Resumos
O conhecimento e o desenvolvimento de habilidades relacionadas à abordagem de gênero na formação médica são fundamentais para o exercício do cuidado integral. Enfocamos o ensino dos temas gênero e sexualidade na graduação de um curso de Medicina sob a perspectiva docente. A pesquisa de natureza qualitativa utilizou a entrevista semiestruturada para construção dos dados empíricos. Em 2022, foram realizadas 16 entrevistas com responsáveis por disciplinas/unidades curriculares de diversas especialidades médicas de um curso de graduação em Medicina no estado de São Paulo. Apesar do reconhecimento da importância na formação, vigora ainda uma abordagem biomédica e/ou patológica das temáticas de gênero e sexualidade no currículo. Como dificuldades, destaca-se o reconhecimento da questão geracional pela falta de habilidade para lidar com os temas e a pouca interação entre especialidades médicas.
Palavras-chave
Ensino médico; Medicina; Gênero; Sexualidade; Minorias sexuais e de gênero
Including the development of knowledge and skills related to the gender approach in medical training is essential for the delivery of comprehensive care. This study focuses on the teaching of gender and sexuality on a medical degree program from the perspective of teachers. We conducted a qualitative study using semi-structured interviews to collect empirical data. Sixteen interviews were conducted in 2022 with teachers responsible for subjects/modules in medical specialties on a medical degree program in the state of São Paulo. Despite the recognition given to the importance of teaching gender and sexuality in medical training, a biomedical and/or disease-based approach to these topics prevails in the curriculum. Challenges include generational issues, including the lack of skills needed to deal with these topics, and limited interaction between medical specialties.
Keywords
Medical education; Medicine; Gender; Sexuality; Sexual and gender minorities
El conocimiento y el desarrollo de habilidades relacionadas al abordaje de género en la formación médica son fundamentales para el ejercicio del cuidado integral. Enfocamos la enseñanza de los temas género y sexualidad en la graduación de un curso de medicina bajo la perspectiva docente. La investigación de naturaleza cualitativa utilizó la entrevista semiestructurada para la construcción de los datos empíricos. En 2022, se realizaron dieciséis (16) entrevistas con responsables por disciplinas/unidades curriculares de diversas especialidades médicas de un curso de graduación en medicina en el Estado de São Paulo. A pesar del reconocimiento de la importancia en la formación, vigora todavía un abordaje biomédico y/o patológico de las temáticas de género y sexualidad en el currículo. Como dificultad se destaca el reconocimiento de la cuestión generacional por la falta de habilidad para enfrentar los temas y la poca interacción entre especialidades médicas.
Palabras clave
Enseñanza médica; Medicina; Género; Sexualidad; Minorías sexuales y de género
Introdução
O texto do artigo é resultado de uma dissertação de mestrado intitulada “O mundo está mudando rápido demais? Gênero e sexualidade no currículo médico: a perspectiva de professories de um curso de graduação em Medicina no Estado de São Paulo”, feita no Programa de Saúde Coletiva da Faculdade de Medicina da USP.
Há um reconhecimento por parte de estudos voltados à formação e ao currículo médico de que o gênero tem sido invisibilizado como importante categoria teórica no âmbito da prática clínica. Sua importância é particularmente relevante para promover a qualidade da assistência à saúde, considerando os sintomas possíveis fatores de risco para doença e o plano de assistência definido. Além disso, estudos sobre gênero possibilitam visibilizar outros modos de viver, outras estéticas, outras éticas e outras histórias, expandindo o modelo binário11 Louro GL. Gênero, sexualidade e educação: das afinidades políticas às tensões teórico-metodológicas. Educ Rev. 2007; (46):201-18. . Considera-se a importância do uso da categoria gênero no rompimento de visões reducionistas, biológicas e binárias, que não incluem aspectos importantes de relações de poder e de historicidade22 Azerêdo S. Encrenca de gênero nas teorizações em psicologia. Rev Estud Fem. 2010; 18(1):175-88. .
Os significados feministas de gênero são diversos e variam de acordo com as perspectivas dos diferentes grupos feministas e contextos históricos que os permeiam33 Zirbel I. Ondas do feminismo [Internet]. Mulheres na Filosofia. 2021 [citado 30 Nov 22]; 7(2):10-31. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/mulheresnafilosofia/ondas-do-feminismo/
https://www.blogs.unicamp.br/mulheresnaf... . Haraway define: “Gênero éum conceito desenvolvido para contestar a naturalização da diferença sexual em múltiplos terrenos de luta”44 Haraway DJ. Ciencia, cyborgs y mujeres: la reinvención de la naturaleza. Madri: Ediciones Catedra; 1995. (p. 221). Para a autora, a noção de construção é compreendida como um fator em comum entre as inúmeras posições teóricas.
Essa concepção de gênero enfatiza o caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo. O gênero éconsiderado como o aspecto relacional das definições normativas (socialmente construídas) da feminilidade e o sexo ébaseado no determinismo biológico. O gênero determina-se como relacional, pois não épossível compreender qualquer um dos sexos por meio de estudos separados, sendo termos recíprocos55 Scott J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educ Real. 1995; 20(2):71-99.. Lidar com o conceito de gênero por meio dessa perspectiva construcionista significa colocar-se contra a naturalização do feminino e, obviamente, do masculino11 Louro GL. Gênero, sexualidade e educação: das afinidades políticas às tensões teórico-metodológicas. Educ Rev. 2007; (46):201-18. . Assim, o sujeito se constrói a partir da tradução e inscrição cultural do sexo, ou seja, gênero éa forma como o sexo se inscreve culturalmente55 Scott J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educ Real. 1995; 20(2):71-99.. Posteriormente, outros grupos feministas – como os formados pelas feministas negras e travestis – questionam a separação natureza e cultura e propõem entender o sexo tão construído socialmente quanto o gênero; e problematizam uma sujeita única do feminismo, questionando a universalidade da categoria “mulher”66 Nascimento L. Transfeminismo. São Paulo: Jandaíra; 2021..
