Resumos
A Atenção Primária à Saúde (APS) é considerada a porta de entrada preferencial para o cuidado no sistema de saúde; já os serviços de emergência são destinados para situações que exigem atendimento imediato. Este artigo buscou identificar motivações para o uso de pronto atendimentos por problemas de saúde não urgentes em usuários deste serviço. Trata-se de um estudo qualitativo baseado em 29 entrevistas semiestruturadas realizadas em 2019 com usuários de um pronto atendimento do município de Vitória, ES. Os entrevistados percebem os serviços de urgência e emergência como aqueles nos quais obterão cuidados imediatos com maior facilidade e resolubilidade, já que acessar a APS de uma maneira imediata, rápida e resolutiva se apresentou difícil. A utilização de prontoatendimentos por motivos não urgentes mostrou-se complexa e envolve não apenas a dificuldade de acesso à APS, mas a própria compreensão individual e coletiva do papel de cada equipamento do sistema.
Palavras-chave
Serviços médicos de emergência; Atenção Primária à Saúde; Acesso aos serviços de saúde; Planejamento em saúde; Serviços de saúde
Primary health care is the point of entry to the health system, providing emergency services for situations that require immediate treatment. The aim of this study was to identify the reasons patients use emergency services for non-urgent medical problems. We carried out a qualitative study based on 29 semi-structured interviews with patients of an urgent care center in Vitória, Brazil, conducted in 2019. According to the interviewees, it was easier to get immediate resolutive care in urgent and emergency care services, while obtaining immediate, rapid access to resolutive care in primary care services was difficult. The findings show that the utilization or urgent care centers for non-urgent problems was complex and involved not only difficulty accessing primary care services, but also individual and public understanding of the role of each type of health facility in the health system.
Keywords
Emergency medical services; Primary health care; Access to health services; Health planning; Health services
La Atención Primaria de la Salud (APS) se considera la puerta de entrada preferencial para el cuidado en el sistema de salud, destinándose los servicios de emergencia para situaciones que exigen atención inmediata. El objetivo de este artículo fue intentar identificar motivaciones para el uso de servicios de urgencias por problemas de salud no urgentes en usuarios de este servicio. Estudio cualitativo con base en 29 entrevistas semiestructuradas realizadas en 2019 con usuarios de un servicio de urgencias del municipio de Vitória-ES. Los entrevistados perciben los servicios de urgencias y emergencias como aquellos en los que obtendrán cuidados inmediatos con mayor facilidad y resolución, puesto que el acceso a la APS de una forma inmediata, rápida y con resolución se presenta difícil. La utilización de urgencias por motivos no urgentes se mostró compleja y envuelve no solo la dificultad de acceso a la APS, sino la propia comprensión individual y colectiva del papel de cada equipo del sistema.
Palabras clave
Servicios médicos de emergencia; Atención primaria de la salud; Acceso a los servicios de salud; Planificación en salud; Servicios de salud
Introdução
Implementar com qualidade o Sistema Único de Saúde (SUS), tendo por base seus princípios fundamentais da universalidade, equidade e integralidade, exige a estruturação de complexas Redes de Atenção à Saúde11 Tofani LFN, Furtado LAC, Guimarães CF, Feliciano DGCF, Silva GR, Bragagnolo LM, et al. Caos, organização e criatividade: revisão integrativa sobre as Redes de Atenção à Saúde. Cienc Saude Colet. 2021; 26(10):4769-82.. A Atenção Primária à Saúde (APS) é o nível ordenador do cuidado e porta de entrada preferencial para os usuários nessas redes, estando fortemente articulada com outros níveis e serviços de saúde de distintas naturezas assistenciais e densidades tecnológicas22 Macinko J, Mendonça CS. Estratégia Saúde da Família, um forte modelo de Atenção Primária à Saúde que traz resultados. Saude Debate. 2018; 42 Spec No 1:18-37.. Nas situações que exigem cuidado imediato, os serviços de urgência e emergência também atuam como porta de entrada no sistema33 O’Dwyer G, Konder MT, Reciputti LP, Lopes MGM, Agostinho DF, Alves GF. The process of implementation of emergency care units in Brazil. Rev Saude Publica. 2017; 51:125..
