Um modelo explicativo alternativo sobre o consumo de drogas: carta ao editor

An alternative explanatory model on drug consumption: letter to the editor

Un modelo explicativo alternativo sobre el consumo de drogas: carta al editor

Heitor Martins Pasquim Helton Saragor de Souza Sobre os autores

Lemos com muito interesse acadêmico e militante o artigo “O circuito dos afetos na drogadição: uma explicação alternativa para a servidão às drogas”, do colega Roberto Tykanori Kinoshita1Kinoshita RT. O circuito dos afetos na drogadição: uma explicação alternativa para a servidão às drogas. Interface (Botucatu). 2021; 25:e200787. doi: 10.1590/interface.200787.. Escrevemos esta carta ao editor e aos leitores da revista Interface – Comunicação, Saúde, Educação porque reconhecemos no autor a abertura para o diálogo e, na sua recente produção, a potência para a reflexão crítica sobre a problemática do cuidado em saúde na área de álcool e outras drogas.

O artigo apresenta um modelo explicativo alternativo ao consumo continuado de drogas. Para isso, o autor adota a contradição entre a razão/conhecimento e o desejo/paixão humanos como premissa, a partir da qual o circuito dos afetos tristes aprisionam as pessoas em uma “dinâmica espiral” de drogadição, sendo que, nesse caso, o efeito da substância sobre o organismo contribui de forma hierarquicamente secundária.

Segundo o modelo proposto, o sentido da interação com a substância droga tem variabilidade em um corpo vetorializado por afetos. No caso de uma interação com afetos tristes, o desejo do consumo se realiza ao resgatar a potência de existência de outrora, gerando ativação parcial com alívio, mas com retorno aos afetos tristes iniciais. Logo, a questão-chave não está nos estados emocionais isolados, mas na dinâmica do complexo afetivo.

A interpretação alternativa do fenômeno refuta o paradigma dominante da adicção como modelo de doença física, expressa enquanto um “interruptor molecular cerebral”, que torna um indivíduo, propenso, em um adicto. O autor nos lembra que as terapias conservadoras reforçaram o dualismo corpo-mente, reservando equivocadamente ao corpo os registros biológicos causadores da dependência em drogas, e à mente (ou à escolha), a possibilidade de se opor ao corpo. Consequentemente, a ideia tradicional de dependência química no campo das drogas restringe a compreensão da relação sujeito-substância ao determinismo dos efeitos psicoativos no corpo de um sujeito predisposto à relação patológica. Embora o autor trate da fisiologia enquanto um componente relevante, não corrobora o princípio empirista vulgar que formula leis explicativas para o domínio do comportamento humano e da vida oriundas de manifestações parciais do organismo.

A potência do texto aqui comentado está em pensar com princípios diferentes do método preconizado pela psiquiatria tradicional ou da efetividade pragmática dos serviços de Saúde Mental, procurando uma nova elaboração para responder às necessidades dos milhares de indivíduos que circulam nesses espaços. No caminho do não percorrido, Tykanori prefere trabalhar com hipóteses, com ideias passíveis de críticas e com novos possíveis equívocos do que reiterar o “já sabido”. Ao pensar distintamente o problema da drogadição, ele aposta no futuro, não com soluções definitivas, mas com proposições ao debate, de certo modo, ousadas na interpretação filosófica heterodoxa da problemática clínica, ou seja, a partir de pressupostos alternativos em uma leitura contemporânea de dois constructos teóricos de meios intelectuais diversos, a saber: a associação pluralista epistêmica entre a teoria de autopoiesis dos seres vivos, de Maturana, e a concepção dos afetos, de Espinosa.

Tal proposição conceitua a adicção como um labirinto de afetos tristes. Nesse sentido, cabe à clínica contribuir para desarticulá-lo, para que o usuário possa superar o “estado de servidão”, o qual não se entende como desfecho final, mas sim como a interação desencadeadora de alterações e memórias relacionadas aos afetos. Nesse sentido, a força da tristeza move a imaginação do consumo para aumentar a potência humana; contudo, retorna-se a ela, e se reinicia o círculo de consumo, alívio/oblívio, vergonha, culpa e medo, incluindo a popularmente chamada “ressaca moral”. Isto é, o retorno à tristeza inicial não se configura uma repetição, mas sim a produção de relações recursivas em espiral.

A decomposição dos três núcleos ou complexos afetivos do circuito da adicção – história pessoal; afetos flutuantes (alívio/oblívio); e complexo sociocultural – deve ser vista mais como uma proposta de reflexão e agenda de pesquisa do que propriamente terapêuticas definidas para o aumento da alegria e do desejo do usuário, porque cumprem o papel de colocar em destaque o jogo afetivo como modelo explicativo. Refletir sobre a centralidade da dinâmica dos afetos como objeto do cuidado em saúde mental – ou melhor, sobre a desarticulação do círculo dos afetos tristes por meio da clínica – é aquilo para o qual o autor quer chamar a atenção.

Contudo, questionamos os possíveis limites referentes à modificação das interações produtoras de afetos tristes, e destacamos a contradição entre as estratégias de cuidado propostas no fechamento do texto e do constructo teórico proposto. Em que medida, os “engenhos linguísticos” não se assemelham à conscientização racional do não uso de drogas? Mesmo considerando a razão e a individualidade insuficientes na mudança de conduta, aponta a possibilidade da autointeração interferir no curso dos afetos em contradição com o próprio texto: “Os afetos ou emoções não são modificados pela razão, e sim pela força de outro afeto ou emoção”. Entendemos que, se o papel do conjunto dos afetos no mundo e o lugar do indivíduo se expressam na linguagem, ainda há a necessidade de materializações dessas afetações para além dela mesma e da sua consciência racional.

Outra observação que consideramos relevante é referente à força dos afetos da sociabilidade; e ao potencial limitado da produção em saúde. Considerando a proposição do mapeamento das dimensões da vida do usuário, conforme o texto, de modo a incidir sobre as interações de afetos alegres, pergunta-se: qual é o potencial da produção em saúde, no sentido emancipador, em instituir uma racionalidade alternativa sobre a vida material? Ou, ainda, como compor afetos alegres em uma sociabilidade permeada de mal-estar? Por exemplo, a contraposição à condenação social das drogas e o reforço dos afetos tristes relacionados: culpa, vergonha e medo. Neste caso, a sociabilidade capitalista contemporânea parece ter mais peso de afetações do que na produção do cuidado stricto sensu. Desse modo, como fundar uma prática em saúde que reoriente a espiral de afetos, a partir de uma nova racionalidade, apesar dos parâmetros restritivos impostos pelo conjunto da sociabilidade?

Essas são reflexões e perguntas provocadas pela leitura do artigo. Agradecemos a oportunidade para este debate teórico e esperamos ter justificado os comentários.

Referências

  • Kinoshita RT. O circuito dos afetos na drogadição: uma explicação alternativa para a servidão às drogas. Interface (Botucatu). 2021; 25:e200787. doi: 10.1590/interface.200787.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    24 Set 2022
  • Aceito
    16 Dez 2022
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