Entre baques e atraques: cenas de uma pesquisa cartográfica entre o Sistema Único de Saúde (SUS) e a saúde suplementar

Blows and clinches: scenes of a cartographic study between the Brazilian National Health System (SUS) and supplementary health

Entre caídas y golpes: escenas de una investigación cartográfica entre el Sistema Brasileño de Salud (SUS) y la Salud suplementaria

Isaac Linhares de Oliveira Matias Aidan Cunha de Sousa João Gustavo Xavier de Queiroz Juliana Sampaio Sobre os autores

Resumos

A pesquisa cartográfica se caracteriza pela imersão da pessoa pesquisadora no território afetivo-existencial a ser pesquisado. Este artigo põe em análise, por meio dessa proposta metodológica, as implicações e sobreimplicações de um pesquisador negro, bissexual e médico de Família e Comunidade em um contexto de trabalho e pesquisa entre uma Unidade Básica de Saúde (UBS) e uma clínica de atenção primária de um plano privado de saúde localizada no município de Natal, RN. Ele desvela, por meio da “escrevivência” de quatro cenas, a precarização do processo de trabalho, a deterioração de algumas ferramentas clínicas e a forte presença de um racismo estrutural e institucional.

Palavras-chave
Medicina de Família e Comunidade; Saúde suplementar; Racismo


In cartographic research, researchers immerse themselves in the affective-existential setting being studied. Using cartographic methods, this study analyzed the implications and superimplications of a black, bisexual family and community doctor working and conducting research in a public health center and private primary care clinic in Natal, Rio Grande do Norte. Based on “escrevivências” of four cenas-de-viragem (milestones), the analysis reveals worsening working terms and conditions, the deterioration of certain clinical tools and the strong presence of structural and institutional racism.

Keywords
Family and community medicine; Supplementary health; Racism


La investigación cartográfica se caracteriza por la inmersión de la persona investigadora en el territorio afectivo-existencial a investigar. Este artículo analiza por medio de esta propuesta metodológica las implicaciones y sobreimplicaciones de un investigador negro, bisexual, médico de familia y comunidad en un contexto de trabajo e investigación entre una Unidad Básica de Salud y una clínica de atención primaria de un plan privado de salud localizada en el municipio de Natal (Estado de Rio Grande do Norte). Desvela por medio de la “escritura-vivencia” de cuatro puntos de inflexión la precarización del proceso de trabajo, el deterioro de algunas herramientas clínicas y la fuerte presencia de un racismo estructural e institucional.

Palabras clave
Medicina de familia y comunidad; Salud suplementaria; Racismo


Introdução

Mate em vocêMacho, branco, senhor de engenho, colonizador, capatazQue pensa estar sempre à frenteMas vive para trás.Linn da Quebrada, 2021

A pesquisa cartográfica se caracteriza pela imersão da pessoa pesquisadora no território afetivo-existencial a ser pesquisado11 Abrahão AL, Merhy EE, Gomes MPC, Tallemberg C, Chagas MS, Rocha M, et al. O pesquisador in-mundo e o processo de produção de outras formas de investigação em saúde. Lugar Comum. 2013; (39):133-44.. Ela vai na contramão dos modelos científicos dominantes nos séculos XIX e XX, que propunham metodologias objetivas e que procuravam, por meio de técnicas “neutras”, representar o real no campo do pensamento, buscando compreendê-lo melhor por meio da decomposição das suas partes22 Paulon SM, Romagnoli RC. Pesquisa-intervenção e cartografia: melindres e meandros metodológicos. Estud Pesq Psicol. 2010;10(1):85-102.. A prática cartográfica se propõe, ao contrário, ser uma pesquisa que acompanha processos em sua complexidade sem a pretensão de cristalizá-los em uma representação estanque da realidade22 Paulon SM, Romagnoli RC. Pesquisa-intervenção e cartografia: melindres e meandros metodológicos. Estud Pesq Psicol. 2010;10(1):85-102..

O pensamento de Gilles Deleuze e Félix Guattari é uma das inspirações desse modo de pesquisar. Tais autores não reconhecem a neutralidade e objetividade como formas de produzir conhecimento, que é compreendido como um ato de criação, e não de representação. Dessa forma, a produção do conhecimento é mais potente na medida em que acompanha processos em constantes mudanças, e não constata fatos fixados33 Kastrup V, Passos E. Cartografar é traçar um plano comum. Fractal Rev Psicol. 2013; 25(2):263-80..

Assim, a cartografia guarda certas proximidades com a perspectiva metodológica da Análise Institucional (AI). Para René Lourau, um dos seus precursores, pesquisar é um ato de análise, não só do campo e do território da pesquisa, mas também das próprias pessoas pesquisadoras44 L’Abbate S. Análise Institucional e Intervenção: breve referência à gênese social e histórica de uma articulação e sua aplicação na Saúde Coletiva. Mnemosine. 2012; 8(1)194-219.. Para ele, a pesquisa é um ato de intervenção que reverbera sobre todas as pessoas e instituições envolvidas. Há, utilizando-se um linguajar psicanalítico, um jogo de transferência e contratransferência institucional; ou, em um linguajar socioanalítico, um jogo de implicação. Implicação que é, de modo mais amplo, uma relação das pessoas que pesquisam com a instituição sob análise55 Monceau G. Implicação, sobreimplicação e implicação profissional. Fractal Rev Psicol. 2008; 20(1):19-26.. Esse conceito é fundamental para a AI, pois uma parte importante da sua metodologia é uma análise coletiva das relações para visibilizar as ideologias, desejos e interesses que possam estar ocultos à primeira vista.