Segundo Couto et al.77 Couto MT, Machin R, Costa MRM, Rocha ALS, Modesto AA, Germani ACC. A (in)visibilidade gênero no currículo e na prática de duas especialidades médicas. Rev Bras Educ Med. 2021; 45(1):e040., a ausência da temática de gênero na graduação em Medicina é sistemática tanto no Brasil quanto em outros países. As discussões sobre essa temática se concentram nas disciplinas de Ginecologia ou em disciplinas que não estão presentes no currículo formal. As autoras ressaltam que o conhecimento sobre gênero se mostra insuficiente, o que pode afetar a prática clínica e a relação médico-paciente.
A ausência de estudos sobre gênero no currículo médico afeta diretamente a formação des profissionais e, consequentemente, a promoção de equidade de gênero na saúde. A desigualdade de gênero continua sendo um fator que limita o acesso a serviços de saúde e o aproveitamento do potencial desses serviços88 Doyal L. Sex, gender, and health: the need for a new approach. BMJ. 2001; 323(7320):1061-3.. A Saúde Coletiva é uma área de conhecimento e de práticas que possui compromisso político com a redução das desigualdades em saúde. É um campo construído a partir das discussões em torno da reforma sanitária brasileira paralela à implementação do Sistema Único de Saúde (SUS). Tendo em vista que a Saúde Coletiva brasileira esteve sempre engajada politicamente – o que, consequentemente, objetiva o fim da inequidade de gênero –, iniciativas foram criadas a fim de desvelar a concepção de que a mulher está subordinada à sua fisiologia reprodutiva99 Vilela W, Monteiro S, Vargas E. A incorporação de novos temas e saberes nos estudos em saúde coletiva: o caso do uso da categoria gênero. Cienc Saude Colet. 2009; 14(4):997-1006..
Pesquisas mostram a importância de se considerar a interseccionalidade ao lidar com questões da área da Saúde, tendo em vista a importância de se olhar para a desigualdade do ponto de vista da raça/etnia, classe, renda, educação, habilidade, idade, orientação sexual, status de imigração e geografia1010 Hankivsky O. Women’s health, men’s health, and gender and health: implications of intersectionality. Soc Sci Med. 2012; 74(11):1712-20.. Levar em conta os determinantes sociais é essencial para promover políticas públicas de planejamento dentro da área da Saúde. A Saúde Coletiva surge então com a intenção de possibilitar um diálogo crítico e contradições com a Saúde Pública, a fim de estabelecer novas propostas que promovam equidade1111 Ribeiro VF, Viegas PR, Trassante RR, Doval LMS, Duarte JR. Saúde coletiva e interseccionalidade: uma análise do podcast Transverso. In: Anais do 13o Congresso Internacional da Rede UNIDA; Manaus. Manaus: Universidade Federal do Amazonas; 2018. p. 2446-4813..
No Brasil, debates sobre a interdisciplinaridade no curso médico ressaltam a necessidade de superar a separação entre os aspectos biológico e social e focar as unidades curriculares como oportunidades de aprofundar o olhar para a saúde a partir de uma perspectiva integral e interdisciplinar. A construção do SUS, por meio de seus princípios e valores democráticos, levantou diversos questionamentos, como se os profissionais de saúde que estavam se formando estavam devidamente preparades para assumir os desafios nos equipamentos de saúde e sobre novas propostas curriculares. Há muitos currículos que se dedicam somente ao aspecto técnico, com disciplinas isoladas e sem atividades humanísticas, tornando a formação cada vez mais especializada em determinadas áreas e sem conhecimentos interdisciplinares1212 Casate JC, Corrêa AK. A humanização do cuidado na formação dos profissionais de saúde nos cursos de graduação. Rev Esc Enferm USP. 2012; 46(1):219-26.. A educação médica precisa ser repensada fora do predomínio hegemônico da perspectiva natural sobre a social por meio da promoção de diálogo entre as ciências biológicas, exatas e humanas1313 Raimondi GA, Abreu YR, Borges IM, Silva GBM, Hattori WT, Paulino DB. Gênero e sexualidade nas escolas médicas federais do Brasil: uma análise de projetos pedagógicos curriculares. Rev Bras Educ Med. 2020; 44(2):e045. .
A Política Nacional de Saúde LGBT é um documento do Ministério da Saúde formulado e apresentado em 2011 que objetiva nortear e legitimar as necessidades e especificidades da população LGBTQIA+, de acordo com o princípio de equidade do SUS. É composta por diretrizes e estratégias que requerem o compromisso das instâncias do governo: secretarias estaduais, municipais e de todas as áreas do Ministério da Saúde. As ações implantadas visam ao fim da discriminação e exclusão no processo saúde-doença de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e pessoas trans tanto nos espaços quanto nos atendimentos1414 Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Brasília: Ministério da Saúde; 2013..
