O artigo “Grupo de homens” tem como dispositivo a promoção de saúde: experiências singulares em práticas de cuidado que nos convidam a refletir sobre as dinâmicas interativas de um grupo de homens (GH) de uma Unidade Básica de Saúde (UBS) como estratégia importante para promover a saúde. Mediante duas categorias temáticas (espaço de comunicação e desenvolvimento de vínculos), o artigo apresenta aos leitores alguns relatos dos participantes em torno de temas mobilizados ao longo dos encontros, como também a importância do vínculo para a manutenção do próprio grupo como um “lugar” de pertencimento, cuidado e afeto. Por sua vez, os relatos mostram também alguns desafios e algumas barreiras para o acesso aos serviços de saúde, mais especificamente entre homens. É por meio da categoria “homens” que gostaria de trazer algumas reflexões e ponderações ao debate.
Conforme consta no artigo, a maioria dos frequentadores do grupo não havia concluído o Ensino Fundamental, tinha entre 40 e 80 anos e pertencia a famílias humildes, com uma característica comum a todos eles: o consumo frequente e contínuo de bebidas alcoólicas e outras substâncias psicoativas. Entre eles, havia também aposentados, desempregados e trabalhadores do mercado informal. Destaco, assim, esses dados para colocar em pauta alguns aspectos que julgo importantes para pensar o cuidado à saúde entre homens. E nessa direção, trago ao debate a discussão sobre as múltiplas masculinidades (e do próprio cuidado) para o desenvolvimento de estratégias de promoção da saúde, como os grupos em foco no artigo. A pergunta que faço, portanto, é: Sobre quais homens estamos falando (homens cis, trans, negros, brancos, pobres, heteros, gays, jovens, idosos etc.)? Ou seja, quem são aqueles que procuram, mobilizam ou coproduzem os grupos e as práticas de cuidado?
Essas questões, para mim, são cruciais para dialogar com atores diversos que participam do cotidiano dos serviços de saúde, ou mesmo os que ainda têm dificuldade em acessá-los e com eles estabelecer vínculos. Apesar de toda a discussão sobre as dificuldades de acesso de homens a esses serviços, com o agravamento de seus problemas de saúde ao evitarem demonstrações de fragilidade ou fraqueza11. Gomes R, Nascimento EF, Araújo FC. Por que os homens buscam menos os serviços de saúde do que as mulheres? As explicações de homens com baixa escolaridade e homens com ensino superior. Cad Saude Publica. 2007; 23(3):565-74.
2. Schraiber LB, Figueiredo WS, Gomes R, Couto MT, Pinheiro TF, Machin R, et al. Necessidades de saúde e masculinidades: atenção primária no cuidado aos homens. Cad Saude Publica. 2010; 26(5):961-70.-33. Separavich MA, Canesqui AM. Masculinidades e cuidados de saúde nos processos de envelhecimento e saúde-doença entre homens trabalhadores de Campinas/SP, Brasil. Saude Soc. 2020; 29(2):e180223. e, portanto, em contraposição a uma característica tida como feminina, é importante enfatizar que “a masculinidade” não é homogênea ou fixa. Se podemos, ainda, falar de uma masculinidade hegemônica44. Connel RW. La organización social de la masculinidad. In: Valdés T, Olavarría J, editores. Masculinidad/es: poder y crisis. Santiago: Isis Internacional, Ediciones de las mujeres; 1997. p. 31-48., que se constrói na rejeição ao feminino55. Welzer-Lang D. A construção do masculino: dominação das mulheres e homofobia. Estud Fem. 2001; 9(2):460-82., devemos também nos ater a outras formas de masculinidade que se produzem de forma interativa e, portanto, colocam em xeque a própria noção de masculinidade hegemônica fixa e essencialista66. Connel RW, Messerschmidt JW. Hegemonic masculinity: rethinking the concept. Gend Soc. 2005; 19(6):829-59..
Ora, o que se propõe aqui não é apenas fazer uma crítica à dicotomia de gênero (masculino-feminino), com suas exclusões ou oposições clássicas, mas é também problematizar a estabilidade mesma desses contrários e, no caso específico do artigo em tela, da própria noção de masculinidade. É fundamental, portanto, que possamos reconhecer a existência de “múltiplos posicionamentos” no interior de uma mesma categoria77. Magno L, Silva LAV. Reflexões sobre o conceito de gênero, masculinidades e teoria queer: (r)existências que se fazem possíveis. In: Santos AM, Carmo EM, Magno L, Prado NMBL, organizadores. População LGBT+: demandas e necessidades para a produção do cuidado. Salvador: Edufba; 2021. p. 77-97.. É o caso, por exemplo, de quando nos referimos a homens gays e outros homens que fazem sexo com homens (HSH), na medida em que aqui está implicada a interseção de distintos signos, repertórios e marcadores sociais, como classe, idade, raça/etnia, imagens corporais etc.
