Cuidado compartilhado em Saúde Mental: o que dizem os trabalhadores?

Shared Mental Health care: what do worker say?

Cuidado compartido en Salud Mental: ¿qué dicen los trabajadores?

Lívia Penteado Pinheiro Bruno Ferrari Emerich Sobre os autores

Resumos

A conjunção da Reforma Psiquiátrica e da Reforma Sanitária torna o Brasil um cenário único na superação do Paradigma Biomédico hegemônico e na radicalidade da desinstitucionalização no território. Este artigo objetiva analisar a percepção dos trabalhadores da Atenção Básica e da Atenção Especializada sobre o compartilhamento do cuidado em Saúde Mental em um município paulista de médio porte. Constitui-se como uma pesquisa qualitativa, de abordagem hermenêutico-dialética, cujos dados foram produzidos por narrativas de grupos focais narrativo-hermenêuticos realizados em 2022, com 15 trabalhadores. A Educação Permanente, a formação profissional, a integração da rede, a Saúde Mental do trabalhador e o enfrentamento das políticas de desmonte foram considerados fundamentais para o cuidado compartilhado. Mostra-se imperativo que o campo da Saúde Mental seja priorizado e não faltem recursos para que, cada vez mais, as práticas possam se orientar pelo Paradigma Psicossocial.

Palavras-chave
Saúde mental; Assistência à saúde mental; Integração dos serviços de saúde; Ciências da implementação


The conjunction of the mental health reform and health reform make Brazil a unique setting in overcoming hegemonic biomedical paradigm and in the radicality of deinstitutionalization across the territory. The aim of this study was to analyze the perceptions of primary and specialist care workers about sharing mental health care in a medium-sized municipality in the state of São Paulo. We conducted a qualitative study using the hermeneutic-dialectic method of inquiry based on data from the narratives of focus group meetings with 15 workers held in 2022. Permanent education, professional training, network integration, worker’s mental health and confronting the dismantling of policies were considered essential to shared care. It is imperative that the field of mental health is prioritized and sufficient resources are made available so that practices are increasingly oriented towards the psychosocial paradigm.

Keywords
Mental health; Mental health care; Health service integration; Implementation sciences


La conjunción de la Reforma Psiquiátrica y de la Reforma Sanitaria hace que Brasil sea un escenario único en la superación del Paradigma Biomédico hegemónico y en la radicalidad de la desinstitucionalización en el territorio. El objetivo de este artículo es analizar la percepción de los trabajadores de la Atención Básica y de la Atención Especializada sobre la compartición del cuidado en salud mental en un municipio de mediano porte del estado de São Paulo. Se constituye como una investigación cualitativa, de abordaje hermenéutico-dialéctico, cuyos datos se produjeron a partir de narrativas de grupos focales narrativos-hermenéuticos realizados en 2022 con quince trabajadores. La educación permanente, la formación profesional, la integración de la red, la salud mental del trabajador y el enfrentamiento de las políticas de desmonte se consideraron fundamentales para el cuidado compartido. Se muestra imperativo que se priorice el Campo de Salud Mental y que no falten recursos para que, cada vez más, las prácticas puedan orientarse hacia el Paradigma Psicosocial.

Palabras clave
Salud mental; Asistencia a la salud mental; Integración de los servicios de salud; Ciencias de implementación


Introdução

Ao longo das últimas décadas no Brasil, viu-se uma série de transformações no modo de compreender e de promover a Saúde Mental. A Reforma Psiquiátrica e a Reforma Sanitária representam movimentos sociais e políticos com fundamental importância para a promoção de avanços ligados à legislação, à clínica e à gestão. Embora tenham percursos e características próprias, ambas as reformas compartilham o caráter democrático, participativo, cogestivo, contra-hegemônico, territorial e têm em comum a proposta de ruptura com o paradigma biomédico11 Amarante P. Saúde mental e atenção psicossocial. 4a ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2007.. A conjunção desses dois campos, Saúde Mental e Saúde Coletiva, se mostra muito potente para a efetivação de uma rede de cuidados que prescinde do manicômio e possibilita que o olhar para a subjetividade transcenda serviços ou níveis assistenciais e seja integrada nas mais diversas ofertas de cuidado em saúde.

No entanto, a efetivação das práticas e da ética do cuidado, preconizada pelo campo da Saúde Mental, mostra-se desafiadora nos serviços de saúde. Tal situação traz à tona a clássica disputa de paradigmas presentes no cuidado em Saúde Mental e sua repercussão no imaginário e na produção de saúde. De um lado, coloca-se o Paradigma Psicossocial (PP) como herdeiro do Paradigma Existência-Sofrimento no Corpo Social. Do outro, tem-se o Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador (PPHM), expressão de continuidade do Paradigma Psiquiátrico Clássico22 Shimoguiri AFDT. O paradigma psicossocial: parâmetros mínimos para as práticas substitutivas ao Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador. Rev Psicol UNESP. 2019; 18 Spec No:198-216. ,33 Costa-Rosa A, Luzio CA, Yassi S. Atenção psicossocial: rumo a um novo paradigma na saúde mental coletiva. In: Amarante P, organizador. Archivos de saúde mental e atenção psicossocial. Rio de janeiro: Nau; 2003. p. 13-44..

O PP é considerado antípoda radical do PPHM, uma vez que a forma de se compreenderem os elementos clínicos, institucionais e relacionais é essencialmente oposta aos níveis teórico, técnico, ideológico e, acima de tudo, ético. Enquanto o primeiro propõe uma ruptura com as práticas tutelares e alienantes ao compreender os sujeitos como elementos ativos, implicados nessas relações e articuladores de processos de mudança; o segundo assenta-se na supressão dos sintomas e no retorno a um estado anterior33 Costa-Rosa A, Luzio CA, Yassi S. Atenção psicossocial: rumo a um novo paradigma na saúde mental coletiva. In: Amarante P, organizador. Archivos de saúde mental e atenção psicossocial. Rio de janeiro: Nau; 2003. p. 13-44..