Como marco importante na história das políticas de equidade social, os Princípios de Yogyakarta foram construídos por especialistas em direito internacional dos direitos humanos, de orientação sexual e de identidade de gênero que se reuniram na Indonésia para elaborar este documento. O objetivo era reforçar e aprimorar normas de proteção à população LGBQIA+, para apresentá-lo, em 2007, no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, em Genebra1515 Alamino FNP, Vecchio VAD. Os princípios de Yogyakarta e a proteção de direitos fundamentais das minorias de orientação sexual e de identidade de gênero. Rev Fac Dir Univ São Paulo. 2018; 113:645-68..
A Associação Mundial para Saúde Sexual (WAS) e a Organização Mundial da Saúde (OMS) reforçam a necessidade da capacitação de educadores, profissionais de Saúde e estudantes para a abrangência da atuação em saúde sexual. Nesse sentido, as escolas médicas mundiais têm demonstrado interesse crescente em reavaliar seus currículos visando expandir os aspectos da sexualidade humana. A valorização dos aspectos biológicos em detrimento daqueles relacionados à dimensão histórico-cultural e sociopolítica da sexualidade humana éainda uma ocorrência frequente. Os estudantes de Medicina costumam ser treinados apenas na coleta do histórico sexual dos pacientes, mas não desenvolvem habilidades para o atendimento que promova a saúde sexual1616 Rufino AC, Madeiro AP, Girão MJBC. O ensino da sexualidade nos cursos médicos: a percepção de estudantes do Piauí. Rev Bras Educ Med. 2013; 37(2):178-85..
Debater sobre essas temáticas no currículo des profissionais médiques é, mais do que ter conhecimento a respeito delas, poder refletir sobre outras formas de corpo e de existir. édescolar-se da noção de corpo restrita às funções anatomofisiológicas, entendendo os corpos como parte do estudo da saúde des pacientes.
A pesquisa teve como objetivo investigar os temas de gênero e sexualidade na formação em Medicina, buscando entender os sentidos que essas temáticas têm no ensino médico e suas particularidades. Buscou-se também identificar as abordagens realizadas pelos docentes e como estes percebem a discussão dos temas e o interesse des alunes.
Metodologia
Os recursos metodológicos adotados para construção dos dados foram entrevistas semiestruturadas com professories coordenadories de uma unidade curricular/disciplina em um curso de graduação em Medicina do estado de São Paulo. Trata-se de uma instituição pública em atuação há pelo menos cinquenta anos, que realizou algumas reformas curriculares com o objetivo de obter uma maior interdisciplinaridade e diálogo entre especialidades no curso de Medicina. Foram escolhides coordenadories de unidades curriculares/disciplinas por serem responsáveis pelos conteúdos ministrados e por terem contato direto com estudantes e possíveis demandas por estes formuladas.
A listagem de potenciais participantes do estudo era composta por 46 professories coordenadories de disciplinas/unidades curriculares, sendo alguns destes responsáveis por mais de uma disciplina. As pesquisadoras acessaram essa lista por meio do contato com a secretaria do curso. Inicialmente, foi enviada uma carta-convite explicando o estudo para cada professore. Vinte e sete professories não responderam a carta-convite e seis se recusaram a participar. As justificativas foram a falta de disponibilidade ou a crença de que não era possível colaborar com essa discussão por acreditarem que não abordam esses temas em suas disciplinas. Ainda que a pesquisadora tenha explicado que não era necessário abordar de maneira direta as temáticas de gênero e sexualidade, não obtivemos novas adesões. Outres quatro professories, após a concordância em participar, deixaram de retornar as mensagens para agendar uma data para a entrevista. Foram realizadas ao todo 16 entrevistas, das quais três delas foram feitas com professories indicades peles coordenadories por considerarem essas indicações mais “aptas” para atenderem ao objetivo do estudo.
Todas as entrevistas foram realizadas pela primeira autora e tiveram uma duração aproximada de quarenta minutos. Foi oferecida a possibilidade de a entrevista ser on-line ou presencial, porém, todes preferiram participar remotamente, devido ao contexto da pandemia de Covid-19. As entrevistas ocorreram na plataforma Google Meet nos horários previamente acordados e todas foram gravadas com o consentimento des participantes.
O roteiro da entrevista foi composto pelos seguintes tópicos:
Perfil e trajetória profissional des entrevistades, tais como: idade, identidade de gênero (homem cisgênero, mulher cisgênera, travesti e pessoa transgênero), cor/raça, escolha da profissão e residência médica.
Nível de conhecimento e contato com os determinantes sociais: gênero e sexualidade dos diferentes grupos populacionais durante a formação acadêmica.
De que maneira a(s) disciplina(s) que leciona se relaciona(m) com essas temáticas.
Qual a importância dessas temáticas estarem no ensino médico e de que forma elas impactam a formação profissional dos estudantes.
Realizaram-se 16 entrevistas com professories de diferentes especialidades médicas. Foram oito homens cisgêneros e oito mulheres cisgêneras. As especialidades envolvidas foram: Patologia, Obstetrícia, Endocrinologia, Infectologia, Farmacologia, Ginecologia, Cardiologia, Clínica Geral, Pediatria, Medicina Legal e Medicina Preventiva. Quanto ao período de formação, observamos que a maioria se formou entre 1984 e 1994.
Optou-se por utilizar um código (P) seguido de um número de entrevista para cada indivíduo e a área de especialidade, a fim de preservar o nome des participantes. Os códigos foram escolhidos aleatoriamente, não havendo correlação com nome ou momento de realização da entrevista.
