Educação interprofissional e prática colaborativa em saúde: a produção do comum como dispositivo de resistência ao modo de subjetivação capitalístico

Interprofessional Education and Collaborative Practice in Health: The production of the common as a resistance device to the capitalistic subjectivation mode.

Educación Interprofesional y Práctica Colaborativa en Salud: La producción de lo común como dispositivo de resistencia al modo de subjetivación capitalista.

Juliana Sampaio Anselmo Clemente Sobre os autores

Agradecemos a oportunidade de debater o artigo “Educación Interprofesional en Salud en el contexto neoliberal: incongruencias y desafios”, pois ele evidencia importantes desafios para a formação em Saúde. Compartilhamos com a perspectiva das autoras sobre Educação Interprofissional e Prática Colaborativa (EIPC) e as incoerências e incompatibilidades das estratégias formativas para o trabalho interprofissional diante da racionalidade neoliberal, em especial na região latino-americana.

No contexto brasileiro, como efeitos materiais da agenda neoliberal, os/as trabalhadores/as são convocados/as a atuar de forma colaborativa sem as condições materiais e estruturais mínimas necessárias. No setor saúde, os desafios são inúmeros, dentre os quais destacamos o subfinanciamento e o desfinanciamento do sistema, acirrados pelo contrarreformismo fortemente operado nos últimos anos pelo Estado brasileiro11 Silva HFR, Gomes LB, Bezerra AFB, Santos MOS, Shimizu HE, Silva KSB, et al. Conflito distributivo: análise do Programa de Melhoria do Acesso e Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB) em duas capitais nordestinas. Interface (Botucatu). 2023; 27:e220280. doi: 10.1590/interface.220280.
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. Nessa direção, enfrentamos uma destacada pressão de substituição de Sistemas Universais, baseados no direito de todos/as à saúde como responsabilidade do Estado, por Coberturas Universais, sustentadas pela oferta, por planos e seguros privados de saúde, de pacotes de serviços predefinidos por meio da capacidade contributiva de pessoas e instituições22 Laurell AC. La política social y de salud en América Latina: un campo de lucha política. Cad Saude Publica. 2017; 33 Supl 2:e00043916..

No campo da Educação para a Saúde, os parcos investimentos na área de formação são disputados entre os setores público e privado, com acentuado crescimento das instituições particulares de ensino e das propostas de educação a distância, que reduzem as oportunidades de práticas, e dentre elas as interprofissionais33 Juliani MP, Santos AP, Fávero AA. A mercantilização do ensino superior a partir da educação a distância: aspectos gerais de um diagnóstico crítico. #Tear. 2022; 11(2):1-12..

Se por um lado, entre as ofertas formativas do SUS, temos iniciativas de formação interprofissional sustentadas em processos que estimulam a EIPC, como: Educação pelo Trabalho (PET), Educação Permanente, Estágio Regional Interprofissional, Vivências de Educação Popular e Residências Integradas Multiprofissionais44 Ceccim RB. Conexões e fronteiras da interprofissionalidade: forma e formação. Interface (Botucatu). 2018; 22 Supl 2:1739-49. doi: 10.1590/1807-57622018.0477.
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; por outro se consolidam estratégias robustas, principalmente no financiamento, como as vinculadas ao Programa Mais Médicos para o Brasil55 Brasil. Ministério da Saúde. Ministério da Educação. Portaria Interministerial MS/MEC n° 604, de 16 de Maio de 2023. Dispõe sobre a execução do Projeto Mais Médicos para o Brasil - PMMB. Diário Oficial da União. 18 Maio 2023., com forte caráter disciplinar, restrito à formação médica.

Segundo o que as autoras apontam, essas estruturas materiais estão imbricadas em modos de subjetivação que reproduzem a individualidade, a competição e a fragmentação das práticas profissionais. Esse modo de subjetivação tem ganhado força globalmente desde as últimas décadas do século passado, impulsionando o que conhecemos como Capitalismo Mundial Integrado (CMI)66 Guattari F. Revolução molecular: pulsações políticas do desejo. 2a ed. São Paulo: Brasiliense; 1985., que se expandiu para todas as esferas da atividade humana: setores produtivos, modos de vida e sociabilidade.

Está em jogo não apenas uma racionalidade sobre modos de produção material, mas uma política do inconsciente e seus efeitos sobre hábitos, desejos e afetos, que desempenham papel fundamental na reprodução, na normalização e na hegemonia das subjetividades capitalistas. Trata-se de um “inconsciente colonial-capitalístico”77 Rolnik S. Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada. São Paulo: n-1 edições; 2018. (p. 36) que captura o viver e sua potência de criação.

Contudo, há outras formas de experienciar o mundo, efeito das forças e suas relações que nos atravessam na condição de viventes. Na composição de certo corpo vibrátil, há uma micropolítica do desejo que produz mundos e logra se reapropriar da potência da vida “e, com ela, driblar o poder do inconsciente colonial-capitalístico que a expropria”77 Rolnik S. Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada. São Paulo: n-1 edições; 2018. (p. 65).

Acreditamos que as proposições da EIPC oferecem movimentos disruptivos nos modos de subjetivação neoliberal, mesmo reconhecendo as incongruências apontadas entre essas proposições e a racionalidade neoliberal. Apostamos nos processos de educação como movimentos emancipatórios, fabricadores de saídas micropolíticas que possibilitem o instituinte subverter o instituído, na construção de subjetividades colaborativas em resistência aos modos capitalísticos de viver.

