Resumos
A Lei Menino Bernardo (LMB) proíbe o uso dos castigos físicos e, desde sua promulgação, tem gerado resistência das alas conservadoras, especialmente religiosas, considerando-a uma intervenção do Estado nos “assuntos de família”. Analisamos os discursos pró-castigos físicos disseminados na Internet, identificando seus argumentos e contextos discursivos. Examinamos 43 vídeos, que foram transcritos, e sua codificação interpares foi feita por meio do Atlas.ti, seguida de análise crítica do discurso. Reconhecendo a diversidade do “mundo evangélico” e de suas posturas políticas, identificamos discursos de lideranças conservadoras que enunciam oposição entre a “Família de Deus” e o “Estado do Demônio”. O castigo físico é traduzido pelo conceito bíblico de “vara”, a ser aplicado pelos pais, que são a autoridade instituída por Deus. A LMB é associada ao caos e à perda de valores cristãos; e é considerada um ato do Estado para enfraquecer a família.
Palavras-chaves
Violência infantil; Religião; Internet
La Ley Menino Bernardo prohíbe el uso de los castigos físicos y desde su promulgación ha generado resistencia de las alas conservadoras, especialmente religiosas, considerándola una intervención del Estado en los “asuntos de la familia”. Analizamos los discursos pro-castigos físicos diseminados en Internet, identificando sus argumentos y contextos discursivos. Examinamos 43 videos, trascritos y su codificación interpares se realizó por medio de Atlas.ti, seguida de análisis crítico del discurso. Reconociendo la diversidad del “mundo evangélico” y de sus posturas políticas, identificamos discursos de liderazgos conservadores que enuncian la oposición entre la “Familia de Dios” x “Estado del Demonio”. El castigo físico se traduce por el concepto bíblico de “vara” a ser aplicado por los padres que son la autoridad instituida por Dios. La LMP se asocia al caos, a la pérdida de valores cristianos y al acto del Estado para debilitar la familia.
Palabras clave
Violencia Infantil; Religión; Internet
Introdução
Este estudo pretende analisar os discursos disseminados na Internet que defendem a prática de castigos físicos como estratégia para educar crianças e adolescentes e que são protagonizados majoritariamente por algumas lideranças evangélicas, políticos e produtores de conteúdo de matriz religiosa.
A despeito da vigência no Brasil desde 1990 de um paradigma legal de proteção integral às crianças e aos adolescentes definidos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)11 Brasil. Lei nº 8.069, de 13 de Julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 16 Jul 1990; Sec. 1., os castigos físicos continuam sendo admitidos culturalmente como prática disciplinar. Em 2014, houve a promulgação da Lei n. 13.010 – Lei Menino Bernardo (LMB), que proíbe o uso de castigos físicos, tratamentos cruéis ou degradantes na educação familiar ou formal22 Brasil. Lei n° 13.010, de 26 de Junho de 2014. Altera a Lei nº 8.069, de 13 de Julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), para estabelecer o direito da criança e do adolescente de serem educados e cuidados sem o uso de castigos físicos ou de tratamento cruel ou degradante, e altera a Lei nº 9.394, de 20 de Dezembro de 1996. Diário Oficial da União. 26 Jun 2014.. Como era de se esperar, apesar de instituída, uma lei não substitui o lento trabalho de mudança cultural33 Patias ND, Siqueira AC, Dias ACG. Bater não educa ninguém! Práticas educativas parentais coercitivas e suas repercussões no contexto escolar. Educ Pesqui. 2012; 38(4):981-96.. Mesmo quase dez anos passados da aprovação da LMB, há grande resistência das alas conservadoras que veem a legislação como uma intervenção do Estado nos “assuntos de família”. Desde então, o tema continua presente nas redes sociais e, com o fortalecimento político dos segmentos religiosos conservadores, especialmente a partir das eleições de 2018, as orientações pró-castigo físico de crianças e adolescentes como recurso disciplinar ganham destaque.
O corpo tem sido, durante séculos, a grande plataforma de imposição de obediência e assujeitamento, seja a partir do uso de força ou de outras técnicas de docilização voltadas para a dominação e autoridade, seja dos senhores sobre seus escravos, dos soberanos sobre seus súditos, dos patrões sobre seus empregados, e dos pais sobre seus filhos. Boa parte da obra de Foucault mostra as agências disciplinares empreendidas como modos de gestão e sua intrínseca relação com regimes de poder44 Foucault M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal; 1984.,55 Foucault M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes; 1987.. A naturalização e a conformidade dessas práticas punitivas também eram válidas para os corpos das crianças que deveriam ser socializados de modo a reconhecer desde cedo a autoridade, seja do soberano, de seus pais ou de seus tutores.
Desde o século XVIII, parte das sociedades europeias teria gradativamente abandonado os suplícios corporais em prol de outras formas disciplinares e de vigilância que apresentavam “uma certa discrição na arte de fazer sofrer, um arranjo de sofrimentos mais sutis, mais velados e despojados de ostentação”55 Foucault M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes; 1987. (p. 12). Do suplício a uma moralidade de “correção”, o corpo passa a atuar como intermediário em um “sistema de coação e de privação” da perda de bens e direitos. O castigo passa, portanto, “de uma arte das sensações insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos”55 Foucault M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes; 1987. (p. 15), especialmente, o direito da liberdade. A “alma” deveria ser tocada, de modo que “a expiação que tripudia sobre o corpo deve suceder um castigo que atue, profundamente, sobre o coração, o intelecto, a vontade, as disposições”55 Foucault M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes; 1987. (p. 20). Gradativamente, inúmeros interlocutores científicos (como psiquiatras, psicólogos e especialistas forenses) entram em cena com seus saberes, ajudando o Estado a julgar, apontar ou eximir a culpa e definir a pena, que não mais seria imputada via castigos corporais. Sucessivamente, um conjunto de dispositivos de vigilância e controle das condutas vai se aliando aos modos de governar, reconhecendo o maior alcance das normas em relação às leis, no sentido de normalizar e disciplinar55 Foucault M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes; 1987..