Na análise, focalizaram-se temas previstos no roteiro e temas emergentes, e, para ambos, adotaram-se no processo de análise os passos indicados a seguir. As entrevistas foram transcritas na íntegra e lidas exaustivamente com o objetivo de se compreender um sentido geral. O texto obtido subsequente à transcrição das entrevistas gravadas foi gradativamente reduzido, condensado em sentido e generalização, e foi dividido em três colunas: a primeira continha a transcrição; a segunda, a primeira redução; e a terceira, apenas as palavras-chave, conforme Muylaert et al.1717 Muylaert CJ, Sarubbi V Jr, Gallo PR, Rolim Neto ML. Narrative interviews: an important resource in qualitative research. Rev Esc Enferm USP. 2014; 48(2 Spec No):184-9.. O objetivo foi condensar o material e analisá-lo buscando as categorias de análise, que reuniram as temáticas relevantes de acordo com os objetivos da pesquisa. Desse processo, emergiram como categorias de análise: “Como e onde essas temáticas são abordadas?” e “Pouca interação entre especialidades e a questão geracional”.
A pesquisa foi autorizada pela instituição, que forneceu informações para contato com o corpo docente. O estudo foi realizado após a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da instituição proponente (n. CAEE 505929219.0000.0068).
Resultados e discussão
Como e onde as temáticas são abordadas?
No campo pesquisado, as temáticas de gênero e sexualidade aparecem em boa parte das entrevistas referidas de um ponto de vista biomédico e/ou patológico, como expressa P3:
Não estão presentes nas aulas que eu leciono, mas no curso do 2° ano, a gente tem a aula da [...]. Que é uma aula que vai falar sobre as diferenças da diferenciação sexual. É lógico que é uma questão ligada a disfunções endócrinas, principalmente defeitos enzimáticos que fazem ou um feto XX ser exposto a andrógenos e virilizar, ou o feto XY não ser exposto adequadamente a andrógenos e subvirilizar. E aí as questões da genitália, e as questões depois das consequências dessa alteração da genitália, do reconhecimento do sexo ao nascimento, a discussão sobre as correções cirúrgicas.
(P3, Endocrinologia)
O participante P3 observa que a única aula na qual são abordados os temas de gênero e sexualidade é dedicada à diferenciação sexual, na qual o foco está nas disfunções endócrinas e nas consequências dessas disfunções nas genitálias.
O uso de expressões como “disfunções endócrinas”, “correções cirúrgicas”, “defeitos enzimáticos” e “alteração da genitália” denota o viés patológico a partir do ponto de vista biomédico. Machado1818 Machado PS. (Des)fazer corpo, (re)fazer teoria: um balanço da produção acadêmica nas ciências humanas e sociais sobre intersexualidade e sua articulação com a produção latino-americana. Cad Pagu. 2014; (42):141-58. discorre sobre como, desde o século XIX, a intersexualidade tem aparecido na prática médica como lugar de experimento, intervenções e teorizações sobre a diferença sexual e como risco de desestabilizar a diferença sexual como norma e verdade. Assim que o risco se apresenta, acionam-se práticas de intervenções normatizadoras que “corrigem” esses corpos, a fim de torná-los reconhecíveis do ponto de vista binário (homem ou mulher).
O participante P15 observa como gênero e sexualidade tem um espaço limitado no currículo médico e, quando abordado, muitas vezes é a partir de um viés medicalizante:
Mas ainda é muito pequeno e ainda entra no currículo muitas vezes de um jeito medicalizante a questão da variabilidade, então tem a tal da disforia de gênero, que são ensinadas como disciplina.
(P15, Medicina Preventiva)
A partir do relato des docentes, constata-se que não há uma disciplina específica que aborde gênero e sexualidade na grade curricular formal deste curso médico. Porém, os conteúdos relativos ao tema podem ser realizados dentro de algumas unidades curriculares/disciplinas. Ademais, foi incluída há alguns anos uma disciplina de caráter optativo na qual as temáticas são exploradas do ponto de vista sociocultural, com abordagem das políticas de gestão da diversidade de gênero e sexual. As disciplinas optativas podem ser escolhidas peles estudantes desde o primeiro ano. Essa disciplina é ministrada pelo departamento de Medicina Preventiva. O participante observa em sua entrevista que alunes chegam a se surpreender com a complexidade das temáticas e revelam uma expectativa por um recorte de caráter técnico e biomédico, conforme ocorreria em uma disciplina optativa ministrada pela Psiquiatria:
Na primeira vez que a gente ministrou essa disciplina optativa, algumas pessoas vieram fazer e tinham ficado na dúvida se faziam a nossa ou se faziam a da professora da Psiquiatria, que é um enfoque completamente diferente. Eles ficaram espantados, assim, porque esperavam encontrar aquela discussão médica sobre a questão de gênero, e não encontraram, era uma discussão que tinha a ver com saúde, mas que vinha pela perspectiva sociocultural e política da questão. Eles ficaram até meio tontos no começo, assim: “Nossa, não sabia que era uma coisa assim tão profunda, tão complexa”.
(P15, Medicina Preventiva)
Na cultura ocidental moderna, a Medicina se constituiu e se desenvolveu a partir de um modelo científico, positivista e mecanicista que enfatiza o saber biológico em detrimento dos saberes psicossociais. É isso que convencionalmente chamamos de “modelo biomédico” e que se torna insuficiente quando levamos em consideração a complexidade de temáticas que abordam a existência humana e os contextos sociais que nos atravessam1919 Leite AFS, Oliveira TRM. Sobre educar médicas e médicos: marcas de gênero em um currículo de medicina. Rev Estud Fem. 2015; 23(3):779-801..
