Resumos
Em todo o território nacional tem sido possível identificar variadas iniciativas de protagonismo popular na perspectiva da promoção e da proteção da vida, em busca de territórios saudáveis e sustentáveis. Este texto objetiva descrever a experiência de um processo histórico, dinâmico e permanente de luta e mobilização social contra a violação de direitos fundamentais por saúde e sustentabilidade ambiental, no Assentamento Santa Rita de Cássia II, em Nova Santa Rita, Rio Grande do Sul, Brasil. Essa experiência pode ser considerada como uma ação de fortalecimento e reinvenção da vigilância em saúde pela população, portanto uma Vigilância Popular em Saúde, transgredindo fronteiras fragmentadoras da hegemonia dos saberes, percorrendo caminhos que priorizam e enfrentam os problemas do seu território vivo, território que pulsa e luta desde sua retomada.
Palavras-chave
Movimento; Vigilância em saúde ambiental; Saúde; Agrotóxicos
En todo el territorio nacional ha sido posible identificar variadas iniciativas de protagonismo popular desde la perspectiva de la promoción y protección de la vida, buscando territorios saludables y sostenibles. El objetivo de este texto es describir la experiencia de un proceso histórico, dinámico y permanente de lucha y movilización social contra la violación de derechos fundamentales de salud y sostenibilidad ambiental, en el Asentamiento Santa Rita de Cássia II, en Nova Santa Rita, Rio Grande do Sul, Brasil. Esa experiencia puede considerarse como acción de fortalecimiento y reinvención de la vigilancia en salud por parte de la población; por lo tanto, una Vigilancia Popular en Salud, transgrediendo fronteras de fragmentación de la hegemonía de los saberes, recorriendo caminos que priorizan y enfrentan los problemas de su territorio vivo, territorio que pulsa y lucha desde su retomada.
Palabras clave
Movimiento; Vigilancia en salud ambiental; Salud; Pesticidas
Introdução
No contexto de uma pandemia ou de uma sindemia(f(f)Segundo Richard Horton4, as sindemias são variadas condições e estados pessoais derivadas de questões biológicas, como doenças preexistentes ou agudizadas, e interações sociais, aumentando a vulnerabilidade e o risco de morte de cada indivíduo em um momento epidêmico.), como a atual, potencializada pelo capitalismo neoliberal, as práticas hegemônicas de saúde ganham mais força e legitimidade. Contudo, também precisam ser refletidas e repensadas. Nesse sentido, dialogar com as experiências dos movimentos sociais, dentro dos territórios é necessário para articular a pluralidade de saberes, populações, culturas, epistemologias e racionalidades. Em meio ao enfrentamento aos desafios atuais desse contexto pandêmico nas comunidades, em que um conjunto de necessidades de sobrevivência se colocam no mesmo patamar de exigências e riscos à saúde e à vida das pessoas, tem sido possível identificar inúmeras iniciativas de cunho popular e comunitário que trazem outras abordagens de cuidado e podem caracterizar mais possibilidades de vigilância, na perspectiva da promoção e da proteção da vida em busca de territórios saudáveis e sustentáveis. Em resposta aos conflitos, bem como à pandemia da Covid-19, tem-se desenvolvido experiências em vigilância popular que albergam iniciativas de saberes e de práticas que nascem dos territórios e da organização popular na defesa do direito à saúde e à vida, mas que, por muitas vezes, ainda são desconsideradas, silenciadas e apagadas pelas concepções e ações institucionais de vigilância do campo sanitário do Estado11 Correa Filho HR. A utopia do debate democrático na vigilância em saúde. Saude Debate. 2019; 43(123):979-86. doi: 10.1590/0103-1104201912300.
https://doi.org/10.1590/0103-11042019123...
2 Carneiro FF, Pessoa VM. Iniciativas de organização comunitária e Covid-19: esboços para uma vigilância popular da saúde e do ambiente. Trab Educ Saude. 2020; 18(3): e00298130. doi: 10.1590/1981-7746-sol00298.
https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol002... -33 Porto MF. No meio da crise civilizatória tem uma pandemia: desvelando vulnerabilidades e potencialidades emancipatórias. Vigil Sanit Debate [Internet]. 2020 [citado 16 Out 2022]; 8(3):2-10. Disponível em: https://visaemdebate.incqs.fiocruz.br/index.php/visaemdebate/article/view/1625
https://visaemdebate.incqs.fiocruz.br/in... .
