Repensar a Saúde Coletiva e o papel das Ciências Sociais e Humanas em Saúde

Rethinking public health and the role of social sciences and humanities in health

Repensar la Salud Colectiva y el papel de las Ciencias Sociales y Humanas en Salud

Denise Martin Pedro Paulo Gomes Pereira Sobre os autores

Resumos

Este ensaio analisa conflitos e potencialidades das Ciências Sociais e Humanas em Saúde (CSHS) no campo da Saúde Coletiva e os desafios de atuar em uma área interdisciplinar. Inicialmente, apresentamos algumas particularidades das CSHS, dialogando com tensões internas. Em seguida, as metodologias qualitativas e seus usos nas pesquisas em Saúde Coletiva são problematizadas, mantendo um diálogo com as demais áreas. Por fim, apresentamos uma reflexão sobre as perspectivas futuras das CSHS e possíveis caminhos teórico-metodológicos que aprofundariam a transversalidade da área. Repensar as relações entre as áreas provoca uma reflexão sobre uma possível e oportuna reconfiguração da própria Saúde Coletiva. Os desafios nos colocam a necessidade de repensar a noção de CSHS; e de indagar sobre a linguagem que estamos construindo e sobre o que podemos fazer.

Palavras-chave
Ciências Sociais e Humanas em Saúde; Epistemologias; Saúde Coletiva; Interdisciplinaridade


This essay analyzes the conflicts and potential of social sciences and humanities in health (SSHH) in the field of public health and the challenges of acting in an interdisciplinary area. We present some of the particularities of SSHH, dialoguing with internal tensions and then go on to problematize qualitative methodologies and their use in public health research, maintaining a dialogue with the other areas. Finally, we reflect upon the outlook for SSHH and possible theoretical and methodological pathways that would broaden the cross-cutting nature of the area. Rethinking relations between areas prompts reflection on a possible and timely reconfiguration of public health. The challenges give rise to the need to rethink the notion of SSHH, question the language we are constructing, and ask what we can do.

Keywords
Social sciences and humanities in health; Epistemologies; Public health; Interdisciplinarity


Este ensayo analiza conflictos y potencialidades de las Ciencia Sociales y Humanas en Salud (CSHS) en el campo de la Salud Colectiva y los desafíos de actuar en un área interdisciplinaria. Inicialmente, presentamos algunas particularidades de las CSHS, dialogando con tensiones internas. A continuación, las metodologías cualitativas y sus usos en las investigaciones de Salud Colectiva se problematizan, manteniendo un diálogo con las demás áreas. Finalmente, presentamos una reflexión sobre las perspectivas futuras de las CSHS y posibles caminos teóricos-metodológicos que profundizarían la transversalidad del área. Repensar las relaciones entre las áreas provoca una reflexión sobre una posible y oportuna reconfiguración de la propia Salud Colectiva. Los desafíos nos plantean la oportunidad de repensar la noción de CSHS, de indagar sobre el lenguaje que estamos construyendo y sobre lo que queremos hacer.

Palabras clave
Ciencias Sociales y Humanas en Salud; Epistemologías; Salud Colectiva; Interdisciplinariedad


As Ciências Sociais são geralmente compostas pelas áreas de Ciência Política, Sociologia e Antropologia. O campo das humanidades inclui, nos dias de hoje, Literatura, Música, Pintura, Escultura, Arquitetura, Línguas, Filosofia, História e Psicologia. Cada uma dessas disciplinas organiza-se metodologicamente e percebe seus objetos de forma diferente. Há, inclusive, linguagens próprias, apesar de algo compartilhado. As Ciências Sociais, por exemplo, caracterizam-se pela desconfiança na abstração excessiva e pela conservação de um sentido claro da realidade social vivida. Essas disciplinas ancoram-se, na maioria das vezes, em departamentos definidos e, nesse processo de delimitação, surgem conflitos entre áreas e em uma “região produzida por obstruções institucionais”11 Butler J. Undoing Gender. New York: Routledge; 2004. Can the “Other” of Philosophy Speak?. p. 232-50. (p. 250). No campo de Saúde Coletiva (SC), entretanto, é comum a percepção das Ciências Sociais e Humanas em Saúde (CSHS) como um todo unificado e homogêneo, quando, na realidade, estamos em uma região de conflitos e diferenças.

Todavia, vistas assim, como um todo, as CSHS são interpeladas na SC por outras formas de saberes, notadamente, a Epidemiologia e a Política; e Planejamento e Gestão. Há, ainda, as negociações sempre tensas em saberes considerados mais objetivos. Portanto, nessa acepção, menos próxima de certa noção de objetividade, as CSHS seriam, para esse tipo de pensamento, as menos valorizadas do campo da Saúde. Além disso, surgem as apropriações de linguagem de uma disciplina por outra e a dissolução do “específico” de cada saber, formando, muitas vezes, uma sociologia adocicada, com jargões que às vezes remetem a uma das disciplinas das CSHS. Quem é das CSHS nota facilmente esse processo de uso da linguagem, como o de um iniciante em uma nova língua que emprega termos sem saber o alcance e o contexto do uso. Essa dissolução dos conceitos das CSHS produz narrativas rasas sobre o social.

Pensando nesse contexto geral, neste ensaio, propomo-nos a analisar, com certo tom de provocação, conflitos e potencialidades no campo da SC, bem como os desafios de atuar em uma área interdisciplinar. A ideia geral é que, se temos o desafio de repensar as relações entre as áreas, se há temas e abordagens que precisamos desenvolver e se há arestas a aparar, então o que estamos falando é sobre uma possível e oportuna reconfiguração da própria SC. Com esse intuito, na primeira parte do texto, abordamos algumas particularidades das CSHS, dialogando com as tensões internas. Em seguida, apresentamos questões sobre as metodologias qualitativas e seus usos nas pesquisas em SC, mantendo um diálogo com as demais áreas. Por fim, elaboramos uma reflexão sobre perspectivas futuras das CSHS e possíveis caminhos teórico-metodológicos que aprofundariam a transversalidade da área.