Essa transição paradigmática implica uma reformulação no processo de trabalho em saúde e na reconfiguração das redes assistenciais, fazendo-se necessária a ruptura com práticas hierárquicas. No nível intrainstitucional, devem ser enfrentadas diferenças nas relações de saber/poder entre as profissões e entre trabalhador e usuário. No âmbito interinstitucional, muda-se a compreensão do funcionamento das redes, reconsiderando a lógica piramidal entre os níveis de atenção e investindo na adoção de um formato descentralizado e cooperativo, em que se respeitem as diferentes densidades tecnológicas44 Bermudez KM, Siqueira-Batista R. “Um monte de buracos amarrados com barbantes”: o conceito de rede para os profissionais da saúde mental. Saude Soc. 2017; 26(4):904-19..

Como forma de favorecer a produção coletiva do cuidado e a construção de redes poliárquicas, Campos e Domitti55 Campos GWS, Domitti AC. Apoio matricial e equipe de referência: uma metodologia para gestão do trabalho interdisciplinar em saúde. Cad Saude Publica. 2007; 23(2):399-407. propõem uma reorganização do processo de trabalho e dos serviços pautada na metodologia das equipes de referência e no Apoio Matricial. Esses arranjos organizacionais convidam a uma inversão na lógica da estrutura tradicional dos serviços de saúde, trazendo condições para a realização da clínica ampliada, da cogestão e da integração dialógica entre os diferentes profissionais.

O Apoio Matricial é considerado como o mais proeminente dispositivo brasileiro de integração de rede com vistas a fomentar o cuidado compartilhado66 Treichel CAS, Onocko Campos RT, Campos GWS. Impasses e desafios para consolidação e efetividade do apoio matricial em saúde mental no Brasil. Interface (Botucatu). 2019; 23:e180617. doi: 10.1590/Interface.180617.
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,77 Oliveira MM, Campos GWS. Matrix support and institutional support: analyzing their construction. Cienc Saude Colet. 2015; 20(1):229-38.. O termo “cuidado compartilhado” (shared care), ou seu congênere, “cuidado colaborativo” (collaborative care), é tradicionalmente utilizado pela literatura internacional ao descrever a construção conjunta da Atenção à Saúde e sua corresponsabilização entre a Atenção Básica (AB) e a Atenção Especializada (AE). A compreensão de como se daria essa integração varia, mas alguns elementos considerados básicos são: a interdisciplinaridade, a comunicação interprofissional, as trocas de saberes, a construção de intervenções sistemáticas e estruturadas, bem como o investimento em arranjos organizacionais que permitam a aproximação entre os diferentes profissionais e serviços envolvidos66 Treichel CAS, Onocko Campos RT, Campos GWS. Impasses e desafios para consolidação e efetividade do apoio matricial em saúde mental no Brasil. Interface (Botucatu). 2019; 23:e180617. doi: 10.1590/Interface.180617.
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Considerando a importância da integração entre generalistas e especialistas na construção do cuidado compartilhado e na efetivação da transição paradigmática do PPHM ao PP, este estudo objetiva analisar a percepção dos trabalhadores da Atenção Básica (AB) e da Atenção Especializada (AE) sobre o compartilhamento do cuidado em Saúde Mental em um município de médio porte do interior paulista. Como objetivos específicos, busca compreender de que maneira a dinâmica da rede e o processo de trabalho repercutem nas práticas de cuidado em Saúde Mental, assim como pretende refletir no Apoio Matricial como uma das estratégias de construção de cuidado compartilhado.

Metodologia

O presente estudo insere-se em uma Pesquisa de Implementação realizada pelo Laboratório de Saúde Coletiva e Saúde Mental – Interfaces – da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em parceria com a Secretaria Municipal de Saúde de um município de médio porte da região metropolitana de Campinas. Esta pesquisa teve como principal objetivo a implementação de dispositivos de integração de rede e a qualificação do cuidado em Saúde Mental no município. Recebeu financiamento tanto da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) – processo n. 2018/10366-6 –, quanto da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, Brasil (Capes) – código de financiamento 001.

O município campo da pesquisa teve sua população estimada em cerca de 120 mil habitantes88 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo demográfico 2022. População e domicílios: primeiros resultados. Rio de Janeiro: IBGE; 2023.. Sua rede de saúde conta com seis Unidades Básicas de Saúde (UBS) tradicionais, 13 unidades de Estratégia Saúde da Família (ESF), às quais estão vinculadas 19 equipes de ESF. Contava-se também com uma equipe do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (Nasf), que foi descredenciada. Quanto aos serviços de Saúde Mental, há um Centro de Atenção Psicossocial (Caps) II, um Caps Álcool e outras Drogas (AD) II, um ambulatório de Saúde Mental e um Centro de Atenção à Criança (CAC) que realiza atendimento em Saúde Mental à população infantil. Em relação à rede de urgência/emergência, há uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA-24h) e serviço de resgate com ambulâncias (não na modalidade Samu). Também participa da rede a Santa Casa de Misericórdia, sem leitos de Saúde Mental ativos.