Há experiências potentes, participativas e construídas coletivamente de Vigilância Popular em Saúde em vários cantos do Brasil, principalmente durante o período da pandemia. Elas emergem dos saberes da experiência ou dos "saberes de experiências feitos", como dizia Paulo Freire, mantendo pulsante o território e o diálogo durante a construção do conhecimento. Práticas que mobilizam outras ideias e enfoques criativos para esse debate da vigilância dos territórios. Experiências que vêm sendo construídas pela concepção e pelas estratégias pedagógicas da Educação Popular em Saúde. Dessa maneira, o texto relata a experiência de um processo histórico, dinâmico e permanente de luta e mobilização social contra a violação de direitos fundamentais por saúde e sustentabilidade ambiental, no Assentamento Santa Rita de Cássia II, em Nova Santa Rita, Rio Grande do Sul, Brasil.
O território
O município de Nova Santa Rita possui quatro assentamentos organizados pela luta dos Camponeses Sem Terra. O primeiro foi implantado no ano de 1994. Nos anos seguintes, houve a organização de mais dois e, por último, no ano de 2005, conquistou-se o mais recente assentamento no município: o Assentamento Santa Rita de Cássia II (SRC II). A data do decreto de criação do assentamento foi 20 de outubro de 2005, tendo 14 de dezembro de 2005 como data de imissão de posse, após um longo período de disputa local e de mobilização coletiva dos camponeses pelo direito à terra.
A reserva legal do Assentamento SRC II é de 1.780 hectares, em que 380 hectares são áreas de Preservação Permanente. Cada família assentada possui 12 hectares divididos em: área de moradia com quatro hectares e outra área, de 8 hectares, considerada de terras baixas (várzeas) destinadas à produção. O assentamento conta com cinco barragens – três de grande porte e duas de pequeno porte – que necessitam de projetos de recuperação, com valor de irrigação e levante para bombeamento e uma área sistematizada, ou seja, para a preparação da terra com maquinaria, deixando-a nivelada para o plantio de arroz (em seiscentos hectares); na implantação do projeto do assentamento já existiam cerca de 250 hectares sistematizados.
Atualmente, vivem cerca de três mil pessoas no assentamento, conforme visitação no território local, com origem no trabalho de base de militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que se organizam na forma de campesinato para o Bem Viver(g(g)Modos de viver com profundo respeito à natureza, em conexão com a Terra, em relação direta aos seus ciclos e com a compreensão de coletividade em que nenhum ser possui superioridade, ou seja, formam uma unidade.), em contraposição ao modelo neoliberal capitalista de produção. A maioria das pessoas assentadas é do sexo masculino e jovem. Todas as famílias que vivem no assentamento produzem algum tipo de alimento para o consumo do dia a dia, e 95% das famílias participam das atividades e dizem fazer parte do MST e do assentamento55 Almeida JC. A disputa territorial entre agronegócio x campesinato no assentamento Santa Rita de Cássia II em Nova Santa Rita - RS [monografia]. Presidente Prudente: Unesp; 2011..
A organização coletiva do assentamento está vinculada ao MST, com famílias organizadas via cinco grupos de produção de hortas e arroz, e também com os grupos de organismo de participação e conformidade orgânica (Opac), que têm a finalidade de regular a certificação orgânica no Brasil55 Almeida JC. A disputa territorial entre agronegócio x campesinato no assentamento Santa Rita de Cássia II em Nova Santa Rita - RS [monografia]. Presidente Prudente: Unesp; 2011.. No caso do Assentamento Santa Rita de Cássia II, quem certifica é a Cooperativa Central dos Assentamentos do Rio Grande do Sul (Coceargs), que é reconhecida pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). A certificação cumpre as normas técnicas estabelecidas por esse ministério e as normativas de conformidade orgânica. Essa certificação é concedida e renovada anualmente.
É importante compreender o campesinato como um modo de vida, uma forma de organizar as relações sociais, da produção e do consumo de alimentos, isto é, das relações políticas, sociais e econômicas, portanto de todas as dimensões que envolvem a vida. O campesinato faz frente à luta por uma sociedade mais justa, com alimentação de qualidade, que tenha por base o direito à vida em sua plenitude55 Almeida JC. A disputa territorial entre agronegócio x campesinato no assentamento Santa Rita de Cássia II em Nova Santa Rita - RS [monografia]. Presidente Prudente: Unesp; 2011.. O campesinato possui a rebeldia em sua alma e mãos, mas tem paciência para aguardar o tempo de cada coisa. E, ainda que tenha muita paciência para esperar, não para, pois está em constante movimento e, por isso, se constitui em um movimento social em luta pelo direito fundamental à terra44 Horton R. Offline: Covid-19 is not a pandemic. Lancet. 2020; 396(10255):874. doi: 10.1016/S0140-6736(20)32000-6.
https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)32... , assegurado na Constituição Federal.