Quando perguntades sobre quais especialidades mais se aproximariam das temáticas, a maior parte des docentes fez o paralelo com disciplinas que abordam os temas por um recorte biomédico e/ou patológico. Como nos diz P4:
Na Infectologia isso é discutido. Na Ginecologia Obstetrícia isso também é discutido. Na Psiquiatria, isso é discutido. Na Dermatologia isso é discutido, porque existem pessoas que querem fazer procedimentos estéticos por esses motivos. Na Psiquiatria, que até tem grupos que também trabalham com esse tipo de coisa. Então, Psiquiatria, Derma, Ginecologia e Obstetrícia, Infectologia, Clínica Médica também, porque Clínica Médica é geral.
(P4, Infectologia)
Assim como a docente P4, a maior parte des participantes acreditam que gênero e sexualidade são normalmente abordados em disciplinas como Psiquiatria; Ginecologia e Obstetrícia; Endocrinologia; Infectologia; e Dermatologia. A participante P4 trouxe que, apesar de atuar na Infectologia, não lida com essas temáticas porque se especializou em outras questões. Quanto à Obstetrícia, a participante P2 considera que sexualidade só é trabalhada do ponto de vista de atividade sexual durante a gravidez e gênero não é abordado, porque a disciplina foca somente em mulheres que engravidam, já que homens trans que engravidam são exceção:
Gênero não, porque a gente trabalha com mulheres grávidas. Só as mulheres que engravidam, as XX, então a gente não trabalha. Ainda é uma coisa da exceção, então a gente trabalha com a regra geral que são as mulheres que engravidam. Mas a gente tem sim a discussão da gravidez no homem trans.
(P2, Obstetrícia)
A participante P2 observa que nem é colocado em questão o tema “gênero” por se tratar de mulheres cisgêneras e, por se referir somente a um mesmo tipo de corpo – “as XX” –, não seria necessário debater essa temática. A socióloga Berenice Bento2020 Bento B. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond; 2006. faz uma crítica importante ao discurso biomédico que inventa o “transexualismo”. A autora discorre sobre como o saber médico entende o corpo transexual como exceção, marginal e uma cópia adoecida e defeituosa de seres heterossexuais e cisgêneros saudáveis. Assim, apesar de haver um debate emergente sobre corpos trans que engravidam, este ainda é colocado como uma exceção, que foge do padrão normativo.
O participante P7 fala da abordagem do tema na Ginecologia:
As aulas que eu dou são sobre sexualidade. Elas envolvem principalmente anamnese sexual, como abordar sexualidade dentro do contexto de uma consulta ginecológica e também, desde 2015 a gente dá aula sobre atendimento a população LGBTQIA+, como fazer o atendimento ginecológico para essa população.
(P7, Ginecologia)
Portanto, segundo o participante P7, questões sobre diversidade sexual e saúde da população LGBTQIA+(c(c)A sigla LGBTQIA+ significa “lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, queer, intersexuais, assexuais e +”. Anteriormente conhecida como LGB (lésbicas, gays e bissexuais), a sigla foi lançada em países de língua inglesa nos anos 1980 e sua versão brasileira – GLS – foi proposta por Andreé Fischer nos anos 199021.) são trabalhadas em uma aula dentro da disciplina de Ginecologia desde 2015. A discussão sobre a saúde LGBTQIA+ é recente2222 Gomes R. Agendas de saúde voltadas para gays e lésbicas. Cienc Saude Colet. 2022; 27(10):3807-14.. Somente após a década de 1980, o Ministério da Saúde do Brasil atuou junto com essa população no combate à epidemia do vírus da vírus da imunodeficiência humana (HIV). Pensar nessa população era sinônimo de programas antiaids, até que, em 2013, consolidou-se a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (Política LGBT), que valoriza a participação dos movimentos sociais na atenção à saúde das minorias sexuais, e ampliaram-se os debates para além das discussões sobre HIV.
A participante P10 menciona que houve uma demanda des alunes para trazer essas temáticas na disciplina de Clínica Médica e, por isso, recorreu a docentes na Psiquiatria, porque até então estava “preocupada com a técnica”. Esse contexto revela a percepção de novas necessidades peles docentes e a busca de articular algumas respostas para a questão:
Quando eu fui procurar a Psiquiatria, eu não fui porque eu percebi isso. Tiveram três alunos do 1º ano em 2015 que me procuraram e falaram: “Professora, a senhora falou tanto de técnica e não falou da pessoa? A senhora não falou de gênero, de diversidade de gênero. Como é que nós vamos trabalhar nisso se ninguém nunca vai falar?”. A partir do momento que esses meninos me procuraram, aí eu fui bater na porta da Psiquiatria. E aí a coisa passou a funcionar! Mas eu vou ser sincera, eu estava tão preocupada com a técnica que não me passou pela cabeça isso que é tão fundamental quanto a técnica.
(P10, Clínica Geral)
Essa situação revela como as demandas e iniciativas produzidas peles estudantes podem gerar movimentos no corpo docente. Outro ponto a ser considerado nesse sentido é se esses movimentos podem concorrer para a incorporação formal da temática no currículo formal.
Parte des docentes observam que os temas podem emergir em qualquer aula, não estando, portanto, necessariamente relacionados a alguma especialidade. A participante P12 nos diz:
Eu acho que tem que ser abordado na graduação, eu acho que quando ele surge, esses assuntos, eles surgem em qualquer aula que você dá. Eles aparecem. Mas ele não é o foco, né?
