“O mundo está ficando tão chato... não se pode mais falar nada!”: um ensaio autoetnográfico sobre os “mimimis” que insistem em incomodar a formação médica

“El mundo se está volviendo tan aburrido... ¡ya no podemos decir nada!”: un ensayo autoetnográfico sobre los “mimimis” que insisten en molestar a la educación médica

Gustavo Antonio Raimondi Sobre o autor

Talvez, em vários momentos de sua vida, você não tenha se questionado sobre sua sexualidade e a forma como ela pode interagir com discursos de dominação e estigmatização, bem como com outras interseccionalidades como raça/etnicidade e gênero. Nossos corpos parecem ter uma ordem biológica predefinida antes da cultura, mas esquecemos que todos os processos são culturalmente construídos. Mas de que ordem estamos falando? Quem elaborou e continua reiterando essa norma? Eu? Você? Sem buscar responder de imediato a essas perguntas, este texto autoetnográfico11. Raimondi GA, Moreira C, Brilhante AV, Barros NF. A autoetnografia performática e a pesquisa qualitativa na Saúde Coletiva: (des)encontros método+lógicos. Cad Saude Publica. 2020; 36(12):e00095320. doi: 10.1590/0102-311X00095320.
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no formato de debate ao artigo intitulado “Estamos preparando os futuros médicos para atendimentos de situações de violência relacionada a gênero e a sexualidades não heterossexuais? Relato de uma ‘experiência’ educacional diagnóstica”22. Cruz BA, Querichelli AFQ, Uback L. Estamos preparando os futuros médicos para atendimentos de situações de violência com enfoque em gênero e em sexualidades não heterossexuais? Relato de uma “experiência” educacional diagnóstica. Interface (Botucatu). 2023; 27:e220630. doi: 10.1590/interface.220630.
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convida você a pensar qual proposta societária estamos dispostos a construir.

2011. Internato, ou Estágio Obrigatório Supervisionado em Regime de Internato do curso de Medicina, na área de Clínica Médica. Estágio de Moléstias Infecciosas (MI). Durante as várias atividades de corrida de leito e discussões de casos clínicos de pacientes internados na enfermaria de MI, fui ensinado a “aprimorar o raciocínio clínico” em relação a casos envolvendo doenças infectoparasitárias. Em mais um dia corriqueiro desse processo, os risos ecoavam da “sala dos médicos”. Ao me aproximar, a “piada” estava relacionada à forma mais rápida de saber se uma pessoa era gay. Obviamente, eu, enquanto um homem cisgênero branco e gay, recuo com medo de ser revelado33. Sedgwick EK. A epistemologia do armário. Cad PAGU. 2007; (28):19-54. doi: 10.1590/S0104-83332007000100003.
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. Entro. A resposta à “piada” ou ao “raciocínio clínico” de um caso da enfermaria estava diretamente, para aqueles (em sua maioria, homens cis, brancos e heterossexuais) que riam, escancarada no resultado de um exame de urina. “Só pode ser gay, porque quem tem bactérias intestinais neste exame é quem faz sexo anal”. “Risos”, novamente. Para mim, mais um alerta44. Raimondi GA, Teixeira FB, Moreira C, Barros NF. Corpos (não) controlados: efeitos dos discursos sobre sexualidades em uma escola médica brasileira. Rev Bras Educ Med. 2019; 43(3):16-26. doi: 10.1590/1981-52712015v43n3RB20180142.
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. Meu medo: sofrer violência e/ou, como um amigo meu depois traduziu, morte social55. Borrillo D. A homofobia. In: Lionço T, Diniz D, organizadoras. Homofobia e Educação: um desafio ao silêncio. Brasília: LetrasLivres, EdUnB; 2009. p. 15-46..

A manifestação da branquitude garante privilégios aos brancos e expõe a sua neutralidade frente a situações de conflito étnico-racial. Ser branco é ser referência universal da normalidade humana66. Malachias R. “Mimimi”? Não! Desigualdades, vulnerabilidades, corpo e comunicação. In: Prata N, Pessoa SC, organizadoras. Desigualdades, gêneros e comunicação. São Paulo: Intercom; 2019. p. 147-59.. (p. 153)

Ao ouvir essa enunciação de um professor nacionalmente conhecido como um “bambambã” da área de Infectologia, a dúvida sobre a sexualidade de uma pessoa deixa de existir a depender do resultado de um exame. A revelação do ser gay é também pejorativa55. Borrillo D. A homofobia. In: Lionço T, Diniz D, organizadoras. Homofobia e Educação: um desafio ao silêncio. Brasília: LetrasLivres, EdUnB; 2009. p. 15-46.. Como você aprendeu sobre sexo, sexualidade e gênero?

