Semblantes da Saúde Coletiva: tendências e perspectivas

The different faces of the field of public health: trends and prospects

Semblantes de la Salud Colectiva: tendencias y perspectivas

Gastão Wagner de Sousa Campos Sobre o autor

Resumos

Ensaio sobre história da Saúde Coletiva como campo científico e político. Análise das características das três áreas da Saúde Coletiva: Epidemiologia; Ciências Sociais e Humanas; e Política, Planejamento e Gestão, mediante estudo temático de Congressos da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Constatam-se conflitos de interesse e de paradigmas entre as áreas, mas também estratégias de governança para sustentar a unidade do campo da Saúde Coletiva que poderia ser sintetizada com a expressão: dialética da autonomia e integração.

Saúde coletiva; Epidemiologia; Ciências sociais e saúde; Política e saúde


This essay discusses the history of public health as a scientific and political field. We analyze the main features of the three areas of public health (epidemiology, social and human sciences, and policy, planning and management) based on a thematic study of congresses held by the Brazilian Public Health Association (Abrasco). The findings highlight a number of conflicting interests and paradigms among the areas, but also governance strategies to maintain the unity of field of public health that could be summed up with the phrase “dialectics of autonomy and integration”.

Public health; Epidemiology; Social sciences and health; Policy an health


Ensayo sobre historia de la Salud Colectiva como campo científico y político. Análisis de las características de las tres áreas de la Salud Colectiva: Epidemiología, Ciencias Sociales y Humanas y Política, Planificación y Gestión mediante estudio temático de Congresos de Abrasco. Se constatan conflictos de interés y de paradigmas entre las áreas, pero también estrategias de gobernanza para sustentar la unidad del campo de la Salud Colectiva que podría sintetizarse con la expresión: dialéctica de la autonomía e integración.

Salud Colectiva; Epidemiología; Ciencias Sociales y Salud; Política y Salud


Escrita e análise de uma história

À guisa de método, uma pequena história da Saúde Coletiva tecida sob a forma de ensaio. O estilo de investigação desse tipo valoriza a abordagem subjetiva dos fenômenos, em geral narrados com base na experiência e na sensibilidade do escritor11. Montaigne M. Os ensaios: uma seleção. Screech MA, organizador. D’Aguiar RF, tradutora. São Paulo: Companhia das Letras; 2010. . No meu caso, grande parte de minha vida profissional se passou no interior da Saúde Coletiva. Fui ativista, militante e partícipe do movimento de Reforma Sanitária e da constituição da Saúde Coletiva. Contribuí na organização e frequentei grande parte dos congressos da área. Fui observador atento e até mesmo gestor da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), entre 2015 e 2018, e exerci o mandato de presidente da entidade. Foi com base nessa experiência que compus este ensaio.

Para balizar e controlar o grau de subjetivismo desta abordagem pessoal, busquei que fosse composta também com eventos objetivos e concretos. Observei que os congressos realizados pela Abrasco são como uma representação arqueológica das tendências e perspectivas da Saúde Coletiva brasileira, bem como de suas áreas constitutivas. Assim, realizei uma análise sistemática dos temas e assuntos dos três últimos congressos de áreas realizados pela Epidemiologia; Ciências Sociais e Humanas; e Política, Planejamento e Gestãobbhttps://www.abrasco.org.br/site/congressos-eventos/congresso-brasileiro-de-saude-coletiva/ .

Ciência e Política

A Saúde Coletiva é um campo científico com forte compromisso com a prática. Apoia-se na interdisciplinaridade e convencionou-se reconhecer que é composta por três áreas básicas: Epidemiologia; Ciências Sociais e Humanas; e Política, Planejamento e Gestão22. Paim JS. Reforma sanitária brasileira: contribuição para a compreensão e crítica. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ; 2008. Reforma sanitária e revolução passiva no Brasil; p. 291-322. .

Vale a pena observar que essas três áreas estruturantes da Saúde Coletiva têm paradigmas e referenciais epistemológicos diferentes e que integrá-los, quer seja para compor estratégias metodológicas de investigação quer seja para orientar as práticas sanitárias, implica lidar com aporias e impasses, podendo-se considerar que a Saúde Coletiva não tem uma única teoria referente e que a busca pela interdisciplinaridade é uma obra em aberto.

