Transformações cognitivas nas trajetórias de envelhecimento e longevidade em Saúde Mental

Transformaciones cognitivas en las trayectorias de envejecimiento y longevidad en salud mental

Laryssa Dayanna Costa Ferreira Karla Rosane do Amaral Demoly Yákara Vasconcelos Pereira Sobre os autores

Resumos

Este trabalho analisa os movimentos da cognição relacionados a percursos do envelhecimento e da longevidade no contexto de usuários atendidos em um Centro de Atenção Psicossocial. Buscamos apoio, especialmente, nos estudos da Biologia do Conhecer sobre os processos de cuidar e viver. A metodologia adotada é qualitativa, na forma da pesquisa-intervenção, com emprego de oficinas cenopoéticas que favorecem a livre expressão mediante múltiplas formas de ação na linguagem. Como resultado desta pesquisa, pudemos compreender mudanças de condutas na experiência dos participantes; e coordenações de ações novas e emergentes dirigidas ao cuidado com a saúde mental nos percursos do envelhecimento e da longevidade.

Palavras-chave
Envelhecer; Longevidade; Oficinas; Saúde Mental


Este trabajo analiza los movimientos de cognición relacionados a recorridos de envejecimiento y de longevidad en el contexto de usuarios atendidos en un Centro de Atención Psicosocial. Buscamos apoyo, especialmente, en los estudios de la biología del conocimiento sobre los procesos de cuidad y vivir. La metodología adoptada es cualitativa, en la forma de la investigación-intervención, con empleo de talleres escenopoéticos que favorecen la libre expresión, mediante múltiples formas de acción en el lenguaje. Como resultado de esta investigación, pudimos comprender cambios de conductas en la experiencia de los participantes, coordinaciones de acciones nuevas y emergentes dirigidas al cuidado con la salud mental en los recorridos del envejecimiento y de la longevidad.

Palabras clave
Envejecer; Longevidad; Talleres; Salud Mental


Introdução

Os estudos em Saúde enfatizam a questão da idade e consideram o envelhecer focado na experiência de idosos. Ao trazer a longevidade em nossa pesquisa, fazemos um deslocamento para as mudanças nos estados de saúde física e mental, com o foco não apenas na questão da idade, ao envolver usuários interessados no tema da pesquisa e que são atendidos em uma instituição voltada à promoção da saúde mental.

Ao longo da vida, experienciamos mudanças que estão entrelaçadas com formas de conviver. Partindo dessa reflexão, construímos a seguinte questão de pesquisa: como os sujeitos que realizam tratamento na saúde mental constroem seus processos de envelhecer e sua própria longevidade?

Neste estudo, procuramos compreender como usuários que realizam tratamento na saúde mental transformam as experiências que associam ao envelhecer e à longevidade.

Envelhecer, longevidade e Saúde Mental

Ao tematizar a relação entre o envelhecer, a longevidade e a saúde mental, estamos a discutir as condutas cotidianas e a vida que delas emerge, processo contínuo de cocriação eu-mundo. O transcurso espontâneo do viver humano nos coloca diante de mudanças relacionadas ao avanço da idade, gerando transformações no organismo que requerem cuidados diferenciados.

Em nosso processo de envelhecimento, passamos por transformações biológicas, psicológicas e sociais, nas quais podemos ter a presença de doenças crônicas, de limitações físicas, de emoções no lidar com perdas, da aposentadoria, etc.11 Veras RP, Oliveira M. Envelhecer no Brasil: a construção de um modelo de cuidado. Cienc Saude Colet. 2018; 23(6):1929-36. doi: 10.1590/1413-81232018236.04722018.
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. Essas mudanças acontecem e interagem com os cuidados que, por meio de nossas condutas de linguagem, tornam perceptíveis o viver que estamos a conservar. Por isso, ainda na fase adulta, podemos nos deparar com questões do nosso envelhecer que produzem inquietações. Transformações no viver tornam perceptíveis o devir humano, processos que envolvem mudanças estruturais contínuas na conservação da organização, que é a própria vida22 Maturana H. Cognição, ciência e vida cotidiana. Belo Horizonte: Editora UFMG; 2001..

A longevidade implica atentar para a duração, a conservação e o prolongamento da vida – viver mais é importante, mas desde que seja com qualidade e com ações de cuidado com a saúde. O viver humano requer cuidados diários, por exemplo, com a alimentação, a prática continuada de atividades físicas e as emoções no lidar com o espaço cotidiano, que se relacionam à aprendizagem do autocuidado11 Veras RP, Oliveira M. Envelhecer no Brasil: a construção de um modelo de cuidado. Cienc Saude Colet. 2018; 23(6):1929-36. doi: 10.1590/1413-81232018236.04722018.
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,33 Silveira N. Imagens do inconsciente. Rio de Janeiro: Vozes; 2017.. São aprendizagens das mais difíceis de realizar, ao mobilizarem a atenção para as relações nas quais escolhemos o viver que queremos conservar. Uma possibilidade, nesse sentido, é o cuidado de si e a atenção para a convivência com os outros e com o meio. Nessa direção, temos a colaboração.

Os seres humanos, na perspectiva da Biologia do Conhecer que acolhemos, são compreendidos como seres constitutivamente amorosos que, desde o nascimento, necessitam do cuidado dos outros para sobreviver. O amor, nessa abordagem, não é um simples sentimento, mas sim um emocionar, um modo de estar com os outros e de coordenar condutas na linguagem na direção dos cuidados que garantem a conservação da vida22 Maturana H. Cognição, ciência e vida cotidiana. Belo Horizonte: Editora UFMG; 2001..