As Pesquisas de Implementação, ainda incipientes no Brasil, têm como objetivo melhorar a eficiência, a eficácia, a qualidade e a equidade de programas e serviços de saúde, buscando superar possíveis entraves institucionais e efetivar políticas de saúde. Pretendem entender como as intervenções funcionam no “mundo real”, por meio de vários aspectos: político, cultural, técnico, institucional, dentre outros; e podem se dividir em três etapas: pré-implementação, implementação e pós-implementação99 Proctor E, Silmere H, Raghavan R, Hovmand P, Aarons G, Bunger A, et al. Outcomes for implementation research: conceptual distinctions, measurement challenges, and research agenda. Adm Policy Ment Health. 2011; 38(2):65-76. . O presente estudo insere-se na etapa de pós-implementação, na qual se buscou avaliar os impactos da implementação realizada por meio de nova coleta de dados e com abertura a variadas abordagens metodológicas. Na fase de implementação, foi realizado um conjunto de ações nomeado Processo de Educação Permanente, dentro do qual cabe destacar os Encontros de Educação Permanente, do qual participaram cerca de 150 profissionais da saúde de diversos serviços e especialidades.

A pesquisa de que trata o presente artigo fundamenta-se na metodologia qualitativa, que no campo da Saúde Coletiva tem tido destaque ao considerar as singularidades que podem emergir das experiências1010 Onocko Campos RT, Furtado JP. Narrativas: utilização na pesquisa qualitativa em saúde. Rev Saude Publica. 2008; 42(6):1090-6. . Nela, segundo Turato1111 Turato ER. Métodos qualitativos e quantitativos na área da saúde: definições, diferenças e seus objetos de pesquisa. Rev Saude Publica. 2005; 39(3):507-14., “não se busca estudar o fenômeno em si, mas entender seu significado individual ou coletivo para a vida das pessoas” (p. 509), a significação dada ao fenômeno por aqueles que o experimentam.

Para a coleta de dados, optou-se pela realização de grupos focais narrativos hermenêuticos1010 Onocko Campos RT, Furtado JP. Narrativas: utilização na pesquisa qualitativa em saúde. Rev Saude Publica. 2008; 42(6):1090-6. . Os grupos focais constituem uma técnica realizada pelo encontro de pessoas que compartilham traços em comum em torno de uma temática com a qual elas devem ter alguma familiaridade e experiência, o que permite emergir dados relevantes para a compreensão do tema, possibilitando observar a interação entre os participantes e os diferentes graus de consensos e dissensos1212 Miranda L, Ferre AL, Figueiredo MD, Onocko Campos RT. Dos grupos focais aos grupos focais narrativos: uma descoberta no caminho da pesquisa. In: Onocko Campos RT, Furtado J, Passos E, Benevides R, organizadores. Pesquisa avaliativa em saúde mental: desenho participativo e efeitos da narratividade. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores; 2008. p. 249-77..

Furtado e Campos1313 Furtado JP, Onocko Campos RT. Participação, produção de conhecimento e pesquisa avaliativa: a inserção de diferentes atores em uma investigação em saúde mental. Cad Saude Publica. 2008; 24(11):2671-80. recomendam a adoção do critério da homogeneidade como facilitador da interação entre os participantes, uma vez que a inserção institucional dos envolvidos pode interferir na percepção do tema discutido e no seu compartilhamento. Assim, optou-se por separar os grupos de acordo com o nível assistencial correspondente.

O convite para a participação nos Grupos Focais foi feito com auxílio dos gestores dos serviços que foram campo de coleta. Em relação aos critérios de inclusão, foi solicitado que os participantes houvessem participado de alguma ação do Processo de Educação Permanente realizado.

Foram organizados dois grupos focais, um deles composto por oito trabalhadoras da Atenção Básica (GF-AB), sendo três Agentes Comunitárias de Saúde, três técnicas de enfermagem e duas enfermeiras. O outro foi formado por sete trabalhadores da Atenção Especializada (GF-AE), sendo três psicólogos, duas técnicas de enfermagem, uma médica psiquiatra e um enfermeiro, de três diferentes serviços: Caps II, Caps AD e Santa Casa de Misericórdia. Os profissionais do CAC e do ambulatório de Saúde Mental não puderam participar ou não responderam ao convite.

Os grupos focais, realizados entre setembro e outubro de 2022, foram conduzidos por dois pesquisadores, sendo audiogravados, posteriormente transcritos e transformados em narrativas, que seguiram o referencial teórico de Ricoeur1414 Ricoeur P. Tempo e narrativa: Tomo I. Cesar CM, tradutor. Campinas: Papirus; 1994., segundo o qual a narrativa é formada por meio do encadeamento dos núcleos argumentais presentes no material transcrito. Onocko-Campos e Furtado1010 Onocko Campos RT, Furtado JP. Narrativas: utilização na pesquisa qualitativa em saúde. Rev Saude Publica. 2008; 42(6):1090-6. entendem que as narrativas medeiam a relação entre o vivido e sua inscrição simbolizada no meio social, localizando-se entre a memória e o vir a ser, emergindo da inter-relação das forças sociais e caracterizando possíveis orientações no fluxo histórico, o que permite que verdades advindas da experiência sejam anunciadas e compartilhadas.

Após a validação por outro pesquisador, as narrativas foram apresentadas aos seus autores no segundo encontro, para que eles pudessem questioná-las, alterá-las e validá-las1010 Onocko Campos RT, Furtado JP. Narrativas: utilização na pesquisa qualitativa em saúde. Rev Saude Publica. 2008; 42(6):1090-6. . A esse segundo encontro dá-se o nome de hermenêutico, uma vez que tem como propósito interpretar e legitimar as narrativas revisitando-as em movimento espiral, à maneira de um círculo hermenêutico1212 Miranda L, Ferre AL, Figueiredo MD, Onocko Campos RT. Dos grupos focais aos grupos focais narrativos: uma descoberta no caminho da pesquisa. In: Onocko Campos RT, Furtado J, Passos E, Benevides R, organizadores. Pesquisa avaliativa em saúde mental: desenho participativo e efeitos da narratividade. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores; 2008. p. 249-77..