Apesar de empecilhos e dificuldades de caráter estrutural, a dimensão operativa da Saúde Coletiva tem obrigado seus agentes a se arriscarem nesse cipoal de diversas e variadas possibilidades teóricas e metodológicas. Para alguns, a concepção de “caixa de ferramenta” resolveria esse dilema. A mim, parece uma solução simplista de um impasse fundamental para compreender e atuar em fenômenos sanitários.

Analisando a história recente, pode-se inferir que a Saúde Coletiva priorizou dois grandes eixos para sua constituição. Tanto a Abrasco quanto seus pesquisadores e docentes trabalharam para que a Saúde Coletiva se consolidasse como campo científico, o que foi logrado em grande medida33. Novaes HMD, Werneck GL, Cesse E, Goldbaum M, Minayo MCS. Pós-graduação senso estrito em Saúde Coletiva e o Sistema Único de Saúde. Cienc Saude Colet. 2018; 23(6):2017-25. . Em segundo lugar, a Saúde Coletiva manteve importante atividade no campo político, particularmente exercendo influência na construção do projeto e na implementação do Sistema Único de Saúde (SUS). Com essa finalidade, a Abrasco, em articulação com outras entidades, trabalhadores de saúde e vários setores sociais, produziu um movimento social de novo tipo denominado Reforma Sanitária.

Na realidade, a faceta ideológica e de ativismo social da Saúde Coletiva não esteve separada da empreitada de se constituir como campo de destaque na Ciência e Tecnologia do Brasil. Houve desencontros, desentendimentos e conflitos entre aqueles que valorizavam mais um ou outro desses dois caminhos. Acredito que o estabelecimento de compromissos entre essas duas perspectivas vem sendo possível graças ao ânimo crítico com que atuam instituições e agentes sanitaristas. Tanto na constituição dos programas de Pós-Graduação quanto na eleição de temas de pesquisa, evidencia-se forte compromisso com problemas e necessidades da população, bem como com os meios políticos, epistemológicos e práticos, efetivos para assegurar direito à saúde, à justiça social e à democracia. Um campo científico com forte compromisso social e ético.

Diferenças e interconexões entre Epidemiologia; Ciências Sociais e Humanas; e Política, Planejamento e Gestão

A Epidemiologia desempenhou papel de destaque no projeto de ampliar e qualificar a Saúde Coletiva como campo científico. A Saúde Coletiva logrou inserir-se na institucionalidade do processo de Pós-Graduação, em seu sistema de financiamento, assim como multiplicou investigações e publicações sistemáticas do conhecimento científico.

A Epidemiologia é um campo disciplinar antigo, nasceu praticamente junto com a Saúde Pública moderna44. Barreto ML. A epidemiologia, sua história e crises: notas para pensar o futuro. In: Costa DC. Epidemiologia: teoria e objeto. São Paulo: Hucitec; 1990. p. 19-38. . Tem importante vocação empírica, procura armar projetos sistemáticos de investigação, estudando a gênese e comparando eventos vitais – morbidade, mortalidade, riscos – com atributos e características populacionais, e ainda se aproximou do campo disciplinar da Política e da Gestão ao desenvolver metodologias e estratégias para análise de eficácia, efetividade e eficiência das práticas e programas clínicos e sanitários – quando se consolidou, essa vertente passou a ser denominada de avaliação em Saúde.

Poderemos afirmar com segurança que na Epidemiologia predomina uma modalidade de conhecimento que tem estreita correlação com as Ciências Naturais, com a Física, a Química e a Biologia, aproximando-a daquilo que vem sendo considerado Ciência de fato ao longo dos últimos cem anos. É importante constatar que o objeto de investigação e de trabalho da Epidemiologia, assim como de todas as áreas da saúde, são seres humanos, os quais têm a peculiaridade de desenvolver uma sociabilidade que produz heterogênese em sistemas complexos. Os agentes humanos têm possibilidade de reagir e de resistir aos eventos naturais bem além do que sugere a racionalidade quântica, frequentemente quebrando a serialidade dos processos de existência e de convivência, produzindo-se, portanto, singularidades não probabilísticas. A busca da máxima objetividade para produção de evidências generalizáveis não tem impedido a Epidemiologia de se aproximar de outras áreas do conhecimento, abrindo oportunidade para interseção com a Política, a Psicologia e as Ciências Sociais.