As CSHS e suas tensões

A SC se constituiu como um campo científico interdisciplinar que reúne a produção de conhecimentos na interface entre vários saberes, agregando diferentes modalidades de práticas em saúde22 Ferreira J, Brandão ER. Desafios da formação antropológica de profissionais de Saúde: uma experiência de ensino na pós-graduação em Saúde Coletiva. Interface (Botucatu). 2019; 23:e170686. doi: https://doi.org/10.1590/Interface.170686.
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. Segundo Ferreira e Brandão:

Ela tem sido buscada como campo de formação na pós-graduação stricto sensu, por aqueles que desejam uma atuação mais reflexiva e crítica em saúde. Tal demanda, em geral, se associa a uma postura profissional comprometida com os princípios que estruturam o Sistema Único de Saúde (SUS) e a defesa da justiça social22 Ferreira J, Brandão ER. Desafios da formação antropológica de profissionais de Saúde: uma experiência de ensino na pós-graduação em Saúde Coletiva. Interface (Botucatu). 2019; 23:e170686. doi: https://doi.org/10.1590/Interface.170686.
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.

(p. 2)

Assim, a SC é uma área acadêmica multidisciplinar. Ou seja, não é propriamente uma disciplina científica, mas um conjunto híbrido de saberes e práticas, entre as quais se incluem práticas acadêmico-científicas33 Russo JA, Carrara SL. Sobre as ciências sociais na Saúde Coletiva - com especial referência à Antropologia. Physis. 2015; 25(2):467-84.. A SC vem se constituindo na interconexão:

[…] de dimensões do pensamento, da teoria e do movimento, que se traduzem em uma forma de entender a saúde, pesquisá-la teoricamente e institucionalizá-la acadêmica, política e pedagogicamente44 Nunes ED. Pós-graduação em Saúde Coletiva no Brasil: histórico e perspectivas. Physis. 2005; 15(1):13-38..

(p. 14)

Para instituir-se, a SC apoiou-se em disciplinas já consagradas, em especial, as Ciências Sociais. Porém, a diversidade de disciplinas faz com que as disputas e negociações pela definição do que é legítimo pesquisar ou ensinar (em termos de objetos, objetivos e métodos) e de quem detém a autoridade propriamente científica no campo sejam mais complexas e agudas do que nas disciplinas constituídas e institucionalmente departamentalizadas. O caráter multifacetado da SC faz, inclusive, com que esta esteja sob constante ameaça de fragmentação33 Russo JA, Carrara SL. Sobre as ciências sociais na Saúde Coletiva - com especial referência à Antropologia. Physis. 2015; 25(2):467-84..

É nesse contexto que as CSHS se apresentam com suas particularidades e questionamentos. Como dizíamos, sua designação expressa uma área heterogênea e interdisciplinar: Sociologia, Antropologia, Política, História, Geografia, Filosofia, Psicologia e Serviço Social22 Ferreira J, Brandão ER. Desafios da formação antropológica de profissionais de Saúde: uma experiência de ensino na pós-graduação em Saúde Coletiva. Interface (Botucatu). 2019; 23:e170686. doi: https://doi.org/10.1590/Interface.170686.
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,55 Martin D, Montanari PM, Pereira PPG, Hamburguer FG, Silveira C. As contribuições das Ciências Sociais e Humanas no campo da Saúde Coletiva: vinte anos da revista Interface - Comunicação, Saúde, Educação. Interface (Botucatu). 2018; 22(67):1029-42. doi: https://doi.org/10.1590/1807-57622017.0219.
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. A produção científica das CSHS é robusta e consolidada. Na perspectiva das relações com as outras subáreas da SC, especialmente a Epidemiologia, a literatura é extensa – tanto no diálogo sobre limites, diferenças, conflitos e tensões quanto na exigência da interdisciplinaridade22 Ferreira J, Brandão ER. Desafios da formação antropológica de profissionais de Saúde: uma experiência de ensino na pós-graduação em Saúde Coletiva. Interface (Botucatu). 2019; 23:e170686. doi: https://doi.org/10.1590/Interface.170686.
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,33 Russo JA, Carrara SL. Sobre as ciências sociais na Saúde Coletiva - com especial referência à Antropologia. Physis. 2015; 25(2):467-84.,66 Raynaut C. Interdisciplinaridade e promoção da saúde: o papel da antropologia. Algumas ideias simples a partir de experiências africanas e brasileiras. Rev Bras Epidemiol. 2002; 5 Supl 1:43-55..

As disciplinas que compõem as CSHS se aproximam de seus temas de pesquisa com abordagens teórico-metodológicas distintas. Há diferenças importantes na escolha dos métodos, nas técnicas de pesquisa e, consequentemente, nos resultados. Não é incomum, em avaliações acadêmicas, debates sobre a pertinência ou não de determinadas escolhas teórico-metodológicas. Assim, como já salientamos, as CSHS, quando vistas de dentro, apresentam heterogeneidade e tensões internas e externas às diferentes disciplinas que as compõem (considerando que, mesmo dentro de uma disciplina, há também heterogeneidade de abordagens teórico-conceituais). Segundo Russo e Carrara33 Russo JA, Carrara SL. Sobre as ciências sociais na Saúde Coletiva - com especial referência à Antropologia. Physis. 2015; 25(2):467-84., as CSHS vão congregar disciplinas que têm suas próprias arenas de atuação, com suas lógicas específicas de produção e consagração acadêmicas, o que as diferencia da Epidemiologia.