(P12, Pediatria)
Como Casate e Corrêa1212 Casate JC, Corrêa AK. A humanização do cuidado na formação dos profissionais de saúde nos cursos de graduação. Rev Esc Enferm USP. 2012; 46(1):219-26. já sinalizaram, é de suma importância a discussão interdisciplinar e transversal quando se trata de questões pertencentes à dimensão humana e cultural. Os autores também ressaltam a importância do tema gênero ser um conteúdo articulado com a prática, a fim de sensibilizar es estudantes a não permanecerem em um lugar passivo de absorção de conhecimento.
Pouca interação entre especialidades e a questão geracional
Uma das discussões que surgiu de forma unânime foi a pouca interação entre departamentos acadêmicos e especialidades médicas. Quando perguntada sobre em que situações as temáticas de gênero são abordadas ou quais especialidades têm mais aproximação com essas questões, a participante P1 ressalta o isolamento das disciplinas/unidades curriculares e como isso contribui para o não conhecimento de como gênero e sexualidade estão sendo abordados:
Sabe que tem uma característica aqui no nosso curso: eles são muito separados. Então eu sou patologista pulmonar, que me relaciono diretamente com o pneumologista, com o cirurgião torácico, com radiologista, e a gente faz a integração dentro do nosso tema. Por outro lado, não sei nada do que acontece na Nefrologia, na Obstetrícia.
(P1, Patologia)
Esse contexto de desconhecimento dificultaria uma atuação articulada e interdisciplinar para abordagem das temáticas. Segundo Koifman2323 Koifman L. A teoria de currículo e a discussão do currículo médico. Rev Bras Educ Med. 1998; 22(2-3):37-47., o Relatório Flexner, em 1910, impactou profundamente o ensino médico, pois, a partir dele, a Medicina científica se voltou ainda mais para a biologia; e tornou-se especializada e voltada para hospitais. O enfoque voltado à especialização e ao manejo de técnicas, procedimentos e instrumentos negligencia questões socioculturais, humanitárias e psicológicas.
O modelo biomédico é fruto do paradigma cartesiano e foi fundado a partir da moderna Medicina científica. Segundo esse modelo, o corpo humano é compreendido como uma máquina complexa. Esse maquinário é a junção de partes que se inter-relacionam e obedecem a leis naturais de funcionamento; por conta disso, precisa constantemente de inspeção por parte de ume especialista (médique)2424 Koifman L. O modelo biomédico e a reformulação do currículo médico da Universidade Federal Fluminense. Hist Cienc Saude-Manguinhos. 2001; 8(1):49-69. .
Guedes et al.2525 Guedes CR, Nogueira MI, Camargo KR Jr. A subjetividade como anomalia: contribuições epistemológicas para a crítica do modelo biomédico. Cienc Saude Colet. 2006; 11(4):1093-103. abordam o surgimento da racionalidade médica moderna e como, a partir de então, o saber e a prática médica são baseados no modelo das ciências naturais. O foco nas ciências e tecnologias biomédicas influenciou profundamente a formação médica a partir dos anos 1990. Se, por um lado, houve benefícios importantes no que diz respeito a procedimentos tecnocientíficos, por outro lado, prejudicou o atendimento integral e tornou os serviços e procedimentos cada vez mais especializados. Além disso, o mercado de trabalho influencia na formação profissional de Medicina, que exige profissionais superespecializades2626 Wickbold CC, Siqueira V. Política de cotas, currículo e a construção identitária de alunos de Medicina de uma universidade pública. Pro-Posições. 2018; 29(1):83-105. .
Uma das questões recorrentes nas entrevistas foi a não formação des docentes em relação às temáticas de gênero e sexualidade durante a própria graduação. É interessante observar que os participantes se situam na faixa etária de 53 e 72 anos, sendo que a maioria está na faixa dos sessenta anos, o que, consequentemente, pode significar terem se formado em período próximo uns dos outros.
O participante P13 comenta não ter sido capacitado durante a graduação nas temáticas de gênero e sexualidade. No entanto, procurou conhecimento por meio da literatura para suprir essa curiosidade:
Não, capacitado isso não aconteceu na faculdade, eu não fui treinado para isso. Eu fui me informando culturalmente através da literatura, da leitura, da curiosidade, e praticando a aceitação.
(P13, Cardiologia)
Nota-se que é uma questão histórica, visto que a área dos estudos de gênero é recente no Brasil e se consolida somente a partir de 1970, com o fortalecimento do movimento feminista no país2727 Maciel PA Jr. Tornar-se homem: o projeto masculino na perspectiva de gênero [tese]. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 2006. .
Os movimentos feministas trouxeram à tona discussões a respeito de gênero, porém, naquele momento, o termo designava a parte sociocultural do sexo. Butler, a partir dos anos de 1990, questiona a noção de que o sexo está para a natureza, assim como gênero está para a cultura2828 Nicholson L. Interpretando o gênero. Ithaca: Cornell University Press; 1999.. O sexo entendido como sexo pré-discursivo e politicamente neutro faz parecer natural como se sempre estivesse ali, mas, segundo Butler2929 Butler J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2003. , ele étão culturalmente construído quanto o gênero. Sendo assim, faz sentido es professories trazerem que a questão de gênero era nula na formação, pois era um campo de estudos muito recente na época em que estavam cursando a graduação.