Acho importante destacar esses aspectos, inclusive para pensar nos desafios e limites desses grupos e nas interações que podem se formar ou ocorrer nos serviços de saúde. Se esses “posicionamentos identitários”, em algum momento, podem produzir aproximações, também podem implicar exclusões e tensionamentos. Quem se “aproxima” dessas práticas ou quem fica de “fora” não o faz apenas por uma questão de interesse ou “boa” vontade com o grupo ou a prática, mas também como resultado desses “lugares” de pertencimento, ainda que possam ser instáveis e negociáveis. Vale a pena lembrar as dificuldades e barreiras vividas por homens trans para o reconhecimento de suas necessidades e demandas de saúde88. Sousa D, Iriart J. “Viver dignamente”: necessidades e demandas de saúde de homens trans em Salvador, Bahia, Brasil. Cad Saude Publica. 2018; 34(10):e00036318.. As masculinidades, portanto, não estão isoladas, são posições sempre disputadas e em constante interação77. Magno L, Silva LAV. Reflexões sobre o conceito de gênero, masculinidades e teoria queer: (r)existências que se fazem possíveis. In: Santos AM, Carmo EM, Magno L, Prado NMBL, organizadores. População LGBT+: demandas e necessidades para a produção do cuidado. Salvador: Edufba; 2021. p. 77-97..
Conforme também Wheterell e Edley99. Wetherell M, Edley N. Negotiating hegemonic masculinity: imaginary positions and psycho-discursive practices. Fem Psychol. 1999; 9(3):335-56. problematizam o imaginário da masculinidade hegemônica44. Connel RW. La organización social de la masculinidad. In: Valdés T, Olavarría J, editores. Masculinidad/es: poder y crisis. Santiago: Isis Internacional, Ediciones de las mujeres; 1997. p. 31-48. – homens de classe média, brancos e heterossexuais –, há distintas masculinidades em contextos e situações discursivas diversas. Dessa forma, quando o feminino e o masculino são simplesmente colocados em polos opostos, pode-se incorrer no erro de pensar essas polaridades como separadas, fixas e rígidas, “naturalizando” e “homogeneizando” tanto as categorias em jogo quanto a própria dualidade.
Será importante, portanto, adotarmos uma perspectiva relacional de gênero, considerando o aspecto fluido e situado dessas relações77. Magno L, Silva LAV. Reflexões sobre o conceito de gênero, masculinidades e teoria queer: (r)existências que se fazem possíveis. In: Santos AM, Carmo EM, Magno L, Prado NMBL, organizadores. População LGBT+: demandas e necessidades para a produção do cuidado. Salvador: Edufba; 2021. p. 77-97.. Em outras palavras, em vez de pensarmos “a masculinidade” como algo universal, predeterminado ou preexistente, podemos compreendê-la como “efeitos” produzidos por relações e processos sociotécnicos, e isso inclui as biotecnologias na coprodução de corpos/identidades1010. Haraway D. Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: Silva TT, organizador. Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica; 2000. p. 37-129.. Certamente, sem esquecermos a discussão sobre a performatividade de gênero – o gênero não seria um substantivo, uma essência intacta, mas efeito de práticas e discursos, uma “performance repetida”1111. Butler J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2003. (p. 200) –, podemos situar as masculinidades como processos relacionais que produzem homens1212. Waling A. Rethinking masculinity studies: feminism, masculinity, and poststructural accounts of agency and emotional reflexivity. J Mens Stud. 2019; 27(1):89-107.; processos esses que implicam desestabilizações e transformações.
Desse ponto de vista, tanto as masculinidades como o próprio cuidado se produzem dinamicamente no decorrer das práticas e, por conseguinte, de múltiplas formas. Gostaria de tecer, aqui, alguns comentários mais sobre a noção de cuidado a que estou me referindo, buscando também contribuir com o debate; um processo imaginativo para pensar esses grupos e práticas de cuidado em outros cenários. De maneira muito sintética, faço menção ao trabalho da etnógrafa e filósofa Annemarie Mol sobre o cuidado. Conforme ela descreve1313. Mol A. The logic of care: health and the problem of patient choice. London: Routledge; 2008., para além da disponibilidade de produtos e escolhas, o cuidado é um processo coletivo (de humanos e não humanos), situado sem fronteiras claras, ou seja, “não é uma transação em que alguma coisa é trocada (um produto contra um preço), mas uma interação em que as ações vão para a frente e para trás (em um processo contínuo)”1313. Mol A. The logic of care: health and the problem of patient choice. London: Routledge; 2008. (p. 21).