Para muitos homens brancos e cisgêneros, sexo se ensina e se aprende, em sua maioria, no “puteiro”. É o “ritual de iniciação” de muitos homens. Para meus primos mais velhos, sexo se ensina e se aprende, em sua maioria, em materiais pornográficos. Como um objeto, reitera-se a perspectiva hegemônica do machismo sob a mulher por meio desse “ensino de sexualidade”77. Butler J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 11a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2016.,88. Preciado PB. Testo Junkie: sexo, drogas e biopolítica na era formacopornográfica. Ribeiro MPG, tradutora. São Paulo: N-1 Edições; 2018..

E qual a relação disso tudo com o que vivenciei em minha formação médica? A reiteração do desvio da “norma”99. Foucault M. História da sexualidade I: a vontade de saber. São Paulo: Graal; 2005.. “Norma” hegemônica que, de forma histórica e cultural, é reiterada por homens, brancos, cisgêneros e heterossexuais, em sua maioria. Reproduzindo uma lógica colonial de dominação1010. Pereira PPG. Queer decolonial: quando as teorias viajam. Contemp Rev Sociol UFSCar. 2015; 5(2):411-37.,1111. Quijano A. Sobre la colonialidad del poder. 2013; 1(8):1-5. doi: 10.32870/cl.v0i8.2792.
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, meu professor ensinava a mim e aos meus colegas a reproduzir em nossa prática uma conduta considerada “profissionalmente adequada”1212. Raimondi GA, Moreira C, Barros NF. Corpos que (não) importam para a prática médica: uma autoetnografia performática sobre o corpo gay na escola médica. Campinas: Ed. Pontes; 2022.. Ao manter outras possibilidades existenciais no local do cômico ou reiterar a posição cômoda do “eu não aprendi nada disso”1313. Paulino DB, Rasera EF, Teixeira FB. Discursos sobre o cuidado em saúde de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais (LGBT) entre médicas (os) da Estratégia Saúde da Família. Interface (Botucatu). 2019; 23:e180279. doi: 10.1590/Interface.180279.
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, reitera-se a violência, na qual a LGBTQIA+fobia apresenta-se como uma expressão da guardiã das fronteiras da sexualidade hegemônica55. Borrillo D. A homofobia. In: Lionço T, Diniz D, organizadoras. Homofobia e Educação: um desafio ao silêncio. Brasília: LetrasLivres, EdUnB; 2009. p. 15-46..

A noção de homofobia [...] articula uma forma geral de hostilidade a comportamentos desviantes dos papéis sociossexuais preestabelecidos55. Borrillo D. A homofobia. In: Lionço T, Diniz D, organizadoras. Homofobia e Educação: um desafio ao silêncio. Brasília: LetrasLivres, EdUnB; 2009. p. 15-46.. (p. 21)

2022. Reunião remota de um grupo de docentes da universidade. Espero as demais pessoas entrarem para começarmos a reunião. Um colega ao meu lado comenta:

— Gustavo, você ficou sabendo daquele professor?

— Não. O que houve?

— Ele disse para um grupo de residentes [homens, em sua maioria]: “O mundo está ficando tão chato... não se pode falar mais nada!”

— Hum?! Como assim?

— Ele disse que as residentes [mulheres cisgêneras brancas, em sua maioria] da Ginecologia e Obstetrícia ficam questionando a conduta dele. Falaram sobre a forma que ele trata as pacientes, mas ele disse: “Como se eu tratasse mal as mulheres, eu amo elas”, e complementou: “Tudo é mimimi!”.

[...]

“Alô? Vocês me ouvem? Acho que sim, não é mesmo?! Vamos começar a reunião então...”