Em um caminho parecido, pesquisadoras americanas do campo das pesquisas sobre racialidades, como Patricia Hill Collins e Sirma Bilge66 Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo; 2021., propõem que o standpoint view, ou seja, o lugar de fala, não se apaga no ato de pesquisar e, de certa forma, a análise interseccional da própria pessoa pesquisadora pode ser vista como uma forma robusta de considerar o jogo das implicações e levar em conta os atravessamentos de raça, etnia, gênero, orientação afetivo-sexual, classe econômica e deficiência.

É importante destacar também os jogos de poder nessas implicações. Os sujeitos coletivos e individuais que detêm a supremacia em uma sociedade capitalista, patriarcal, racista e heteronormativa também detêm o poder simbólico e material para colocar as suas narrativas de mundo como dominantes e marginalizar outras que são apagadas ou deixadas em uma periferia epistemológica66 Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo; 2021.. Glória Anzáldua77 Anzaldúa G. Borderlands. La frontera: la nueva mestiza. Madrid: Capitán Swing Libros; 2021. elabora o conceito de “mestiza” para falar sobre o seu local de marginalidade no discurso científico enquanto mulher, mestiça e lésbica. Na mesma intencionalidade, Audre Lorde88 Lorde A. Irmã outsider: ensaios e conferências. São Paulo: Autêntica Editora; 2019. se considera uma outsider within, expressão que poderia ser traduzida como “forasteira de dentro” e que dá conta de expressar seu local enquanto poetisa, negra, lésbica e mulher.

Na onda da propagação de discursos marginais e do engajamento da pesquisa, o campo da Saúde Coletiva brasileira, desde a sua constituição histórica, lançou forças no que Emerson Merhy99 Kastrup V, Escossia LD, Passos E. Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Editora Sulina; 2017. chama de “pesquisa-militante”, que são estudos e ações realizadas por pessoas trabalhadoras do Sistema Único de Saúde (SUS) no contexto dos serviços de saúde como uma defesa do modelo público, gratuito, territorial e de qualidade. Pesquisar e produzir conhecimentos seriam uma forma de instrumentalizar a militância e, em um processo de educação permanente, ser o motor de controle social e autogoverno da classe de pessoas que trabalham.

Assim, todo esse palavreio é introdução para este artigo que propõe um olhar cartográfico para o fazer de um pesquisador que transitou entre uma UBS e uma clínica de Atenção Primária à Saúde (APS) no campo da atenção suplementar, em um trânsito que abandonou, com diversos conflitos, uma ciência hegemônica que enxerga por meio de um olhar “macho, branco, senhor de engenho, colonizador, capataz”(e(e)Extraído da música: mate & morra de Linn da Quebrada. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=o2eHVuVff50 (citado 14 Mar 2024).).

Política de narratividade e caminhos da pesquisa

Como já apontado, a pesquisa cartográfica não aposta em um modelo neutro e objetivo de pesquisa e não propõe a metodologia científica como um destino. Ela aposta, na verdade, em um caminho aberto que pode até ter um norte – ou melhor, um sul –, mas que não é um campo fechado de procedimentos desengajados e objetivos99 Kastrup V, Escossia LD, Passos E. Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Editora Sulina; 2017.. Ela é, antes de tudo, uma abertura do olhar para os processos que estão em jogo e um aprofundamento da pessoa que pesquisa no campo. Não há, desse modo, uma busca por uma teorização fechada e pronta, mas sim uma busca por uma narrativa que dê conta de colocar a instituição que se pesquisa para falar e – por que não? – se denunciar. Denúncia que, às vezes, não cabe em texto formal e “científico” a partir de uma perspectiva hegemônica e cis-heteropatriarcal de ciência, mas necessita criar seus próprios métodos e processos; e sua própria política de narratividade. Como já apontou Audre Lorde88 Lorde A. Irmã outsider: ensaios e conferências. São Paulo: Autêntica Editora; 2019.: escrever é um ato político.

Este artigo põe em análise o fazer de um pesquisador que, em sua pesquisa de mestrado em Saúde Coletiva, objetivava caracterizar o perfil e a atuação de médicos de Família e Comunidade de uma clínica de APS, localizada no município de Natal, RN, e que prestava serviços a uma empresa de plano privado de saúde. Ele também era um dos médicos de Família e Comunidade dessa clínica e isso reverberou em seu fazer-pesquisador e seu fazer-trabalhador.