Apesar da lógica racional desse desenho de redes de atenção à saúde44 Mendes EV. As redes de atenção à saúde. Cienc Saude Colet. 2010; 15(5):2297-305., o caminho percorrido pelas pessoas nem sempre obedece aos fluxos estabelecidos pelo sistema, com base nas necessidades de saúde dos indivíduos em determinado momento55 Tofani LFN, Furtado LAC, Andreazza R, Nasser MA, Chioro A. Construção da integralidade na Rede de Atenção às Urgências e Emergências: o cuidado para além dos serviços. Interface (Botucatu). 2022; 26:e210690. doi: 10.1590/interface.210690.
https://doi.org/10.1590/interface.210690...
6 Demétrio F, Santana ER, Pereira-Santos M. O Itinerário Terapêutico no Brasil: revisão sistemática e metassíntese a partir das concepções negativa e positiva de saúde. Saude Debate. 2019; 43 Spec No 7:204-21.-77 Cecilio LCO, Carapinheiro G, Andreazza R, Souza ALM, Andrade MGG, Santiago SM, et al. O agir leigo e o cuidado em saúde: a produção de mapas de cuidado. Cad Saude Publica. 2014; 30(7):1502-14.. É muito frequente a utilização dos serviços de urgência e emergência por pessoas com problemas considerados não urgentes, seja como porta de entrada inicial ou como uma segunda fonte de cuidados a partir de insucessos prévios no uso de outros serviços, em especial os da APS88 Carret ML, Fassa AC, Domingues MR. Inappropriate use of emergency services: a systematic review of prevalence and associated factors. Cad Saude Publica. 2009; 25(1):7-28.. Essa situação impacta negativamente o funcionamento do sistema de saúde, contribuindo para a demora no atendimento de casos urgentes, longos períodos de espera por atendimento, descontinuidade do cuidado, exposição das pessoas a intervenções desnecessárias, aumento dos gastos com saúde, entre outros problemas99 McIntyre A, Janzen S, Shepherd L, Kerr M, Booth R. An integrative review of adult patient-reported reasons for non-urgent use of the emergency department. BMC Nurs. 2023; 22(1):85.. Em síntese, essa disfunção sistêmica quebra a lógica da oferta do cuidado desejável, no momento oportuno, com a intensidade adequada, no local mais apropriado com vistas a sua alta resolubilidade e eficiência, com usuários satisfeitos.
Dada a alta frequência e a universalidade do problema de superlotação; e o uso inapropriado dos serviços de urgência e emergência, a literatura da área é farta no estudo dos fatores que explicam esse comportamento88 Carret ML, Fassa AC, Domingues MR. Inappropriate use of emergency services: a systematic review of prevalence and associated factors. Cad Saude Publica. 2009; 25(1):7-28.
9 McIntyre A, Janzen S, Shepherd L, Kerr M, Booth R. An integrative review of adult patient-reported reasons for non-urgent use of the emergency department. BMC Nurs. 2023; 22(1):85.
10 O’Cathain A, Connell J, Long J, Coster J. ‘Clinically unnecessary’ use of emergency and urgent care: a realist review of patients’ decision making. Health Expect. 2020; 23(1):19-40.
11 Coster JE, Turner JK, Bradbury D, Cantrell A. Why do people choose emergency and urgent care services? A rapid review utilizing a systematic literature search and narrative synthesis. Acad Emerg Med. 2017; 24(9):1137-49.
12 Kraaijvanger N, Van Leeuwen H, Rijpsma D, Edwards M. Motives for self-referral to the emergency department: a systematic review of the literature. BMC Health Serv Res. 2016; 16(1):685.-1313 Uscher-Pines L, Pines J, Kellermann A, Gillen E, Mehrotra A. Emergency department visits for nonurgent conditions: systematic literature review. Am J Manag Care. 2013; 19(1):47-59.. De uma forma geral, em uma perspectiva de estruturação do sistema de saúde, respondem por esse cenário a falta de acesso oportuno aos serviços de APS; a percepção social de que os serviços de emergência oferecem atendimento mais rápido e resolutivo, com maior disponibilidade de exames e procedimentos; a percepção de maior comodidade e disponibilidade do serviço de emergência, na medida em que se pode obter consultas, exames e medicações no mesmo local e no mesmo momento; a falta de conhecimento sobre o papel da APS na prestação de cuidados acessíveis, longitudinais, integrais e abrangentes; e a avaliação negativa das pessoas quanto à qualidade da APS, seja na indisponibilidade de profissionais de saúde, exames complementares e medicamentos, seja na baixa resolubilidade do cuidado .