A produção de alimentos, desde a criação do assentamento, foi organizada para o consumo interno e seu excedente para a comercialização nos centros urbanos próximos ao assentamento, como nas feiras em Nova Santa Rita, Canoas, São Leopoldo e Porto Alegre. O principal cultivo é a produção de arroz orgânico, de leite e de hortaliças, o que representa 80% da área e da renda, contemplada ainda com o cultivo de milho, plantas medicinais, mandioca, batata-doce, amendoim, girassol, melancia, abóbora, feijão, melão, moranga, cana-de-açúcar, entre outras. Também há, em pequena escala, a fruticultura, a criação de pequenos (aves e suínos) e de grandes animais (gado de leite e de corte); em algumas áreas, destaca-se ainda a presença da piscicultura e da apicultura para o consumo de subsistência e para a comercialização do excedente.
Em 2008, por meio de uma organização coletiva de dez famílias do assentamento, teve início a produção de arroz orgânico, que ocorreu de forma totalmente artesanal, com semeadura feita à mão pelas famílias e o uso de biofertilizantes com as máquinas costais. A produção foi cortada e colhida com uma foicinha pelos assentados55 Almeida JC. A disputa territorial entre agronegócio x campesinato no assentamento Santa Rita de Cássia II em Nova Santa Rita - RS [monografia]. Presidente Prudente: Unesp; 2011.. Atualmente, destacam-se por serem os maiores produtores ecológicos de arroz do país e são reconhecidos pelo trabalho de base agroecológica.
O Assentamento Santa Rita de Cássia II está localizado no km 431, às margens da BR 386, no perímetro urbano do município de Nova Santa Rita (Figura 1), próximo ao rio Jacuí, no estado do Rio Grande do Sul. Fica aproximadamente a quinhentos metros de distância da sede municipal de Nova Santa Rita. A BR 386 é o principal acesso ao município, localizado a cerca 27 km de Porto Alegre, a leste do Rio Grande do Sul, na Região Metropolitana da capital.
O pulsar em defesa da vida
O Assentamento Santa Rita de Cássia II tem sofrido com a deriva da pulverização aérea de agrotóxicos, praticada por lavouras vizinhas desde o ano de 2017. Em novembro de 2020, mais especificamente em 30 de novembro, aconteceu mais uma pulverização em lavouras de arroz convencional ao lado do assentamento por cerca de três horas ininterruptas. Nesse momento, os prejuízos da deriva nas hortaliças, pomares de árvores frutíferas e, inclusive, na vegetação nativa foram devastadores, com folhas queimadas e algumas plantas e variedades que morreram.
Observou-se que a deriva de agrotóxicos, decorrente das granjas convencionais, provocou perdas financeiras, comprometendo a produção, o trabalho e a renda das pessoas assentadas que ficaram sem poder vender seus produtos e perderam a certificação de venda de produtos orgânicos, privadas da autorização para comercializar, uma vez que as propriedades são regularizadas e certificadas como produtoras de orgânicos.
Ainda como expressão dessas violências, decorrentes do modelo adotado pelas granjas vizinhas, as pessoas assentadas também têm sua saúde afetada de forma direta. No ano de 2020, várias pessoas que moravam no assentamento apresentaram sintomas de intoxicação aguda por agrotóxicos, como cefaleia, náuseas, tonturas, ardência ocular e diarreia. Destaca-se que, nesse período, houve o início do alerta mundial relativo à pandemia da Covid-19, uma doença que apresenta vários sintomas parecidos com as intoxicações exógenas, dificultando um diagnóstico diferencial imediato pela equipe de saúde que prestou os primeiros atendimentos, assim como um aumento na procura por atendimento das pessoas afetadas.
Nesse contexto, gerou-se uma organização pelo fim da pulverização aérea de agrotóxicos no município e na Região Metropolitana de Porto Alegre. As primeiras denúncias feitas pelas famílias assentadas, produtoras de orgânicos e vítimas de derivas de agrotóxicos, foram realizadas no Ministério Público Estadual (MPE) já no ano de 2017, tendo continuidade até os dias de hoje com denúncias na Polícia Civil e na Prefeitura de Nova Santa Rita.