Nesse campo, podemos dizer que, na maior parte das vezes, o uso do termo “pesquisa qualitativa” surge em concepção bastante ampliada. “Pesquisa qualitativa” já é um termo que surge para dar conta de uma especificidade em uma multitude de teorias e metodologias na busca de resumir, de forma direta e, de certa forma, simplificada, diversas metodologias e formas de aproximação. O termo “pesquisa qualitativa” seria produto do contato entre diferentes linguagens nas quais se elegem ou se desenvolvem termos para que realizar a comunicação entre as áreas e disciplinas.

Tentando abordar esse tema, o debate proposto por Minayo e Sanches77 Minayo MCS, Sanches O. Quantitativo-Qualitativo: Oposição ou Complementaridade? Cad Saude Publica. 1993; 9(3):239-62., em 1993, apresentava duas formas de abordagem mais correntes nas investigações da área de Saúde: o método quantitativo e o método qualitativo. Concluem os autores que, do ponto de vista epistemológico, nenhuma das duas abordagens é mais científica do que a outra. Este artigo contribuiu para justificar a legitimidade das pesquisas qualitativas em Saúde em um período em que eram pouco compreendidas no campo. Depois disso, numerosos autores colaboraram para a consolidação da importância de metodologias qualitativas no campo da SC88 Nunes ED. A importância das pesquisas em ciências sociais e humanas para a saúde coletiva. In: Guerriero ICZ, Schimidt MLS, Zicker F, organizadores. Ética nas pesquisas em ciências humanas e sociais na saúde. São Paulo: Aderaldo & Rothschild; 2008. Vol. 1, p. 25-43.

9 Goldenberg P, Marsiglia RMG, Gomes MHA. O Clássico e o Novo: tendências, objetos e abordagens em ciências sociais e saúde [Internet]. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2003 [citado 22 Nov 2021]. Disponível em: http://static.scielo.org/scielobooks/d5t55/pdf/goldenberg-9788575412510.pdf
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10 Loyola MAR. O lugar das ciências sociais na saúde coletiva. Saude Soc. 2012; 21(1):9-14.

11 Schraiber LB. Engajamento ético-político e construção teórica na produção científica do conhecimento em Saúde Coletiva. In: Baptista TWF, Azevedo CS, Machado CV, organizadores. Políticas, planejamento e gestão em saúde: abordagens e métodos de pesquisa. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2015. Vol. 1, p. 33-57.

12 Víctora CG, Knauth DR, Hassen MNA. Pesquisa qualitativa em saúde: uma introdução ao tema. Porto Alegre: Tomo Editorial; 2000.
-1313 Bosi MLM, Martinez FM. Pesquisa qualitativa de serviços de saúde. Petrópolis: Editora Vozes; 2004. Vol. 1..

Passados quase trinta anos desse debate, muitas coisas mudaram. Talvez não precisemos mais justificar o rigor e a contribuição das CSHS no campo da SC. Do ponto de vista institucional, periódicos do campo da SC começaram a incorporar editores das CSHS. Desse modo, manuscritos passaram a ser avaliados segundo critérios de rigor próprios das CSHS. Uma mudança substantiva, pois antes era mais comum que pesquisadores das CSHS recebessem pareceres desanimadores, avaliados segundo critérios de pesquisas quantitativas. Nesses pareceres, eram corriqueiros argumentos como: a recusa de um artigo se justificava porque a pesquisa não possuía um número de participantes representativo ou que a análise não explicitava as técnicas utilizadas. Assim, o rigor científico advinha de metodologias e critérios alheios às CSHS. Da mesma forma, os livros (produtos importantes da área) começaram a fazer parte dos processos de avaliação da Capes1414 Barata RB. A Abrasco e a Pós-Graduação Stricto Sensu em Saúde Coletiva. In: Lima NT, Santana JP, Paiva CHA, organizadores. Saúde coletiva: a Abrasco em 35 anos de história. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2015. Cap. 8, p. 169-98. doi: https://doi.org/10.7476/9788575415900.0010.
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. Comissões de avaliação em agências de fomento passaram a ter representatividade da área de CSHS. De uma maneira geral, as CSHS acabaram se sentindo mais confortáveis na SC, havendo um certo reconhecimento e inserção nas diversas instâncias acadêmicas dentro do campo, apesar da persistência dos conflitos e do exercício de poderes que atuam na busca de subordinar as CSHS, como já mostrava Loyola1515 Loyola MAR. A saga das ciências sociais na área da saúde coletiva: elementos para a reflexão. Physis (Rio J). 2008; 18(2):251-75..

Segundo Russo e Carrara33 Russo JA, Carrara SL. Sobre as ciências sociais na Saúde Coletiva - com especial referência à Antropologia. Physis. 2015; 25(2):467-84., uma das maiores fontes de subordinação está na localização da SC no âmbito das ciências biomédicas. A SC nasce nas faculdades de Medicina, a partir da necessidade de pensar não apenas a constituição de uma saúde pública, mas também a dimensão coletiva das práticas médicas e de saúde. Nesse sentido, sua localização, como no caso da grande árvore do conhecimento proposta pela Capes, dentro do “Colégio de Ciências da Vida” – e não no “Colégio de Humanidades” – será sempre uma fonte de tensões33 Russo JA, Carrara SL. Sobre as ciências sociais na Saúde Coletiva - com especial referência à Antropologia. Physis. 2015; 25(2):467-84.. Só para se ter uma ideia, nas agências de fomento nacionais, como o CNPq, a área de CSHS não existe. Assim, para cadastrar um projeto de pesquisa no sistema, a área que mais se aproxima é a de Saúde Pública. Na Fapesp, um projeto de pesquisa submetido na SC tem as seguintes opções: “Epidemiologia”, “Medicina Preventiva”, “Outra Subárea da Saúde Coletiva” e “Saúde Pública”. Essas questões não são irrelevantes, como demonstra a literatura que abordou esses entraves institucionais das CSHS dentro do campo da SC88 Nunes ED. A importância das pesquisas em ciências sociais e humanas para a saúde coletiva. In: Guerriero ICZ, Schimidt MLS, Zicker F, organizadores. Ética nas pesquisas em ciências humanas e sociais na saúde. São Paulo: Aderaldo & Rothschild; 2008. Vol. 1, p. 25-43.,1515 Loyola MAR. A saga das ciências sociais na área da saúde coletiva: elementos para a reflexão. Physis (Rio J). 2008; 18(2):251-75.