Se o amor é a emoção fundante do fenômeno social, que nós, humanos, conservamos em nossas linhagens mamífera e hominídea, e que possibilita a linguagem, fica evidente que essa emoção deverá estar presente em qualquer domínio humano que conotamos como social, e, não, na competição, na opressão ou na submissão, que são domínios de ação em que não é pertinente a aceitação do outro na convivência44 Vianna B, Andrade LAB, Vaz NM. Ensinar é impossível, e aprender, inevitável: comentários sobre a epistemologia de Humberto Maturana. Rev Helius. 2020; 3(2):1183-227..

(p. 1213-4)

Essa reflexão discutida por Viana et al.44 Vianna B, Andrade LAB, Vaz NM. Ensinar é impossível, e aprender, inevitável: comentários sobre a epistemologia de Humberto Maturana. Rev Helius. 2020; 3(2):1183-227. é também pertinente ao pensarmos sobre as relações e as práticas construídas entre os usuários e a equipe multiprofissional; os usuários e estagiários que ali atuam; e os usuários e pesquisadores, pois implica o olhar para a presença legítima do outro na convivência.

Nós, os seres humanos, vivemos no fluir de redes de conversações – leis, gestos, imagens, narrativas e construções – que dão visibilidade a processos de individuação psíquicos e coletivos, como um fluir de nossa história ancestral. Nesse percurso, podemos abrir espaço para a livre reflexão sobre o viver que queremos conservar nas condutas cotidianas.

Simondon55 Simondon G. Du mode d’existence des objets techniques. Paris: Aubier; 1989.,66 Simondon G. L’individuation à la lumière des notions de forme et d’information. Grenoble: Editions Jêrome Millon; 2013. é um importante intercessor teórico, uma vez que amplia a reflexão sobre os efeitos dos acoplamentos que acontecem quando, ao longo de nossa história humana, tomamos diferentes objetos e criamos formas de agir no mundo. O filósofo desenvolveu uma potente discussão sobre a individualização dos objetos técnicos e a individuação psíquica e coletiva, processos nos quais agimos sobre nós mesmos e vamos produzindo as defasagens do ser. As construções do autor55 Simondon G. Du mode d’existence des objets techniques. Paris: Aubier; 1989.,66 Simondon G. L’individuation à la lumière des notions de forme et d’information. Grenoble: Editions Jêrome Millon; 2013. trazem a necessária reflexão de conjunto, quando queremos compreender as transformações humanas nos diferentes contextos e sociedades.

Biologia do Conhecer

Maturana e Varela77 Maturana H, Varela F. A árvore do conhecimento: as bases biológicas do entendimento humano. Campinas: Psy II; 1995., biólogos e cientistas chilenos, ajudam a compreender como acontecem os processos de conhecer e viver. Os autores77 Maturana H, Varela F. A árvore do conhecimento: as bases biológicas do entendimento humano. Campinas: Psy II; 1995. constroem, a partir de inúmeros estudos sobre fenômenos perceptivos, o conceito de “autopoiese”, palavra de origem grega na qual “auto” significa “por si”; e “poiese”, produção, capacidade de os seres vivos produzirem a si mesmos. “Os seres vivos se caracterizam por, literalmente, produzirem-se continuamente a si mesmos”77 Maturana H, Varela F. A árvore do conhecimento: as bases biológicas do entendimento humano. Campinas: Psy II; 1995. (p. 84). A interação com o meio, nos seres humanos, possibilita novos acoplamentos, pois somos seres de linguagem. “A linguagem é um modo de viver juntos num fluir de coordenação consensual de coordenações consensuais de comportamentos, e é como tal um domínio de coordenações de coordenações de ações”22 Maturana H. Cognição, ciência e vida cotidiana. Belo Horizonte: Editora UFMG; 2001. (p. 178). Ao observarmos nossas próprias condutas na linguagem podemos refletir sobre as emoções que as sustentam. Em um momento seguinte, podemos realizar distinções que permitem um novo operar nessa rede fechada, instigando mudanças na emoção. Se mudarmos nossa emoção, mudaremos também nossas coordenações de ações.

Seguindo nessa direção, Vianna et al.44 Vianna B, Andrade LAB, Vaz NM. Ensinar é impossível, e aprender, inevitável: comentários sobre a epistemologia de Humberto Maturana. Rev Helius. 2020; 3(2):1183-227. esclarecem que a linguagem “não tem lugar no corpo dos participantes, mas, sim, no espaço relacional enquanto coordenações recorrentes e consensuais de conduta” (p. 1213). Podemos compreender mudanças relacionadas ao envelhecer e à longevidade pela observação e análise das redes de conversações tecidas na experiência da pesquisa, pois nelas temos recursões recorrentes de coordenações comportamentais consensuais que permitem visibilizar processos de conhecer e viver que emergem na experiência dos participantes durante oficinas.

Metodologia

O estudo que desenvolvemos é de natureza qualitativa, com delineamento na pesquisa-intervenção que se desenvolve com a proposição de uma experiência que reúne um pequeno coletivo de usuários, participantes dos encontros do Programa de Extensão Oficinando em Rede, realizado em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS).

O CAPS é organizado em uma residência em uma comunidade que oferece tratamento diário e continuado a pessoas em sofrimento psíquico. Com uma equipe multiprofissional, seu espaço é dividido para atendimentos de Enfermagem, Psicologia, Medicina Psiquiátrica, Educação Física e Assistência Social.

