatizar no currículo a aquisição de conhecimentos, comparando esta à aquisição de habilidades e atitudes do encontro médico-paciente, mas não existe uma proposição sistematizada de assistência às minorias. Quase sempre esses aspectos são abordados como temas menores ou eletivos. É fundamental que os estudantes convivam com PcD durante a graduação nos mais variados cenários, inclusive com professores que apresentem alguma deficiência 3636. Costa LSM , Koifman L . O Ensino sobre Deficiência a Estudantes de Medicina: o que existe no Mundo? Rev Bras Educ Med . 2016 ; 40 ( 1 ): 53 - 8 . .
Ao adentrar no curso, os estudantes sentem-se fascinados e vocacionados pela profissão, pelo médico aqui considerado um profissional humanizado. Com o transcorrer da graduação, os acadêmicos começam a identificar as dificuldades do mercado de trabalho e até mesmo a redução do prestígio profissional conflitando com a ilusão anteriormente elaborada. Ainda assim, consideram a Medicina um grande feito em suas realizações e demonstram preocupação com as responsabilidades médico-sociais de suas práticas 3737. Oliveira RZ , Gonçalves MB , Bellini LM . Acadêmicos de medicina e suas concepções sobre “ser Médico” . Rev Bras Educ Med . 2011 ; 35 ( 3 ): 311 - 8 . . Cabe aqui a reflexão de uma possível representação que está associada a uma prática incompleta e insegura, desvinculada da responsabilidade da contínua educação profissional autodirigida, que se faz necessária. Mais estudos são necessários sobre esse tema.
A análise dos resultados permite inferir, de maneira global, que os médicos da APS se consideram inabilitados para a assistência às PcD, apresentam limitação significativa na comunicação com esse grupo (especialmente os deficientes auditivos) e demonstram, de forma velada, reações de esquiva ao desnudarem sua inaptidão em lidar com PcD. De outro modo, há que se ressaltar que alguns profissionais vislumbram uma atitude mais inclusiva, na medida em que registram que a assistência às PcD deve ser regulada de maneira heterogênea. As necessidades em saúde de PcD, haja vista suas peculiaridades, caracterizam uma possível celebração da diversidade dos seres humanos nos relatos dos médicos.
Considerações finais
Os resultados registrados apontam para a necessidade de ampliar a discussão da atenção à saúde das PcD. Embora as equipes da APS reúnam condições especiais para uma atenção centrada em um modelo social, que efetive, sobretudo, os princípios de equidade e de integralidade, ainda carecem de fundamentos para uma revisão da prática. É necessário que essa discussão alcance os centros de formação em saúde, com ênfase nas escolas médicas, que devem reestruturar suas propostas educacionais a partir dos paradigmas contemporâneos de atenção às PcD, integrando esse tema às práticas ordinárias do currículo. De outra forma, a atenção à saúde para as PcD continuará a perpetuar práticas pontuais, incompletas, que se remetem a condutas normatizadas pelo modelo biomédico, focadas na funcionalidade corporal, que ignoram as estruturas sociais e que reafirmam a exclusão.
Agradecimentos
Agradecemos à Secretaria Municipal de Saúde de Montes Claros.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
18 Ago 2023 - Data do Fascículo
2023
Histórico
- Recebido
05 Jul 2022 - Aceito
28 Maio 2023