Para compreensão dos dados, apoiamo-nos na Hermenêutica, que utiliza a interpretação como principal forma de conhecimento e busca desvendar não a verdade absoluta do objeto, mas aquilo que o sujeito coloca como verdade1515 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14a ed. São Paulo: Hucitec; 2014.. Junto dela, consideramos a Dialética por sua atitude crítica perante as construções sociais1616 Habermas J. Dialética e hermenêutica. Porto Alegre: LPM; 1987. .

A Pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da Unicamp: CAAE - 00827918.8.0000.5404. Os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Resultados e discussão

Educação permanente e formação profissional

Tanto trabalhadores da AB quanto da AE avaliaram positivamente as ações de implementação e afirmaram benefícios adquiridos na ampliação de conhecimentos e na sua prática cotidiana pessoal. Na AB, observou-se melhoria na avaliação de situações de Saúde Mental, no estabelecimento de condutas e na desestigmatização dos usuários. Percebeu-se também que os encontros de Educação Permanente foram proveitosos aos profissionais recém-chegados aos serviços de Saúde Mental especializados, que por vezes não tinham conhecimento sobre o campo.

Muitos de nós sentimos que “caímos de paraquedas” no campo da Saúde Mental. [...] Muito do que grande parte de nós aprendeu foi a partir das trocas com profissionais mais experientes e com o próprio cotidiano de trabalho.

(GF-AE)

Diversos estudos apontam a importância da Educação Permanente em saúde, uma vez que se reconhecem as formações curriculares como deficitárias e ainda pouco orientadas ao Modelo Psicossocial1717 Emerich BF, Onocko Campos R. Formação para o trabalho em Saúde Mental: reflexões a partir das concepções de Sujeito, Coletivo e Instituição. Interface (Botucatu). 2019; 23:e170521. doi: 10.1590/Interface.170521.
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. Embora a formação profissional tenha sido uma preocupação desde a constituição do SUS, e várias tenham sido as conquistas obtidas, ainda é um campo no qual muito se tem a caminhar. A discussão sobre formação também remete a problematizações estruturais como a que fez Campos1818 Campos GWS. SUS: o que e como fazer? Cienc Saude Colet. 2018; 23(6):1707-14. ao propor a construção de carreiras nacionais como estratégia para possibilitar a reconfiguração do trabalho no SUS.

Embora a literatura corrobore a importância do aprendizado realizado pela imersão prática e trocas entre os pares1919 Garcia MAA. Saber, agir e educar: o ensino-aprendizagem em serviços de Saúde. Interface (Botucatu). 2001; 5(8):80-100. doi: 10.1590/S1414-32832001000100007.
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, mostra-se importante considerar a qualidade dos conhecimentos que estão sendo transmitidos. Essa preocupação deve-se ao risco de que concepções não orientadas ao modelo psicossocial possam ser difundidas sem que o receptor tenha condições de compreender a que se orientam.

A formação mostra-se como um dos eixos estratégicos para a mudança do modelo assistencial. Para Emerich e Onocko-Campos1717 Emerich BF, Onocko Campos R. Formação para o trabalho em Saúde Mental: reflexões a partir das concepções de Sujeito, Coletivo e Instituição. Interface (Botucatu). 2019; 23:e170521. doi: 10.1590/Interface.170521.
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, “a Reforma Psiquiátrica Brasileira tem nos trabalhadores uma das principais forças motrizes de sua constituição, sustentação, crítica e transformação” (p. 12). Nesse sentido, e considerando a perspectiva de substituição do manicômio por uma rede poliárquica de serviços de Atenção à Saúde Mental, o GF-AE destaca a importância da preparação para o trabalho em rede e de modo coletivo: “Assim, nos preparamos para ser profissionais da rede e não apenas dos serviços.” (GF-AE).

Em relação à percepção de melhora na integração da rede assistencial, apenas o GF-AE sinalizou percebê-la, principalmente no que se refere ao estabelecimento de fluxos e na qualificação dos encaminhamentos. Embora tais aspectos sejam fundamentais, eles não se configuram propriamente como uma prática de cuidado compartilhado. Para tanto, seria necessária uma corresponsabilização clínica e sanitária, assim como o compromisso para discussão e reavaliação do acompanhamento longitudinal dos casos77 Oliveira MM, Campos GWS. Matrix support and institutional support: analyzing their construction. Cienc Saude Colet. 2015; 20(1):229-38.. Em ambos os grupos focais, participantes demonstraram desejo de melhor integração entre os serviços como forma de se sentirem menos solitários e mais amparados para o manejo da complexa demanda que chega aos serviços.

Também houve convergência entre os trabalhadores ao elencarem a rotatividade de profissionais da AB como um dos principais entraves diante das conquistas referentes ao processo de trabalho e ao bom funcionamento do conjunto de serviços, o que pode gerar prejuízos importantes à vinculação ao território e à fragilização das equipes e das redes2020 Medeiros CRG, Junqueira ÁGW, Schwingel G, Carreno I, Jungles LAP, Saldanha OMFL. A rotatividade de enfermeiros e médicos: um impasse na implementação da Estratégia de Saúde da Família. Cienc Saude Colet. 2010; 15 Supl 1:1521-31. .

A Saúde Mental na Atenção Básica

A integração da Saúde Mental na Atenção Básica é estratégica ao contribuir para o acesso ao cuidado e à capilaridade da atenção no território2121 Gama CAP, Lourenço RF, Coelho VAA, Campos CG, Guimarães DA. Os profissionais da Atenção Primária à Saúde diante das demandas de Saúde Mental: perspectivas e desafios. Interface (Botucatu). 2021; 25:e200438. doi: 10.1590/Interface.200438.
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. Nesse nível assistencial, o vínculo, a longitudinalidade, a escuta qualificada e o acolhimento são ferramentas essenciais para um cuidado que considere a Saúde Mental e a subjetividade dos usuários. Os trabalhadores participantes trazem que as ações de Saúde Mental na AB contemplam um amplo espectro, desde ações de prevenção, promoção, manejo clínico e situacional até a atenção à crise. Destacam a potência de incluir discussões com temáticas do campo da Saúde Mental nas ações programáticas de rotina da unidade. Os generalistas ainda sinalizam que se deve adotar uma postura ativa diante da população com demanda em Saúde Mental, em uma perspectiva de favorecer a garantia de equidade considerando possíveis vulnerabilidades que apresentem.