Esse pesquisador atuou por dois anos – entre dezembro de 2019 e dezembro de 2021 – nessa clínica, mas já tinha tido uma experiência anterior com o mesmo plano de saúde e os mesmos gestores entre abril de 2018 e novembro de 2019, em um outro estabelecimento privado de saúde. A experiência analisada neste artigo compreende esse período de quase quatro anos, no qual o pesquisador manteve uma carga horária de vinte horas semanais nesses campos privados e vinte horas semanais como preceptor de um programa de residência médica em uma Unidade Básica de Saúde (UBS). O profissional em questão também foi egresso de uma graduação e uma residência médica em uma instituição pública e concluiu o mestrado na mesma instituição.

Esse pesquisador é uma pessoa negra e bissexual e, como política de narratividade, passará a se referir a si mesmo na primeira pessoa do singular, em vez da neutra terceira pessoa. O restante do artigo não seguirá com a despersonalização do discurso. Essa escolha é amparada pela força-ideia da escrevivência, que é uma proposição da escritora Conceição Evaristo que procura, em suas obras, ir “con(fundindo) escrita e vida, ou, melhor dizendo, escrita e vivência” (p. 8)1010 Machado HSV, Melo EA, Paula LGN. Medicina de Família e Comunidade na saúde suplementar do Brasil: implicações para o Sistema Único de Saúde e para os médicos. Cad Saude Publica. 2019; 35(11):e00068419.. Essa é uma proposta que subverte a produção do conhecimento, pois introduz “uma fissura de caráter eminentemente artístico na escrita científica” (p. 210)1111 Gonzalez L. Por um feminismo afro-latino-americano. São Paulo: Companhia das Letras; 2020..

Outra fissura nesse sentido e parte da política de narratividade proposta será utilizar uma linguagem poética na escrita e ancorar, em alguns momentos, as reflexões e vivências narradas por mim em textos poéticos. Isso não é um recurso de estilística, mas sim uma compreensão ampliada da existência e da fabricação da ciência. Assim como Audre Lorde88 Lorde A. Irmã outsider: ensaios e conferências. São Paulo: Autêntica Editora; 2019., acredito na “poesia como destilação reveladora da experiência” (p. 37) e “luz sob a qual baseamos nossas esperanças e nossos sonhos de sobrevivência e mudança” (p. 37).

Diante dessas escolhas, para visualizar melhor as contradições e dobras no fazer da pesquisa, e para pôr em análise as implicações do processo, faço a narração de quatro cenas-de-viragem(f(f)Cenas-de-viragem são um termo tomado de empréstimo da linguagem cinematográfica. Elas são reviravoltas inesperadas no enredo que mudam o resultado final de uma história.). Essas cenas, para se utilizar uma linguagem cinematográfica, são acontecimentos, ou seja, eventos significativos do ponto de vista dos processos que foram estudados e que carregam, em si, elementos que põem em evidência o que está posto e o que está em movimento de se pôr, de se colocar, de devir.

Elas são acontecimentos1212 Becker HS. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. São Paulo: Companhia das Letras; 2008. e são produtos tanto dos diários cartográficos quanto das reuniões de processamento em encontros do coletivo de pesquisa do qual eu participava. Tais produtos foram escritos em estilo livre e poético, entre março de 2021 e janeiro de 2022, e foram lidos, mexidos e rebulidos (e quase rebolados) nas reuniões de processamento que ocorreram na virtualidade do Google Meet, que tiveram cerca de uma hora de duração e de periodicidade às vezes quinzenal, às vezes mensal, entre o coletivo de pesquisa que estava dividido em integrantes de Natal (Rio Grande do Norte) e João Pessoa (Paraíba).

A análise das cenas-de-viragem aqui se dá utilizando ferramentas da análise institucional de René Lourau44 L’Abbate S. Análise Institucional e Intervenção: breve referência à gênese social e histórica de uma articulação e sua aplicação na Saúde Coletiva. Mnemosine. 2012; 8(1)194-219., da teoria interseccional de Patricia Hill Collins66 Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo; 2021. e das escritas tropicalistas e antropofágicas de Suely Rolnik1313 Borges S. Talvez precisemos de um nome para isso: ou o poema de quem parte. São Paulo: CEPE Editora; 2019.. Implicação, para Lourau, é entendida como a relação do coletivo de pesquisa com a instituição analisada e sobreimplicação, como as dificuldades e resistências em perceber os atravessamentos dessa relação44 L’Abbate S. Análise Institucional e Intervenção: breve referência à gênese social e histórica de uma articulação e sua aplicação na Saúde Coletiva. Mnemosine. 2012; 8(1)194-219.. Já o conceito de interseccionalidade de Collins é uma ferramenta analítica oriunda de um compromisso em compreender como raça, gênero, sexualidade, capacidade física, status de cidadania, etnia, nacionalidade e faixa etária são mutuamente construídos e moldam a realidade social66 Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo; 2021.. Já a escrita tropicalista e antropofágica de Rolnik busca abrasileirar a práxis cartográfica e compreender o cartógrafo como um antropófago que vive de expropriar, apropriar-se, devorar e desovar elementos diversos.

Seguindo todos os ritos e driblando “corpos marcados negados pela sua extrema subjetividade”, como coloca Gustavo Raimondi, esta pesquisa seguiu todas as recomendações éticas da resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), sendo aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Ciências Médicas (CCM) da Universidade Federal da Paraíba, com o CAAE: 42482721.7.0000.8069, fazendo parte também da pesquisa de mestrado intitulada “Entre baques e atraques: a inserção da Medicina de Família e Comunidade na saúde suplementar” da mesma instituição.