Assim, as punições corporais dariam lugar a outras tecnologias disciplinares, que agiriam de forma ininterrupta, esquadrinhando o uso dos espaços, do tempo e dos movimentos; e permitindo um controle minucioso e a docilização dos corpos55 Foucault M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes; 1987.. No caso das crianças, a escola vai gradativamente assumindo o papel de inculcação disciplinar, demarcando o lugar dos vários especialistas (pedagogos, psicólogos, etc.) que irão assumir com a família, em parcerias e disputas, a gestão das infâncias. A gestão da educação de crianças passou a ser cada vez mais compartilhada entre família e Estado. Com efeito, o castigo físico é ressignificado como elemento indesejável, sendo, posteriormente, classificado como violência e violação de direitos em algumas sociedades.
A Declaração Universal dos Direitos da Criança66 Fundação das Nações Unidas para a Infância. Declaração universal dos direitos das crianças. Nova York: UNICEF; 1959. trouxe duas noções poderosas para a construção de um novo olhar para a infância: crianças são sujeitos de direitos e a infância é reconhecida a partir de uma conceituação universal. Todavia, as noções universais se alicerçam exatamente a partir da sobreposição e ocultamente às culturas e referências locais; e atuam como universos quase paralelos que precisam de pontes, traduções ou de uma gramática minimamente comum que permita o diálogo. Nesse sentido, o nosso presente objeto de estudo impõe como desafio uma travessia hermenêutica para a compreensão de lógicas culturais religiosas de referência cristã que invocam a orientação divina para a boa educação de crianças e adolescentes, tendo a disciplina e obediência como um de seus alicerces éticos e o castigo físico como forma de viabilizá-las. Tais orientações e discursos agora se disseminam como fenômeno midiático, em escala inimaginável, por meio de tecnologias digitais.
Ascensão da pauta evangélica conservadora
Os “evangélicos” no Brasil constituem um segmento religioso bastante heterogêneo, reunindo uma enorme pluralidade de grupos denominacionais (como pentecostalistas, neopentecostalistas, adventistas, luteranos, batistas, presbiterianos, congregacionalistas, anglicanos, menonitas, reformados continentais, entre outros). Registra-se ainda grande variação das orientações das distintas igrejas e pertencentes a um mesmo grupo denominacional. São mais de cinquenta tipos de igrejas reconhecidas no Brasil, das quais destacam-se as Assembleias de Deus ligadas à Convenção Geral (com maior contingente de adeptos no país), Congregação Cristã no Brasil, Assembleias de Deus ligadas à Convenção Nacional, Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja do Evangelho Quadrangular, Igreja Batista ligada à Convenção Brasileira (batistas tradicionais), Igreja Batista ligada à Convenção Batista Nacional (“batistas pentecostais”), Igreja Adventista do Sétimo Dia, Igreja Internacional da Graça de Deus, Igreja Pentecostal Deus é Amor, Igreja Mundial do Poder de Deus, entre mais dezenas de outras, com marcadas disputas entre esses segmentos.
Quanto às identidades desses religiosos, algumas são reconhecidas pelos estudiosos da área e/ou se assumem como “conservadoras” face aos costumes e valores, enquanto outras são consideradas de cunho “progressista” no que se refere às pautas defendidas em um determinado contexto sócio-político77 Alencar G. Grupos protestantes e engajamento social: uma análise dos discursos e ações de coletivos evangélicos progressistas. Relig Soc. 2019; 39(3):173-96. doi: 10.1590/0100-85872019v39n3cap08.
https://doi.org/10.1590/0100-85872019v39... . O conservadorismo aqui se expressa pela defesa de uma agenda em torno de um ideal de “família cristã” restritivo e de uma moral sexual cis-heteronormativa; pela relativização dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres; e por um posicionamento político “de direita”88 Almeida R. Evangélicos à direita. Horiz Antropol. 2020; 26(58):419-36. doi: 10.1590/S0104-71832020000300013.
https://doi.org/10.1590/S0104-7183202000... ,99 Machado MDC. Pentecostais, sexualidade e família no Congresso Nacional. Horiz Antropol. 2017; 23(47):351-80.. Todavia, diante das inúmeras disputas narrativas e por representação política, também se verificam entre os segmentos denominacionais alternâncias de posicionamentos, ora vertendo a posturas mais conservadoras quanto à pauta de costumes, ora adotando posturas mais inclusivas. Não há, portanto, uma homogeneidade entre os intitulados “crentes”.
Com um número cada vez maior de seguidores entre a população brasileira1010 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo demográfico 2010 - população residente por religião. Rio de Janeiro: IBGE; 2010., a pregação cristã evangélica tem assumido novos contornos com a utilização dos meios de comunicação em massa para a propagação da mensagem aos fiéis e demais interessados em receber as ministrações de autoridades espirituais que teriam como carisma serem “porta-vozes” de Deus1111 Patriota KRMP. Mídia e religião: 82 horas de missas, cultos, pregações e exorcismos [Internet]. In: Anais do Intercom; 2005; Recife (PE). Recife: Intercom; 2005 [citado 13 Dez 2022]. Disponível em: http://www.portcom.intercom.org.br/pdfs/79942843255069067417767564528855067018.pdf
http://www.portcom.intercom.org.br/pdfs/... ,1212 Cunha MN. Do púlpito às mídias sociais: evangélicos na política e ativismo digital. Curitiba: Appris; 2019.. Destaca-se, nesse conjunto de preleções, o papel da “família cristã”.