Durante o período de aproximação com os participantes desta pesquisa, inserimo-nos nas atividades do programa de extensão e os profissionais do CAPS estavam presentes nesse momento inicial da pesquisa, ajudando-nos na obtenção, por exemplo, dos contatos dos usuários.

O caminho que construímos envolve um fazer compartilhado, no qual o próprio pesquisar é uma intervenção e produto; “e, ao mesmo tempo, produz um domínio de conhecimento” entre os sujeitos envolvidos – os participantes e os pesquisadores88 Maraschin C. Pesquisar e intervir. Psicol Soc. 2004; 16(1):98-107. (p. 104).

A escrita, como ação das pesquisadoras, interage com a metodologia em primeira pessoa proposta por Varela. Estando de acordo com o cientista, acolhemos a ideia de que, ao pesquisar, estamos presentes no sistema que observamos e, ao mesmo tempo, estamos agindo sobre nós mesmos99 Varela F. El fenómeno de la vida. Santiago do Chile: Dolmen Ediciones; 2002..

Nesta pesquisa-intervenção, as oficinas cenopoéticas compõem os procedimentos de pesquisa. A cenopoesia, conceito construído por Ray Lima, educador popular em saúde do nordeste brasileiro, é uma mistura das diversas linguagens artísticas e uma possibilidade de integração de múltiplas linguagens1010 Silva EJ. Cirandas da vida no roteiro da cenopoesia de Ray Lima. In: Brasil. Ministério da Saúde. De sonhação a vida é feita, com crença e luta o ser se faz. Brasília: Ministério da Saúde; 2013. . Nas oficinas, integramos a cenopoesia envolvendo teatro, pinturas e cirandas. As múltiplas linguagens da cenopoesia, os processos interativos e as brincadeiras favorecem a livre expressão do viver.

Os participantes da pesquisa foram cinco usuários que acolheram e se interessaram em pensar sobre o envelhecer e a longevidade, todos já integrantes do Programa Oficinando em Rede. Contamos com quatro mulheres e um homem, na faixa etária de 52 a 65 anos. Assim, nossa pesquisa envolveu não apenas os sujeitos considerados idosos – ou seja, com sessenta anos de idade ou mais –, mas também aqueles que vivenciam a experiência do envelhecer e se interessaram em abordar esse tema. Para preservar as identidades e os preceitos éticos, optamos por utilizar os seguintes nomes fictícios: Carlos, Clarice, Adélia, Coralina e Cecília. São pessoas que vivem circunstâncias de vulnerabilidade social, seus locais de moradia estão situados nas regiões periféricas em uma cidade no interior do nordeste brasileiro e todos deixaram de trabalhar devido às circunstâncias de sofrimento que os levaram a buscar atendimento no CAPS.

O percurso metodológico nesta pesquisa se deu em duas etapas. Na primeira, integramos oficinas do Programa Oficinando em Rede e suas reuniões de planejamento. Já na segunda etapa da pesquisa, organizamos oficinas cenopoéticas com os cinco participantes. Acompanhamos a experiência por meio da filmagem das oficinas e dos atos cenopoéticos; e pudemos compor um amplo material de pesquisa para nossa observação e análise, com imagens, vídeos, autonarrativas dos participantes e escritas de diários de bordo, nos quais registramos os momentos e as condutas/coordenações de ações dos participantes, materiais necessários para nossa reflexão e discussão.

O trabalho de análise dos materiais de pesquisa foi realizado de modo que traçamos os pontos de conexão e/ou de distanciamento nos modos de agir sobre o envelhecer, a longevidade e os cuidados em saúde mental. Procuramos atentar e compreender melhor o percurso de cada sujeito nas suas relações com a experiência do envelhecer e da longevidade. Conforme íamos observando a experiência, pudemos interconectar as falas com as imagens construídas nas criações cenopoéticas, compondo o processo de reflexão como um mosaico.

É importante ressaltar que esta pesquisa foi submetida e aprovada no Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), sob o parecer CAAE n. 25802819.5.0000.5294, assegurando as normas previstas nas Resoluções n. 466/12 e n. 510/16, do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que visam à proteção do sujeito da pesquisa por meio da garantia dos aspectos éticos e legais desta.

Resultados e discussão

O estudo que realizamos se origina com a inserção das autoras nas atividades do Programa Oficinando em Rede, contexto em que integramos as oficinas semanais. Além disso, participamos da 8ª Jornada de Estudos do Programa. Todo esse processo oportunizou a construção de laços com os participantes da pesquisa, o que nos permitiu, adiante, compor as oficinas diretamente vinculadas às ações de pesquisa. Ocorreu uma oficina presencial em um espaço no CAPS e cinco oficinas virtuais, que foram necessárias devido ao surgimento da pandemia de Covid-19.

Na primeira oficina (presencial), colocamos sobre a mesa as expressões “envelhecer”, “longevidade” e “saúde mental”. Logo, os participantes se puseram a narrar:

Eu penso muito sobre minha velhice. Porque apareceu umas doenças que eu digo que é por causa da idade, como doença nos ossos. Eu já estou com 65 anos. Eu costumava arrumar minha casa, abandonei, já não consigo. Já tentei até me matar, porque eu sempre fui muito “artera”, fazia muita coisa, depois não consegui [...]. Hoje eu estou mais conformada, mesmo com as doenças. Eu ligava com que os outros falavam da minha aparência, hoje em dia eu não ligo. Eu sou doente, mas não vivo no medico me cuidando. Logo, a médica quer que eu faça o tal do regime e eu não quero fazer. Mas eu sei que é importante.