Retomando a questão do termo “sexo” para se referir às diferenças entre corpos com vagina e corpos com pênis, Laqueur3030 Laqueur T. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. São Paulo: Relume Dumará; 2001. ressalta que atéo século XVIII havia uma noção “unissexuada” do corpo, ou seja, havia somente um sexo, representado pelo pênis, e a vagina seria o pênis atrofiado e não desenvolvido, portanto, uma derivação defeituosa e inferior. A partir do século XIX, surge a noção “bissexuada”, na qual há dois órgãos sexuais. Anteriormente, o corpo feminino era concebido como uma versão defeituosa do corpo masculino e, posteriormente, passa a ser encarado de uma maneira diferente3131 Loyola MA. Sexualidade e medicina: a revolução do século XX. Cad Saude Publica. 2003; 19(4):875-84. . Com as problematizações levantadas pelos movimentos feministas, “gênero” passou a ser utilizado para se referir ao aspecto relacional, cultural e social das noções normativas da feminilidade e masculinidade3232 Russo JA. A terceira onda sexológica: medicina sexual e farmacologização da sexualidade. Sex Salud Soc. 2013; (14):172-94. .
No que diz respeito à sexualidade, o participante P15 traz a experiência que teve no internato atendendo adolescentes e, consequentemente, envolvendo-se em discussões sobre sexualidade. No entanto, as questões levantadas sobre essa temática eram distintas das que ocorrem hoje. O entrevistado chega a usar a expressão “sofisticada” para se referir ao momento atual:
No programa, montamos um grupo sobre sexualidade para discutir sexualidade na adolescência. A discussão de gênero não estava tão sofisticada como eu acho que está hoje, porque discutíamos mais a questão das relações de poder entre homens e mulheres, e não a discussão da não polaridade, da diversidade de orientações e do significado inclusive sociopolítico disso. Mas na época a gente discutia mais essa questão dos papéis femininos, papéis masculinos, e como que isso, uma rigidez desses papéis, era prejudicial e produzia inclusive vulnerabilidades.
(P15, Medicina Preventiva)
Assim, as discussões se restringiam à questão dos papéis femininos e masculinos; e a como a rigidez nesses papéis pode produzir vulnerabilidades. Questões mais aprofundadas do significado social de gênero, problematização da binariedade e diversidade de orientações ainda não tinham sido colocadas em pauta.
No entanto, é importante ressaltar que os estudos sobre sexualidade se ancoram, primordialmente, na biologia a partir dos aparelhos reprodutores1010 Hankivsky O. Women’s health, men’s health, and gender and health: implications of intersectionality. Soc Sci Med. 2012; 74(11):1712-20.. Consequentemente, aquilo que se desvia do funcionamento voltado à reprodução é lido como patológico.
Segundo Loyola3131 Loyola MA. Sexualidade e medicina: a revolução do século XX. Cad Saude Publica. 2003; 19(4):875-84. , a sexualidade no século XX foi marcada pela interferência do campo médico por meio do desenvolvimento de tecnologias reprodutivas (contraceptivas e conceptivas) e pelo estudo de diversas disciplinas sobre ela (Psicanálise, Ciências Sociais, Pedagogia, etc.). Russo3232 Russo JA. A terceira onda sexológica: medicina sexual e farmacologização da sexualidade. Sex Salud Soc. 2013; (14):172-94. traz como marco a terceira versão do Diagnostic and Statistic Manual of Mental Disorders (DSM), conhecido como DSM III, publicado pela American Psychiatric Association em 1980. Trata-se de um manual baseado em uma concepção biológica bem clara. Dentro das inúmeras categorias classificatórias surgidas com a nova versão do manual, há o aumento considerável do número de transtornos ligados à sexualidade. No DSM I e DSM II, os transtornos ligados à sexualidade chamavam-se “desvios sexuais”, que eram baseados nas perversões listadas por Krafft Ebbing(d(d)Richard Krafft-Ebbing publicou em 1886 a obra Psychopatia Sexualis, que foi o “primeiro levantamento sistemático e completo das diferentes formas de perturbação da vida sexual humana, encaradas a partir de então como transtornos médico-psiquiátricos”33 (p. 380).), no século XIX. Assim, até o DSM II há o predomínio de um entendimento mais psicológico das perturbações mentais relacionadas à sexualidade, ligado ao viés psicanalítico. Após o DSM III, forma-se um conjunto específico de transtornos denominados “transtornos sexuais”, que passam a ser isolados das demais nomenclaturas, recebendo um tratamento específico.
Uma questão importante mencionada pelos participantes foram os impactos da epidemia da infecção pelo HIV/AIDS na percepção sobre o tema sexualidade. Isso pode ser observado na fala de P3:
Na época, estava bem no auge da pandemia do HIV e da AIDS. Então, existia muito a questão da discussão. Ligado muito à questão da Psicologia Médica e da Psiquiatria, da aceitação do que era normal, o que não era, e mostrar que a gente não pode impor os nossos valores frente aos pacientes.
(P3, Endocrinologia)
Fica claro que a epidemia do vírus HIV trouxe consideráveis impactos no que diz respeito ao campo médico. Segundo Brito, Castilho e Szwarcwald3434 Brito AM, Castilho EA, Szwarcwald CL. AIDS e infecção pelo HIV no Brasil: uma epidemia multifacetada. Rev Soc Bras Med Trop. 2001; 34(2):207-17., a epidemia da infecção pelo HIV/AIDS “representa um fenômeno global, dinâmico e instável, cuja forma de ocorrência nas diferentes regiões do mundo depende, entre outros determinantes, do comportamento humano individual e coletivo” (p. 207).