A subjetividade deve ser compreendida como uma dimensão inerente ao viver e adoecer humano, ser levada em consideração em qualquer abordagem de saúde, de modo transversal e de forma a repudiar a concepção ilusória da divisão cartesiana entre corpo e mente2222 Hirdes A, Scarparo HBK. O labirinto e o minotauro: saúde mental na Atenção Primária à Saúde. Cienc Saude Colet. 2015; 20(2):383-93.. De modo pertinente, o grupo focal da Atenção Especializada afirma: “Saúde Mental é saúde”. No entanto, segundo Hirdes2222 Hirdes A, Scarparo HBK. O labirinto e o minotauro: saúde mental na Atenção Primária à Saúde. Cienc Saude Colet. 2015; 20(2):383-93., a segregação da Saúde Mental ainda é muito comum na AB, uma vez que ações em Saúde Mental parecem representar um acréscimo à demanda, e não a integrar ao trabalho pode constituir uma ação defensiva em meio à sobrecarga.

Os profissionais da AB compartilham a grande demanda diária de cuidados em Saúde Mental que chega às unidades, principalmente após a pandemia de Covid-19, e percebem também que tal demanda vem associada a condições sociais precárias de vida da população. Como resposta ao sofrimento, tem sido largamente utilizada a prescrição de psicotrópicos, preocupando os trabalhadores do GF-AB. De acordo com Campos et al.2323 Onocko Campos RT, Gama CA, Ferrer AL, Santos DVD, Stefanello S, Trapé TL, et al. Saúde mental na atenção primária à saúde: estudo avaliativo em uma grande cidade brasileira. Cienc Saude Colet. 2011; 16(12):4643-52. , a maioria dos profissionais desse nível assistencial identifica um excesso no uso de medicamentos com efeitos psicoativos.

A medicação pode ser importante em uma crise, mas não necessariamente precisa perdurar. Além disso, nem todos os casos precisariam de medicamentos. Tornou-se algo banal. Acreditamos que essa medicalização esteja relacionada à escassez de outras ofertas terapêuticas [...]. Precisaríamos ter outras alternativas, mas percebemos que as construir é um desafio tanto para a equipe quanto para os pacientes. É frequente que o paciente chegue pedindo medicação, parece que é algo cultural.

(GF-AB)

O consumo excessivo de psicotrópicos no contexto da Atenção Básica, segundo Molck et al.2424 Molck BV, Barbosa GC, Domingos TS. Psicotrópicos e Atenção Primária à Saúde: a subordinação da produção de cuidado à medicalização no contexto da Saúde da Família. Interface (Botucatu). 2021; 25:e200129. doi: 10.1590/Interface.200129.
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, indica uma medicalização do social em curso no país. Sofrimentos comuns relacionados a condição de vida acabam por ser interpretados como doença e tratados como questões médicas, ignorando-se os fatores sociais, históricos, psicológicos, culturais e ambientais que influenciam o surgimento dos sintomas. Em uma busca por compreender esse fenômeno, os autores reconhecem que a lógica neoliberal o subjaz. A busca por produtividade e máxima rentabilidade tanto estimula a procura por alta performance como imbui a visão do corpo como “máquina” sujeita a correção e consertos com soluções únicas que pouco consideram a variação entre sujeitos, além de perpassar o funcionamento dos serviços e o processo de trabalho, promovendo o processo de medicalização. A produtividade exigida dos trabalhadores de saúde favorece consultas rápidas, diagnósticos apressados, pouca possibilidade de estabelecimentos de vínculo, esvaziamento da relação médico-paciente e uso escasso de tecnologias relacionais2424 Molck BV, Barbosa GC, Domingos TS. Psicotrópicos e Atenção Primária à Saúde: a subordinação da produção de cuidado à medicalização no contexto da Saúde da Família. Interface (Botucatu). 2021; 25:e200129. doi: 10.1590/Interface.200129.
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.

Nesse sentido, os trabalhadores da AB trazem dificuldades no que se refere a oferecer um atendimento que contemple o olhar para a Saúde Mental com tempo e qualidade nos parâmetros que consideram ideais, uma vez que, para além de perceberem equipes diminuídas e sobrecarregadas nas unidades, notam um aumento da pressão por produtividade.

Sentimos nos últimos tempos que a exigência para que a gente produza mais, bata a meta e consiga a verba tem ficado cada vez maior. [...] Os valores são pagos por procedimento e diferem se a pessoa tem ou não um CPF cadastrado, em caso afirmativo o valor é maior. Assim, há uma pressão por tornar cada vez mais eficaz o preenchimento de dados.

(GF-AB)

Tal percepção nos remete ao advento do Previne Brasil, pela portaria n. 2.979, de 12 de novembro de 2019, que altera a forma de transferência de recursos para os serviços da AB, adotando critérios de captação por pessoa cadastrada e do pagamento por desempenho. Além de contribuir para a lógica mercantil na política pública e a precialização da saúde, tal medida prejudica a Atenção à Saúde, principalmente no que se relaciona à clínica ampliada e ao cuidado alinhado ao PP2525 Morosini MVGC, Fonseca AF, Baptista TWF. Previne Brasil, Agência de Desenvolvimento da Atenção Primária e Carteira de Serviços: radicalização da política de privatização da atenção básica? Cad Saude Publica. 2020; 36(9):e00040220..