Não é possível pensar uma verdadeira equidade de gênero diante de um cenário de violação de todo tipo de direitos das mulheres [...], acreditamos que nos afastamos ainda mais do fim de uma opressão de gênero e raça quando insistimos em “direitos” de uma mulher universal. No que se refere às mulheres negras, há no mínimo uma interseção de dois eixos: raça e gênero1414. Lima KD, Pimentel C, Lyra TM. Disparidades raciais: uma análise da violência obstétrica em mulheres negras. Cienc Saude Colet. 2021; 26 Suppl 3:4909-18. doi: 10.1590/1413-812320212611.3.24242019.
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. (p. 4916)

2023. Segundo Rosangela Malachias66. Malachias R. “Mimimi”? Não! Desigualdades, vulnerabilidades, corpo e comunicação. In: Prata N, Pessoa SC, organizadoras. Desigualdades, gêneros e comunicação. São Paulo: Intercom; 2019. p. 147-59., compreende-se que o termo “mimimi” é utilizado por determinadas pessoas pertencentes, normalmente, a grupos hegemônicos para se referir a outros sujeitos que “choramingam” e se “vitimizam” por problematizarem as desigualdades e vulnerabilidades étnicos-raciais e de gênero. Ao relembrar as lágrimas derramadas em minha existência diante dos vários hematomas sofridos por ser um homem gay (ainda que cisgênero e branco), não consigo ignorar a dor que vivenciei e vivencio ao ouvir o termo “mimimi”. É inadmissível assumir a posição cômoda da neutralidade e acreditar que está “tudo certo” em falas, discursos e ações que reiteram um poder hegemônico sobre os corpos. Cruz et al.22. Cruz BA, Querichelli AFQ, Uback L. Estamos preparando os futuros médicos para atendimentos de situações de violência com enfoque em gênero e em sexualidades não heterossexuais? Relato de uma “experiência” educacional diagnóstica. Interface (Botucatu). 2023; 27:e220630. doi: 10.1590/interface.220630.
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nos convidam a pensar uma “política de formação institucionalizada” que, a meu ver, representa o estudo e a prática sistemática e interseccional dos direitos humanos, os quais podem compor um conjunto de políticas públicas compensatórias e/ou de reparação66. Malachias R. “Mimimi”? Não! Desigualdades, vulnerabilidades, corpo e comunicação. In: Prata N, Pessoa SC, organizadoras. Desigualdades, gêneros e comunicação. São Paulo: Intercom; 2019. p. 147-59.. Nesse sentido, precisamos questionar o “sujeito universal” (homem branco, cisgênero e heterossexual) de nossas práticas, a fim de rompermos com a dualidade que estabelece um “padrão” e um “não padrão”1515. Jesus JG. Operadores do direito no atendimento às pessoas trans. Rev Direito Práxis. 2016; 7(15):537-56. doi: 10.12957/dep.2016.25377.
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. É preciso refletir sobre qual sociedade queremos construir. Se compreendemos que é necessário ampliar as possibilidades existenciais a partir da lógica do respeito à diversidade e direito à vida, com base interseccional, temos que nomear as múltiplas violências que vivenciamos e/ou reproduzimos em nossa sociedade para assim transformarmos a nossa existência. É necessário sentirmos o desconforto e o incômodo para pensarmos em uma educação transgressora1616. Hooks B. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Martins Fontes; 2013. que tenha empatia e compaixão, como citadas por Cruz et al.22. Cruz BA, Querichelli AFQ, Uback L. Estamos preparando os futuros médicos para atendimentos de situações de violência com enfoque em gênero e em sexualidades não heterossexuais? Relato de uma “experiência” educacional diagnóstica. Interface (Botucatu). 2023; 27:e220630. doi: 10.1590/interface.220630.
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.