De qualquer modo, em linhas gerais, a consolidação da Saúde Coletiva como Ciência obedeceu aos cânones e protocolos hegemônicos em países industrializados e desenvolvidos. Essa ciência normal pretende se aproximar do real buscando evidências concretas, lidas por meio de linguagens matemáticas ou estatísticas; trata-se de uma tradição ocidental europeia pós-iluminismo. No entanto, há que reconhecer que vários países asiáticos – Japão, China, Coreia do Sul, entre outros – também operam, centralmente, nesse mesmo diapasão.

A instituição Ciência, moldada nesse formato, desenvolveu um modus operandi em larga medida seguido pela Saúde Coletiva no Brasil, centrado na formação de acadêmicos em redes de Pós-Graduação. O passe para ingressar nesse círculo é dado pela concessão de títulos de Mestrado, Doutorado e Pós-Doutorado, mediante a publicação de resultados de pesquisa em revistas e outros meios normatizados e indexados pela mesma instituição ciência.

No Brasil, o reconhecimento científico da Saúde Coletiva deu-se por sua integração a uma Política de Ciência e Tecnologia hegemônica no Estado brasileiro, em particular no Ministério da Educação – pela Capes – e no Ministério de Ciência e Tecnologia –pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) , baseada em métricas padronizadas, utilizadas como critério para julgamento de mérito dos projetos de pesquisa e de publicações. Observe-se que esse sistema foi criado com participação significativa de cientistas que representavam universidades e programas de Pós-Graduação, uma novidade que abalou seriamente o tradicional clientelismo típico da gestão pública nacional. A distribuição de recursos orçamentários baseava-se em critérios técnicos elaborados por esses conselhos e representantes de várias áreas do conhecimento.

Esse sistema favoreceu a Epidemiologia quando comparada com o desempenho das áreas de Ciências Sociais e de Política. Para realizar uma composição de interesses entre as áreas e os programas de Pós-Graduação, a Abrasco organizou um fórum permanente com a participação de todos os programas. Ao longo da segunda década deste século, foram compostas propostas de reorganização da política de Pós-Graduação, objetivando-se que fosse equitativa e que assumisse também uma perspectiva de política pública, com programas de apoio regional e outras medidas que atenuassem o caráter competitivo do sistema de avaliação. Com o advento do governo Bolsonaro, com a desconstrução dos Ministérios de Educação e de Ciência e Tecnologia, optou-se pela suspensão do projeto reformista, priorizando-se a defesa da sobrevivência dessas políticas públicas.

Foram anos de tensão entre Epidemiologia e as duas outras áreas da Saúde Coletiva, cuja unidade orgânica sempre dependeu da capacidade de se combinar respeito às especificidades de cada área com elementos comuns capazes de justificar a existência da Saúde Coletiva. Isso resultou da capacidade de se combinar certo grau de autonomia das áreas com possibilidade de integração epistemológica e de políticas.

Provavelmente, como fruto dessa dialética, criaram-se congressos específicos para cada área. Primeiro, organizaram-se congressos de Epidemiologia; depois, de Ciências Sociais; e, finalmente, os de Política.

Em novembro de 2021, realizou-se o 11o Congresso Brasileiro de Epidemiologiacchttps://epi.org.br/index.php . Analisando as conferências, mesas-redondas e áreas temáticas designadas para a inscrição de trabalhos científicos, constatou-se a convivência do caráter científico com o espírito crítico da Epidemiologia brasileira. Ficou explícito o compromisso com políticas públicas, com a justiça social e com a democracia.

A denominação do congresso confirma a filiação da área de Epidemiologia com democracia, como um campo científico engajado com a luta pelo bem-estar: “Epidemiologia, democracia e saúde: conhecimento e ações para a equidade”.

De fato, ao se observar a história da Epidemiologia contemporânea, no Brasil, na América Latina e na Europa, é evidente o esforço para superação da perspectiva tradicional mediante maior incorporação de dimensões do social, da cultura, buscando-se uma epidemiologia social, uma epidemiologia crítica. No Brasil, a Epidemiologia tem se destacado pela investigação da desigualdade, desde estudos pioneiros de Cesar Victora e Walter Laser, até as recentes publicações de Maurício Barreto e colaboradores.

