O artigo intitulado “Estamos preparando os futuros médicos para atendimentos de situações de violência relacionada a gênero e a sexualidades não heterossexuais? Relato de uma ‘experiência’ educacional diagnóstica 11. Cruz BA , Querichelli AFA , Uback L , Lima ARA , André JC . Estamos preparando os futuros médicos para atendimentos de situações de violência com enfoque em gênero e em sexualidades não heterossexuais? Relato de uma “experiência” educacional diagnóstica . Interface ( Botucatu ). 2023 ; 27 : e220630 . doi: 10.1590/interface.220630 .
https://doi.org/10.1590/interface.220630... ” toca em um ponto fulcral no que tange ao processo formativo dos futuros profissionais de Medicina. Esse ponto refere-se àquilo que diz respeito ao contato com a alteridade – que aqui apresentamos na perspectiva butleriana, na medida em que as situações de violência vivenciadas pelos sujeitos não heterossexuais passaria pela necessidade de reconhecimento de que aquele outro que busca atendimento também é uma vida, e esse reconhecimento por parte do profissional de saúde – sobretudo o médico – garante que sua existência fundada na vulnerabilidade e precariedade não seja mais uma vez reduzida a mera inexistência, a aquilo que nos torna incapazes de sermos enlutados. Portanto, não há nesse sujeito adoecido e violentado uma vida que deve ser preservada, cuidada e, quiçá, digna do dispêndio do saber (ciência) e do fazer (da técnica). Dessa feita, reconhecer a alteridade passa pela nossa capacidade de nos importarmos com a humanidade do outro e pelo o que nos vincula eticamente ao outro, compreendido como as pessoas marcadas por vidas precárias.
Para Butler 22. Butler J . Vida precária: os poderes do luto e da violência . Tradução : Angelo Marcelo Vasco . Belo Horizonte : Autêntica Editora ; 2011 . 192 p. , esse vínculo “não é uma priori , antes emerge apenas quando reconhecemos a humanidade deste Outro sob ameaça” (p. 27). A universidade contemporânea, reforçando o modelo da ciência tecnicista, perdeu seu caráter ético quando vinculou formação com tecnicismo. Assim, nosso questionamento não se ancora na necessidade do profissionalismo, mas na consciência de que tal condição não garantiria um cidadão que, formado na lógica citada, levaria em conta a existência daqueles que se apresentam em sua frente em total vulnerabilidade, decorrente aqui da situação de violência e adoecimento. A lógica tecnicista e que tende a privilegiar os aspectos biomédicos torna o processo formativo engessado e, por conseguinte, distante da perspectiva das Ciências Humanas.
Se considerarmos que o profissionalismo, como apresentado no texto, estaria quase que inequivocadamente associado à noção de ética e que o caráter ético deveria estar como elemento fundante do processo de formação profissional, tendemos a concordar com a perspectiva apresentada no artigo analisado, que nos fala da necessidade de reformulação e mesmo transformação de um currículo que tende a distanciar os futuros médicos do entendimento acerca dos aspectos emocionais e mesmo das percepções do processo de adoecimento vivenciados pelo paciente. Nesse sentido, cabe repensar as habilidades comunicativas (HC) como fundamentais ao futuro profissional, na medida em que, como apresentado no artigo aqui analisado, pergunta-se: “As HC têm sido ensinadas e avaliadas durante o processo de formação de alunos e profissionais na área da saúde no Brasil?” 11. Cruz BA , Querichelli AFA , Uback L , Lima ARA , André JC . Estamos preparando os futuros médicos para atendimentos de situações de violência com enfoque em gênero e em sexualidades não heterossexuais? Relato de uma “experiência” educacional diagnóstica . Interface ( Botucatu ). 2023 ; 27 : e220630 . doi: 10.1590/interface.220630 .
https://doi.org/10.1590/interface.220630... (p. 3). Essa indagação apontaria para a necessidade urgente de inserção da humanização não como mero conceito a ser enfatizado, mas como política de saúde e prática profissional, inscrevendo-se como discussão necessária a ser incorporada nas diversas etapas da formação dos alunos de graduação, das mais diversas especialidades em Saúde. Os resultados do trabalho em questão demonstram “uma evolução na educação em saúde sexual nos quatro anos de formação que precederam a residência, mas os alunos relataram que não se sentem confiantes, nem preparados para abordar questões relativas à sexualidade na relação médico-paciente” 11. Cruz BA , Querichelli AFA , Uback L , Lima ARA , André JC . Estamos preparando os futuros médicos para atendimentos de situações de violência com enfoque em gênero e em sexualidades não heterossexuais? Relato de uma “experiência” educacional diagnóstica . Interface ( Botucatu ). 2023 ; 27 : e220630 . doi: 10.1590/interface.220630 .
https://doi.org/10.1590/interface.220630... (p. 11). Ainda pensando os resultados e conclusões do trabalho, fica claro que os graduandos acreditam que a formação acerca do referido tema é insuficiente e que não se sentem preparados para lidar com tais questões. Considerando esse aspecto, gostaríamos de enfatizar que a naturalização da heteronormatividade, inclusive no próprio currículo, sustenta e reforça a percepção de que a temática escapa pelas frestas dos assuntos “realmente” importantes. Dessa feita, precisamos perguntar, estando a heteronormatividade fundada no modelo heterossexual, familiar e reprodutivo – e, portanto, atuando enquanto norma para reforçar a vulnerabilidade daqueles sujeitos que não se identificam a partir de tal orientação –: seguirá a Medicina e demais áreas da Saúde que se atém ao modelo hegemônico reproduzindo violências simbólicas e físicas dirigidas principalmente a quem rompe as normas de gênero?
Referências
- 1Cruz BA , Querichelli AFA , Uback L , Lima ARA , André JC . Estamos preparando os futuros médicos para atendimentos de situações de violência com enfoque em gênero e em sexualidades não heterossexuais? Relato de uma “experiência” educacional diagnóstica . Interface ( Botucatu ). 2023 ; 27 : e220630 . doi: 10.1590/interface.220630 .
» https://doi.org/10.1590/interface.220630 - 2Butler J . Vida precária: os poderes do luto e da violência . Tradução : Angelo Marcelo Vasco . Belo Horizonte : Autêntica Editora ; 2011 . 192 p.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
18 Ago 2023 - Data do Fascículo
2023
Histórico
- Recebido
24 Jan 2023 - Aceito
06 Mar 2023