Por outro lado, pensando-se em fatores socioeconômicos e subjetivos que condicionam a forma como as pessoas utilizam os serviços de saúde em favor do uso inapropriado da emergência, estudos já identificaram como causas a baixa escolaridade e renda; ser adulto jovem; a precariedade das condições de vida; as experiências negativas prévias com os distintos serviços de saúde; a autopercepção negativa da qualidade de vida e do estado geral de saúde; a presença de doenças crônicas e multimorbidade; a fragilidade dos laços e de suporte social; personalidade mais imediatista na obtenção de cuidado, entre outros fatores88 Carret ML, Fassa AC, Domingues MR. Inappropriate use of emergency services: a systematic review of prevalence and associated factors. Cad Saude Publica. 2009; 25(1):7-28.
9 McIntyre A, Janzen S, Shepherd L, Kerr M, Booth R. An integrative review of adult patient-reported reasons for non-urgent use of the emergency department. BMC Nurs. 2023; 22(1):85.
10 O’Cathain A, Connell J, Long J, Coster J. ‘Clinically unnecessary’ use of emergency and urgent care: a realist review of patients’ decision making. Health Expect. 2020; 23(1):19-40.
11 Coster JE, Turner JK, Bradbury D, Cantrell A. Why do people choose emergency and urgent care services? A rapid review utilizing a systematic literature search and narrative synthesis. Acad Emerg Med. 2017; 24(9):1137-49.
12 Kraaijvanger N, Van Leeuwen H, Rijpsma D, Edwards M. Motives for self-referral to the emergency department: a systematic review of the literature. BMC Health Serv Res. 2016; 16(1):685.-1313 Uscher-Pines L, Pines J, Kellermann A, Gillen E, Mehrotra A. Emergency department visits for nonurgent conditions: systematic literature review. Am J Manag Care. 2013; 19(1):47-59..
Grande parte dos estudos voltados à análise dos fatores relacionados ao uso inapropriado da emergência, em detrimento da APS, são de corte transversal de natureza quantitativa99 McIntyre A, Janzen S, Shepherd L, Kerr M, Booth R. An integrative review of adult patient-reported reasons for non-urgent use of the emergency department. BMC Nurs. 2023; 22(1):85.. O’Cathain et al.1010 O’Cathain A, Connell J, Long J, Coster J. ‘Clinically unnecessary’ use of emergency and urgent care: a realist review of patients’ decision making. Health Expect. 2020; 23(1):19-40. detectaram que estudos de natureza qualitativa são escassos na literatura latino-americana, incluindo a brasileira. Enquanto isso, o trabalho de Demétrio et al.66 Demétrio F, Santana ER, Pereira-Santos M. O Itinerário Terapêutico no Brasil: revisão sistemática e metassíntese a partir das concepções negativa e positiva de saúde. Saude Debate. 2019; 43 Spec No 7:204-21., ao analisar a literatura brasileira sobre itinerários terapêuticos, não identificou estudos específicos sobre serviços de urgência e emergência.
Como já apontado, as escolhas feitas pelas pessoas na utilização de determinado serviço em detrimento de outro envolve um complexo conjunto de elementos de natureza econômica, social, cultural, gerencial, institucional e subjetiva1010 O’Cathain A, Connell J, Long J, Coster J. ‘Clinically unnecessary’ use of emergency and urgent care: a realist review of patients’ decision making. Health Expect. 2020; 23(1):19-40.,1414 Travassos C, Castro MSM. Determinantes e desigualdades sociais no acesso e na utilização de serviços de saúde. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho AI. Políticas e sistemas de saúde no Brasil. 2a ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2017. p. 183-207.. Apesar de ser difícil predizer o comportamento em saúde das pessoas em sua decisão de acessar determinado serviço66 Demétrio F, Santana ER, Pereira-Santos M. O Itinerário Terapêutico no Brasil: revisão sistemática e metassíntese a partir das concepções negativa e positiva de saúde. Saude Debate. 2019; 43 Spec No 7:204-21.,1515 Kumar Y, Salo H, Nieminen T, Vepsalainen K, Kulathinal S, Marttinen P. Proceedings of the Machine Learning for Health NeurIPS Workshop. Porc Mach Learn Res. 2020; 116:93-111., a compreensão desse fenômeno tem ganhado importância no planejamento, na organização e na avaliação dos serviços de saúde. Daí depreende-se a força do conceito de itinerário terapêutico nos estudos socioantropológicos da saúde em sua interface com os estudos sobre as políticas e sistemas de saúde66 Demétrio F, Santana ER, Pereira-Santos M. O Itinerário Terapêutico no Brasil: revisão sistemática e metassíntese a partir das concepções negativa e positiva de saúde. Saude Debate. 2019; 43 Spec No 7:204-21..