16 Canesqui AM. Ciências sociais e saúde no Brasil. São Paulo: Hucitec; 2011.

17 Minayo MCS. Herança e promessas do ensino das Ciências Sociais na área da Saúde. Cad Saude Publica. 2012; 28(12):2367-72.
-1818 Marsiglia RMG. Temas emergentes em ciências sociais e saúde pública/coletiva: a produção do conhecimento na sua interface. Saude Soc. 2013; 22(1):32-43..

Dadas essas características, na seção seguinte, procuraremos desenvolver uma síntese de questões relacionadas aos desafios de realizar “pesquisas qualitativas” em um campo interdisciplinar.

Os desafios das pesquisas qualitativas

Talvez o maior desafio de realizar pesquisas qualitativas em uma área interdisciplinar esteja no uso de conceitos e de uma linguagem sem que os pesquisadores (iniciantes) os dominem. Muitas vezes, um mesmo conceito é compreendido de forma diferente dependendo da área: por exemplo, o conceito de risco é compreendido de forma distinta nas CSHS e na Epidemiologia. De uma forma genérica, enquanto as primeiras tendem a buscar compreender as relações sociais e os contextos socioculturais que envolvem e produzem riscos, bem como as formas como nossos interlocutores definem, eles mesmos, “risco”1919 Martin D. Riscos na prostituição: um olhar antropológico. São Paulo: Humanitas; 2003.; a segunda tende a tratar risco como conceito central para mensurar possíveis problemas de saúde em populações humanas, privilegiando a dimensão do controle2020 Almeida Filho N. Epidemiologia sem números: uma introdução crítica à ciência epidemiológica. Rio de Janeiro: Campus; 1989.. No caso da Política, Planejamento e Gestão em Saúde, há uma proximidade maior com a área de CSHS, talvez pelo uso de metodologias qualitativas ou pelas abordagens teóricas em comum – mas, mesmo aqui, há diferenças, principalmente da distância das perspectivas: o olhar do gestor e o olhar sociológico não coincidem, como iremos abordar mais adiante. Claro, essa caracterização está desenhada em um quadro muito branco e preto, não dando conta das nuances e dos semitons; contudo, quem atua na área vai lembrar de uma ou outra situação em que os mesmos termos foram usados em perspectivas diferentes, quando não opostas (veja-se, por exemplo, o conceito de determinantes, vulnerabilidade, população, identidade, território e por aí vai...).

Talvez por essas dificuldades mencionadas (além, evidentemente, dos óbices institucionais) haja um número razoável de publicações, de pesquisadores das CSHS, criticando a qualidade das pesquisas qualitativas na área de Saúde2121 Knauth DR, Leal AF. A expansão das Ciências Sociais na Saúde Coletiva: usos e abusos da pesquisa qualitativa. Interface (Botucatu). 2014; 18(50):457-67.

22 Gomes MHA, Martin D, Silveira C. Comentários pertinentes sobre usos de metodologias qualitativas em saúde coletiva. Interface (Botucatu). 2014; 18(50):469-77.
-2323 Gomes MHA, Silveira C. Sobre o uso de métodos qualitativos em Saúde Coletiva, ou a falta que faz uma teoria. Rev Saude Publica. 2012; 46(1):160-5.. De uma maneira geral, essas análises concluem que a incorporação da perspectiva da metodologia qualitativa e do referencial teórico das Ciências Sociais nas pesquisas em SC resulta em estudos sem consistência teórico-metodológica e que pouco contribuem para a compreensão dos fenômenos de saúde e adoecimento.

Trilhando esse mesmo caminho, Schraiber1111 Schraiber LB. Engajamento ético-político e construção teórica na produção científica do conhecimento em Saúde Coletiva. In: Baptista TWF, Azevedo CS, Machado CV, organizadores. Políticas, planejamento e gestão em saúde: abordagens e métodos de pesquisa. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2015. Vol. 1, p. 33-57. faz uma análise sobre como o campo da SC articulou de modo muito próprio ciência e política, assim como prática científica e prática profissional nos serviços de saúde. A autora problematiza o engajamento ético-político e o adensamento conceitual das construções teóricas na área de PPG, chamando a atenção para o enfraquecimento teórico conceitual a partir de uma urgência em transformar a sociedade por meio da ação social.