Como em congressos anteriores, houve ênfase no debate metodológico, considerando-se o estado da arte em Epidemiologia, mas procurando dirigir o olhar para políticas sociais, desigualdades, pobreza e violência.

Houve correspondência entre o que encontrei no 11o Congresso de Epidemiologia, no 8o Congresso Brasileiro de Ciências Sociais, realizado em 2019, e no 4o Congresso Brasileiro de Política, Planejamento e Gestão, em 2021. Foi interessante constatar como há transversalidade entre o núcleo de cada área e temas transversais, não exclusivos a cada uma das diferentes áreas. A descoberta dos tais “temas transversais”, nos três diferentes congressos, confirma a existência de algum grau de integração das áreas da Saúde Coletiva. Assim, saúde do trabalhador, meio ambiente, segurança, segurança alimentar, violência, gênero e racismo são abordados mediante distintas e variadas estratégias metodológicas, diferentes conforme a área que os investiga e os discute. A transversalidade dos mesmos temas estudados em diferentes perspectivas ratifica a existência de integração na Saúde Coletiva.

Como as conferências de Epidemiologia e de Política ocorreram durante a pandemia de Covid-19, foi inevitável que se debruçassem com ênfase sobre esse evento, tanto para compreendê-lo quanto para avaliar e sugerir estratégias de controle.

Em relação à vertente aplicada da Saúde Coletiva, no SUS, a Epidemiologia cuidou, principalmente, de implementação da Política Nacional de Imunização e de um setor do SUS denominado de Vigilância em Saúde, em suas variantes de vigilância epidemiológica, sanitária, do trabalho e ambiental. Seriam necessários estudos mais cuidadosos, mas considero que as vigilâncias, no Brasil, se constituíram como políticas e programas que, essencialmente, conservaram as configurações de práticas típicas da Saúde Pública tradicional.

As Ciências Sociais utilizam uma maior variedade de referenciais teóricos do que a Epidemiologia. Existem também estudos que utilizam modelagem estatística para investigar fenômenos sociais. São escolas importantes no mundo anglo-saxão, mas com pequena influência na Saúde Coletiva do Brasil. Aqui, as Ciências Sociais e Humanas se dedicaram predominantemente a compor e fortalecer a teoria de determinação social do processo saúde, enfermidade e cuidado, bem como em criticar, em desconstruir o paradigma biomédico, a medicina baseada em evidência e seus efeitos danosos para a saúde e o planeta. As Ciências Sociais contribuíram para uma reescrita da história da Saúde Pública, valendo-se dos conceitos de higienismo, poder e biopoder. Para essa empreitada utilizaram-se de várias modalidades de estudos sócio-históricos: marxismo, institucionalismo, Foucault, Antropologia, estudos de representação e análise de discurso, entre outros.

Pensando nas estratégias de intervenção, essa área se destacou em propostas sobre Educação Popular em Saúde (EPS), com referência forte em Paulo Freire. Desenvolveu também pesquisa, ação e experimentos em práticas complementares e alternativas em saúde.

No estudo temático do VIII Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas em Saúdeddhttp://cshs.com.br/programacao/index.php#topo , observa-se uma ampliação do escopo de preocupações e também metodológico, ao trazer para a Saúde Coletiva a cultura política, investigativa e militante dos movimentos feministas, perspectivas de gênero e do movimento negro, incorporando conceitos como interseccionalidade e autores ligados a esses movimentos. Vale ressaltar novas vertentes da crítica às ciências normais e à política com ênfase no decolonialismo, novas epistemologias do sul e valorização de autores como Franz Fanon, Boaventura de Sousa Santos, Ailton Krenak, entre outros. Nota-se a emergência de estudos e intervenções em grupos populacionais rebeldes e, em grande medida, excluídos do sistema, como moradores de rua, população LGBTQI, quilombolas e povos originais.