Cenas-de-viragem e suas discussões

Cena 1

Primeira entrevista de emprego presencial. Racismo velado da boa aparência. Duas decisões: negar ou me adaptar. Escolho me adaptar.

Estava morando em uma nova cidade há menos de um mês e era recém-egresso da residência médica. Em um dia, caminhei da minha casa para um brilhante prédio de vidro espelhado que era sede de uma operadora de plano de saúde. Fazia muito sol e eu estava bastante empolgado para minha primeira entrevista de emprego depois da residência. Cheguei, apresentei-me e subi dois lances de escada para a sala do gestor. Conversamos bastante sobre a proposta de trabalho e as potencialidades da Medicina de Família na saúde suplementar. Falamos sobre Atenção Primária, acesso avançado, prevenção quaternária, pequena cirurgia ambulatorial e todo aquele palavreio que eu já conhecia bem. Tudo parecia ótimo, até que o gestor fez um comentário: “Olha, não me leve a mal, mas temos normas de aparência na empresa. É preciso cabelo curto e penteado, barba bem-feita e camisa social. Não sou eu que decido, são normas. O cabelo assim não dá”. Aquilo tudo foi um baque, foi bem difícil de ouvir, fiquei estático e sem reação. Toda minha empolgação foi esmaecida. A entrevista foi encerrada logo depois sem que eu desse sinais de desconforto e saí daquele lugar pensativo se aceitaria ou não o emprego com essa condição. Era uma situação de negar ou aceitar. Acabei aceitando mesmo com várias questões internas contra essa decisão. Por quê?

Figura 1
Maio de 2018.

É interessante perceber que essa primeira cena, apesar de bastante violenta, não foi uma das primeiras que revisitei nos meus diários cartográficos quando repassava situações e momentos que tinha vivenciado na saúde suplementar e que eram, de alguma forma, significativos para mim. Ela só veio depois, quase no final de todo o processo de pesquisa. Ela só me chegou um dia, quando observei desatento que meu cabelo, agora, depois da demissão, já se configura em um black novamente. Revisitei fotos do meu cabelo curto, depois desse dia, e senti novamente a dor da tesoura e do racismo do gestor.

Foi muito doloroso encarar tudo isso novamente, e a escrita deste próprio texto é também doída. Não é à toa que foi o último que escrevi, no último suspiro da dissertação que deu origem a este artigo. Silenciei por muito tempo as sensações dessa cena, mas, inspirado por Audre Lorde, penso que o silêncio não protege ninguém e é necessário transformá-lo em linguagem e ação88 Lorde A. Irmã outsider: ensaios e conferências. São Paulo: Autêntica Editora; 2019.. Inicialmente, na elaboração da pesquisa, não passou pela minha cabeça pesquisar sobre o racismo nos serviços de saúde. Pretendia cartografar projetos ético-políticos da minha especialidade1414 Andrade HS, Alves MGM, Carvalho SR, Silva AG Jr. A formação discursiva da Medicina de Família e Comunidade no Brasil. Physis. 2018; 28(3):e280311.; construções e desconstruções do cuidado no setor privado; e processos de exploração do trabalho em saúde de uma APS guiada pelo capital1010 Machado HSV, Melo EA, Paula LGN. Medicina de Família e Comunidade na saúde suplementar do Brasil: implicações para o Sistema Único de Saúde e para os médicos. Cad Saude Publica. 2019; 35(11):e00068419..

Todavia, é interessante também observar que, enquanto eu escrevia o projeto, cumpria os requisitos curriculares, escrevia os diários cartográficos, processava os registros nas reuniões do coletivo de pesquisa, escrevia outros dois artigos e ia fazendo leituras intimamente conectadas com os temas de raça, racismo e branquitude. Ao lado de Gilles Deleuze, Félix Guattari, Suely Rolnik, Emerson Elias Merhy e Ricardo Bruno Mendes-Gonçalves, eu lia Audre Lorde, bell hooks, Frantz Fanon, Lélia Gonzalez, Patricia Hill Collins e Saidiya Hartman. Eu achava que eram leituras paralelas e não relacionadas, mas agora elas se demonstram intimamente conectadas nessa encruzilhada cartográfica. Eu, mesmo que de forma inconsciente, procurava, por meio da leitura de uma tradição negra radical, dar sentido e palavras ao racismo que vivenciava no campo de pesquisa.