Diante dessa profusão de linguagens e desse emaranhado de saberes, como atuar e não contribuir para o enfraquecimento conceitual que menciona Schraiber1111 Schraiber LB. Engajamento ético-político e construção teórica na produção científica do conhecimento em Saúde Coletiva. In: Baptista TWF, Azevedo CS, Machado CV, organizadores. Políticas, planejamento e gestão em saúde: abordagens e métodos de pesquisa. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2015. Vol. 1, p. 33-57.? Gostaríamos de tentar responder tal indagação apontando alguns limites e potencialidades desse pensamento entrecruzado sem qualquer pretensão de sermos exaustivos e em uma linguagem mais provocadora do que analítica:

1. Na prática cotidiana, somos obrigados a nos lembrar das intrínsecas relações entre teoria e método. Levados a percorrer a história dos conceitos para dar conta dos desafios das investigações, percebemos logo que o rigor do uso teórico-conceitual é condição de partida das pesquisas. Essa relação inseparável entre os conceitos e as formas de desenvolver a pesquisa denominamos de metodologia: portanto, metodologia não é simplesmente uma soma de procedimentos do que se deve fazer na investigação.

Por exemplo, pensando no universo da Antropologia, Peirano2424 Peirano M. Etnografia não é método. Horiz Antropol. 2014; 20(42):377-91. problematiza a divisão entre teoria e método, no caso da etnografia. Analisando a importância da leitura de monografias (etnografias), evidencia que estas não são resultado simplesmente de “métodos etnográficos”; mas também formulações teórico-etnográficas. Etnografia não é método; toda etnografia é também teoria, afirma a antropóloga: “Se é boa etnografia, será também contribuição teórica; mas se for uma descrição jornalística, ou uma curiosidade a mais no mundo de hoje, não trará nenhum aporte teórico”2424 Peirano M. Etnografia não é método. Horiz Antropol. 2014; 20(42):377-91. (p. 383). Fazendo uma extrapolação para as pesquisas qualitativas na SC, descrições, relatos, entrevistas, grupos focais, etc. são ciência quando possibilitam investimentos teóricos consistentes.

2. Os fenômenos de saúde e doença são complexos e a tarefa consiste, entre outras ações, em entendê-los como processos que envolvem subjetividade e a inserção no mundo do doente, com suas materialidades e interpretações. Esses processos são políticos, porquanto coletivos e sociais; poderíamos também dizer que são micropolíticos e envolvem relações de poder. A tarefa do pesquisador é realizar aproximações das culturas e dos conhecimentos dos Outros, às formas de elaborar e conviver com as enfermidades. A tarefa é difícil, pois implica aprender com o Outro em sua diferença e não emular conhecimentos anteriores, geralmente adquiridos da Biomedicina.

3. A produção das Ciências Sociais se faz no sentido da compreensão e interpretação dos fenômenos da vida; do adoecimento; e da morte, sempre em sua relação com a cultura, com a sociedade, com os outros: com a diferença interpeladora do outro. Seu paradigma não inclui, necessariamente, a eficácia, que supõe a intervenção – o que é típico do pragmatismo das ciências ligadas à vida, isto é, de sua conservação, ou sua recuperação, como é o caso da medicina (ou das medicinas, para sermos mais rigorosos). E esse paradigma se exprime cientificamente, em linguagem específica, também diferindo da linguagem das ciências da vida.

Pesquisas nas Ciências Sociais na saúde não resultam, obrigatoriamente, em intervenções diretas, imediatas. Sua contribuição se dá de outras maneiras. Analisando o papel da Antropologia em um projeto de prevenção à gravidez e às DST/Aids e a ação do antropólogo em um serviço público de atenção ao adolescente, Jeolás2525 Jeolás LS. Possibilidades de intervenção: o que faz um antropólogo em uma equipe interdisciplinar de saúde. Polit Trab. 2004; 20:97-116. chama a atenção para não transformarmos a nossa busca de conhecimento do Outro em discurso reificado. A autora alerta que as formas de intervenção na Antropologia são complexas e muitas vezes há um processo de mediação com os interlocutores da pesquisa. A atuação do antropólogo não objetiva resolver os problemas identificados, apesar de a pesquisa poder auxiliar em políticas públicas ou em futuras formas de intervenção. De qualquer maneira, diagnósticos socioculturais, elaborados a partir de etnografias, resultam em um conhecimento aprofundado de nossos interlocutores e não são relações de causa-efeito ou facilmente mensuráveis. Podem funcionar como recursos para uma compreensão das pessoas com quem conversamos mais próxima da realidade destas, menos estereotipada e que contribua para pensar situações semelhantes.

4. Nas investigações, o pesquisador é o instrumento da pesquisa. Isso não significa uma imersão no terreno de subjetividades, mas sim que a pesquisa ocorre no campo intersubjetivo, pois as investigações são sempre negociadas com os nossos interlocutores. O resultado da pesquisa é fruto dessa negociação e, como adiantamos, da relação com as teorias com as quais conversamos. Há então um processo de tradução. O pesquisador coloca em perspectiva teorias (acadêmicas, com as quais estamos acostumados a lidar nas universidades) e as formulações sobre adoecimento e cura dos interlocutores. No caso da experiência antropológica, como nos mostra Oliveira2626 Oliveira RC. O trabalho do antropólogo. São Paulo: Editora Unesp; 2006. O trabalho do antropólogo: olhar, ouvir, escrever; p. 17-35., a disciplina condiciona as possibilidades de observação e de textualização sempre de acordo com um horizonte que lhe é próprio. Passando pelas etapas de constituição do conhecimento da pesquisa empírica (o Olhar, o Ouvir e o Escrever), o autor apresenta como as relações entre pesquisador e pesquisado são mediadas por referenciais teóricos2626 Oliveira RC. O trabalho do antropólogo. São Paulo: Editora Unesp; 2006. O trabalho do antropólogo: olhar, ouvir, escrever; p. 17-35..