(Autonarrativa de Cecília. Diário de Bordo – Primeira oficina, presencial – 16/03/2020)

Eu penso assim, que agora está voltando uns problemas nos ossos, daí eu envelhecendo tenho medo. Porque quando era pequeno, com meus seis anos, eu fiquei paralítico por conta desse problema nos ossos, até os 15 anos eu fiquei sem andar, eu ficava numa rede [...] depois de uma cirurgia eu voltei a andar, mas por conta da idade também tá atacando de novo. [...] só não tô muito feliz por conta desse medo de voltar a ficar sem andar novamente e também eu tenho muito desgosto pelo trabalho, eu não posso mais trabalhar, eu tô andando muito pouco agora, daí eu tenho desgosto disso.

(Autonarrativa de Carlos. Diário de Bordo – Primeira oficina, presencial – 16/03/2020)

Como podemos observar, Cecília lida com alguns problemas de saúde; e compartilha que não se cuida e que acredita que essas questões são devido à idade, conformando-se com a situação. Relatou tentativas de suicídio e entradas no hospital, mas que agora enfrenta esse momento sem se “importar”. Ela demonstra preocupação, porém, coloca em questão sua dificuldade de se cuidar. Conforme Pellanda1111 Pellanda NMC. Inventando a minha subjetividade de idosa: uma abordagem complexa. Rev Bras Geriatr Gerontol. 2012; 15(4):797-804. doi: 10.1590/S1809-98232012000400018.
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, aprender a viver, realizando práticas de cuidado e construindo um envelhecer com saúde, requer um trabalho de reconstrução de si mesmo. A dificuldade de se cuidar é uma dimensão destacada nas autonarrativas e se repete no viver dos usuários dos serviços. Emerich e Onocko-Campos esclarecem e indicam possibilidades para a construção de novos modos de cuidar:

Para que tais aspectos possam ser concretizados na reorientação de práticas clínicas e de gestão dos serviços, a atuação dos trabalhadores é fundamental. Enquanto agentes do cerzimento e sustentação do modelo de cuidado proposto, os trabalhadores podem construir novos ou reproduzir antigos modos de cuidar, suscitar críticas e produzir conhecimento acerca dos impasses e avanços para o fortalecimento do cuidado calcado na existência-sofrimento dos sujeitos e na ampliação das ofertas de tratamento, uma vez que “[...] não adianta mudar as leis e as estruturas sem mudar as pessoas”1212 Emerich BF, Onocko-Campos R. Formação para o trabalho em saúde mental: reflexões a partir das concepções de sujeito, coletivo e instituição. Interface (Botucatu). 2019; 23:e170521. doi: 10.1590/Interface.170521.
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.

(p. 2)

Estamos de acordo com os autores, que indicam a necessidade de mudar os modos de cuidar e de agir no cotidiano dos atendimentos, o que implica a necessária reflexão sobre nossas percepções sobre o envelhecer. Os participantes da pesquisa passam a criar modos de livre expressão nos atos cenopoéticos e nutrem a alegria com suas criações, mas são recorrentes as autonarrativas relacionadas à dor e ao sofrimento: palavras, escritas e cenas de lamento emergem nas conversações nos encontros virtuais.

Carlos também enfrenta algumas questões com seu envelhecer. Relata o problema em seus ossos que se agravou e o seu medo contínuo de ficar paraplégico. Essa emoção é tão forte que Carlos compartilha de seu sofrimento e de suas dificuldades em todos os encontros e não consegue encontrar soluções, ou mesmo realizar mudanças para um viver mais alegre e de cuidado, transformando sua emoção. Segundo Pellanda1111 Pellanda NMC. Inventando a minha subjetividade de idosa: uma abordagem complexa. Rev Bras Geriatr Gerontol. 2012; 15(4):797-804. doi: 10.1590/S1809-98232012000400018.
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, o medo de certas condições de velhice e das doenças degenerativas podem ser ruídos desestabilizadores, o que requer um trabalho interno e contínuo de reorganização para assumir uma atitude autopoiética de autoria.

Assim, a emoção do medo e do desgosto é perceptível na vida de Carlos e Cecília. Eles encontram dificuldades de modificar as emoções que sustentam as ações de linguagem que são perceptíveis e, consequentemente, realizar ações de cuidado e construir um viver melhor. Carlos participa do teatro, das oficinas e dos atos cenopoéticos, mas, em casa, relata que não tem ânimo para seguir se cuidando. Outra questão percebida e vivenciada por Carlos e Cecília foi o desgosto em não poder trabalhar e/ou realizar certas atividades que antes eram realizadas. Porém, presenciamos anteriormente, na oficina de dança e teatro durante a jornada mencionada, que os dois possuem uma vitalidade que não é percebida por eles. Sobre a mudança no emocionar, aponta Maturana22 Maturana H. Cognição, ciência e vida cotidiana. Belo Horizonte: Editora UFMG; 2001.:

Quando mudamos de emoção, mudamos de domínio de ação. Na verdade, todos sabemos isso na práxis da vida cotidiana, mas o negamos porque insistimos que o que define nossas condutas como humanas é elas serem racionais. Ao mesmo tempo todos sabemos que, quando estamos sob determinada emoção, há coisas que podemos fazer e coisas que não podemos fazer, e que aceitamos como válidos certos argumentos que não aceitaríamos sob outra emoção.