Em nome da “boa aparência”, o gestor da clínica solicita que eu tenha cabelo curto e penteado, tenha barba feita e use camisa social. Esse tipo de atitude é analisada no trabalho de Lélia Gonzalez1111 Gonzalez L. Por um feminismo afro-latino-americano. São Paulo: Companhia das Letras; 2020., que, ao denunciar o racismo brasileiro, problematiza: “por que os anúncios de emprego falam tanto em ‘boa aparência’?” (p. 65). Ela entende que, aqui, a “boa aparência” é sinônimo de ser branco. A branquitude é o alvo almejado. Howard Becker1212 Becker HS. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. São Paulo: Companhia das Letras; 2008., em seus estudos da sociologia dos desvios, em contexto estadunidense, também aponta que a maioria das pessoas, por estigmas raciais, esperam que médicos sejam de classe média alta, brancos, do sexo masculino e protestantes. Ele também coloca que as pessoas ficam surpresas e veem como anomalia o fato de um negro ser um médico ou professor universitário. Eu, “por acaso”, sou os dois. Tomando de empréstimo os versos da poetisa Stephanie Borges1313 Borges S. Talvez precisemos de um nome para isso: ou o poema de quem parte. São Paulo: CEPE Editora; 2019.:

não há nada de exótico aquicomentários que distinguem:• você é tão bonita, por que não…• parece muito limpo• não tem uma aparência muito profissional. (p. 7)
Figura 2
Dezembro de 2018.

E por que eu não me posicionei de imediato? E por que eu me submeti ao emprego e à condição de “boa aparência?” Penso que “as lágrimas/os dinheiros/e os cabelos/perdidos/nunca são recuperados” (p. 13)1313 Borges S. Talvez precisemos de um nome para isso: ou o poema de quem parte. São Paulo: CEPE Editora; 2019.. Contudo, penso também que essas dúvidas valem a pena ser respondidas, tanto que elas ficaram pairando na minha cabeça por muito tempo; e só aos poucos eu fui criando clareza para responder. Acho que meu encanto, quase infantil, com o “brilhante prédio de vidro espelhado” explica muito. Eu tinha saído de uma residência médica em uma UBS com uma estrutura comprometida onde eu passei alguns meses atendendo sem a porta do meu consultório, destruída por uma infiltração de cupins. Além disso, eu estava trabalhando, depois da residência, em uma UBS, em Natal, cujo muro da frente estava interditado porque, a qualquer momento, cairia com uma chuva. O vidro espelhado tinha o seu apelo, convenhamos.

Além disso, havia a promessa de revolucionar o cuidado hipermedicalizado e iatrogênico da saúde suplementar com a Atenção Primária, com a possibilidade de um acesso avançado com organização da demanda por um sistema inteligente de agendamento; e abundância de materiais e insumos para a realização de pequena cirurgia ambulatorial. Um sonho de Medicina de Família e Comunidade (MFC) que nunca tinha idealizado antes por estar em um cenário de precarização e desfinanciamento da Atenção Básica1515 Melo EA, Almeida PF, Lima LD, Giovanella L. Reflexões sobre as mudanças no modelo de financiamento federal da Atenção Básica à Saúde no Brasil. Saude Debate. 2019; 43 Spec No 5:137-44..

Além desse apelo das tecnologias duras e leve-duras, para usar um linguajar merhyniano1616 Merhy EE, Feuerwerker LCM, Santos MLM, Bertussi DC, Baduy RS. Rede Básica, campo de forças e micropolítica: implicações para a gestão e cuidado em saúde. Saude Debate. 2019; 43 Spec No 6:70-83., havia claramente uma questão racial que só notei ao ler Frantz Fanon1717 Fanon F. Pele negra, máscaras brancas. São Paulo: Ubu Editora; 2020.. Eu, na minha postura, era muito semelhante à pessoa colonizada que se encanta com a metrópole em uma visita e passa a tentar emular as roupas, as pronúncias, as expressões e a pele branca metropolitana. Isso fica mais aparente na cena seguinte, que aconteceu meses depois. A colônia, no caso, guarda semelhança com a UBS; e a metrópole, com a clínica da saúde suplementar. Esses são “os códigos do apagamento/as pequenas omissões/nas quais você começa/achando tudo muito inofensivo”1313 Borges S. Talvez precisemos de um nome para isso: ou o poema de quem parte. São Paulo: CEPE Editora; 2019. (p. 23).

Cena 2

Cena normal e bem cotidiana. Relembrei ao mero acaso depois da leitura de Frantz Fanon

Dia cotidiano, nada demais. Saí da UBS, na periférica zona oeste de Natal, e me direcionei para o almoço em casa antes da segunda jornada de trabalho. Acumulava dois empregos, um pelas manhãs e outro pelas tardes. Cheguei em casa, preparei um rápido almoço e parti para o banho. Me despi dos sapatos vermelhos, das calças jeans, da cueca e de uma camisa com estampa florida que gostava muito de usar. Eram minhas roupas de conforto para trabalhar no postinho. Banhei-me na água do chuveiro, lavei meu corpo e meu cabelo, que já estava bem curto na época. Então, enxuguei-me e me vesti novamente: pus cueca, meias, uma calça social azul marinho, uma camisa social azul-bebê, meus suspensórios e um sapato social bem bonito. Estava pronto, cheiroso e asseado. Estava de “boa aparência”. Cruzei algumas quadras a pé para o brilhante prédio de vidro espelhado na principal avenida da cidade. Entrei no meu consultório, vesti meu jaleco, que não era branco, mas de um tom pardo e comecei a atender clientes de um plano de saúde.

Figura 3
Maio de 2021.