Com base nessas denúncias, em março de 2021, houve a suspensão do uso de agrotóxicos por um dos arrendatários locais, com previsão de multa caso descumprisse a sentença. Em julho de 2021, ocorreu uma forte mobilização das pessoas assentadas que produzem de forma agroecológica, com o apoio de entidades ambientalistas, movimentos sociais e universidades. Tal mobilização teve como consequência a aprovação da Lei municipal n. 1.680/21, na cidade de Nova Santa Rita, que visa estabelecer limites para esse tipo de pulverização66 Nova Santa Rita. Lei nº 1.680/21, de 30 de Julho de 2021. Institui a Política Estratégica de Proteção de Territórios Produtivos Sensíveis de Agroecológicos para Mitigar o Impacto de Agrotóxicos no Município de Nova Santa Rita. Nova Santa Rita: Câmara Municipal de Nova Santa Rita, 30 Jul 2021 [citado 7 Out 2022]; Disponível em: https://leismunicipais.com.br/a2/rs/n/nova-santa-rita/lei-ordinaria/2021/168/1680/lei-ordinaria-n-1680-2021-institui-a-politica-estrategica-de-protecao-de-territorios-produtivos-sensiveis-e-agroecologicos-para-mitigar-o-impacto-de-agrotoxicos-no-municipio-de-nova-santa-rita?q=IMPACTO+DE+AGROT%C3%93XICOS+
https://leismunicipais.com.br/a2/rs/n/no... . Mesmo com esse avanço, tal lei é insuficiente por não proibir a prática nos termos reivindicados pelas famílias atingidas.
Diante dos desafios evidenciados, com a emergência da questão ambiental nas últimas décadas e da complexa interface com a saúde, potencializadas pelo neoliberalismo, cresce a espoliação e a mercantilização dos bens da natureza no processo geral de acumulação do capital. Isso, consequentemente, leva à expansão das relações capitalistas de produção para novos territórios. A identificação de que a eclosão de inúmeros conflitos territoriais interfere, de modo desigual, nas determinações sociais do processo saúde-doença da população, afeta, portanto, especialmente as populações historicamente vulnerabilizadas.
Para as áreas da saúde, ambiente e trabalho, existe uma crônica dificuldade do Sistema Único de Saúde (SUS) em notificar e investigar agravos e doenças, e, por conseguinte, em visibilizar dados e informações nos seus três níveis de gestão, bem como identificar os impactos ambientais decorrentes dos processos produtivos, como o do agronegócio, que afetam a saúde. Além disso, diversas práticas são desconsideradas pelas concepções e ações de vigilância do campo sanitário institucional do Estado33 Porto MF. No meio da crise civilizatória tem uma pandemia: desvelando vulnerabilidades e potencialidades emancipatórias. Vigil Sanit Debate [Internet]. 2020 [citado 16 Out 2022]; 8(3):2-10. Disponível em: https://visaemdebate.incqs.fiocruz.br/index.php/visaemdebate/article/view/1625
https://visaemdebate.incqs.fiocruz.br/in... ,77 Porto MFS. Pode a vigilância em saúde ser emancipatória? Um pensamento alternativo de alternativas em tempos de crise. Cienc Saude Colet. 2017; 22(10):3149-59. doi: 10.1590/1413-812320172210.16612017.
https://doi.org/10.1590/1413-81232017221... . Todavia, existem iniciativas e movimentos populares de prevenção de agravos, monitoramento de riscos e defesa intransigente do ambiente, nascidos nos territórios e organizados de forma popular na defesa dos direitos fundamentais à saúde e à vida. Esses movimentos, se fortalecidos e sistematizados, poderão fazer refletir as ações instituídas dos serviços de saúde, bem como os seus processos formativos na direção de uma vigilância menos autoritária, baseada em diálogo horizontalizado de acordo com cada realidade e, portanto, mais efetiva.