5. Quando afirmamos que estudamos saúde e doença como fenômenos sociais, estamos tentando entender o que as pessoas definem como social ou cultural. Da mesma forma que o investigador (antropólogo, sociólogo...), os nossos interlocutores são agentes teóricos. O desafio atual, talvez, seja menos indicar (contabilizar) as relações sociais que constituem uma enfermidade, por exemplo, e mais perguntar como as pessoas pensam a doença e adoecimento (risco, vulnerabilidade, entre outros). Diferentemente de certo tipo de gestor, que busca adequar uma determinada realidade a uma concepção de saúde considerada antecipadamente como correta, o que interessa para as CSHS é tentar compreender quais são as concepções de saúde das pessoas com as quais convivemos durante a pesquisa.

6. A questão, pois, não é simplesmente se valer das definições da Biomedicina (sobre as definições de doença e de saúde) e verificar as manifestações sociais (ou culturais) que se desenrolam em torno dela. Trata-se de um processo intenso de tradução e negociação entre saberes (como os da Biomedicina, saberes dos interlocutores, etc.). Por exemplo: a Antropologia procura entender os processos de saúde e doença como experiências particularizadas, contextualizadas e marcadas pela subjetividade da experiência vivida. De tal modo, a pesquisa sobre saúde em Antropologia busca a subjetividade e os impactos específicos dos contextos locais nos processos de saúde e doença – objetivos bem distantes de certos tipos de conhecimentos que descontextualizam a doença e a concebem como estado e processo universais.

Pois bem, até agora, sublinhamos as especificidades e os conflitos de produzir na SC, como dizíamos, uma área de profusão de disciplinas. Todavia, há potencialidades nesse campo de atuação e nessa forma, por vezes confusa, de encontro entre disciplinas. Abordaremos esse aspecto na próxima seção.

Potencialidades

Para quem atua na SC, talvez o primeiro potencial seja a necessidade de sempre abrir-se a outras formas de conhecimento: não há como atuar de outra maneira, pois, como vimos até aqui, somos continuamente interpelados pelas áreas e subáreas. Qualquer reunião de um programa de pós-graduação em SC compõe-se de sociólogos, antropólogos, psicólogos, farmacêuticos, nutricionistas, educadores físicos, médicos, entre outros. Nos debates que ocorrem nessas reuniões ou mesmo nas disciplinas em comum que ministramos, temos que chegar a acordos (mesmo que provisórios) de como proceder; do que e como ensinar; e sobre conteúdos imprescindíveis. Tais acordos e conversações só podem ter algum êxito se deixamos claros os pontos de quem está enunciando, mesmo para os que não compartilham da linguagem disciplinar.

Depois de um tempo nesses procedimentos, mais ou menos dialógicos, internalizamos esse processo e sempre pensamos questões como estas: como alguém da Epidemiologia leria o conceito de social, de sociedade ou de cultura? Como ouvir e aprender com outras áreas? Como escrever para periódicos nem sempre afeitos a debates e formas discursivas mais “qualitativas”? Certamente que os conflitos são cansativos e os poderes obstam o conhecimento, mas o imperativo de que pensar deve ser sempre uma tarefa de negociação (com os pares que pensam e usam metodologias diferentes e outros conceitos; e com nossos interlocutores que, como vimos, pensam o social diferentemente) nos leva a ter o imperativo de elaborar mais o que pensamos e falamos. Dito de forma direta: estamos constantemente em processos de tradução.

Por fim, como já assinalado, as CSHS se localizam à margem dos saberes considerados mais objetivos (como a Biomedicina). No entanto, como a literatura decolonial vem apontando, estar na condição de poder e de hegemonia limita a imaginação2727 Segato RL. Brechas descoloniales para una universidad nuestroamericana. OJC. 2012; 1(1):43-60.. A imaginação, todavia, é fundamental para o pensamento. Estar à margem nesse campo pode ser cansativo, mas nos dota de imaginação e de capacidade de pensar de outra forma, de outro jeito. E, assim, multiplicar.

Por falar em imaginação, na próxima seção buscaremos assinalar algumas provocações, sem qualquer intenção de sermos exaustivos ou de chegar a algum desfecho aos problemas apresentados.

Provocações

As Ciências Sociais vêm se transformando nas últimas décadas. Algumas das novidades (como temas, abordagens teóricas, etc.) estão sendo incorporadas na SC, mesmo que ainda timidamente. Um exemplo seria a sociologia ou a antropologia da ciência, que só recentemente vêm sendo introduzidas na SC. Esse exemplo é importante, pois, nesse caso, as práticas científicas são colocadas sob reflexão, já que a Biomedicina se torna algo a ser investigado, e não dada a priori de uma pesquisa. A questão não é apenas se valer das definições biomédicas de doença (tuberculose, câncer, etc.), mas como a própria doença foi surgindo, como a Biomedicina se acercou e quais as materialidades envolvidas. Não se trata de uma “construção social da doença”, mas sim de mostrar como cientistas, laboratórios, exames, empreendimentos clínicos, etc. vão performando certa enfermidade2828 Pereira PPG. Corpo, saúde e materialidades. Saude Soc. 2022; 31(2):1-6.. Nesse caso, dentro da SC, tais abordagens deveriam ser percebidas como frutíferas. No entanto, escuta-se aqui e acolá certa cautela, talvez dada pelo deslocamento: a ciência (a Biomedicina) tornando-se objeto de reflexão.

Pensando nesse movimento, podemos lembrar a história narrada por Ed Cohen2929 Cohen E. A body worth defending: immunity, biopolitics and the apotheosis of the modern body. Durham: Duke University Press; 2009., cujos textos abarcam discursos considerados filosóficos, econômicos, políticos, historiográficos, etnográficos, biológicos e médicos. No livro A Body Worth Defending: Immunity, Biopolitics, and the Apotheosis of the Modern Body”, Ed Cohen interroga o afastamento entre ideologia médica e militar. O livro aborda as noções contemporâneas de imunologia. O autor disserta sobre como Élie Metchnikoff encadeou os eventos que propiciaram a descoberta, em 1881, da imunidade como autodefesa e apresenta a imunidade como uma metáfora complexa que liga a ciência biológica à política e à defesa do Estado.