A sala de aula, com todas as suas limitações, continua sendo um ambiente de possibilidades. Nesse campo de possibilidades, temos a oportunidade de trabalhar pela liberdade, de exigir de nós e dos nossos camaradas uma abertura da mente e do coração e que nos permita encarar a realidade ao mesmo tempo em que, coletivamente, imaginamos esquemas para cruzar fronteiras, para transgredir. Isso é a educação como prática de liberdade1616. Hooks B. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Martins Fontes; 2013.. (p. 273)

Referências

  • 1
    Raimondi GA, Moreira C, Brilhante AV, Barros NF. A autoetnografia performática e a pesquisa qualitativa na Saúde Coletiva: (des)encontros método+lógicos. Cad Saude Publica. 2020; 36(12):e00095320. doi: 10.1590/0102-311X00095320.
    » https://doi.org/10.1590/0102-311X00095320
  • 2
    Cruz BA, Querichelli AFQ, Uback L. Estamos preparando os futuros médicos para atendimentos de situações de violência com enfoque em gênero e em sexualidades não heterossexuais? Relato de uma “experiência” educacional diagnóstica. Interface (Botucatu). 2023; 27:e220630. doi: 10.1590/interface.220630.
    » https://doi.org/10.1590/interface.220630.
  • 3
    Sedgwick EK. A epistemologia do armário. Cad PAGU. 2007; (28):19-54. doi: 10.1590/S0104-83332007000100003.
    » https://doi.org/10.1590/S0104-83332007000100003
  • 4
    Raimondi GA, Teixeira FB, Moreira C, Barros NF. Corpos (não) controlados: efeitos dos discursos sobre sexualidades em uma escola médica brasileira. Rev Bras Educ Med. 2019; 43(3):16-26. doi: 10.1590/1981-52712015v43n3RB20180142.
    » https://doi.org/10.1590/1981-52712015v43n3RB20180142
  • 5
    Borrillo D. A homofobia. In: Lionço T, Diniz D, organizadoras. Homofobia e Educação: um desafio ao silêncio. Brasília: LetrasLivres, EdUnB; 2009. p. 15-46.
  • 6
    Malachias R. “Mimimi”? Não! Desigualdades, vulnerabilidades, corpo e comunicação. In: Prata N, Pessoa SC, organizadoras. Desigualdades, gêneros e comunicação. São Paulo: Intercom; 2019. p. 147-59.
  • 7
    Butler J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 11a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2016.
  • 8
    Preciado PB. Testo Junkie: sexo, drogas e biopolítica na era formacopornográfica. Ribeiro MPG, tradutora. São Paulo: N-1 Edições; 2018.
  • 9
    Foucault M. História da sexualidade I: a vontade de saber. São Paulo: Graal; 2005.
  • 10
    Pereira PPG. Queer decolonial: quando as teorias viajam. Contemp Rev Sociol UFSCar. 2015; 5(2):411-37.
  • 11
    Quijano A. Sobre la colonialidad del poder. 2013; 1(8):1-5. doi: 10.32870/cl.v0i8.2792.
    » https://doi.org/10.32870/cl.v0i8.2792.
  • 12
    Raimondi GA, Moreira C, Barros NF. Corpos que (não) importam para a prática médica: uma autoetnografia performática sobre o corpo gay na escola médica. Campinas: Ed. Pontes; 2022.
  • 13
    Paulino DB, Rasera EF, Teixeira FB. Discursos sobre o cuidado em saúde de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais (LGBT) entre médicas (os) da Estratégia Saúde da Família. Interface (Botucatu). 2019; 23:e180279. doi: 10.1590/Interface.180279.
    » https://doi.org/10.1590/Interface.180279
  • 14
    Lima KD, Pimentel C, Lyra TM. Disparidades raciais: uma análise da violência obstétrica em mulheres negras. Cienc Saude Colet. 2021; 26 Suppl 3:4909-18. doi: 10.1590/1413-812320212611.3.24242019.
    » https://doi.org/10.1590/1413-812320212611.3.24242019
  • 15
    Jesus JG. Operadores do direito no atendimento às pessoas trans. Rev Direito Práxis. 2016; 7(15):537-56. doi: 10.12957/dep.2016.25377.
    » https://doi.org/10.12957/dep.2016.25377
  • 16
    Hooks B. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Martins Fontes; 2013.

  • b
    Mas em que momento esta cultura cis heterossexual hegemônica reiterou a minha vida, a minha existência gay como legítima? Mas não se esqueça: eu sou branco e esta cultura hegemônica é brancocêntrica, então também pergunto: qual o papel da minha e talvez da sua branquitude na manutenção (ou não manutenção) dos poderes hegemônicos? Será que só se questiona essa hegemonia quando “perde-se” alguns de seus elementos ou insígnias de pertencimento?

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    25 Jan 2023
  • Aceito
    27 Fev 2023
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br