Tal destaque é reforçado à medida que se reverbera o discurso neoliberal sobre a impossibilidade e inoperância do Estado como provedor de bem-estar. A aposta de retomada da família como instância de proteção social é uma tendência conservadora que ganha visibilidade1313 Cronemberger IHGM, Teixeira SM. Familismo na política social brasileira e as mulheres. RFSA (Teresina). 2012; 9(2):205-21.. Em uma perspectiva familista extrema, à família cabe a proteção social (em substituição de muitas políticas públicas) e ao Estado caberia apenas intervir na família quando esta “falha” nessa função.
Cabe lembrar que, após a Constituição de 1988 (que foi um marco no cenário político brasileiro em defesa da constituição do Estado Democrático de Direito), segmentos religiosos que não tinham tanta incidência pública passam a disputar e a ter grande visibilidade na cena político-partidária, como é o caso dos pentecostais88 Almeida R. Evangélicos à direita. Horiz Antropol. 2020; 26(58):419-36. doi: 10.1590/S0104-71832020000300013.
https://doi.org/10.1590/S0104-7183202000... ,1414 Lacerda F. Como o crescimento evangélico se transforma em representação política? Comparando Brasil, Colômbia e Chile. Novos Estud Cebrap. 2022; 41(2):295-313. doi: 10.25091/S01013300202200020006.
https://doi.org/10.25091/S01013300202200... . Tais grupos tomam como forte bandeira a “defesa da vida” e os “direitos da família”1212 Cunha MN. Do púlpito às mídias sociais: evangélicos na política e ativismo digital. Curitiba: Appris; 2019., protagonizando uma “onda conservadora”1515 Almeida R. Bolsonaro presidente: conservadorismo, evangelismo e a crise brasileira. Novos Estud Cebrap. 2019; 38(1):185-213. doi: 10.25091/S01013300201900010010.
https://doi.org/10.25091/S01013300201900... .
Apesar das alianças entre os pentecostais com o governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva em seu primeiro mandato (2003 a 2006), tais grupos colidem com a presença de feministas que ocupavam postos importantes dentro das instituições governamentais e que, na época, influenciavam políticas de saúde e de direitos sexuais e reprodutivos no Brasil. O debate sobre temas considerados polêmicos – como a descriminalização do aborto e adoção de crianças por casais homoafetivos – geraram dissidências por supostamente caminharem na contramão do que defendiam como princípios cristãos99 Machado MDC. Pentecostais, sexualidade e família no Congresso Nacional. Horiz Antropol. 2017; 23(47):351-80..
Nas eleições de 2010, com avanço em pautas relacionadas a gênero e direitos sexuais e reprodutivos, a tensão já existente entre os coletivos religiosos conservadores e o governo se amplifica, o que se deflagra em um “ativismo religioso conservador”1616 Machado MDC. Aborto e ativismo religioso nas eleições de 2010. Rev Bras Cienc Polit. 2012; (7):25-54.. Tais coletivos passam então a acionar a esfera jurídica para imprimir e defender valores morais e religiosos, remodelando as políticas de direitos sexuais e reprodutivos; e políticas de direitos humanos. As eleições de 2018 consagram as agendas conservadoras, anunciando como estratégia uma mudança cultural/ideológica pautada no apelo à “família tradicional”, além da convocação simbólica do “cidadão de bem”, em defesa da “moral e dos bons costumes”1212 Cunha MN. Do púlpito às mídias sociais: evangélicos na política e ativismo digital. Curitiba: Appris; 2019.,1515 Almeida R. Bolsonaro presidente: conservadorismo, evangelismo e a crise brasileira. Novos Estud Cebrap. 2019; 38(1):185-213. doi: 10.25091/S01013300201900010010.
https://doi.org/10.25091/S01013300201900... . Nesse ideário, estaria o direito de as famílias educarem seus filhos de acordo com seus princípios religiosos e a partir de suas experiências pessoais e culturais, sem quaisquer interferências do Estado.
Nosso estudo, portanto, não visa focar essa ou aquela designação denominacional, mas sim debater sobre os posicionamentos e as estratégias discursivas de segmentos evangélicos que vão de encontro a um estatuto que defende o direito de crianças e adolescentes de serem educados sem o uso de castigos físicos e tratamentos cruéis ou degradantes.
Metodologia
Foi realizada uma busca exploratória iniciada no final de 2019 no YouTube com os descritores iniciais “disciplinar filhos” e “lei da palmada”. A partir de sucessivas associações sugeridas pelo próprio algoritmo da plataforma, incluímos outras chaves de busca: “disciplina da vara”; “vara da correção”, “Lei Menino Bernardo”, “disciplina dos filhos e a Bíblia”, totalizando 66 vídeos. Os critérios de seleção dos vídeos foram: terem sido postados a partir do ano de 2014 (ano de promulgação da LMB) até primeiro semestre de 2020 e protagonizados por lideranças religiosas, pastores ou youtubers/pessoas com canais na plataforma YouTube de cariz religiosa. Foram excluídos os vídeos realizados por profissionais que retratavam a educação de crianças a partir de teorias de cunho acadêmico. Cada vídeo foi examinado por dois analistas independentes e o corpus final de análise foi de 43 vídeos. Os vídeos foram baixados por meio do aplicativo Videodownloader e, posteriormente, transcritos na íntegra. A codificação temática interpares foi realizada por meio do software Atlas.ti e descrita no quadro 1.
