Dar visibilidade e legitimidade ao debate sobre as práticas singulares de cuidado nos territórios é fortalecer o SUS!

Giving visibility and legitimacy to the debate on singular care practices in the territories is to strengthen the SUS!

Marcos Bagrichevsky Moisés da Silva Roberto Maria Cacciari Analice Alcantara Meireles Sobre os autores

Antes de qualquer coisa, é preciso iniciar agradecendo o espaço generoso aberto pela editoria da Interface à proposta temática encabeçada por nosso estudo, bem como os comentários cuidadosamente elaborados pelos cinco pesquisadores convidados, que aceitaram a empreitada. Sem dúvida, ampliaram de modo sensível o espectro do diálogo almejado pela “seção debate”, no caso dirigido ao campo da Saúde Coletiva, mas não restrito apenas a ele. Também desejamos manifestar nossa gratidão ao serviço público de saúde e aos usuários que dele participaram, “abrindo as portas e seus corações” de forma irrestrita para que pudéssemos ter condições de, ao final do processo investigativo, produzir este registro que o leitor tem agora em mãos.

Nosso “texto-síntese” ousou expressar o recorte de um trabalho de maior fôlego (que permanece em curso, semanalmente, no referido serviço público), reconhecendo o alcance insuficiente e os limites “duros” que um artigo científico impõe à realidade tal como ela é. Mesmo assumindo tais contingências, por outro lado, também sabemos o quanto ideias provocativas, provenientes de um debate ético, crítico e socialmente comprometido, podem trazer contribuições de distintas formas à comunidade acadêmica, aos trabalhadores da saúde, aos usuários do SUS e, quiçá, até aos próprios gestores/formuladores de políticas públicas. Foi nesse sentido que pretendemos tomar nosso texto como “ponto de partida” para refletir acerca de alguns recortes temáticos que intencionalmente ele evoca/emaranha (mas não necessariamente priorizando a ordem apresentada a seguir):

  1. a promoção da saúde posicionada como ideário e práxis contra-hegemônica 11. Bagrichevsky M. Pelas lentes do SUS: notas sobre desafios e avanços da promoção da saúde na atenção primária. Pensar Prat. 2021; 24:e66137. doi: 10.5216/rpp.v24.66137.
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  2. a necessidade premente de ampliarmos as práticas de saúde sensíveis nos serviços públicos;

  3. a defesa de uma perspectiva coletiva de cuidado longitudinal baseado na escuta, no acolhimento, no vínculo;

  4. a saúde do homem como área programática ainda frágil no cenário sanitário brasileiro;

  5. o hiato entre macro e micropolíticas de saúde que se desdobram nos quatro aspectos anteriores mencionados.

Em relação às questões levantadas pelo artigo, Ricardo Teixeira 22. Teixeira RR. Uma contribuição biopolítica ao debate. Interface (Botucatu). 2023; 27:e230093. doi: 10.1590/interface.230093.
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trouxe um recorte interessante e pertinente quanto ao plano das subjetividades e seus efeitos – assujeitadores e de resistência – no campo da Saúde, analisando conceitos e categorias já trabalhados por importantes intelectuais como Ivan Illich e Michel Foucault, situando-as na perspectiva da biopolítica e do biopoder. Concordamos com Ricardo quanto à impossibilidade de escaparmos integralmente à “medicalização da vida” em todas as suas formas, tão diversificadas quanto sutis, que nos capturam em todas as instâncias existenciais. Mesmo sendo constituída como uma prática coletiva, aberta, microgestora de suas próprias decisões, a proposta do “Grupo de Homens” (GH) nunca teve pretensão de fazê-lo, e sim de produzir linhas de fuga diante do assujeitamento constituído (esse nos parece ser um exercício ético a ser tentado permanentemente pelo GH), situação que precisa considerar também os limites cotidianos dos contextos precarizados e imobilizadores nos quais aqueles homens se encontram imersos.