“Talvez a repetição abra/uma brecha para o esquecimento” (p. 29)1313 Borges S. Talvez precisemos de um nome para isso: ou o poema de quem parte. São Paulo: CEPE Editora; 2019.. Nessa cena cotidiana, por muito tempo esquecida e não percebida, noto que há uma tentativa de inscrever a branquitude no meu próprio corpo. O traje social é, de certa forma, uma máscara branca. Eu usava cabelo e barba curtos; suspensórios; camisa; e calças e sapatos sociais para me camuflar de “médico” e passar despercebido. Eu usava até jaleco, que era algo que eu nunca usei durante a residência ou nos atendimentos que eu fazia na UBS.

Esse disfarce é estudado em um artigo da antropóloga Rosana Castro1818 Castro R. Pele negra, jalecos brancos: racismo, cor(po) e (est)ética no trabalho de campo antropológico. Rev Antropol. 2022; 65(1):e192796. sobre a imposição feita por uma instituição de pesquisa clínica, na qual ela estudava, de que ela utilizasse jaleco nos atendimentos. Em um primeiro momento, ela achou que essa ferramenta – o jaleco branco – a confundisse com os profissionais médicos, mas isso não aconteceu, por ela ser uma mulher negra. Daí pode-se refletir que as ferramentas de branqueamento podem ser utilizadas como tentativas de conquistar uma certa posição mais confortável nos privilégios da branquitude, mas isso nunca acontece de forma plena.

Eu, apesar de utilizar um jaleco, ainda enfrentava olhares de espanto quando no consultório eu falava que era médico. Sempre era questionado se não seria um estagiário ou um outro profissional da saúde, mesmo que com minha barba feita, meu cabelo curto, meu jaleco e meu crachá. A máscara branca nunca parecia grande o suficiente para cobrir a pele negra.

A cor do jaleco também merece uma análise: parda. Não era nem um jaleco branco tradicional, nem um jaleco preto totalmente alternativo. Era um meio do caminho. Como eu sou pardo, o jaleco se misturava à minha própria pele. Era minha capa de invisibilidade. De certa forma, meu corpo estava cindido. Na UBS, eu usava traje casual com camisas coloridas e estampadas e deixava o jaleco guardado na bolsa; já na clínica, eu usava o social completo. No meu corpo, habitavam e concorriam por espaço o médico-de-postinho-enegrecido e o médico-de-família-branqueado.

Todo o ano de 2018 transcorreu nessa cisão. Lembro até que, na semana do meu aniversário, ganhei da enfermeira da minha equipe da UBS uma camisa estampada com flores e de uma beneficiária do plano de saúde, uma camisa social. Os presentes diferentes refletiam as pessoas distintas que eu era em cada um daqueles lugares.

você não mudounada, mas alguma coisa foramudou e nada maisé como anteso poema de quem parte ultrapassa o inventárioda divisão1313 Borges S. Talvez precisemos de um nome para isso: ou o poema de quem parte. São Paulo: CEPE Editora; 2019.. (p. 13)

Em 2019, o médico-de-família-branqueado tomou conta de mim, que passei a ir de traje social também para a UBS. No entanto, em 2020, durante a pandemia, o médico-de-postinho reapareceu e voltei a me vestir casualmente, dessa vez, em ambos os empregos, mas sem camisas coloridas. Em 2021, no meio do mestrado, eu não cabia mais na clínica e me demiti. É interessante observar toda uma disputa micropolítica no jeito de deixar o cabelo e no modo de se vestir – “há sempre uma boa estratégia/a quem deseja uma espécie de disfarce/veja bem/o comprimento é parte da performance1313 Borges S. Talvez precisemos de um nome para isso: ou o poema de quem parte. São Paulo: CEPE Editora; 2019. (p. 14).

Em outro artigo, escrito com o coletivo de pesquisa, levantamos a hipótese de que um dos fatores que levam pessoas médicas de Família e Comunidade para a saúde suplementar é a maior proximidade do perfil sociodemográfico da população atendida pelos planos privados de saúde (mulheres brancas das classes C e D)1919 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional de Saúde 2019: informações sobre domicílios, acesso e utilização dos serviços de saúde [Internet]. Rio de Janeiro: IBGE; 2020 [citado 5 Fev 2024]. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/saude/9160-pesquisa-nacional-de-saude.html?edicao=28655&t=publicacoes
https://www.ibge.gov.br/estatisticas/soc...
com o dos médicos formados pelas instituições de ensino superior brasileiras (mulheres brancas das classes B e C)2020 Scheffer M. Demografia médica no Brasil 2020 [Internet]. São Paulo: FMUSP; 2020 [citado 1 Set 2022]. Disponível em: https://www.fm.usp.br/fmusp/conteudo/DemografiaMedica2020_9DEZ.pdf
https://www.fm.usp.br/fmusp/conteudo/Dem...
. No meu caso, ao contrário, meu perfil racial me aproximava mais da população atendida pela Atenção Básica Brasileira, na qual 58,3% das pessoas são negras, sendo que, no Nordeste, local de minha atuação, esse percentual chega a 73,8%2121 Guibu IA, Moraes JC, Guerra AA Jr, Costa EA, Acurcio FA, Costa KS, et al. Main characteristics of patients of primary health care services in Brazil. Rev Saude Publica. 2017; 51 Suppl 2:17s.. Isso pode explicar por que eu me sentia mais à vontade para me vestir à minha maneira na UBS. Além desses incômodos e disputas, outro aspecto que me perturbou na saúde suplementar foi o processo de trabalho, e isso fica mais evidente na cena a seguir.