Fomos guiadas pela Análise Crítica do Discurso (ACD)1717 Fairclough N. Discurso e mudança social. Brasília: Editora UnB; 2001., com destaque para as categorias analíticas de “força” e “intertextualidade”. A ACD trabalha a partir de uma perspectiva tridimensional do discurso, que conduz a análise a partir da dimensão da materialidade do texto, das inferências sobre as práticas discursivas nele contidas e da compreensão crítica de suas filiações ideológicas. Para apoiar a análise, recorremos à proposição de Thompson sobre os modos retóricos de operação da ideologia1818 Thompson JB. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Rio de Janeiro: Vozes; 2009..
A pesquisa foi analisada e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto Fernandes Figueira - Fiocruz. Ainda que tenhamos analisado um acervo público, tivemos o cuidado de não mencionar o nome dos interlocutores, nem de seus canais no YouTube ou o de suas igrejas.
Resultados e discussão
O contexto enunciativo
Os vídeos são protagonizados por lideranças religiosas que se denominam evangélicas e são endereçados a pessoas de mesma filiação religiosa, principalmente pais. “Liderança religiosa” aqui não é definida apenas por um cargo de alta hierarquia eclesiástica, mas também por aqueles que se autodenominam como autoridade no contexto religioso sem uma consagração ou formação de base teológica. Esses líderes, como bem define Machado1919 Machado MD. Pesquisa com líderes religiosos: questões éticas e metodológicas. Estud Sociol. 2013; 18(34):39-56., podem ser “políticos/as com identidade confessional e leigos/as que dirigem grupos religiosos ou fazem a opinião pública em seu interior.” (p. 40). Os locutores dos vídeos cultivam uma imagem de si vinculada à autoridade sobre os modos de ser um “bom evangélico”.
No conjunto dos 46 interlocutores presentes nos vídeos, predominaram os homens (39). Os interlocutores se apresentaram de modo mais frequente como pastores (25), havendo também os político-pastores (2), membros de congregação (4), youtubers com canais de vertente evangélica (5), professores de escola bíblica (5), evangelistas (3) e comunicadores-radialistas (2). O contexto enunciativo variou entre trechos de cultos evangélicos, depoimentos, estudos bíblicos, trechos filmados de programa de rádio e interlocução de perguntas-respostas com os seguidores do canal. Observa-se nos vídeos enorme variação entre o número de visualizações (de 20 a 1.938.344), envolvendo, portanto, distintas esferas e alcances de influência.
A variedade de denominações evangélicas encontradas em nossa amostra revelou que, em várias delas, há protagonistas de discursos pró-disciplinamento corporal de crianças. Porém, uma vez que não trabalhamos com uma amostra estatística, não poderíamos aferir quais segmentos são mais representativos na defesa desses argumentos e, além disso, esse não foi nosso objetivo investigativo. Assim, optamos por não identificar a origem denominacional de cada vídeo, nomeando o grupo como representantes de “vertentes conservadoras”, reconhecendo que essas perspectivas podem estar presentes nos vários segmentos.
A audiência dos vídeos é interpelada por meio do uso da primeira pessoa no plural e nomeada como “mães ou pais cristãos”, como exemplo o seguinte trecho: “nós, que somos pais, temos o dever de corrigir os nossos filhos em amor” (vídeo 35). Os locutores falam sobre suas experiências pessoais, lançando mão do recurso ideológico de unificação1818 Thompson JB. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Rio de Janeiro: Vozes; 2009. e evocando a noção de grupo e o pertencimento comum à “família de Deus”.
“Família de Deus” versus “Governo do Demônio”
Em um grupo significativo de discursos, o Estado e as famílias evangélicas são colocados como antagonistas e o tema da disciplina infantil com o uso de castigos físicos torna-se um campo de disputa. A “família de Deus”, na perspectiva dos vídeos analisados, é reduzida à união heteronormativa entre um homem e uma mulher com seus filhos. A proteção dessa configuração familiar é, inclusive, bandeira de muitos candidatos evangélicos, designando-a de “família tradicional”, considerada como a base para uma educação de acordo com a orientação bíblica e defendida como uma forma de garantir a “correta” formação moral para as crianças2020 Mezzomo FA, Silva LA, Pátaro CSO. Pela “família tradicional”: campanha de candidatos evangélicos para a ALEP nas eleições de 2018. Rev Bras Hist Religioes. 2021; 13(39):13-41..
Mesmo considerando posturas conservadoras na pauta de segmentos católicos2121 Santos RM. O debate sobre a “Lei da Palmada” na Câmara dos Deputados. Rev Bras Cienc Polit. 2021; (36):1-34. e que os evangélicos abrigam grupos muito diversos, algumas denominações assumiram, a partir da virada do século XXI, uma configuração identitária conservadora e fundamentalista1212 Cunha MN. Do púlpito às mídias sociais: evangélicos na política e ativismo digital. Curitiba: Appris; 2019.,2020 Mezzomo FA, Silva LA, Pátaro CSO. Pela “família tradicional”: campanha de candidatos evangélicos para a ALEP nas eleições de 2018. Rev Bras Hist Religioes. 2021; 13(39):13-41.. Nesse contexto, vemos a difusão de uma narrativa teológica bélica na qual Deus é representado pela metáfora de um guerreiro e uma racionalidade defensiva que se baseia em uma ideia de perseguição e ameaça iminente.