Compreendemos a interprofissionalidade para além de práticas que ocorrem quando diversos/as trabalhadores/as de diferentes formações ofertam juntos/as serviços integrais. O trabalho “junto” não necessariamente reflete um trabalho compartilhado, podendo, muitas vezes, ser reduzido a um trabalho fragmentado e hierarquizado. Reconhecemos que a potência das práticas interprofissionais e colaborativas se encontra exatamente na produção de um “comum” entre dois/duas ou mais trabalhadores/as, que gera um território de práticas e de conhecimentos inusitados para cada profissional. Uma zona fronteiriça, entredisciplinar, que produz o novo, criativo e compartilhado, que não pertence a uma ou outra disciplina, ou a uma ou outra prática profissional, mas exatamente surge no encontro, no “entre”, de diferentes agires em saúde88 Ceccim RB. Equipe de Saúde: a perspectiva entre-disciplinar na produção dos atos terapêuticos. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Cuidado: as fronteiras da integralidade. 3a ed. Rio de Janeiro: CEPESC/UERJ; 2006. p. 261-80..

A inventividade cotidiana do comum nas práticas educacionais interprofissionais e colaborativas em saúde são de fato completamente incongruentes com os interesses e modos de subjetivação capitalístico. E é exatamente aí que mora sua potência, pois é o que nos possibilita produzir resistências.

Onde a ordem neoliberal diz: mais competição, o comum é cooperação; mais independência, o comum é interdependência; mais autorregulação do mercado, o comum é o autogoverno pelos cidadãos; mais propriedade exclusiva, o comum reivindica mais bens comuns de posse e uso coletivo; onde o neoliberalismo diz mais investimento de si, o comum é cuidado e corresponsabilidade…99 Fachin P. A política do comum e do protótipo. Duas alternativas ao mal-estar contemporâneo. Entrevista especial com Henrique Parra [Internet]. São Leopoldo: IHU On-Line; 2017 [citado 29 Jun 2023]. Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/574031-a-politica-do-comum-e-do-prototipo-duas-alternativas-ao-mal-estar-contemporaneo-entrevista-especial-com-henrique-parra
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(p. 2-3)

Aqui, a discussão sobre o comum não está restrita ao seu conceito clássico de commons como bem comum; mundo compartilhado como herança da humanidade. Em vez disso, sustentamos o conceito nas formas benéficas da produção social por “práticas de interação, cuidado e coabitação num mundo comum”1010 Hardt M, Negri A. Bem-estar comum. Rio de Janeiro: Record; 2016. (p. 7).

No Brasil, país com mais de duzentos milhões de habitantes, a constituição de um Sistema Universal de Saúde, de acesso gratuito e cuidado integral, é uma importante expressão de produção política do comum. Um sistema fruto de lutas populares antigas e atuais, de movimentos insurgentes pelo direito à saúde que fazem parte da história e do cotidiano desse povo. Trata-se de “uma realidade que tem dupla inscrição: forma instituída e força instituinte; Estado e processo”1111 Passos E, Carvalho YM. A formação para o SUS abrindo caminhos para a produção do comum. Saude Soc. 2015; 24 Supl 1:92-101. (p. 95), forjada num campo de tensões que se reedita a todo instante no mundo do trabalho em saúde.

No campo da Educação, apesar de ainda não termos um sistema público efetivo, como direito de todos/as e dever do Estado, são múltiplas as linhas de força que compõem movimentos instituintes e de resistência aos modos de subjetivação neoliberal. Não por acaso, temos como referência Paulo Freire1212 Freire P. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1967. e sua Educação Libertadora, que sustenta inclusive as invenções da Educação Popular em Saúde. Para além da alfabetização, do letramento, ou mesmo da formação técnica ou profissional, apostamos na produção de coletivos críticos e reflexivos sobre as estruturas de opressão para transformação social com base no fortalecimento da autonomia das classes populares.

Produzimos diversas estratégias de formação pelo encontro entre trabalhadores/as para a produção de um comum. Muitas dessas experimentações forjam as estratégias de Educação Permanente em Saúde (EPS)1313 Garcia SO, Sampaio J, Costa CRL, Diniz RS, Araújo TA. Integração ensino-serviço: experiência potencializada pelo Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde - Eixo Educação Permanente. Interface (Botucatu). 2019; 23:e180540. doi: 10.1590/Interface.180540.
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que propõe colocar em análise o cotidiano do trabalho nas tensões entre o SUS e a racionalidade neoliberal. Proposta de processo formativo no, pelo e para o trabalho, a EPS constitui um vetor de força no campo micropolítico de produção de pensamento crítico sobre tais tensões. Ela pode ser, portanto, dispositivo de educação libertadora e uma potência de resistência no cotidiano vivo do trabalho em saúde.

Podemos pensar, por fim, que as invenções produzidas no campo da EIPC, se orientadas, por exemplo, por uma ética da educação libertadora, podem se constituir como dispositivos de produção de subjetividades colaborativas, agenciadoras de processos disruptivos do inconsciente colonial-capitalístico. E assim, firmamos o desafio de nos posicionarmos ao lado, para compor certa cartografia do comum junto de movimentos insurgentes relacionados à EIPC em saúde, apostando numa micropolítica de resistência que mantenha aberto um campo de possibilidades para mudanças.

  • Sampaio J, Clemente A. Educação interprofissional e prática colaborativa em saúde: a produção do comum como dispositivo de resistência ao modo de subjetivação capitalístico. Interface (Botucatu). 2023; 27: e230335 https://doi.org/10.1590/interface.230335

Referências

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    » https://doi.org/10.1590/Interface.180540

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    06 Jul 2023
  • Aceito
    20 Jul 2023
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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