Todavia, onde há poder instalado há sempre alguma possibilidade de subvertê-lo em alguma medida, ainda que pequena. Na verdade, essa é uma questão com a qual os signatários e gestores de nossas macropolíticas não têm conseguido “lidar bem”: se, por um lado, a narrativa “oficial” elogia a subjetividade como um aspecto imprescindível para “humanização do cuidado” em coletivos como o GH, sobretudo nos serviços da Atenção Primária à Saúde (APS), por outro, ela é reclamada como aspecto que atrapalha as equipes de Saúde da Família (SF) de alcançarem os níveis de produtividade das metas de atendimento nas consultas individuais nas Unidades Básicas de Saúde (UBS), preconização dada pelo Ministério da Saúde (MS). Esse paradoxo 11. Bagrichevsky M. Pelas lentes do SUS: notas sobre desafios e avanços da promoção da saúde na atenção primária. Pensar Prat. 2021; 24:e66137. doi: 10.5216/rpp.v24.66137.
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foi por nós “testemunhado” in loco , contudo ele também ocorre de modo similar em outros espaços da APS, Brasil afora.

Luís Augusto Vasconcelos da Silva 33. Silva LAV. Grupo de homens e práticas de cuidado: de quais homens estamos falando? Interface (Botucatu). 2023; 27:e230010. doi: 10.1590/interface.230010.
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e Guilherme Dantas 44. Dantas GC. Grupo de homens, estratégia bem-vinda e promissora para melhoria da abordagem na consulta médica. Interface (Botucatu). 2023; 27:e220673. doi: 10.1590/interface.220673.
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enfocaram suas análises especificamente sobre as “masculinidades”, cada qual apoiado em sua respectiva e reconhecida expertise no tema, mas ainda assim parametrizados sob óticas distintas. Vale dizer que a temática não teve “centralidade” no escrutínio de nosso estudo. Todavia, é sabidamente uma questão relevante que precisa ser discutida e trazida à tona, uma vez que ocupa um lugar destacado no repertório de áreas programáticas estratégicas do MS, sobretudo por apresentar pouquíssimo avanço na sua implementação nos serviços na APS – mesmo tendo sido instituída “oficialmente” faz muitos anos 44. Dantas GC. Grupo de homens, estratégia bem-vinda e promissora para melhoria da abordagem na consulta médica. Interface (Botucatu). 2023; 27:e220673. doi: 10.1590/interface.220673.
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Nesses comentários, percebemos que a maior convergência de nossas preocupações ao longo da condução do processo investigativo recai sobre o fato “[de] esses posicionamentos identitários” poderem “implicar exclusões e tensionamentos” 33. Silva LAV. Grupo de homens e práticas de cuidado: de quais homens estamos falando? Interface (Botucatu). 2023; 27:e230010. doi: 10.1590/interface.230010.
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(p. 2). Dito de outro modo: a questão de gênero, bem como o modo como ele deve ser tratado em grupos como o GH, mostra-se fundamental para que não se amplie a exclusão já presente de maneira exacerbada na vida daqueles “homens-usuários” do SUS, já que uma de suas funções precípuas é produzir um cuidado sensível, inclusivo. Cabe sublinhar ainda um conceito trazido 33. Silva LAV. Grupo de homens e práticas de cuidado: de quais homens estamos falando? Interface (Botucatu). 2023; 27:e230010. doi: 10.1590/interface.230010.
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do trabalho de Annemarie Mol, no sentido de que precisamos desenvolver um “cuidado processual” mais afeito às possibilidades reais da vida e de seu “movimento contraditório” por vezes.

Há um aspecto interessante na análise de Guilherme Dantas 44. Dantas GC. Grupo de homens, estratégia bem-vinda e promissora para melhoria da abordagem na consulta médica. Interface (Botucatu). 2023; 27:e220673. doi: 10.1590/interface.220673.
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sobre sexualidade e violências vinculadas aos “homens-usuários” do GH que o conecta às observações de João Leite Ferreira Neto 55. Ferreira Neto JL. Promoção da saúde e práticas grupais: um debate necessário. Interface (Botucatu). 2023; 27:e220591. doi: 10.1590/interface.220591.
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, e que sempre se mostrou muito caro à própria constituição do GH: sua potência como “grupo”, suas premissas éticas integradas aos princípios do SUS (integralidade, equidade) e à Política Nacional de Humanização (clínica ampliada, escuta qualificada, vínculo). Vale retomar abaixo uma argumentação que guiou (e continua guiando) nossas preocupações 11. Bagrichevsky M. Pelas lentes do SUS: notas sobre desafios e avanços da promoção da saúde na atenção primária. Pensar Prat. 2021; 24:e66137. doi: 10.5216/rpp.v24.66137.
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, tendo inclusive justificado a própria escolha etnográfica como ferramenta mais adequada para a realização de nosso estudo, na expectativa de captar parte dos processos que percebíamos acontecer no cotidiano do GH.