Durante as décadas de 1960 e 1970, o movimento sanitário brasileiro fez crítica à Saúde Pública tradicional sugerindo ampla reforma de seus valores, teorias e práticas, ocorrendo, inclusive, a mudança de nome do campo de Saúde Pública para Saúde Coletiva. Talvez a mais radical mudança tenha sido a incorporação das Ciências Sociais e Humanas à nova Saúde Coletiva55. Nunes ED. Saúde coletiva: história e paradigmas. Interface (Botucatu). 1998; 2(3):107-16.

A área de Política, Planejamento e Gestão fazia também parte do corpo de saberes e de práticas da velha Saúde Pública, só que com nome e abrangência diferentes do atual. Antigamente essa área era denominada de Administração Sanitária ou de Programas e Práticas sanitárias. Aqui no Brasil, nos primórdios do tempo da Saúde Coletiva, a área de Ciências Sociais sugeriu que a então área de Planejamento e Gestão ficasse com o campo da Política. Confesso que nunca consegui entender aquela súbita gentileza das cientistas sociais da época.

Essa área tem um objeto de investigação e de práticas próprio, mas toma emprestadas teorias e metodologias de pesquisa de outros campos, no caso, principalmente das Ciências Políticas, Sociologia, Filosofia, Teoria Geral da Administração etc.

Nos primórdios da Saúde Coletiva, a área de Política, Planejamento e Gestão produziu teses de grande repercussão, escritas por notórios fundadores da Saúde Coletiva e do movimento de Reforma Sanitária: Maria Cecília Donnangelo, Sérgio Arouca, Hésio Cordeiro; em geral, estudos sobre Estado, classes sociais, atores políticos e políticas públicas, divulgados na forma de livros com grande circulação. Seguiu-se um período de significativo envolvimento com a construção e a implementação do SUS. Nos anos de 1980 apareceram investigações sobre planejamento e os primeiros ensaios sobre gestão, trabalho em saúde e modelos de cuidado. Os temas da gestão participativa e do controle social sempre tiveram destaque na produção científica da área.

A partir do terceiro milênio, parte da produção dessa área assumiu caráter pragmático, decorrente do grande trânsito dos pesquisadores entre a academia e a participação direta no poder executivo federal, dos estados e municípios. Apesar dessa convivência, a área conserva forte tradição crítica em defesa de políticas públicas, do SUS em particular, críticas ao capitalismo e sua expressão contemporânea, o neoliberalismo.

O título do IV Congresso de Política, Planejamento e Gestão em Saúdeeehttps://ppgs.com.br/programacao/index_grade.php , “O SUS e o Projeto Civilizatório: cenário, alternativas e propostas”, indica a vinculação estreita entre essa área e o SUS. Nesse congresso, ficou também evidente a ambiguidade entre o compromisso com valores e princípios do SUS, com a democracia e a justiça social e posições que defendem a adaptação do SUS à lógica de mercado, havendo como que uma “naturalização” da desigualdade e da impossibilidade de aprofundar a Reforma Sanitária.

Ao longo dos anos, desenvolveu-se significativa integração entre a Política e a Epidemiologia. É frequente a utilização de metodologias mistas – quanti e quali – nos trabalhos apresentados nos congressos. Esse processo ganhou corpo e volume com a ampla utilização da avaliação em saúde, de base epidemiológica, como instrumento de pesquisa. Essa tendência se ampliou recentemente com os conceitos de política e gestão com base em evidências e com a pressão dos órgãos de fomento e de parcela da Pós-Graduação para a adoção, como metodologia preferencial, de alguma das variantes da denominada ciência de implementaçãoffhttps://agencia.fapesp.br/ciencia-da-implementacao-ajuda-na-adocao-de-novas-praticas-em-saude-publica-avaliam-especialistas/37373/ .

A Saúde Coletiva como um todo, mas com particular força a área de Política, Planejamento de Gestão, manteve relativa influência sobre a construção de políticas e programas para o SUS. A Política Nacional de Atenção Básica, centrada na Estratégia de Saúde da Família e Comunidade, resultou de aliança entre a Saúde Coletiva, a Medicina de Família, movimentos sociais e gestores municipais que ousaram trazer para o Brasil diretrizes para organização da Atenção Primária de outros países – Inglaterra, Canadá, Cuba –, cuidando em adaptá-las e ampliá-las para as adequar ao contexto nacional. Da mesma forma, em articulação com ativistas da Reforma Psiquiátrica e com o movimento antimanicomial, teve importante papel na construção e na implementação da nova Política Nacional de Saúde Mental. A Saúde Coletiva, em parceria com infectologistas e o movimento gay , produziu e realizou a construção de política fundamental para controle da Aids.