Cohen vai mostrando como surgiu uma nova visão daquilo que entendemos hoje por imunidade. Isso não quer dizer, evidentemente, que estejamos aqui tratando a ciência como ideologia, uma vez que, como vive ressaltando Latour3030 Latour B. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. São Paulo: Editora 34; 2013., cientistas não vivem em um mundo de ideias, mas, sim, em um universo de coisas animadas, como microscópios, células e larvas. Nada mais longe de um construcionismo apressado que a obra de Cohen (ou do que estamos tentando apresentar nesta exposição). Ao contrário, historicizar o surgimento das noções de imunologia permitiu lembrar que a imunidade biológica, tal como a conhecemos hoje, não existia até o final do século XIX. Tampouco existia a premissa de que o organismo defende a si mesmo nos níveis molecular e celular. “Imunidade” foi um conceito legal inventado na Roma Antiga e por quase dois séculos serviu quase unicamente para fins políticos e legais. A noção de “autodefesa” também se originou em um contexto jurídico-político, emergindo quando Thomas Hobbes a definiu como o primeiro direito natural. Entre 1880 e 1890, a Biomedicina funde esses dois processos políticos, criando uma função vital – defesa de imunidade. No livro “A body worth defending”, Cohen2929 Cohen E. A body worth defending: immunity, biopolitics and the apotheosis of the modern body. Durham: Duke University Press; 2009. revela essa trama desconhecida: as assunções políticas, econômicas e filosóficas sobre o corpo humano que a Biomedicina incorpora quando escolhe a “imunidade” para salvaguardar a vulnerabilidade do organismo vivo. Ele vai mostrando, no decorrer do livro, que, ao adotar a ideia de imunidade como defesa exclusivamente, a Biomedicina naturaliza o indivíduo como foco privilegiado para identificar e tratar as doenças, assim como desvalorizar e obscurecer a cura situada no contexto das comunidades.

Não só a imunidade, mas outros temas nos interpelam, tais como os que compuseram o dossiê Corpo, saúde e materialidades, da Revista Saúde e Sociedade2828 Pereira PPG. Corpo, saúde e materialidades. Saude Soc. 2022; 31(2):1-6.,3131 Marini M, Monteiro M, Slatman J. Multiplicidade e instabilidade ontológica nos corações não-humanos. Saude Soc. 2022; 31(2):e220045pt.

32 Guimarães C. “Eu sou a força de puxar”: o encontro interepistêmico com Maria Luiza Marcelino, mestra quilombola e umbandista. Saude Soc. 2022; 31(2):e220047pt.

33 Souza ER, Monteiro M, Gonçalves FR. Doença de Alzheimer, gênero e saúde: reflexões sobre o lugar da diferença na produção neurocientífica. Saude Soc. 2022; 31(2):e220048pt.
-3434 Castro R. Ensaios clínicos, movimentos sociais e bioativismos: notas para uma (outra) genealogia do sistema brasileiro de ética em pesquisa. Saude Soc. 2022; 31(2):e220055pt., talvez o primeiro desse gênero em revistas de Saúde no Brasil. O dossiê trata da circulação, apropriação e mercantilização de biomatérias-primas; da genealogia do sistema brasileiro de ética em pesquisa; da doença de Alzheimer e o lugar da diferença na produção neurocientífica; de corpos imunológicos, produzidos a partir dos transplantes de coração e corpos biônicos em seus arranjos com corações artificiais; e de encontros interepistêmicos e as desestabilizações que produzem nas universidades.

Tais abordagens nos fazem indagar: como pensar a SC sem ter a Biomedicina no eixo central, balizando as pesquisas (inclusive as ditas sociais)? Como deveríamos reinventar nossa linguagem para que possamos trabalhar com densidade, mas em confluência com outros saberes e ciências?

Um aspecto a se destacar seria o dos temas que trabalhamos na SC, mais especificamente, nas CSHS. A análise da produção bibliográfica em CSHS publicada pela Revista Interface no período de 1997 a 2017 apresentou os seguintes temas: saúde mental, envelhecimento, doenças infectocontagiosas, gênero, saúde reprodutiva e teórico-conceitual como os mais presentes, evidenciando preocupações com problemas contemporâneos da sociedade brasileira, de relevância social e comprometimento político com as transformações e mudanças ocorridas no plano do cuidado tanto em saúde quanto em políticas públicas. Apontamos também, de forma crítica, a pouca expressão de determinados temas de pesquisa, tais como: corpo; doenças crônicas; juventude; deficiência; bioética; desigualdade social; morte; terapias alternativas e complementares; genética; biotecnologia; medicalização e neurociência. Observamos, na época, ausência de estudos sobre as questões do meio ambiente e sobre as doenças negligenciadas e as emergentes55 Martin D, Montanari PM, Pereira PPG, Hamburguer FG, Silveira C. As contribuições das Ciências Sociais e Humanas no campo da Saúde Coletiva: vinte anos da revista Interface - Comunicação, Saúde, Educação. Interface (Botucatu). 2018; 22(67):1029-42. doi: https://doi.org/10.1590/1807-57622017.0219.
https://doi.org/10.1590/1807-57622017.02...
. Uma rápida busca nos últimos anos na Revista Interface (2018-2022) evidencia ainda a tímida inserção de temas como religião; populações indígenas e quilombolas; populações que vivem em áreas rurais; e uso de metodologias de pesquisa virtuais e o estudo de redes sociais. Contudo, a questão não se resume somente a temas importantes atualmente, mas também sobre uma possível ampliação de fronteiras no campo de atuação da SC.