A identificação de “inimigos” da fé e moral cristã é recorrente no imaginário evangélico brasileiro. A Igreja Católica; as religiões afro-brasileiras; o comunismo; e, mais recentemente, os movimentos feministas e LGBTQIAPN+ são identificados como opositores1212 Cunha MN. Do púlpito às mídias sociais: evangélicos na política e ativismo digital. Curitiba: Appris; 2019.,2222 Sung JM. Prosperidade sim, família homossexual, não! A nova classe média evangélica. Psicol USP. 2015; 26(1):43-51.. No acervo analisado, o Estado encarna o papel desse inimigo sendo tratado como uma alteridade vaga e, na maioria das vezes, referida por designativos como “eles”, “os políticos” e “o governo”.
O Estado não é reconhecido como uma instituição política constituída por pessoas e grupos que representam os mais diversos modos de pensar, intenções e agendas para a sociedade. Ao “governo” são atribuídos sentimentos e comportamentos personalizados (exemplificados em ideias como “o governo quer/deseja algo”), deixando de lado as disputas que constroem cada ação governamental e atribuindo-lhes uma intenção homogênea. Vale observar que a ideia de um Estado monolítico, cujos objetivos são contra os valores cristãos, é paradoxal à existência de uma bancada evangélica brasileira que vem se tornando cada vez mais relevante desde a Constituinte, incluindo aqui a fundação, em 2003, da Frente Parlamentar Evangélica (FPE)1212 Cunha MN. Do púlpito às mídias sociais: evangélicos na política e ativismo digital. Curitiba: Appris; 2019.,2323 Trevisan J. A frente parlamentar evangélica: força política no Estado laico brasileiro. Numen Rev Estud Pesqui Relig. 2013; 16(1):581-609..
A LMB foi apontada como um instrumento de um governo denominado como “comunista”, como vemos na seguinte fala: “Agora com essa lei se conseguirá vários objetivos do Partido Comunista” (Vídeo 15). A fala reafirma o histórico apoio aos governos militares e o endosso a uma “direita cristã”2424 Lacerda M. Contra o comunismo demoníaco: o apoio evangélico ao regime militar brasileiro e seu paralelo com o endosso da direita cristã ao governo Bolsonaro. Relig Soc. 2022; 42(1):153-76.. Porém, aqui não se trava um debate das possíveis correntes políticas, pois o comunismo é mencionado como figura retórica que encarna o “inimigo” comum, imiscuído da figura demoníaca.
A demonização das esquerdas não é algo recente2424 Lacerda M. Contra o comunismo demoníaco: o apoio evangélico ao regime militar brasileiro e seu paralelo com o endosso da direita cristã ao governo Bolsonaro. Relig Soc. 2022; 42(1):153-76.. Segundo Trevisan2323 Trevisan J. A frente parlamentar evangélica: força política no Estado laico brasileiro. Numen Rev Estud Pesqui Relig. 2013; 16(1):581-609., desde 1989, observamos a construção de um antagonismo entre os partidos de esquerda e os interesses dos evangélicos. Na primeira eleição após a Constituição de 1989, foram disseminados boatos de que o então presidenciável Luiz Inácio Lula da Silva iria perseguir as igrejas evangélicas em prol dos interesses católicos e “comunistas”. Tal polarização se intensificou ao ponto de, em 1998, a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) orientar “seus fiéis a não votar em candidatos do demônio” (p. 31).
Nos vídeos, observam-se narrativas nas quais o Estado tem desejos próprios e objetivos claros de ação contrários às leis divinas: “Eles pregam contra a família, aliás, eles pregam muito contra a igreja. Investem muito contra a igreja porque a igreja, ela vê a família como aquela instituição divina” (Vídeo 23). As ações do Estado contra a “família de Deus” são construídas por meio do uso de recursos textuais que acionam verbos com sentido de cerceamento de liberdade (“tirar”, “proibir”) e de intromissão, como em “entrar dentro da minha casa e dizer o que eu tenho que fazer com o meu filho…” (Vídeo 18); “O Estado, ele invade área privada” (Vídeo 35).
Afirma-se que o “governo” não tem legitimidade para dizer o que o “cidadão” tem que “fazer” ou “pensar”. Argumenta-se que o Estado não cumpre com seus deveres básicos e, portanto, não deve interferir na vida privada das famílias. O discurso assume a ação social de desqualificação do Estado e dos agentes políticos, sendo utilizado um vocabulário que toma a força discursiva de acusação: “nenhum político nesse Brasil tem moral nenhuma para falar como que as pessoas devem agir na sua vida.” (Vídeo 16).
Machado2525 Machado MD. Religião e política no Brasil contemporâneo: uma análise dos pentecostais e carismáticos católicos. Relig Soc. 2015; 35(2):45-72., ao entrevistar lideranças pentecostais e carismáticas católicas, observou um discurso semelhante: “Na avaliação dos entrevistados, a história política do país é marcada pela corrupção, pela falta de transparência e pelo pequeno compromisso com a gestão do bem público.” (p. 49-50). A acusação de “corrupção” contra as instituições do Estado, encarnado no “político sem moral”, mais uma vez reflete um posicionamento paradoxal, que ignora a expressiva presença dos segmentos evangélicos no Estado e as recorrentes denúncias de corrupção que a própria FPE vem enfrentando desde sua fundação2323 Trevisan J. A frente parlamentar evangélica: força política no Estado laico brasileiro. Numen Rev Estud Pesqui Relig. 2013; 16(1):581-609..
Foi recorrente o uso da estratégia discursiva da diferenciação1818 Thompson JB. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Rio de Janeiro: Vozes; 2009.. Como Sung2222 Sung JM. Prosperidade sim, família homossexual, não! A nova classe média evangélica. Psicol USP. 2015; 26(1):43-51. aponta, a construção da identidade dos evangélicos está profundamente marcada pelo processo de diferenciação com o “mundo”, principalmente no campo da família e da moral sexual. Manter a “obediência” a Deus seria se afastar do “mundo” e combater “aqueles que não seguem a Palavra de Deus na sua autossuficiência de secularizados” (p. 48), tais como os casais homoafetivos ou qualquer segmento considerado “desviante”.