Em relação [ao] respeito [da]s subjetividades humanas, é imprescindível que o repertório de dispositivos [como o GH, por exemplo] empregado pelos profissionais da APS contemple/acate os aspectos que conferem sentido existencial às pessoas, às famílias, pois a primazia dos processos de cuidado integral em saúde diz respeito e se destina a elas. Suas prioridades e aspirações de vida não devem ser descartadas nem ‘objetificadas’, mesmo diante de situações extremas de adoecimento. Também os gestores do setor ocupam um papel estratégico nesse contexto e precisam estar comprometidos com as mesmas orientações, desenvolvendo-as de forma cotidiana, pari passu com os serviços 11. Bagrichevsky M. Pelas lentes do SUS: notas sobre desafios e avanços da promoção da saúde na atenção primária. Pensar Prat. 2021; 24:e66137. doi: 10.5216/rpp.v24.66137.
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. (p. 5)

A dimensão subjetiva nos cuidados em saúde, posicionada por nós como um imperativo ético a ser defendido/praticado nos serviços, encontrou eco nas argumentações de Thiago Moraes 66. Moraes TD. Promoção de saúde, vínculos e processos de sublimação. Interface (Botucatu). 2023; 27:e220623. doi: 10.1590/interface.220623.
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. Ele situou a relevância política e histórica da promoção da saúde como ideário crítico que considera “[a] produção de vínculos sociais, coletivos [...]” 66. Moraes TD. Promoção de saúde, vínculos e processos de sublimação. Interface (Botucatu). 2023; 27:e220623. doi: 10.1590/interface.220623.
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(p. 2) sem descartar a dimensão singular dos sujeitos, sem desconsiderar suas respectivas maneiras de produzir saúde, de habitar a vida, dentro do “possível”. Foi significativo vê-lo tomar as práticas do GH como espaços de liberdade, articulados com a noção Canguilhemiana: “se pode abusar da saúde em meio à vida como ela é, para ampliá-la e não para limitá-la” 66. Moraes TD. Promoção de saúde, vínculos e processos de sublimação. Interface (Botucatu). 2023; 27:e220623. doi: 10.1590/interface.220623.
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(p. 3). Thiago advogou a promoção da saúde como uma prática “que amplia[...] as possibilidades da[s] atividade[s], i.e., uma deontologia do fazer, amparando-se na solidariedade, na partilha de um comum e na ampliação do poder de agir” 66. Moraes TD. Promoção de saúde, vínculos e processos de sublimação. Interface (Botucatu). 2023; 27:e220623. doi: 10.1590/interface.220623.
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(p. 3).

Por fim, vale lembrar que, assim como o GH, existem outras experiências de promoção da saúde bem-sucedidas espalhadas pelo país, pautadas em perspectivas de construção coletiva, participativas, encontradas em distintos territórios da APS. Em linhas gerais, são bem estruturadas, mostram-se duradouras, obtêm adesão longeva dos frequentadores dos grupos/projetos, promovem vínculo, criam espaços de escuta, de sociabilidades e de politização nas comunidades. Portanto, sobram motivos concretos e plausíveis para que sejam reconhecidas e ‘oficializadas’ pelas instâncias administrativas das secretarias de saúde dos municípios brasileiros, como ações potentes e resolutivas. É preciso lhes dar visibilidade pública. É necessário lutar para que sejam financiadas menos na lógica do custo-benefício e mais assentadas sob a narrativa de defesa da vida. Afinal, não são essas as premissas originárias do SUS e da Reforma Sanitária Brasileira?

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    15 Maio 2023
  • Aceito
    28 Maio 2023
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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