Os desafios do Apoio Matricial na relação entre AB e SM

Ambos os grupos focais compreendem o desinvestimento no SUS como política pública e reconhecem a potência de uma parceria entre as ESFs e os Caps, entendendo-a como estratégica para o cuidado em Saúde Mental. E demonstram solidariedade com a falta de recursos e com a sobrecarga enfrentada pelo outro serviço. Assim como reconhecem que os impactos macropolíticos não anulam as possibilidades de construção no nível micro. No município em que foi realizado o estudo, a prática do Apoio Matricial em Saúde Mental se dá entre os dois Caps existentes e as ESFs.

Os trabalhadores participantes trazem dificuldades encontradas no desenvolvimento do cuidado compartilhado. Campos et al.2323 Onocko Campos RT, Gama CA, Ferrer AL, Santos DVD, Stefanello S, Trapé TL, et al. Saúde mental na atenção primária à saúde: estudo avaliativo em uma grande cidade brasileira. Cienc Saude Colet. 2011; 16(12):4643-52. afirmam que tensões podem ocorrer quando a lógica da corresponsabilização busca sobrepor a lógica do encaminhamento, uma vez que pressupõe um enfrentamento do modelo piramidal hegemônico, com a desconstrução da hierarquia entre os níveis assistenciais. Nessa perspectiva, o GF-AE pontua que “(...) a lógica – toma que o filho é seu filho – não pode acontecer, o filho é nosso, ele é um munícipe”. O GF-AB, por sua vez, destaca que a flexibilidade entre profissionais e serviços nas decisões sobre o acompanhamento dos usuários se mostra fundamental na garantia do acesso à saúde: “Às vezes percebemos que é importante alguma flexibilidade para não gerarmos desassistência”.

Como um dos pontos a serem desenvolvidos, o GF-AE identifica a importância de ampliação na concepção do Apoio Matricial, entendendo que ele deve ser mais do que discussões de caso feitas em reuniões presenciais. Aponta a importância de que a comunicação entre os serviços possa acontecer de modo ágil e sugere que temáticas referentes às necessidades de cada território ou ao funcionamento da rede assistencial possam ser colocadas em pauta.

Já os generalistas sinalizam a sensação de que as discussões realizadas nas reuniões de Apoio Matricial tendem a ser vagas no que se refere a pensar estratégias na condução dos casos concretos e nas condutas a serem tomadas. Parece-nos fundamental que o diálogo não se dê apenas no campo abstrato. Orientações práticas e guias bem construídos podem ser importantes aliados na superação do Paradigma Psiquiátrico Biomédico Medicalizador. É fundamental que o profissional da Saúde Mental possa ser diretivo, propositivo e oferecer recomendações sem a necessidade de ser prescritivo ou restritivo, tendo a possibilidade de repensá-las com os generalistas caso se mostre necessário.

Os especialistas participantes reconhecem que há lacunas a serem trabalhadas entre a discussão abstrata e o aprendizado concreto, e pensam que seria importante investir em estratégias mais dinâmicas e orientadas ao cotidiano de trabalho para superá-las, como dedicar-se à realização de atendimentos compartilhados, o que já é previsto no Apoio Matricial55 Campos GWS, Domitti AC. Apoio matricial e equipe de referência: uma metodologia para gestão do trabalho interdisciplinar em saúde. Cad Saude Publica. 2007; 23(2):399-407.: “Ainda precisamos aprimorar o encontro do discurso com a prática, do raciocínio clínico com o manejo clínico. Essa parte fica ainda meio fragmentada” (GF-AE).

O GF-AB também trouxe a impressão de que o cuidado em Saúde Mental ofertado tende a ser pouco resolutivo. Perante a temática da resolutividade, é necessário pensá-la por meio da disputa de paradigmas, já que a compreensão do que seria uma resolução corresponde a perspectivas completamente diferentes em cada um deles. Enquanto o PP se orienta no restabelecimento da autonomia e na possibilidade de reprodução social dos sujeitos, o PPHM orienta-se na cura e na remissão dos sintomas.

Cabe pensar nas condições efetivas e no grau que uma dada rede assistencial tem de poder ser resolutiva dentro do PP, uma vez que sua potência depende de vários fatores, como do comprometimento das redes intra e intersetoriais, assim como do envolvimento da sociedade e das políticas públicas. No intuito de favorecer uma avaliação dos resultados alcançados e permitir o estabelecimento de uma linguagem comum para que diferentes serviços e profissionais possam acordar a resolutividade almejada, Furtado et al.2626 Furtado JP, Onocko Campos RT, Moreira MIB, Trapé TL. A elaboração participativa de indicadores para a avaliação em saúde mental. Cad Saude Publica. 2013; 29(1):102-10. propõem a construção de indicadores. Para os autores, o grande desafio que pode representar a objetivação e a sistematização de parâmetros em Saúde Mental mostra-se fundamental ao planejamento estratégico e à construção do cuidado compartilhado.

Considerações sobre a Rede de Atenção Psicossocial

Os trabalhadores de ambos os grupos focais percebem que o trabalho articulado entre diferentes serviços e pontos de atenção é fundamental ao cuidado em Saúde Mental. No entanto, notam que a rede assistencial ainda é marcada pela desintegração, implicando um risco de desassistência ao munícipe. Preocupam-se com o vazio assistencial acentuado pelo desmonte da equipe Nasf no nível municipal, instigado pelo descredenciamento desse dispositivo pela política nacional.