(p. 15)

Durante essa primeira oficina presencial, Clarice também compartilhou alguns problemas de saúde que enfrenta e que realiza certas atividades para um viver mais saudável:

Quem não quer ficar velho, morra novo. Velha eu não me sinto não, eu tenho alguns problemas de saúde, algumas doenças, doenças dos ossos, mas eu consigo fazer muitas coisas ainda. Minha cabeça dói direto sem parar, tomo muitos remédios, ainda tenho aquela tristeza. Mas, apesar da idade, tento me movimentar para essas doenças não me pegar.

(Autonarrativa de Clarice. Diário de Bordo – Primeira oficina, presencial – 16/03/2020)

Embora precise enfrentar diversas doenças, Clarice compartilhou que tenta lidar com seu viver de forma mais saudável e que não se sente velha para realizar certas atividades, apesar da idade. Logo após ouvir seus amigos do CAPS falarem sobre seu envelhecer, Coralina demonstrou certo interesse em compartilhar algo:

A velhice não está na sua aparência, a velhice está na sua cabeça, porque eu conheço uma velhinha de 99 anos que ela é durinha, ela dança, ela brinca, ela não tira o batom da boca e ela diz que é a mulher mais feliz do mundo. Ela dança lá no CRAS [Centro de Referência de Assistência Social], só queria que você visse. A gente ainda pode andar, conversar, então a gente tem é que aproveitar e dar graças a Deus e viver, né.

(Autonarrativa de Coralina. Diário de Bordo – Primeira oficina, presencial – 16/03/2020)

Coralina compreende seu envelhecer a partir de uma outra perspectiva e traz as relações entre idade e incapacidade como um modo de pensar – “está em nossa cabeça” –, o que permite nossa reflexão sobre como em nossa cultura acolhemos e nos relacionamos com os percursos ligados ao envelhecer e à longevidade.

Logo após nossa conversação, eles escolheram duas músicas para cantarmos: “Escuta”1313 Lima R. Roteiros Cenopoéticos. In: Brasil. Ministério da Saúde. De sonhação a vida é feita, com crença e luta o ser se faz. Brasília: Ministério da Saúde; 2013. e “Corpo meu, minha morada”1313 Lima R. Roteiros Cenopoéticos. In: Brasil. Ministério da Saúde. De sonhação a vida é feita, com crença e luta o ser se faz. Brasília: Ministério da Saúde; 2013.. Durante a atividade na qual ouvíamos a música “Corpo meu, minha morada”, tiramos um tempo para fechar os olhos, apreciar a música e respirar profundamente, considerando esta uma prática de cuidado.

Após esse momento de leveza e reflexão, pudemos perguntar: “O que acharam da música, da letra?”. Adélia se pôs a falar:

Nosso corpo é nossa morada, nossa casa, então principalmente com a idade nosso corpo vai mudando. Têm umas coisas que estão envelhecendo em mim que eu fico meio desgostosa. Minha pele tá meio enrugada – e olha que eu nem sou tão velha assim –, mas minha aparência já está me incomodando. Por isso que é mais difícil com o tempo. Essa música fala disso.

(Autonarrativa de Adélia. Diário de Bordo – Primeira oficina, presencial – 16/03/2020)

Adélia traz, em sua autonarrativa, a importância de nos cuidarmos: nosso corpo é como nossa morada e, como nossa casa, podemos cuidar. Porém, compartilhou a dificuldade desse cuidado ao nos depararmos com as mudanças na aparência, devido ao avançar da idade. Como nos coloca Cruz1414 Cruz NN. Cartas para desver o conceito de resto: a cenopoesia no Hotel da Loucura [dissertação]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2018., a cenopoesia possibilita a expressão do viver em ato:

E se o corpo também é tempo? Cuidar do tempo-corpo, criar e conquistar possibilidades de vida, fuçar o que pulsa de bom, leve, radiante, para então problematizar os acontecimentos que nos rodeiam. Aprender o apoio. Cenopoesia a vida em ato, no aqui e agora, nela a cena faz thun e começa por mim o espetáculo.

(p.26)

As oficinas seguintes ocorreram de forma on-line devido ao agravamento da pandemia de Covid-19 e, então, decidimos repensar nosso percurso metodológico. Entramos em contato com os participantes e discutimos juntos nossas futuras oficinas on-line. Tristemente, antes de prosseguirmos, Coralina, uma das participantes, veio a falecer. Segundo a família, ela estava com coronavírus e, por conta do agravamento da doença, não resistiu. Foi um momento de dor e perda para nós, pesquisadoras e usuários. Coralina mostrou em nossa pesquisa que lidava com seu envelhecer com alegria, estava sempre presente e a lidar com seu envelhecer buscando saúde mental, o que nos ensinou que a felicidade e a potência no agir não é determinada por nossa idade. Fizemos um ritual de homenagem e despedida de Coralina e, no bojo da pesquisa, Carlos, Clarice, Adélia e Cecília puderam dizer palavras de despedida e simbolizar o momento de perda da amiga, tão querida por todos.

Iniciamos nossa segunda oficina, realizada de forma on-line, perguntando como se encontravam naquele momento. Nosso objetivo era compreender como cada um estava lidando com seu envelhecer e sua longevidade diante da situação que permeava nosso viver. Discutimos e eles compartilhavam as práticas de cuidado que cada um realizava – ou não realizava – no contexto de agravamento da pandemia de Covid-19. Quando perguntamos como cada um estava, Carlos compartilhou sua angústia:

Eu sinto saudades de ver presencialmente as pessoas, de passear e de ir ao CAPS. Às vezes me sinto angustiado com algumas coisas na cabeça.