Em Nova Santa Rita, perante os efeitos do crime de pulverização aérea de agrotóxicos, as pessoas assentadas e todas aquelas envolvidas no enfrentamento das múltiplas violações de direitos no território passaram a se organizar em rede. E potencializadas pela caravana do Projeto de Pesquisa Ação Participatório em Saúde(h(h)Projeto da Fiocruz do Estado do Ceará, que tem como objetivo desenvolver a Vigilância Popular da Saúde, Ambiente e Trabalho (VPSAT) com foco em populações vulnerabilizadas, por meio de um “participatório” que articule organizações comunitárias com os serviços públicos de saúde e instituições de pesquisa no âmbito nacional.), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), iniciaram um processo de elaboração de um plano de vigilância em saúde em que as pessoas que participaram desse processo se viram comprometidas com a sua elaboração e efetivação.
Esse projeto estimulou a construção de um Plano de Ação de Vigilância Popular com todas as pessoas envolvidas (agentes públicos, pesquisadores, moradores atingidos, equipe de saúde rural). Como objetivo principal, tem-se a proteção integral das pessoas e do ambiente à deriva de agrotóxicos na região e o atendimento imediato dos sinais e sintomas de intoxicação exógena pela Estratégia de Saúde da Família (ESF) Rural de Nova Santa Rita.
Os problemas ambientais, para se afirmarem socialmente, necessitam ser construídos e difundidos, simbólica ou materialmente, no cotidiano dos vários atores sociais até que sejam coletivamente reconhecidos. Da mesma maneira, para o enfrentamento da exposição aos agrotóxicos, é necessário o entendimento, tanto da população diretamente exposta quanto dos trabalhadores de saúde, de como se dá a exposição e quais são os riscos em seu contexto. Isso serve também para a consolidação de novas alternativas e concepções, como a questão agroecológica e a Vigilância Popular em Saúde.
Destaca-se, ainda, que a equipe de saúde da ESF Rural não conseguiu acompanhar de forma efetiva as exposições por agrotóxicos no território. Houve apenas a notificação compulsória de casos suspeitos e a não continuidade da investigação em tempo oportuno. Em relação ao atendimento realizado pela ESF, compreende-se que não se trata de má vontade das/os trabalhadoras/es da saúde em desenvolver ações que possam fortalecer a agroecologia, mas sim de falta de informação para o entendimento do que significa produzir de outro jeito. Afinal, não é possível defender aquilo que não conhecemos.
Além disso, as transformações que o Estado enfrenta e o enfraquecimento de políticas públicas podem ser fator condicionante para a dificuldade de utilização de ferramentas técnicas e teóricas, bem como recursos humanos, físicos e financeiros para promover políticas, além daquelas voltadas para os cuidados centrados na doença e na medicalização da vida. Seria necessária uma vontade política e instituições sólidas para combater cuidados verticalmente instituídos, tecnicistas, químicos dependentes e médicos centrados para instituir novos modos de cuidar da vida.
Dessa forma, a implementação de uma Vigilância Popular em Saúde, referente aos agrotóxicos, necessita ser construída em cada território de acordo com suas singularidades, para além da participação social, mediante entendimento das pessoas envolvidas, ou seja, pela perspectiva de quem está exposto para que haja problematização e pistas para a formulação de políticas locais. E ainda, muito mais do que informar ou educar, é necessário construir coletivamente a produção de conhecimentos sobre os riscos dos agrotóxicos, como também a urgência em se pensar alternativas que sejam sustentáveis ambientalmente e viáveis economicamente, gerando autonomia das pessoas envolvidas. Para tanto, a concepção política e problematizadora da Educação Popular em Saúde88 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.761, de 19 de novembro de 2013. Institui a Política Nacional de Educação Popular em Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (PNEPS-SUS). Brasília: Ministério da Saúde; 2013. torna-se fundamental no fortalecimento da autonomia das pessoas e na busca incessante pela efetivação dos direitos humanos, sobretudo o direito à vida digna. Assim, para que haja um ambiente sustentável e autônomo, ele necessita ser também promotor de saúde e de justiça socioambiental.
As realidades cotidianas percebidas e vividas, quando refletidas na saúde, colocam diversas problemáticas que são, sobretudo, a expressão da perda sistemática de direitos como produto de políticas excludentes fortalecidas pelo neoliberalismo33 Porto MF. No meio da crise civilizatória tem uma pandemia: desvelando vulnerabilidades e potencialidades emancipatórias. Vigil Sanit Debate [Internet]. 2020 [citado 16 Out 2022]; 8(3):2-10. Disponível em: https://visaemdebate.incqs.fiocruz.br/index.php/visaemdebate/article/view/1625
https://visaemdebate.incqs.fiocruz.br/in... ,77 Porto MFS. Pode a vigilância em saúde ser emancipatória? Um pensamento alternativo de alternativas em tempos de crise. Cienc Saude Colet. 2017; 22(10):3149-59. doi: 10.1590/1413-812320172210.16612017.
https://doi.org/10.1590/1413-81232017221... . As práticas de saúde formam parte da "paisagem" na qual estão as populações atingidas pela degradação ambiental por contaminação do ar, por resíduos, por ruídos intensos, pela contaminação dos solos e dos alimentos por agrotóxicos, pelas inundações, pela presença de vetores de doenças, pelas perdas culturais, e por várias representações que indicam a presença de injustiças ambientais.