Tal discurso pavimenta a associação do Estado a uma entidade demoníaca, reforçada pelo uso dos seguintes designativos: “diabo”, “demônio”, “satanás” e “maligno”. Assim, é criada uma oposição: a “família de Deus” versus o “governo do Demônio”; “nós” (obedientes a Deus, defensores da fé verdadeira) versus “eles” (políticos corruptos, comunistas, os “sem moral”). Nessa direção, as ações estatais, para proibir castigos físicos na educação de crianças, são entendidas como uma atuação “totalmente abusiva” (Vídeo 12) de um Estado maligno.
A Lei Menino Bernardo: entre o pânico moral e a desobediência ao Estado
Como base para a crítica à LMB, vemos o uso da intertextualidade manifesta quando alguns vídeos citam a experiência da legislação da Suécia, que proíbe os castigos físicos em crianças. O país nórdico foi, em 1979, o pioneiro nesse tipo de lei. Alguns vídeos constroem uma narrativa sem qualquer fundamento fatual de que, desde então, a sociedade sueca estaria vivendo um caos social, com crescimento da delinquência juvenil, uso de drogas e divórcios, pois a lei teria causado uma incontestável perda da autoridade parental, transmitindo uma ideia claramente reducionista e falsa da vida social e cultura sueca.
Maranhão Filho, Coelho e Dias2626 Maranhão Filho EMA, Coelho FMF, Dias TB. “Fake news acima de tudo, fake news acima de todos”: Bolsonaro e o “kit gay”, “ideologia de gênero” e fim da “família tradicional”. Correlatio. 2018; 17(2):65-90. apontam que as notícias falsas têm sido amplamente utilizadas para, de um lado combater o avanço dos direitos sexuais e reprodutivos e, do outro, defender “a família tradicional” e a moralidade cristã. As fake news sobre o Programa Escola Sem Homofobia e o Plano Nacional de Educação, por exemplo, deram-se a partir da construção de um inimigo do qual deve-se proteger as crianças, que também precisam ser protegidas, nessa visão, contra a sexualização e erotização precoce.
Machado2525 Machado MD. Religião e política no Brasil contemporâneo: uma análise dos pentecostais e carismáticos católicos. Relig Soc. 2015; 35(2):45-72. aponta que o discurso de algumas lideranças neopentecostais assume que a participação política dos evangélicos é uma resposta ao “avanço do relativismo e do secularismo” (p. 42). Nos vídeos, busca-se alertar aos pais cristãos que, a partir da promulgação da LMB, será instaurado a “libertinagem” e a ruptura da hierarquia:
Essa lei da palmada, ela tem o argumento de proteger a criança, mas é, na verdade, isso é mais uma investida de Satanás para trazer uma deturpação na família, dando liberdade aos filhos, para viver a libertinagem! [...] hoje, Satanás tem usado os governos para criar leis que fazem as pessoas pecarem contra Deus.
(Vídeo 8)
Não causa surpresa que a estrutura simbólica do pânico moral apareça na maioria dos vídeos, colocando a questão dos castigos físicos em foco. Como elucida Miskolci2727 Miskolci R. Pânicos morais e controle social: reflexões sobre o casamento gay. Cad Pagu. 2007; 28:101-28. com base na discussão feita por Erich Goode e Nachman Ben-Yehuda, o pânico moral está atrelado à ideia de combate a instituições ou estilos de vida por meio do fortalecimento do aparato de controle social. Assim, é feita uma crítica às leis existentes, que são lidas como incapazes de controlar o mal que se alastra, havendo, assim, uma condenação pública e maior hostilidade.
Lowenkron2828 Lowenkron L. O monstro contemporâneo: notas sobre a construção da pedofilia como “causa política” e “caso de polícia”. Cad Pagu. 2013; (41):303-37. analisou, em sua pesquisa sobre a Comissão Parlamentar de Inquérito da Pedofilia, o uso político do pânico moral no modo de gestão das infâncias. Aponta que há tantos discursos de acusação quanto de sensibilização, manejando a retórica do embate entre os culpados (“eles”, “inimigos”, “pedófilos”) e benfeitores (“nós”, “os homens de bem”, “guardiões da infância”). Diante da construção da “causa” política, torna-se necessário indignar-se perante o problema apresentado, tomando um lado e atacando o inimigo. Em nossa pesquisa, essa causa foi construída como a impossibilidade de educar o filho tal como os desígnios divinos definem. Assim, há uma expectativa depositada nos pais de mesma filiação religiosa de que lutem contra tal causa.
A LMB também é atacada em sua legitimidade pelo estratagema da desmoralização das celebridades que atuaram para sua aprovação, como no vídeo 14, no qual um pastor fala sobre o apoio dado pela apresentadora de TV Xuxa Meneghel: “(...) que moral tem uma pessoa que vai no Congresso pedir a tal da ‘lei da palmada’, para aprovar lei da palmada, uma pessoa que fez um filme pornográfico?!”.
Em suma, nos discursos analisados, a LMB encarna a intenção de deturpar a moralidade cristã. Nessa linha argumentativa, o governo utilizaria a “proibição de castigos físicos” como uma estratégia de dominação para enfraquecimento da “família de bem”. O argumento é o de que o Estado busca destruir a relação moral familiar, impondo uma relação jurídica. Vale destacar que, quando a lei foi aprovada, boa parte dos deputados federais de vinculação religiosa conservadora (evangélicos e católicos) invocaram os mesmos argumentos1616 Machado MDC. Aborto e ativismo religioso nas eleições de 2010. Rev Bras Cienc Polit. 2012; (7):25-54..