No caso de uma doença crônica como a diabetes, a autora busca também enfatizar a “imprevisibilidade” dos corpos (e do mundo). E é de acordo com essa imprevisibilidade que o cuidado não pode ser pensado como um produto bem delineado, mas como um processo semiaberto, ou seja, em que há tentativas, ajustes e novas tentativas. Como destaca ainda a autora (p. 95), não podemos controlar o mundo. Diante dos aspectos “selvagens” da vida, independentemente dos sucessos ou falhas (contingenciais), precisamos “seguir adiante”, inclusive com aquilo que não podemos domar. Precisamos ser tenazes, persistentes e adaptáveis. Ora, com o objetivo de “melhorar” a vida, o que consideramos por (bom) cuidado ou (bem) viver também não é algo dado ou estável; o que pode ser “bom” ou “autoevidente” em uma situação pode não ser em outra1313. Mol A. The logic of care: health and the problem of patient choice. London: Routledge; 2008.,1414. Mol A. The body multiple: ontology in medical practice. Durhan: Duke University Press; 2002.. O cuidado também é uma prática situada.
E finalmente, cabe ainda pensar sobre quais demandas/necessidades de cuidado e quais “respostas” são dadas aos atores, de modo também situado. No caso específico do grupo de homens em destaque, e pensando aqui em outros cenários, gostaria de enfatizar que a própria “multiplicidade” de homens implicará também múltiplas práticas de cuidado; um processo de produção criativo e dialógico, mas também contínuo e coletivo. Conforme já bem destacado nas experiências trazidas no artigo, isso pressupõe superar os processos de medicalização e situar os sujeitos para além das doenças ou patologias.
Referências
- 1Gomes R, Nascimento EF, Araújo FC. Por que os homens buscam menos os serviços de saúde do que as mulheres? As explicações de homens com baixa escolaridade e homens com ensino superior. Cad Saude Publica. 2007; 23(3):565-74.
- 2Schraiber LB, Figueiredo WS, Gomes R, Couto MT, Pinheiro TF, Machin R, et al. Necessidades de saúde e masculinidades: atenção primária no cuidado aos homens. Cad Saude Publica. 2010; 26(5):961-70.
- 3Separavich MA, Canesqui AM. Masculinidades e cuidados de saúde nos processos de envelhecimento e saúde-doença entre homens trabalhadores de Campinas/SP, Brasil. Saude Soc. 2020; 29(2):e180223.
- 4Connel RW. La organización social de la masculinidad. In: Valdés T, Olavarría J, editores. Masculinidad/es: poder y crisis. Santiago: Isis Internacional, Ediciones de las mujeres; 1997. p. 31-48.
- 5Welzer-Lang D. A construção do masculino: dominação das mulheres e homofobia. Estud Fem. 2001; 9(2):460-82.
- 6Connel RW, Messerschmidt JW. Hegemonic masculinity: rethinking the concept. Gend Soc. 2005; 19(6):829-59.
- 7Magno L, Silva LAV. Reflexões sobre o conceito de gênero, masculinidades e teoria queer: (r)existências que se fazem possíveis. In: Santos AM, Carmo EM, Magno L, Prado NMBL, organizadores. População LGBT+: demandas e necessidades para a produção do cuidado. Salvador: Edufba; 2021. p. 77-97.
- 8Sousa D, Iriart J. “Viver dignamente”: necessidades e demandas de saúde de homens trans em Salvador, Bahia, Brasil. Cad Saude Publica. 2018; 34(10):e00036318.
- 9Wetherell M, Edley N. Negotiating hegemonic masculinity: imaginary positions and psycho-discursive practices. Fem Psychol. 1999; 9(3):335-56.
- 10Haraway D. Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: Silva TT, organizador. Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica; 2000. p. 37-129.
- 11Butler J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2003.
- 12Waling A. Rethinking masculinity studies: feminism, masculinity, and poststructural accounts of agency and emotional reflexivity. J Mens Stud. 2019; 27(1):89-107.
- 13Mol A. The logic of care: health and the problem of patient choice. London: Routledge; 2008.
- 14Mol A. The body multiple: ontology in medical practice. Durhan: Duke University Press; 2002.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
26 Jun 2023 - Data do Fascículo
2023
Histórico
- Recebido
09 Jan 2023 - Aceito
02 Mar 2023