As práticas socioespaciais oportunizam perceber as iniquidades sociais a que se encontram submetidas parcelas significativas da população brasileira. Os laços de sociabilidade permitem a introdução de novos padrões e hábitos culturais, os quais interferem diretamente nas dimensões de acesso a saneamento ambiental, nas alterações dos padrões alimentares, de moradia e de estilo de vida. Quando os usos que grupos sociais distintos tentam estabelecer em uma dada área não são convergentes, os conflitos podem vir à tona. A ideia de territórios superpostos99 Souza MJL. O território: sobre espaço e poder, autonomia e desenvolvimento. In: Castro IE, Gomes PCC, Corrêa RL, organizadores. Geografia: conceitos e temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 1995. p. 77-116. permite contemplar mais eficazmente os conflitos territoriais, em que as desigualdades sociais se tornam evidentes e as condições de vida entre moradoras/es de uma mesma cidade se mostram diferenciadas, havendo diversas formas de viver na cidade.
Na Atenção Básica à Saúde, a discussão sobre os processos de territorialização da saúde1010 Carvalho SR. Saúde coletiva e promoção à saúde: uma reflexão sobre os temas do sujeito e da mudança [tese]. Campinas: Unicamp; 2002. aponta as relações entre saúde coletiva e território e, por uma perspectiva histórica, busca analisar, por um lado, como a vinculação dos seres humanos com os territórios foi influenciada pelas representações atinentes aos fenômenos da saúde e da doença; e, por outro, como a organização e a gestão da Saúde Pública condicionaram configurações territoriais e por elas foram condicionadas1010 Carvalho SR. Saúde coletiva e promoção à saúde: uma reflexão sobre os temas do sujeito e da mudança [tese]. Campinas: Unicamp; 2002..
A construção e a viabilização de espaços e de práticas de promoção da saúde necessitam ser orientadas ao aumento e à manutenção do diálogo, à interculturalidade, ao respeito mútuo entre visões academicistas e regulatórias com o contexto e os anseios da população de cada território. E não só contarem, mas também construírem suas histórias de forma significativa, em conjunto com outras comunidades em processos de emancipação da sociedade como um todo77 Porto MFS. Pode a vigilância em saúde ser emancipatória? Um pensamento alternativo de alternativas em tempos de crise. Cienc Saude Colet. 2017; 22(10):3149-59. doi: 10.1590/1413-812320172210.16612017.
https://doi.org/10.1590/1413-81232017221... ,1111 Freitas JD, Porto MF. Por uma epistemologia emancipatória da promoção da saúde. Trab Educ Saude. 2011; 9(2):179-200. doi: 10.1590/S1981-77462011000200002.
https://doi.org/10.1590/S1981-7746201100... . Portanto, o modelo de saúde é pensado em cada território por meio de uma relação estratégica e dialógica entre os diferentes, seja de trabalhadores em saúde seja de pesquisadoras/es e das populações, regida pelo reconhecimento e pelo respeito mútuo, alicerçada na equidade de direitos e no reconhecimento das características sociais e metas estratégicas organizadas socialmente. Nesse sentido, a Vigilância Popular perpassa o monitoramento participativo que se exerce com reconhecimento popular pelo seu território, ou seja, o olhar popular realizado pela coletividade sobre os processos vivenciados cotidianamente, dos quais depende seu bem-estar, seu funcionamento democrático e a reprodução de suas conquistas materiais, culturais e humanas1212 Breilh J. De la vigilancia convencional al monitoreo participativo. Cienc Saude Colet. 2003; 8(4):937-51. doi: 10.1590/S1413-81232003000400016.
https://doi.org/10.1590/S1413-8123200300... .