O discurso aponta a oposição entre a lei em questão e a liberdade de educação parental, como no vídeo 12: “Para mim essa lei veio simplesmente para complicar a vida do homem de bem, ela veio também tirar do cidadão o direito de educar seu filho”. Nessa direção, também observamos o uso de adjetivos e designações enunciativas ligadas ao cerceamento da liberdade e da democracia pela ordem política. A LMB é vinculada ao fascismo, como no vídeo 12, em que se fala “uma Lei, que na realidade é uma forma de fascismo”.
Há claramente um tensionamento sobre o que é democracia em relação à fé. Os interlocutores são convocados a escolher entre seguir as leis de Deus ou as “leis do homem”: “Isso daqui é a lei humana, isso daqui [apontando para Bíblia] é a lei de Deus, né?! Então, olhe para a lei de Deus e veja se você quer seguir a lei humana ou a lei de Deus” (Vídeo 24). Os vídeos trazem a força discursiva de incitação à desobediência ao Estado, evocando expressões de revolta e de testemunho de fé, como no vídeo 8: “Essa abominação que vai ser julgada por Deus. Você não pode aceitar isso! Reprove!”. Há, portanto, a construção discursiva do que é democracia para esse grupo, que passa a significar: agir conforme a sua própria interpretação da Bíblia, independentemente das leis instituídas.
Aqui, vemos um exemplar confronto entre o que Foucault2929 Foucault M. Segurança, território, população: curso dado no College de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes; 2008. denominara de “poder pastoral” e a “Razão do Estado”. A primeira expressão, historicamente precedente à própria existência do Estado Moderno, é voltada ao governo das almas, ancorada na gestão individual das condutas e sustentada pelo princípio da obediência incondicional, cuja adesão permitiria o acesso à salvação e à verdade. A segunda, base da governamentalidade, é voltada ao governo dos seres humanos e sustenta-se por regras que visam manter a paz da República (e, por conseguinte, a manutenção do próprio Estado). Essa arte de governar, que se dirige ao controle das populações, com o seu conjunto de aparatos disciplinares, concorrerá com o poder pastoral, que por sua vez, imbui-se da representação do Estado (pastores políticos) para combatê-lo por dentro, ou seja, a partir de suas estruturas internas, confrontando e destituindo sua autoridade, como no seguinte trecho:
[...] no momento em que o Estado passa uma lei que vai além da competência dele e que vai contra a lei de Deus, eu... eu não me sinto obrigado a obedecer a essa lei.
(Vídeo 33)
Palmadinha, vara da correção e espancamento: variações semânticas sobre os castigos físicos
A Bíblia Sagrada é, segundo os vídeos, a referência máxima para a orientação, aconselhamento e doutrinação dos pais; e dela emana a autoridade dos discursos analisados. Identificamos que o recurso de intertextualidade explícita, seja de maneira genérica invocando a Bíblia, seja com citações literais de seus capítulos e passagens, aumenta o capital simbólico de quem as cita, como no seguinte trecho: “Provérbios 19 e 18 dizem assim: ‘castiga a teu filho enquanto há esperança’” (Vídeo 8).
A argumentação central é a de que a “disciplina da vara” constitui o modelo disciplinar para que os filhos não envergonhem os pais ou sejam desvirtuados para práticas criminosas ou insensatas, moldando o caráter desses sujeitos em desenvolvimento. A “vara da correção”, se usada desde cedo, evitaria um ciclo no qual vícios e más condutas poderiam comprometer a própria salvação da alma desse filho. Os castigos físicos aqui são tomados como uma forma de disciplina, como visto por Foucault44 Foucault M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal; 1984., dispostas como estratégias de manutenção e expansão de poder nas teias cotidianas e institucionais de relações. A punição corporal estaria a serviço do formar pessoas para a “Família de Deus”, ou seja, obedientes à fé. Com efeito, há uma forma de ser criança que somente é permitida nesse enquadramento se baseada na interpretação bíblica desses adultos.
O poder disciplinar referenda a autoridade instituída por Deus aos pais. Em uma hierarquia generificada e patriarcal, o pai ocupa um lugar destacado, sendo descrito como o “sacerdote do lar” ou o “cabeça da família”, aquele que ditaria as regras para os demais membros do grupo familiar, incluindo a mulher. Nessa perspectiva, esse pai acolhe uma espécie de analogia à figura de Jesus Cristo como sumo sacerdote (o “cabeça da Igreja”). Tal representação é acionada recorrentemente pelos autores das falas, baseadas em determinadas citações bíblicas, como aquela que afirma que “Deus corrige o filho que ama”. Se Deus “corrige” o filho que ama, logo, o “verdadeiro cristão” deve, por obediência aos preceitos divinos e por amor, também corrigir seus filhos: “Uma responsabilidade dos pais, pois os pais devem obedecer a palavra de Deus, se assim decidem seguir e servir ao Senhor” (Vídeo 2). Pode-se perceber que obediência é uma das categorias centrais dos discursos analisados.
A “vara” assume o sentido figurado de instrumento de condução do rebanho para que ele não desvie do caminho determinado pelo seu pastor e, mais frequentemente, o sentido literal do instrumento do castigo físico. O uso da vara para a “correção” ou “disciplina” teria uma racionalidade e um modo de uso considerado virtuoso. Uma das lideranças afirma, por exemplo, que a prática do castigo seria necessária apenas na correção de pecados, entre eles, o da desobediência e rebeldia. No vídeo 4, por exemplo, temos a seguinte fala: “Disciplina bíblica não é punir a inabilidade da criança (...). Ela tem o objetivo de corrigir pecado, de desobediência, de rebeldia e outros tipos de pecado do coração dos nossos filhos”.