Ainda vivendo as repercussões de uma pandemia, é importante que o campo se abra para novas abordagens, pois alguns desses temas são incontornáveis nos dias de hoje. Questões sobre o meio ambiente, a crise climática, a poluição, a superada dicotomia natureza-cultura, o aquecimento global, os desastres ditos naturais, a perda da biodiversidade, a concentração de riqueza/extrema desigualdade social e a destruição da vida do planeta/ catástrofe ecológica são apontados por Santos3535 Santos BS. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra: Almedina; 2020. como temas iminentes. Pensar, outrossim, ecologia ou problemas ambientais não para reforçar a separação do humano e meio ambiente (como entidades separadas); em realidade, os problemas ambientais desafiam-nos a imaginar as CSHS longe da sombra antropocêntrica que a constitui3636 Marras S. Por uma antropologia do entre: reflexões sobre um novo e urgente descentramento do humano. Rev Inst Estud Bras. 2018; 69:250-66.. Sem esse antropocentrismo, que caracteriza as ciências sociais modernas, como seriam nossas investigações? Como alcançar conhecimentos relevantes sem o diálogo prometido, por exemplo, pelo campo da SC? Quais outros saberes deveremos incorporar?

Pensar tais abordagens nas CSHS e na SC requer o enfrentamento dos novos desafios teórico-metodológicos. Se os temas emergentes cobram soluções complexas e essas divisões não permitem dar todas as respostas necessárias, seria possível então abolir (ou mitigar) a separação entre metodologias qualitativas e quantitativas? Conseguiríamos manter o diálogo dentro das áreas clássicas da SC sem gerar novas fragmentações? Seria pertinente o diálogo com outras áreas do conhecimento? Estariam elas abertas ao diálogo? Porquanto, tais movimentos e aproximações evocariam repensar as disciplinas, as formas de colocar as hierarquias e as relações de poder. Que novas fronteiras seriam criadas e quais os seus limites?

Por fim, o que consideraríamos como próprio da SC, que precisaria ser mantido, em uma possível abertura para outras áreas e disciplinas? A SC é um campo de saberes e práticas que surgiu em um contexto histórico de ditadura militar, com relações muito próprias com o Estado e a sociedade civil, com produção de conhecimentos científicos e na esfera da produção de serviços de atenção à saúde, no interior do SUS1111 Schraiber LB. Engajamento ético-político e construção teórica na produção científica do conhecimento em Saúde Coletiva. In: Baptista TWF, Azevedo CS, Machado CV, organizadores. Políticas, planejamento e gestão em saúde: abordagens e métodos de pesquisa. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2015. Vol. 1, p. 33-57.. Há um forte compromisso com a democracia, com os direitos humanos e com a universalidade no cuidado à saúde. Em que pesem todos os ataques à democracia, ao SUS, aos direitos humanos3737 Castro MC, Massuda A, Almeida G, Menezes-Filho NA, Andrade MV, Noronha KVMS, et al. Brazil’s unified health system: the first 30 years and prospects for the future. Lancet. 2019; 394(10195):345-56., entre outros, trata-se de uma área que tem fortes repercussões nas políticas públicas, na ciência e na sociedade. Enfim, a questão então é imaginar formas inauditas de redes de colaboração e coalizões nesse processo de conhecer o real e intervir sobre ele3636 Marras S. Por uma antropologia do entre: reflexões sobre um novo e urgente descentramento do humano. Rev Inst Estud Bras. 2018; 69:250-66..

Notas finais

Neste texto, apresentamos limites, potencialidades e desafios para as CSHS, imaginando que as transformações de uma área podem mudar todo o campo da SC. Embora em tom mais provocativo, buscamos colocar questões que nos afetaram e nos afetam na nossa trajetória e acreditamos que sejam de algum interesse para quem atua e pensa a saúde no Brasil.

Os desafios são enormes e nos colocam mesmo a necessidade de repensar a noção de CSHS, indagar sobre a linguagem que estamos construindo e sobre o que podemos fazer. Não podendo permanecer como antes, pois a vida está nos levando a outras indagações, e não podendo manter nossas convenções, por serem improfícuas ou arcaicas para compreender o real e o advir, cabe-nos reformular nossos conceitos e pensar que, como nos ensinou Isabelle Stengers3838 Stengers I. Une autre science est possible! Manifeste pour un ralentissement des sciences. Paris: Les Empêcheurs de Penser en Rond/La Découverte; 2013., outra ciência é sempre possível. Assim, se trabalharmos nossa imaginação, outra SC será possível e já está anunciada. Como disse certa vez a primeira mulher astrônoma profissional dos Estados Unidos, Maria Mitchell, prefigurando um dos dilemas das ciências modernas: “Precisamos especialmente de imaginação na ciência. Nem tudo é matemática, nem tudo lógica, mas é um pouco de beleza e poesia”3939 Mitchell M. Maria Mitchell: life, letters, and journals. Boston: Lee & Shepard; 1896. (p. 186).

Agradecimentos

Agradecemos a Cassio Silveira, pelas generosas sugestões com sua experiência sobre o campo da Saúde Coletiva.

  • Martin D, Pereira PPG. Repensar a Saúde Coletiva e o papel das Ciências Sociais e Humanas em Saúde. Interface (Botucatu). 2023; 27: e220395 https://doi.org/10.1590/interface.220395
  • Financiamento

    Pedro Paulo Gomes Pereira é bolsista de produtividade CNPq.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    11 Ago 2022
  • Aceito
    29 Ago 2022
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br