Marcelo Firpo de Souza Porto77 Porto MFS. Pode a vigilância em saúde ser emancipatória? Um pensamento alternativo de alternativas em tempos de crise. Cienc Saude Colet. 2017; 22(10):3149-59. doi: 10.1590/1413-812320172210.16612017.
https://doi.org/10.1590/1413-81232017221... , quando reflete se a vigilância pode ser emancipatória, traz exemplos de experiências inovadoras que incluem, principalmente, a articulação vinda dos movimentos sociais e das populações que pensam o modelo de saúde em seus territórios de vida. O autor destaca, ainda, que durante o período do governo Lula, na década de 2010, houve incentivos financeiros do Ministério da Saúde para desenvolver uma proposta de vigilância em territórios específicos e realizar um debate via Vigilância Popular, refletindo e analisando as condições de vida, saúde e suas determinações socioambientais77 Porto MFS. Pode a vigilância em saúde ser emancipatória? Um pensamento alternativo de alternativas em tempos de crise. Cienc Saude Colet. 2017; 22(10):3149-59. doi: 10.1590/1413-812320172210.16612017.
https://doi.org/10.1590/1413-81232017221... . Ainda cabe salientar que, embora com estratégias de participação e gestão democrática do SUS, a Saúde Coletiva manteve até recentemente a discussão da produção de conhecimentos e das ações de vigilância como atributos dos profissionais especialistas.
O processo como resultado: o que estamos colhendo com a luta?
As reuniões realizadas com gestoras/es municipais, ao longo do processo de luta e de enfrentamento da pulverização aérea, dão conta de materializar uma etapa de execução do Plano de Vigilância, pois fortalece a ação e a comunicação coletiva entre agentes do Estado, pesquisadoras/es e assentadas/os. O processo de trabalho instaurado representa uma etapa de execução do plano em colaboração com agentes sociais em luta. Estiveram presentes, durante a construção do plano, representantes dos movimentos sociais locais, gestoras/es estaduais, pesquisadoras/es, meios de comunicação e apoiadoras/es. O objetivo das agendas foi apresentar a Política Nacional da População do Campo, Florestas e Águas; expor o problema relacionado ao uso de agrotóxicos e a necessidade de uma tomada de decisão assertiva acerca deles.
Foram apontadas as necessidades das comunidades locais identificadas nas oficinas, como: a necessidade de formação permanente das/os trabalhadoras/es do SUS municipal para atuação nas situações de exposição aos agrotóxicos e de criação de um protocolo de atenção às pessoas expostas. Também se reafirmou a necessidade de articulação intersetorial para o encaminhamento das demandas apresentadas. Isso, posteriormente, desencadeou um diálogo entre gestoras/es de distintas pastas em âmbito municipal (Secretaria do Meio Ambiente, Secretaria da Agricultura, Secretaria de Educação).
Com base nas demandas apresentadas, a Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul (SES-RS), em momento oportuno de ingresso de novas/os servidoras/es, alocou uma profissional da Divisão de Políticas de Promoção da Equidade, do Departamento de Atenção Primária em Saúde, para iniciar o trabalho com as populações do campo, de florestas e águas. O trabalho da profissional terá como foco inicial a reativação do Comitê Técnico Estadual de Saúde da População do Campo, Florestas e Águas, uma instância de gestão participativa, e a definição conjunta ao Centro Estadual de Vigilância em Saúde (CEVS), também da SES-RS, de estratégias voltadas à vigilância e à capacitação da rede de saúde. Já no município, houve a apresentação de uma proposta inicial de protocolo, baseada nos protocolos já existentes em âmbito nacional, demonstrando o reconhecimento da necessidade da especificidade do modelo de Atenção à Saúde para essa população na agenda municipal.
A luta das famílias produtoras agroecológicas em Nova Santa Rita e das pessoas que as apoiam é pela implementação urgente e efetiva do Polígono de Exclusão de Pulverização Aérea na área de amortecimento do Parque Estadual do Delta do Rio Jacuí (PEDJ). A medida garante a produção sem veneno das pessoas assentadas das cidades da região e a qualidade de vida da população urbana, bem como protege o meio ambiente, especialmente os recursos de água que abastecem os moradores e são usados para a agricultura. Essas famílias reivindicam a elaboração, pelos órgãos competentes, de nova proposta em que conste um polígono de proteção efetivo, estabelecendo uma zona livre de pulverização aérea de agrotóxicos na região. As zonas de amortecimento de parques devem ter atividades compatíveis, como a agroecologia e a produção orgânica, garantindo a saúde humana, animal e ambiental, o que não vem ocorrendo.