Tesser2727 Tesser CD. Núcleos de Apoio à Saúde da Família, seus potenciais e entraves: uma interpretação a partir da atenção primária à saúde. Interface (Botucatu). 2017; 21(62):565-78. doi: 10.1590/1807-57622015.0939.
https://doi.org/10.1590/1807-57622015.09...
aponta que dificuldades na implementação e na construção da identidade dos Nasf poderiam favorecer a fragilização da política. Com a ausência do Nasf, o Ambulatório Central de Especialidades tem sido considerado a principal fonte de oferta de atendimento especializado para casos avaliados como de média a baixa complexidade no município. Algo que ambos os grupos focais enxergam como prejudicial à assistência e aos fluxos da rede, uma vez que identificam nele um funcionamento não alinhado ao Modelo Psicossocial. Trazem a não orientação ao trabalho construído em rede e em equipe. Apontam também a ineficiência no gerenciamento dos encaminhamentos e na estratificação de risco deles, implicando dificuldade de acesso em tempo oportuno, com criação de grandes filas de espera.

[...] avaliamos que ele (ambulatório de Saúde Mental) deixa a desejar, tanto no que diz respeito a sua inserção na rede assistencial, quanto no que tange a sua própria dinâmica de funcionamento [...]. Com a demora na oferta da assistência adequada os casos se agravam e a intervenção necessária se complexifica.

(GF-AB)

Tais mazelas se mostram características desse formato assistencial2828 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde/DAPE. Saúde Mental no SUS: acesso ao tratamento e mudança do modelo de atenção. Relatório de Gestão 2003-2006. Brasília: Ministério da Saúde; 2007.. Historicamente, os ambulatórios de Saúde Mental tiveram um funcionamento complementar aos hospitais psiquiátricos e não substitutivos a eles. O modelo ambulatorial, com suas intervenções focadas no indivíduo e no sintoma, pode levar a uma medicalização e psicologização do sofrimento, assim como a cronificação da população assistida2929 Severo AK, Dimenstein M. Rede e intersetorialidade na atenção psicossocial: contextualizando o papel do ambulatório de saúde mental. Psicol Cienc Prof. 2011; 31(3):640-55..

Tesser e Poli3030 Tesser CD, Poli Neto P. Atenção especializada ambulatorial no Sistema Único de Saúde: para superar um vazio. Cienc Saude Colet. 2017; 22(3):941-51. trazem que o funcionamento ambulatorial não representa um problema apenas no que diz respeito à Saúde Mental, mas também a toda Saúde Coletiva, e que a ausência de um modelo para a organização da articulação entre a Atenção Especializada e a Atenção Básica poderia ser suplantada com a adoção do formato organizativo dos Nasfs a todos os serviços especializados. Entendem que a inclusão de especialistas que atuem descentralizadamente com equipes da Atenção Básica propiciaria uma atuação regionalizada e descentralizada, contribuindo para tornar obsoleto o modelo ambulatorial clássico.

Os trabalhadores indicam que esses desafios se estendem à retaguarda oferecida na atenção à crise. Percebem dificuldades no trabalho com os serviços de urgência e emergência, e hospitalar, identificando que o despreparo vai desde a atenção ofertada até a estrutura física, esbarrando na dificuldade de acesso ou na quantidade de vagas.

A UPA [...] tem dificuldade de realizar um primeiro atendimento efetivo [...], tem plantonistas que não medicam casos de Saúde Mental e se não há psiquiatra no Caps, muitas vezes, o caso vem parar nos postos de saúde. Se a médica clínica da ESF pode prescrever, porque o plantonista já não o fez?

(GF-AB)

O atendimento à crise em Saúde Mental é um dos problemas mais evidentes na busca por um cuidado integral na Raps, e relaciona-se com a tendência de o processo de trabalho nos pronto atendimentos, nos serviços móveis de emergência e nos hospitais gerais estar orientado majoritariamente pelo modo de atenção hegemônico, piramidal e sintônico ao PPHM3131 Dimenstein M, Amorim AKA, Leite J, Siqueira K, Gruska V, Vieira C, et al. O atendimento da crise nos diversos componentes da rede de atenção psicossocial em Natal/RN. Rev Polis Psique. 2013; 2(3):98.:

[...] A formatação dos serviços de urgência e emergência impossibilita a formação de vínculo, visto que são pontuais, ignoram a complexidade do sofrimento, simplificando-o por meio da atenção ao sintoma, retira do indivíduo a responsabilidade sobre o seu estado e a sua vida, inserindo-o em um cotidiano artificial isolado, roubam sua autonomia, desconsideram a potencialidade da crise enquanto movimento de mudança e transformação3232 Jardim K, Dimenstein M. Risco e crise: pensando os pilares da urgência psiquiátrica. Psicol Rev. 2007; 13(1):169-90..

(p. 182)

A atenção à crise cumpre papel estratégico na desinstitucionalização, podendo constituir-se como fator protetor à cronificação e aos processos de incapacitação e exclusão social. No GF-AE sugeriu-se, de modo bastante pertinente, que profissionais de serviços como a UPA, o hospital geral e o serviço de ambulâncias municipal pudessem também participar dos espaços de Apoio Matricial em Saúde Mental e estreitar relações com os Caps e a AB. Cabe não deixar de sinalizar também a potente função ordenadora dos Caps diante da qualificação do cuidado em Saúde Mental, uma vez que são a vanguarda na transição ao PP.

O trabalho em saúde e a saúde do trabalhador

A fragmentação na Raps e o desconhecimento do campo podem levar ao endereçamento de expectativas irreais quanto ao trabalho realizado, como se um único serviço ou equipe pudesse apresentar a máxima resolutividade. Os trabalhadores participantes demonstram que essas expectativas lhes provocam sofrimento, uma vez que se misturam com seu desejo de fazer a diferença e com seus ideais. No intuito de expressar os impactos da exigência sentida, os GF-AE usam termos como “milagre”, “super-homens” e “supermulheres”. Nessas situações, a culpabilização é uma armadilha à espreita.