Em um primeiro momento, observamos o uso de eufemismos, diminutivos e antagonismos semânticos para distinguir o castigo violento da “palmadinha e a disciplina”: “(...) uma palmadinha... ninguém tá dizendo aqui que é pra matar não... é a lapadinha que adverte ela no corpo, de que ela está errada” (Vídeo 8).
Os locutores apresentam uma série de recomendações na gestão prática dos castigos físicos, de modo a diferenciá-los da categoria de violência. Recomenda-se, por exemplo, não bater na frente dos amigos, pois isso é considerado sinônimo de humilhação, mas não deixar de bater, pois os pais que não o fazem serão cobrados em tempo futuro por Deus. Recomenda-se também não bater demasiado ou tomado pela raiva, o que poderia levar a uma ação violenta e desmedida. Haveria, ainda, o entendimento de que a disciplina por meio da vara tem uma função espiritual de purificação da má conduta dos filhos, e não de alívio da raiva dos pais. Portanto, tratando-se do uso de castigos físicos, o controle entre as supostas fronteiras entre “corrigir” e “agredir” seria regido por um princípio aparentemente autoevidente do “bom senso”. Depurado da raiva, o castigo físico é anunciado como um “ato de amor” e cuidado. A aplicação do castigo não estaria voltada para a violação do corpo, mas sim seria capaz de “tocar a alma”, como retratara Foucault55 Foucault M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes; 1987..
[...] eu acredito que a lei veio, e veio também a chamada lei da palmada. Ela veio para frear a violência doméstica de pais em cima dos seus filhos. Eu acredito nisso, e louvo a Deus por isto. Mas nós não podemos, justamente, por essa lei, impedir de fazer o que a Bíblia diz, de uma forma velada, de uma forma calma. Dentro do seu raciocínio normal, não com a ira, né?! Não com aquela raiva explodindo. Deixa a ira passar, deixa tudo, depois você lá, vai lá e conversa numa boa, explica porque que ele vai apanhar justamente para ele aprender que aquilo não pode ser feito de forma errada.
(Vídeo 23)
Mais uma vez, percebe-se, por meio da fala presente no vídeo 19 – “Aprenda que usar a varinha da disciplina, a varinha do amor é de Deus, não retires a disciplina da criança” –, o recurso de eufemização ao atenuar a palavra “vara”, conferindo-lhe positividade em seu diminutivo ao colocar a palavra “amor” em seguida.
De acordo com os discursos identificados, a despeito de todas as críticas externas feitas a tais práticas disciplinares, somente os crentes saberiam educar seus filhos. Há uma blindagem ao exercício crítico e, mais uma vez, o recurso ideológico da evocação do inimigo poderoso é acionado: “É claro que o mundo não entende isso, porque o mundo é avesso ao Evangelho, o mundo vai na contramão de tudo aquilo que a palavra de Deus fala” (Vídeo 22).
Conclusão
A “pedagogia da vara” constitui, para parte dos grupos evangélicos – que representam mais de 42 milhões de brasileiros –, um desígnio bíblico que deve ser obedecido e um “ato de amor”. Por recursos de contraste e oposição semânticas, tal grupo difere a prática da violência, da raiva e dos maus-tratos. O comedimento e bom uso dos castigos físicos estariam centrados no “bom senso”, que supostamente todos teriam de forma inata.
A defesa de uma “educação pela vara”, na qual os castigos físicos podem e devem ser aplicados, dá-se em um campo de disputas políticas entre o ethos evangélico conservador e o Estado laico com suas leis e “mundanidade”, entre as ordens de poder da razão do Estado e do poder pastoral. Ao enunciar a supremacia das leis de Deus diante da legislação brasileira, ao convocar a desobediência civil e invocar uma democracia que se curve aos seus próprios preceitos e convicções, esse segmento mostra a força político-discursiva de suas lideranças. Trata-se de defender um modo, igualmente normativo, de família, moralidade e educação dos filhos, que representa aquilo que esse grupo considera como ordenança divina. O uso de recursos ideológicos de pertencimento a uma comunidade de valores cristãos, que se vê sob constante “ataque de inimigos”, é a tônica dessa prática discursiva de orientação e aconselhamento da audiência. Portanto, discursos que trazem outras perspectivas educacionais poderão ser vistos como artefatos de dissuasão do que representaria o “caminho correto”.
Entendemos que discursos como esses reforçam e naturalizam atos de violência considerados como disciplinadores e até mesmo necessários para uma boa educação. Tais lógicas precisam ser mais bem compreendidas para podermos trabalhar a prevenção das violências contra crianças e adolescentes nesses segmentos de forma culturalmente adequada. Fazer parcerias com as muitas lideranças evangélicas progressistas, que estejam aliadas ao reconhecimento de direitos de crianças e adolescentes e a uma educação sem violências, apresenta-se como uma estratégia necessária para dar credibilidade às mensagens e alcançar essa comunidade de fé.
Agradecimentos
Ao dr. Nelson de Souza Motta Marriel, pela leitura atenta e sugestões ao texto.
- Deslandes SF, Freitas BMS, Ferreira TRSC. “A vara da disciplina”: discursos de religiosos em defesa de castigos físicos para a educação de crianças e adolescentes. Interface (Botucatu). 2023; 27: e220587 https://doi.org/10.1590/interface.220587
Financiamento
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (processo n. 409048/2018-6).
Referências
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
23 Out 2023 - Data do Fascículo
2023
Histórico
- Recebido
24 Dez 2022 - Aceito
19 Jul 2023