Bem, levanto a hipótese, a ser investigada de maneira sistemática, de que houve um declínio na capacidade da Saúde Coletiva e da área de Política, Planejamento e Gestão, em particular de influenciar o pensamento e as práticas sanitárias no Brasil. Parece-me que esse fenômeno tem a ver com o que denominei de “naturalização” dos impasses estruturais do SUS. A área de Política, Planejamento e Gestão deixou-se contaminar por posições ideológicas advindas de pensadores ultraliberais e conservadores ao abandonar a noção de políticas públicas, por exemplo. Há tempo o projeto de Reforma Sanitária vem sendo fortemente criticado pelo Banco Mundial, que por meio de seus relatórios periódicos utiliza estudos estatísticos para desacreditar programas e diretrizes do SUS. Recentemente, com financiamento empresarial, se constituíram institutos que sugerem contrarreformas no SUS, sempre no sentido de diluí-lo no mercado. Em vez de se buscar em estudos comparados com outros sistemas nacionais públicos de saúde, esses investigadores e uma parcela importante dos sanitaristas vêm buscando supostas soluções para problemas estruturais do SUS no mercado. A “naturalização” ocorre quando se considera como definitiva e imutável a incompetência dos sistemas públicos para realizar gestão efetiva, eficiente e democrática. O patrimonialismo e o clientelismo seriam atavismos genéticos da sociedade brasileira. Seria impensável, e indizível, uma nova política e gestão de pessoal para o SUS. Mesmo a reclamação por maior financiamento para o SUS quase nunca é acompanhada por sugestões de alocações. A ampliação do orçamento não seria necessariamente para ampliação e qualificação da Atenção Primária ou para a construção de uma política pública de pessoal.

Bem, à guisa de síntese, pode afirmar-se que há o risco de a Saúde Coletiva perder ímpeto crítico e propositivo, conformando-se a um lugar de ciência normal e funcional e a uma ideologia que desconfia das políticas públicas.

Por outro lado, a manutenção da Saúde Coletiva como campo científico prossegue em sua marcha batida, ainda em um campo integrado por três áreas com paradigmas diferentes e que, raramente, se autorizam a algum grau de hibridismo ou de mestiçagem. A interpenetração conceitual, em geral, tem ocorrido no sentido de se levar para as Ciências Sociais e Humanas e para a Política e Gestão a racionalidade positivista baseada em evidência. Apesar desse fato, a unidade da Saúde Coletiva persiste e tem dependido de um esforço ativo e persistente de dirigentes e líderes, bem como da deliberada ação da Abrasco com esse objetivo, valendo-se de procedimentos com algumas direções principais: de constituição de fóruns e colegiados com poder deliberativo e compostos por representação das áreas básicas e matriciais com disposição para negociar interesses e estratégias de convivência; da inteligente política que tem buscado combinar integração com autonomia relativa das áreas; e ainda do trabalho epistemológico criativo voltado para produzir composições para a pesquisa com metodologias híbridas.

Referências

  • 1
    Montaigne M. Os ensaios: uma seleção. Screech MA, organizador. D’Aguiar RF, tradutora. São Paulo: Companhia das Letras; 2010.
  • 2
    Paim JS. Reforma sanitária brasileira: contribuição para a compreensão e crítica. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ; 2008. Reforma sanitária e revolução passiva no Brasil; p. 291-322.
  • 3
    Novaes HMD, Werneck GL, Cesse E, Goldbaum M, Minayo MCS. Pós-graduação senso estrito em Saúde Coletiva e o Sistema Único de Saúde. Cienc Saude Colet. 2018; 23(6):2017-25.
  • 4
    Barreto ML. A epidemiologia, sua história e crises: notas para pensar o futuro. In: Costa DC. Epidemiologia: teoria e objeto. São Paulo: Hucitec; 1990. p. 19-38.
  • 5
    Nunes ED. Saúde coletiva: história e paradigmas. Interface (Botucatu). 1998; 2(3):107-16.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    16 Set 2022
  • Aceito
    30 Set 2022
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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