Considerações finais
A experiência relatada foi construída via luta pela vida no território de Nova Santa Rita, por meio do desenvolvimento de ações integradas de prevenção e promoção, alicerçada na concepção de saúde do território com as pessoas que nele vivem, junto de pesquisadores e ativistas dos direitos humanos, organizando um Plano de Ação para o enfrentamento dos problemas de saúde elencados como prioritários pela comunidade. Essa experiência pode ser considerada uma ação de fortalecimento e reinvenção da vigilância em saúde pela população, portanto uma Vigilância Popular em Saúde, transgredindo fronteiras fragmentadoras da hegemonia dos saberes, percorrendo caminhos que priorizam e enfrentam os problemas do seu território vivo, território que pulsa e luta desde sua retomada.
A agricultura e as/os agricultoras/es em Nova Santa Rita desejam ter a segurança de produzir alimentos sem veneno e de viver sem correr o risco de contaminação pelos agrotóxicos que são jogados pelos aviões que sobrevoam suas cabeças. A agroecologia constitui uma alternativa perante os riscos dos agrotóxicos, como também o papel do setor saúde, diante do movimento agroecológico, constitui agente de fortalecimento e resistência aos efeitos nocivos dos agrotóxicos. Reforça-se a necessidade de estruturar novas bases conceituais e metodológicas de vigilância em saúde que possibilitem estratégias territorializadas e métodos participativos nos territórios, que impliquem autonomia da população e evitem a segregação e a exclusão nos processos, incorporando a pluralidade de saberes, além das dimensões econômicas, sociais, culturais e espirituais.
O cenário vivenciado no mundo atual, em que o modelo produtivista neoliberal promove, por parte dos governos e mercados, atitudes e comportamentos não compatíveis com as urgentes necessidades de preservação da vida, é um desafio que parece insolúvel. Fazer que a reflexão produza ações efetivas perpassa, com extrema urgência, a preservação do ambiente, de seus seres e da terra. A compreensão de que somos a natureza é fundamental para uma radicalização que implique propagar a potência criativa de vida, do encantamento, da construção de modos de viver, do bem-viver, em coletividade, em que todas as pessoas, seus saberes e culturas sejam valorizadas. Uma transgressão que seja orientada por meio dos territórios saudáveis e sustentáveis que pulsam e produzem ferramentas para a continuidade da vida nesse planeta.
Nesse sentido, a experiência desse assentamento, que faz pulsar o poder popular orientado pela solidariedade, fortalece o reconhecimento do potencial dos territórios em lidar com os ataques à vida, por meio da coletividade, de práticas dialogadas com a biodiversidade e com o acúmulo de aprendizagens e experiências populares. Demonstra resistência perante a dominação da lógica neoliberal capitalista de produzir e de viver. Do mesmo modo, abre brechas nessa sociedade em crise, constituindo um território de (re)existência na própria crise civilizatória.
- (f)Segundo Richard Horton44 Horton R. Offline: Covid-19 is not a pandemic. Lancet. 2020; 396(10255):874. doi: 10.1016/S0140-6736(20)32000-6.
https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)32... , as sindemias são variadas condições e estados pessoais derivadas de questões biológicas, como doenças preexistentes ou agudizadas, e interações sociais, aumentando a vulnerabilidade e o risco de morte de cada indivíduo em um momento epidêmico. - (g)Modos de viver com profundo respeito à natureza, em conexão com a Terra, em relação direta aos seus ciclos e com a compreensão de coletividade em que nenhum ser possui superioridade, ou seja, formam uma unidade.
- (h)Projeto da Fiocruz do Estado do Ceará, que tem como objetivo desenvolver a Vigilância Popular da Saúde, Ambiente e Trabalho (VPSAT) com foco em populações vulnerabilizadas, por meio de um “participatório” que articule organizações comunitárias com os serviços públicos de saúde e instituições de pesquisa no âmbito nacional.
- Meneses MN, Kuhn MF, Almeida JC, Carneiro FF, Rocha CMF. Vigilância Popular em Saúde no sul do Brasil: expressões de um território que pulsa. Interface (Botucatu). 2024; 28: e230167 https://doi.org/10.1590/interface.230167
Financiamento
Capes, Programa Inova Fiocruz e Fundação Heinrich Boll.
Referências
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
24 Jun 2024 - Data do Fascículo
2024
Histórico
- Recebido
13 Abr 2023 - Aceito
19 Out 2023