O participante P3 ressalta como a epidemia levantou questionamentos importantes para profissionais da saúde em relação a aceitação e preconceitos, isso porque, quando ainda não se tinha clareza sobre a origem do vírus e o que o causava, a sociedade passou a discriminar grupos específicos – os chamados “grupos de risco”, como homossexuais, usuáries de drogas e prostitutas. Consequentemente, culpabiliza-se o sujeito e seu comportamento, estigmatizando-o e fazendo com que ele seja visto como o responsável por sua condição, vista como moralmente inadequada3535 Cezar VM, Draganov PB. A História e as políticas públicas do HIV no Brasil sob uma visão bioética. Ensino Cienc. 2014; 18(3):151-6..
A fala do participante P10 ilustra também as mudanças ocorridas na área da Saúde por conta da epidemia:
Eu acho que a doença HIV fez uma transformação brutal na gente. Coisas tristes e coisas muito boas! Uma dessas coisas muito boas foi respeito. Respeito por diversidade de pessoas. Na clínica geral também. Todos os anos na clínica geral existe a preocupação de comunicação, de respeito do outro na diversidade.
(P10, Clínica Geral)
Desse modo, pode-se notar que a epidemia foi um marco muito importante em diálogos sobre vulnerabilidade de determinadas pessoas e em qual o papel da Saúde Pública do Brasil frente a essa questão. Houve uma mobilização muito grande de grupos sociais que já eram discriminados, sendo que a epidemia intensificou o descaso com tais grupos.
Considerações finais
O presente artigo identificou como a temática de gênero e sexualidade ainda permanece associada a um domínio anatomofisiológico, com pouca articulação com sua dimensão psicossocial e cultural. Ainda que sua importância seja reconhecida, sua presença é tímida na formação de profissionais de uma instituição tradicional de ensino médico. É importante destacar a percepção de entrevistades da necessidade de as temáticas figurarem de forma transversal no currículo, na medida em que podem ser objeto de discussão em qualquer especialidade clínica ou cirúrgica. A discussão sobre a formação docente na perspectiva geracional e as dificuldades expressas para abordar as temáticas gênero e sexualidade revelam a importância da capacitação docente e o fomento às atividades interdisciplinares no currículo médico.
Como limitações do estudo, consideramos que, em razão da pandemia de Covid-19, o trabalho de campo precisou ser executado em ambiente virtual, sendo necessário levar em consideração as limitações desse tipo de ambiente e fazer adaptações nos elementos que seriam possíveis de serem concretizados de maneira presencial3636 Watson A, Clark M, Southerton C, Lupton D. Fieldwork at your fingertips: creative methods for social research under lockdown. Nature. 2021. doi: 10.1038/d41586-021-00566-2.
https://doi.org/10.1038/d41586-021-00566... .
Um dos cuidados foi utilizar a plataforma Google Meet como recurso de web transferência, para encontros através de vídeo chamada, por ter sido uma ferramenta utilizada recorrentemente peles professories para ministrar aulas durante a pandemia. Assim, es professories já estavam familiarizados com a plataforma. Levou-se em consideração que todes es professories têm acesso à internet e a computadores ou smartphones, a partir dos quais as entrevistas poderiam ser feitas. O caráter virtual das entrevistas permitiu contornar algumas dificuldades de disponibilidade dos entrevistados. Contudo, apesar das vantagens da utilização do método das entrevistas virtuais, também houve limitações no tocante aos desafios de se criar um contato mais próximo e empático com os entrevistados. Algumas nuances muito importantes – como linguagem corporal, gestos seguidos das falas, expressões faciais, emoções ou demais ações valorizadas nos encontros – são mais difíceis de serem percebidas no contexto virtual.
As autoras consideram relevante ressaltar que a discussão foi limitada pela participação de algumas especialidades da Medicina, visto que somente um terço do total de professories foram entrevistades; portanto, algumas áreas médicas não participaram, como Dermatologia e Cirurgia. Isso pode sinalizar a própria ausência da formação e a baixa relevância dada às temáticas. Além disso, os perfis de professories estava restrito aquelus que aceitaram participar da pesquisa: apenas uma participante se autodeclarou amarela e todes se autodeclararam cisgêneres. Essa questão ilustra o perfil do corpo docente presente no curso de Medicina, majoritariamente homem, branco, heterossexual e cisgênero.
- (c)A sigla LGBTQIA+ significa “lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, queer, intersexuais, assexuais e +”. Anteriormente conhecida como LGB (lésbicas, gays e bissexuais), a sigla foi lançada em países de língua inglesa nos anos 1980 e sua versão brasileira – GLS – foi proposta por Andreé Fischer nos anos 199021.
- (d)Richard Krafft-Ebbing publicou em 1886 a obra Psychopatia Sexualis, que foi o “primeiro levantamento sistemático e completo das diferentes formas de perturbação da vida sexual humana, encaradas a partir de então como transtornos médico-psiquiátricos”33 (p. 380).
Agradecimentos
Agradecemos a todes es participantes que contribuíram para a pesquisa, à agência de fomento Capes e ao Programa de Saúde Coletiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Financiamento
A pesquisa recebeu fomento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).- *Ao longo do texto foi utilizada a linguagem neutra visando contemplar e validar todos os gêneros. A língua portuguesa é marcada pela binariedade e sexismo, através, por exemplo, do uso do pronome masculino para se referir a um grupo de pessoas com mais de um gênero. A linguagem neutra é uma possibilidade de comunicação sem demarcar gênero no discurso linguístico
- Nascimento A, Machin R. Gênero e sexualidade no currículo médico: a perspectiva de professories de um curso de graduação em Medicina. Interface (Botucatu). 2024; 28: e220628 https://doi.org/10.1590/interface.220628
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
04 Mar 2024 - Data do Fascículo
2024
Histórico
- Recebido
01 Dez 2022 - Aceito
05 Out 2023