Cena 3

Eu em um dia a dia qualquer sendo massacrado pela rotina e pelo quantitativo de pacientes atendidos

Cinco horas de trabalho por turno. 15 atendimentos em cada turno.

Dizem que os espanhóis têm uma média de tempo de consulta de sete minutos e que os ingleses não passam de dez, mas não sei como eles conseguem.

Não sei se consigo.

Acredito, pensando com Merhy2222 Merhy EE. O cuidado é um acontecimento e não um ato. In: Franco TB, Merhy EE, organizadores. Trabalho, produção do cuidado e subjetividade em saúde. São Paulo: Hucitec; 2013. p. 172-82., que cada atendimento é como a brincadeira de dois brincantes em uma dança em pleno carnaval.

É algo único.

Duas pessoas com histórias, desejos e ideias diferentes.

Uma dança horizontal que ora uma pessoa conduz, ora a outra conduz.

Acho muito bonita essa imagem.

O tempo entre uma dança e um beijo no carnaval deve ser de quanto tempo?

Qual será a média?

Poucos minutos, eu acho, mas fico pensando também, com Starfield2323 Starfield B. Atenção Primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: UNESCO; 2002., se a APS seria mais um flerte de carnaval ou um namoro.

Há vínculos e vínculos.

Escrevo meus diários de campo.

Essa cena escancara as contradições do cotidiano do processo de trabalho que lembra cenas do filme “Tempos modernos”, de Charles Chaplin2424 Tempos Modernos. Charlie Chaplin (diretor). Hollywood: Charlie Chaplin Film Corporation; 1936. Filme: 1:27 min.. A repetição e monotonia é tanta que o fato de o campo de pesquisa ser o meu local de trabalho, em um primeiro momento da pesquisa, distanciou-me do lugar de cartógrafo-pesquisador e do lugar de afetar e ser afetado. Há vários trechos dos diários de campo em que esses tensionamentos se fazem presentes, como o presente a seguir:

Trabalhar na clínica me coloca num lugar privilegiado no campo e acho que tenho mais fácil acesso aos processos que quero acompanhar. Uma pessoa forasteira, penso eu, teria muito menos liberdade e poderia até ser hostilizada. A clínica é muito fechada em si, a gente vê pela forma hostil que trata quem sai. Acho que é um verdadeiro desafio ser um forasteiro-de-dentro. Estar na clínica, acompanhar ela, trabalhar nela, mas não me confundir com ela. Estar no fluxo, acompanhar o fluxo, mas não me confundir com ele. É quase um tal de decifra-me ou te devoro, ou melhor, acompanha-me mas cuidado se não devoro-te. Angústia.

(Diário cartográfico)

O corpo de trabalhador gerou resistências na percepção de processos instituintes que estavam em curso por eu estar muito habituado a tudo que já estava instituído. Foi necessário entender melhor o que estava em jogo do “corpo nu” para que ele se abrisse ao “corpo vibrátil” teorizado pela Suely Rolnik2525 Rolnik S. Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada. São Paulo: N-1 Edições; 2018.. Outra atenção foi necessária para que o fazer-pesquisador não se transformasse em um fazer-inquisidor pelas insatisfações prévias em relação ao processo de trabalho. Há aí uma sobreimplicação55 Monceau G. Implicação, sobreimplicação e implicação profissional. Fractal Rev Psicol. 2008; 20(1):19-26., uma dificuldade e resistência do trabalhador em perceber as suas próprias implicações no ato da pesquisa.

Eu falo da hostilidade da clínica, pois, antes da minha demissão, outros cinco médicos de Família haviam se demitido e, nos seus motivos, eles sempre apontavam a questão da inflexibilidade do processo de trabalho e da impossibilidade de fazer consultas mais demoradas e que contemplasse as outras abordagens da MFC – no caso, a familiar e a comunitária.

O trabalho de um cartógrafo não deve se aproximar ao de um policial investigativo. A cartografia só se faz por meio da mistura e das conexões entre vida e pesquisa. Em formatos positivistas que pressupõem o afastamento de quem pesquisa, há a perda da possibilidade de sentir os afetos e as linhas de força que permeiam os processos. Há também a necessidade de uma certa posição precária, no sentido butleriano2626 Butler J. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. São Paulo: Autêntica; 2015. da posição de narrar a si mesmo em um processo de trabalho com o qual havia certas divergências ético-políticas:

Acho que construir uma narrativa de si tem certas vulnerabilidades. A gente fica muito exposto e teme julgamentos e represálias. Seria isso? Um medo que tenho é que pareça que estou na defesa da clínica e da saúde suplementar. Estaria? Acho que não, mas pode parecer que sim. Por que continuo nesse processo de trabalho que não gosto nesses três anos ao todo? O que me motiva a continuar? É bom esclarecer (ou melhor, escurecer) isso.