(Autonarrativa de Carlos)

Naquele momento, o questionamos: “O que você está fazendo para mudar? O que tu faz que te alegra?”. Ele respondeu:

Ainda estou procurando algo para mudar essa situação, tentando achar algo que me alegra. Mas no momento estou vivenciando um período de sofrimento.

(Autonarrativa de Carlos. Diário de Bordo – Segunda oficina, on-line – 29/07/2020)

Já Clarice nos mostrou o que estava fazendo para alegrar o seu dia e se cuidar:

Clarice cultiva inúmeras plantas em seu quintal e compartilha seus ensinamentos e sabedoria sobre cada uma delas, mostrando-as com entusiasmo. Contou que adora tomar chimarrão e utilizar algumas ervas da sua plantação. Nos deu uma verdadeira aula sobre os benefícios das plantas medicinais e propôs ensinar a plantar com os amigos do CAPS depois da pandemia. Compartilhou com todos que às vezes o que a incomoda são as dores nas articulações e problemas de coluna que iniciaram há cerca de 15 anos. Falou que faz acompanhamento, vai às consultas e que realiza sempre algumas atividades para ajudar seu corpo.

(Diário de Bordo – Segunda oficina, on-line – 29/07/2020)

É importante destacar o emocionar do medo, de desejos e de preocupações, também discutidos por Cardoso e Silva1515 Cardoso AJC, Silva GA. Medos, desejos e preocupações acerca da sindemia de Covid-19 e sofrimento psíquico: experiências extensionistas no sul da Bahia, Brasil. Interface (Botucatu). 2022; 26:e210675. doi: 10.1590/interface.210675.
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, emergindo nas narrativas durante a pandemia, contexto no qual a conservação do viver requer o distanciamento social. Nesse momento, realizamos e propusemos algumas práticas de atividade física, como alongamentos simples, que ajudam a fortalecer o corpo e a se movimentar, sem tanto esforço físico, para não forçar as articulações. Foram alongamentos que realizamos juntos, pois eles propuseram alguns que já conheciam. Dessa forma, Clarice nos mostrou que estava buscando formas de cuidado e de sustentação do viver durante esse período de pandemia.

Na terceira oficina, Adélia sentiu a necessidade de compartilhar como estava seu viver, lidando com seu envelhecer e sua saúde mental naquele período de isolamento:

O que estou achando ruim nesse momento é que não podemos nos reunir, estou com saudades dos encontros no CAPS. Além de me distrair dos pensamentos ruins, eu gostava. Mas, agora com as oficinas pelo Whats, podemos rever os amigos, brincar e nos alegrar um pouco como antes.

(Autonarrativa de Adélia. Diário de Bordo – Terceira oficina, on-line – 07/08/2020)

Silveira33 Silveira N. Imagens do inconsciente. Rio de Janeiro: Vozes; 2017. esclarece sobre as funções criadoras, nas quais, ao lidar com uma tessitura por meio de linguagens, o cliente percebe-se artista e consegue lidar com as próprias emoções, de modo a manejar e aliviar o próprio sofrimento. As diferentes formas artísticas integram a cenopoesia e potencializam a livre expressão; por isso, os participantes da pesquiusa demonstraram sentir saudades das oficinas e, ao mesmo tempo, apreciam do fato de, nesses encontros, ser possível a realização de oficinas cenopoéticas sobre o envelhecer e a longevidade.

Logo após a fala de Adélia, que compartilhou que estava menos ativa, Carlos e Clarice comentaram com alegria que, na oficina anterior, na qual a Adélia não pôde participar, fizemos uma série de exercícios e alongamentos que eles estavam realizando em casa e que gostariam de compartilhar com ela para ajuda-lá. Começamos então os alongamentos, ensinados pelos próprios participantes. Para cirandar, eles pediram a música que nomearam como “do sol”1313 Lima R. Roteiros Cenopoéticos. In: Brasil. Ministério da Saúde. De sonhação a vida é feita, com crença e luta o ser se faz. Brasília: Ministério da Saúde; 2013., cantiga do cenopoeta Ray Lima.

Já Cecília, em nossas conversas por chamadas telefônicas (realizadas devido ao fato de que ela não tem acesso à internet), demonstrou, assim como Adélia, uma preocupação diante da Covid-19 e falou da dificuldade de se cuidar:

Em casa é difícil algumas coisas, não estou me alimentando muito bem, não saio como antes e também não me arrumo mais, daí não consigo mais controlar minha diabetes, tenho algumas dores nos ossos, além da tristeza, né, que às vezes vem.

(Autonarrativa de Cecília. Diário de Bordo – Conversa ao telefone – 10/08/2020)

Naquele momento, perguntei se ela realizava alguma atividade que a alegrava e que gostava de fazer, como prática de cuidado em seu viver. Ela relatou que gostava muito das músicas das oficinas. Relembrei a ela algumas, cantamos juntas as cirandas com as seguintes cantigas: “Escuta”, “Eu quero pegar o sol” e “A roda é o fluxo da história”, cantigas e criações de artistas/educadores populares em saúde do nordeste brasileiro, como Ray Lima, Junio Santos e Johnson Soares1010 Silva EJ. Cirandas da vida no roteiro da cenopoesia de Ray Lima. In: Brasil. Ministério da Saúde. De sonhação a vida é feita, com crença e luta o ser se faz. Brasília: Ministério da Saúde; 2013. .

Na quarta oficina, on-line, os participantes levaram algumas músicas e poesias e discutiram sobre questões que eles estavam lidando no percurso do envelhecer.