Para que os profissionais possam criar um desvio nessa rota, é necessário um exercício permanente de diferenciar o “ser responsável por alguém” do “apoiar alguém dentro da liberdade de decisão dessa pessoa”2323 Onocko Campos RT, Gama CA, Ferrer AL, Santos DVD, Stefanello S, Trapé TL, et al. Saúde mental na atenção primária à saúde: estudo avaliativo em uma grande cidade brasileira. Cienc Saude Colet. 2011; 16(12):4643-52. (p. 4647). Algo que se mostra desafiador quando consideradas as influências do modo hegemônico de pensar a saúde, a rede assistencial pouco “suportiva” e a sobrecarga com as equipes reduzidas.

O trabalho em saúde traz especificidades importantes, uma vez que o “sofrimento psíquico decorrente da organização e das condições de trabalho se soma àquele decorrente do contato intenso com a dor, com o sofrimento e a morte”3333 Barros ACF, Bernardo MH. A lógica neoliberal na saúde pública e suas repercussões para a saúde mental de trabalhadores de CAPS. Rev Psicol UNESP. 2017; 16(1):60-74. (p. 69). Os generalistas reconhecem isso: “Não estamos presentes apenas no momento em que uma criança nasce, mas também estamos ali no momento da dor, do sofrimento, da perda (GF-AB)”. Os especialistas também contam a alta carga emocional envolvida no cotidiano de trabalho e a grande responsabilidade ao se lidar com o sofrimento. Compartilham a dificuldade de dosar envolvimento e separação, potência e limite:

Há certa dificuldade em encontrar a medida exata do quanto é possível doar de si sem se expor ao risco de machucar-se e sentir dor. Há uma linha tênue, uma questão de espessura da barreira para que a proteção não se torne insensibilidade e frieza. É algo delicado, como sentir e envolver-se o suficiente para se importar e cuidar, mantendo a distância certa para não sucumbir?

(GF-AB)

Há implicação subjetiva na produção do cuidado e percepção de que a própria saúde é ferramenta de trabalho: “percebemos que trabalhar em saúde é trabalhar com a nossa saúde, o cuidado passa por nós. Se não pudermos cuidar de nós, não conseguiremos oferecer um olhar para mais ninguém” (GF-AB). No entanto, os trabalhadores de ambos os grupos notam que não há uma valorização da Saúde Mental, nem uma preocupação com os trabalhadores desse campo. Tal situação se mostra um problema, uma vez que a desvalorização do trabalhador da saúde fragiliza a luta antimanicomial e favorece o adoecimento dele. Nos grupos focais são trazidos relatos de adoecimento dos trabalhadores com variados desfechos, desde a solicitação de transferência de serviços, a alta rotatividade, até aqueles que procuram por psicoterapia e utilizam psicotrópicos3434 Alves SC, Barbosa SL, Tabosa LS, Queiroz VV. A gestão do trabalho no campo da saúde mental: desafios e possibilidades. Cad ESP. 2019; 9(1):9-18..

Investir na promoção da Saúde Mental do trabalhador é elementar, pois é dela que depende toda a produção de saúde e não há cuidado antimanicomial que se sustente com energias exauridas. No entanto, mostra-se fundamental atentar para possíveis engodos ao se abordar essa temática. Considerar o sofrimento relacionado ao trabalho difere de patologizar o fenômeno que se apresenta ou desresponsabilizar o trabalhador do serviço a ser prestado ao usuário, ou culpabilizar o profissional. Um processo cuidadoso com quem cuida, no ambiente de trabalho, consiste na oferta de espaços de escuta, de trocas horizontais, de participação, de respeito, de Educação Permanente e também possibilidade de se pensar as condições de trabalho, questioná-las e construir alternativas. Quando o trabalhador não se sente só na sua tarefa de cuidar e percebe que há parcerias que o amparam e o auxiliam a sustentar-se, dissipa-se o sentimento de solidão relatado.

Considerações finais

As iniciativas para qualificação do cuidado, engendradas pelo Laboratório Interfaces em parceria com a gestão municipal, tiveram reconhecidos seus efeitos. No entanto, embora haja devolutivas positivas, vê-se que o seu objetivo quanto à melhora na integração da rede assistencial nos cuidados em Saúde Mental era ambicioso e foi apenas parcialmente alcançado. Observa-se que a rede no município, campo do estudo, ainda guarda características correspondentes ao modelo hierarquizado entre os níveis assistenciais, mas nota-se a presença significativa, principalmente nas ESFs e nos Caps, de um movimento de abertura, interesse e busca pela construção de uma rede mais integrada e com maior horizontalidade entre os pontos de atenção.

Para a qualificação do cuidado compartilhado em Saúde Mental torna-se fundamental o enfrentamento do cenário de desmontes e retrocessos infligido ao SUS, à Atenção Básica e às políticas de Saúde Mental nos últimos anos. Mostra-se imperativo que o campo da Saúde Mental, com destaque para a valorização dos trabalhadores e suas condições de trabalho, seja priorizado como um dos pilares da saúde, dada sua relevância.

Agradecimentos

A todos os pesquisadores, trabalhadores da saúde e gestores que participaram da construção, elaboração e sustentação dessa pesquisa. Em especial, ao grupo Interfaces e à Prof.ª Dr.ª Rosana Onocko Campos, que tornaram esta pesquisa possível.

  • Pinheiro LP, Emerich BF. Cuidado compartilhado em Saúde Mental: o que dizem os trabalhadores?. Interface (Botucatu). 2024; 28: e230324 https://doi.org/10.1590/interface.230324
  • Financiamento

    A pesquisa ampliada da qual este trabalho faz parte foi financiada pela Fapesp e pela Capes.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    30 Jun 2023
  • Aceito
    01 Dez 2023
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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