(Diário cartográfico)

Vê-se que, nesse momento da escrita do diário cartográfico, eu ainda não tinha clareza e “escurecimento” das razões que me faziam me manter na clínica, mas, ao longo deste artigo, pude ir trabalhando por elas. Uma das principais, que vejo hoje, era a persistência do encanto com o “brilhante prédio de vidro espelhado”, um espaço majoritariamente branco. Era a dinâmica de embranquecimento estudada profundamente por Fanon1717 Fanon F. Pele negra, máscaras brancas. São Paulo: Ubu Editora; 2020..

Cena 4

A leveza da demissão e da saída da clínica. Escolho sair. Antes tarde do que nunca, de certa forma já é um dos resultados da pesquisa

Dia tenso, mas, ao mesmo tempo, há uma nova vibração na clínica. Semanas atrás, foi anunciado um novo modelo de APS que, na verdade, parece-me muito velho. Não haveria mais listas de pacientes, não haveria exatamente mais equipes, a remuneração seria por atendimento em vez de por hora trabalhada e, talvez, não existiria mais técnicos de enfermagem como agentes de saúde. Uma APS mais descaracterizada ainda de APS. Mergulhado no processo de pesquisa, processando ainda tudo que estava acontecendo ou iria acontecer, não dava mais, na verdade, nunca deu. Todas as mudanças eram inegociáveis (e as outras eram?). Marco uma reunião com o gestor da clínica e abro o jogo francamente. Demito-me. Um peso de toneladas nas costas cai. Escolho não me adaptar.

No momento da cena 4, eu já tinha passado por uma metamorfose completa e cultivado novamente o meu black. Estava armado com minhas insatisfações, as reflexões que fiz ao longo do processo do mestrado e meu cabelo totalmente armado, mais até do que o que estava na cena 1. Foi um momento de enfrentamento. “O volume faz parte, perder o receio e ocupar espaço” (p. 8)1313 Borges S. Talvez precisemos de um nome para isso: ou o poema de quem parte. São Paulo: CEPE Editora; 2019.. Ganhei força durante todo o processo e o pente garfo, assim como minhas convicções, foi também meu instrumento neste processo de ruptura.

[...] e o garfo para desembaraçar bempuxandodas raízes às pontasdesaparecem as curvasos fios para o alto, pra forae então começaa definir a estrutura esférica1313 Borges S. Talvez precisemos de um nome para isso: ou o poema de quem parte. São Paulo: CEPE Editora; 2019.. (p. 22)
Figura 4
Outubro de 2021.

Considerações finais (?)

As quatro cenas-de-viragem foram produtos de mim, pesquisador-cartógrafo, buscando compreender e dar sentido às minhas vivências e contradições dentro da pesquisa. Foi necessário, ao longo do caminho cartográfico, ir além da compreensão e do acompanhamento dos processos de inserção da MFC na APS da saúde suplementar. Foi necessário compreender minhas resistências com o fazer da pesquisa e me pôr em análise. Foi importante refletir sobre o me atraiu e o que me fez hesitar em estar na clínica privada.

Em um primeiro momento, há um movimento inicial de atraque e aproximação. A boa estrutura e as condições de trabalho funcionaram como um incenso, um pólen, um cheiro, que me atraiu para a primeira entrevista de emprego e nublou a cena de racismo cotidiano2727 Kilomba G. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. São Paulo: Cobogó; 2020.. Um tempo depois desse atraque, vieram alguns baques. Há a percepção da precarização do processo de trabalho e da deterioração de algumas ferramentas clínicas; e o desvelamento do racismo estrutural2828 Almeida S. Racismo Estrutural. São Paulo: Pólen; 2019. e institucional2929 Bento C. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras; 2022..

Esses momentos de ruptura, apesar de bastante particulares e pessoais, fizeram-me entender o panorama maior dos projetos éticos-políticos envolvidos e as questões raciais que perpassam a minha inserção como uma pessoa negra em um serviço de saúde dominado pela branquitude e seus pactos2929 Bento C. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras; 2022.. Nesse sentido, proponho com este texto um convite para pensarmos a construção de espaços acadêmicos e assistenciais por pessoas pretas e pardas, eixo imprescindível para a construção de uma saúde antirracista e integral para a população negra.

  • (e)
    Extraído da música: mate & morra de Linn da Quebrada. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=o2eHVuVff50 (citado 14 Mar 2024).
  • (f)
    Cenas-de-viragem são um termo tomado de empréstimo da linguagem cinematográfica. Elas são reviravoltas inesperadas no enredo que mudam o resultado final de uma história.

  • Oliveira IL, Sousa MAC, Queiroz JGX, Sampaio J. Entre baques e atraques: cenas de uma pesquisa cartográfica entre o Sistema Único de Saúde (SUS) e a saúde suplementar. Interface (Botucatu). 2024; 28: e230348 https://doi.org/10.1590/interface.230348
  • Financiamento

    Apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) a partir do programa institucional de iniciação acadêmica e do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (Pibic) da Universidade Federal da Paraíba.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    14 Jul 2023
  • Aceito
    03 Fev 2024
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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