Clarice nos mostrou suas plantas, para que serve cada uma, como podemos cultivá-las em nossa casa e utilizá-las em nossa alimentação. Carlos relatou que gosta de ouvir músicas e compartilhou algumas que adora, como Carimbó Português (Roberto Leal), o amor é um bem maior (Tony – violão e voz). Naquele momento, coloquei as músicas no Youtube para acompanhar o Carlos enquanto ele nos ensinava as letras das músicas.

(Diário de Bordo – Quarta oficina, on-line – 10/08/2020)

Observamos uma mudança nas ações de Carlos. Antes, ele sempre compartilhava seu sofrimento; sua angústia; e o medo de não poder mais andar e de ficar sozinho na velhice. Carlos mora com os pais; sua mãe está acamada e seu pai sofre de Alzheimer. Porém, na quarta oficina, Carlos compartilhou sua alegria com a música, contou sobre seus músicos preferidos, algumas boas lembranças em sua vida e que adora estar ao lado do seu pai e ouvir músicas nas rádios, sentando junto a ele na calçada.

Em nossa quinta oficina on-line, compartilhamos poesias e procuramos escutar os participantes em suas reflexões sobre os processos de envelhecer e a longevidade. Adélia ainda demonstrou estar incomodada com algumas mudanças em seu corpo devido ao seu envelhecer. Compartilhamos com eles a poesia “Erótica é a alma”1616 Prado A. Poesias Reunidas. São Paulo: Siciliano; 1991., de autoria da poeta Adélia Prado.

Após a poesia, a participante Adélia desabafou que realmente uma de suas grandes dificuldades e obstáculos é não se sentir bem com sua aparência. As mudanças devido à idade a deixam incomodada:

Eu estou percebendo algumas mudanças em meu corpo em que eu não gosto. Minha pele tá ficando meia enrugada, sabe? Tá aparecendo uns cabelos brancos e minha barriga tá ficando mais caída. Eu nunca pensei que eu ia ficar assim com meus 52 anos.

(Autonarrativa de Adélia. Diário de Bordo – Quinta oficina, on-line – 14/08/2020).

Logo após a fala de Adélia, Clarice compartilhou que, nela, também está nascendo alguns cabelos brancos, mas que, por enquanto ainda, não a incomodam, diferentemente dos seus problemas de saúde:

Tá aparecendo uns cabelos brancos também, sabe, mas minha aparência ainda não me incomoda não, o ruim mesmo é os meus problemas nos ossos, mas também eu não fico parada não, me exercito, tô fazendo aqueles alongamentos, planto minhas plantinhas, tomo muito suco e me cuido, vou às consultas, eu não fico parada não, senão é pior.

(Autonarrativa de Clarice. Diário de Bordo – Quinta oficina, on-line – 14/08/2020)

Observamos nas autonarrativas movimentos de auto-organização do viver. Também percebemos as perturbações que emergem nas redes de conversações e nas oficinas cenopoéticas e que os participantes passam a lidar com as próprias emoções e a refletir sobre suas ações cotidianas22 Maturana H. Cognição, ciência e vida cotidiana. Belo Horizonte: Editora UFMG; 2001.. Inspirados nos estudos de Simondon66 Simondon G. L’individuation à la lumière des notions de forme et d’information. Grenoble: Editions Jêrome Millon; 2013. sobre os processos de individuação e o devir, sabemos que somos capazes de estabelecer relações, tomar diferentes objetos e produções poéticas que possibilitam a experiência que afeta corpos humanos de linguagem na dimensão do sensível nas construções cenopoéticas. Podemos transformar modos de viver ao agir sobre nós mesmos e, neste agir sobre si, vamos produzindo atualizações nos modos de estar-sentir-conviver no mundo. Os seres vivos não apenas se adaptam ao mundo, mas podem também modificar sua relação com ele nos percursos do envelhecer e da longevidade, promovendo o alívio do sofrimento psíquico e o cuidado em saúde física e mental.

Para nossa sexta e última oficina, propusemos uma conversa sobre o percurso durante as oficinas e perguntamos sobre o que podemos fazer/pensar para seguir vivendo um envelhecer com mais cuidado, saúde e amorosidade. Para esse encontro, Carlos levou um pequeno rádio de sua casa, o mesmo que o permite passar o tempo com seu pai ouvindo músicas antigas.

Esse é o rádio do meu pai, a gente gosta de ouvir, passar um tempo junto. É bom ouvir músicas, eu gosto. É como a gente sempre vem falando, é bom fazer alguma atividade alegre, se cuidar, eu tô tentando…

(Autonarrativa de Carlos. Diário de Bordo – Sexta oficina, on-line – 19/08/2020).

Durante o período em que realizamos as últimas oficinas, Carlos compartilhava pelo WhatsApp os vídeos das músicas que ele gostava e que estava escutando. Podemos perguntar: com quantas linguagens podemos fazer nosso mundo? Para Carlos, a música se coloca como sua linguagem e um modo de tecer redes nas quais se desloca de narrativas nas quais se vitimiza devido às dificuldades do movimento das pernas, passando a dançar e a sorrir. Mudanças nas emoções se entrelaçam com modos de agir na linguagem que Carlos dança e as pistas trazidas pelo usuário de um serviço de saúde mental podem trazer caminhos para a construção de percursos de um envelhecer e da longevidade com saúde mental. Aqui, podemos situar a aprendizagem das diferentes formas de funcionamento da atenção, processos discutidos por Kastrup1717 Kastrup V. O lado de dentro da experiência: atenção a si mesmo e produção de subjetividade numa oficina de cerâmica para pessoas com deficiência visual adquirida. Psicol Cienc Prof. 2008; 28(1):186-99. doi: 10.1590/S1414-98932008000100014.
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Grande parte dos estudos sobre atenção se limita a destacar sua função de seleção de informações e seu papel na realização de tarefas, mas a atenção tem também participação efetiva nas atividades criadoras e, de modo geral, na cognição inventiva.

(p. 187)

Clarice mostrou nesse último encontro a planta que mais gosta: a flor do deserto. Comentou que quando floresce ela é linda e vibrante, alegrando seu jardim. Ela agradeceu e compartilhou que adora nossos encontros, nos quais pode mostrar um pouco do que gosta, conversar, cantar e brincar. Relatou que vai seguir se cuidando e das plantas que adora. Já Adélia pegou um pequeno espelho de sua casa, mostrou-o e explicou:

Eu às vezes não gosto muito do que vejo, mas aprendi com vocês que, apesar das mudanças em nossa vida, podemos nos cuidar de forma alegre, e é isso que eu pretendo fazer. Quero passar minha velhice muito feliz. Vou sentir saudades de nossos encontros, mas a gente vai seguir nos falando e nos ajudando.

(Autonarrativa de Adélia. Diário de Bordo – Sexta oficina, on-line – 19/08/2020)

Finalizamos com cirandas, cantamos e nos divertimos. A partir das múltiplas formas de agir na linguagem, pudemos observar os processos de auto-organização e as emoções novas e emergentes no modo como cada um passa a lidar com o envelhecer e a longevidade. Silveira33 Silveira N. Imagens do inconsciente. Rio de Janeiro: Vozes; 2017. esteve dedicada às artes como possibilidade de abertura de espaço para a promoção do cuidado e o alívio do sofrimento psíquico; e para mudanças nas relações entre o que se passa nas “profundezas do inconsciente” e o “espaço cotidiano”. Refere-se ao afeto catalisador nas ações de cuidado em saúde mental. Já Kastrup1717 Kastrup V. O lado de dentro da experiência: atenção a si mesmo e produção de subjetividade numa oficina de cerâmica para pessoas com deficiência visual adquirida. Psicol Cienc Prof. 2008; 28(1):186-99. doi: 10.1590/S1414-98932008000100014.
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destaca a atenção a si como processo presente na cognição inventiva. Nessa direção, o alívio do sofrimento psíquico em percursos de envelhecimento e longevidade não acontece apenas com acesso a informações sobre saúde, ou por meio de meras realizações de atividades e tarefas, mas sim mediante a realização de bons encontros, como nas criações cenopoéticas, nas quais todos podemos transformar o curso do viver.

Considerações finais

Procuramos, neste momento final da escrita, destacar as reflexões que consideramos mais relevantes e que interagem com todo o percurso da pesquisa. Para isso, retomamos a pergunta: como os sujeitos que realizam tratamento na saúde mental constroem seus processos de envelhecer e a longevidade? Nosso objetivo foi compreender como usuários que realizam tratamento na saúde mental transformam as experiências que associam ao envelhecer e à longevidade.

Precisamos ressaltar que a Covid-19 provocou uma mudança na metodologia da pesquisa e que, durante sua realização, vivenciamos o luto pela morte de Coralina. Pudemos aprender, vivenciar e construir juntos práticas e atos cenopoéticos em encontros que passaram a acontecer de forma on-line.

O viver desta pesquisa oportunizou um movimento circular de ações e reflexões que nos permitiram visualizar percursos de possíveis alterações e reconstrução do viver dos participantes. Pudemos distinguir mudanças de coordenações de ações na linguagem e no emocionar, como a adoção de práticas de cuidado; e as buscas pelo cultivo da alegria e pela potência no viver por meio das imagens em transformação, autonarrativas de cuidado, gestos e circunstâncias que convidam para tomar nas mãos a própria experiência do viver com cuidado e atenção à saúde.

O envelhecer mostrou-se nos momentos iniciais da pesquisa como um processo marcado pelas fragilidades em torno do que os participantes não mais podem fazer, os problemas de diabetes, as dores nas articulações, as dificuldades de locomoção, entre outras que também estão interconectadas com seus percursos de vida. As autonarrativas se concentravam, inicialmente, em queixas do tipo lamento, que pareciam impedir as possibilidades de mudanças de seus estados emocionais e de saúde mental.

Ao final de nossa pesquisa, temos o desejo nosso e dos usuários de seguir com os encontros e de vivenciar os atos cenopoéticos, pois estes abriram possibilidades para nos alegramos juntos e, como ensina Silveira33 Silveira N. Imagens do inconsciente. Rio de Janeiro: Vozes; 2017., compreender que é possível o alívio do sofrimento psíquico e de mudanças no viver. Promover saúde mental implica mudanças de condutas, coordenações de ações novas e emergentes dirigidas ao cuidado com a saúde mental nos percursos do envelhecimento e da longevidade. As escolhas e ações em nosso viver cotidiano apontam caminhos e distinguem o viver que queremos conservar.

Agradecimentos

Agradecemos a todos que fazem parte do Programa de Extensão Oficinando em Rede, pela acolhida e por todo o apoio.

  • Ferreira LDC, Demoly KRA, Pereira YV. Transformações cognitivas nas trajetórias de envelhecimento e longevidade em Saúde Mental. Interface (Botucatu). 2024; 28: e230122 https://doi.org/10.1590/interface.230122
  • Financiamento

    A autora Laryssa Dayanna Costa Ferreira recebeu apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) – número de bolsa 88882.455741/2019-01.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    21 Mar 2023
  • Aceito
    28 Set 2023
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br