Diante desse contexto, o presente estudo visa identificar os fatores relacionados ao uso de pronto atendimentos (PAs) por motivos não urgentes, colaborando para a compreensão das razões que motivam os usuários a procurarem os PAs em vez das Unidades Básicas de Saúde. Almeja-se, assim, contribuir para efetividade do sistema, otimização de recursos e prevenção de eventos adversos para a população.
Metodologia
Este é um estudo de abordagem qualitativa, descritivo e exploratório, que utiliza como método de pesquisa a análise do perfil e a trajetória de usuários de um serviço de prontoatendimento do município de Vitória, localizado no estado do Espírito Santo, Brasil, na busca por cuidados de saúde. Esta pesquisa está ancorada em um projeto maior denominado: "Modelos de inteligência artificial para predição de uso inadequado, reutilização e mortalidade entre usuários de serviços de PA: instrumento para o planejamento da rede de atenção à saúde".
O cenário deste estudo foi um PA localizado no município de Vitória, capital do Espírito Santo. Esse município tem aproximadamente 364 mil habitantes e seu sistema de saúde é organizado em seis regiões de saúde, contando com dois PAs, 29 Unidades Básicas de Saúde, com cobertura de 93,83% do programa de Estratégia Saúde da Família e um complexo conjunto de serviços especializados, sendo que toda a rede de atenção é informatizada e opera com prontuário eletrônico desenvolvido pelo próprio município. Os PAs, de gestão direta municipal, fazem atendimentos clínicos médicos e odontológicos aos públicos adulto e infantil e cirúrgicos de pequena complexidade1616 Prefeitura Municipal de Vitória. Plano Municipal de Saúde de Vitória-ES 2022-2025. Vitória: Semus; 2022..
Os participantes da pesquisa foram pessoas maiores de 18 anos, residentes no município por no mínimo um ano, que acessaram o PA que serviu de campo em dezembro de 2019 cujos atendimentos foram classificados como não urgentes (cores azul e verde) no setor de classificação de risco do serviço (protocolo de Manchester). Usuários que se enquadravam nesse perfil eram convidados pelos próprios enfermeiros que faziam as triagens a participarem da pesquisa. Ao todo, foram sujeitos desta pesquisa 29 indivíduos que cumpriam esses critérios de inclusão e que aceitaram, espontaneamente, contribuir para esta pesquisa.
A técnica utilizada para a coleta de dados foi a entrevista semiestruturada, norteada por um roteiro composto por 18 perguntas abertas, além dos dados de identificação. As entrevistas foram realizadas nas dependências do próprio serviço de saúde, em local com privacidade, por dois pesquisadores, entre segunda e sexta-feira, de 7h às 16h. Tal período e horário se justificam por ser o horário de funcionamento das Unidades Básicas de Saúde do município. As entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas na íntegra in verbatim.
Os dados foram submetidos à Análise Temática derivada da Análise de Conteúdo, sistematizada por Bardin1717 Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2011. em três grandes etapas: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados. Inicialmente, foi realizada a leitura minuciosa e exaustiva do corpus textual na pré-análise. Nessa etapa, algumas unidades de registro e categorias já começaram a ser identificadas, mas não sistematizadas. Em um segundo momento, intensificou-se o processo de codificação do material textual, optando-se por um processo manual de identificação por cores de segmentos de fala, termos ou ideias consideradas essenciais e significativas para a compreensão das percepções dos participantes. Um total de 15 categorias foram construídas nesta etapa.
Deu-se então um processo de análise, refinamento, aproximação e agrupamento dessas categorias, em um constante movimento de volta ao corpus textual e às unidades de registro, chegando-se finalmente a três grandes categorias temáticas que, na análise dos pesquisadores, ilustram bem as construções dos participantes sobre o objeto da pesquisa, a saber: "Os diferentes papéis de cada serviço e a busca pelo cuidado", "Na contramão do sistema: dificuldade de acesso à Unidade Básica de Saúde" e "Necessidades de saúde e a busca por outras vias de atendimento".
Este trabalho foi norteado por todos os princípios éticos em vigência no Brasil, respeitando as Resoluções n. 466/12 e n. 510/2016, do Conselho Nacional de Saúde. O protocolo da pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Espírito Santo, com o parecer n. 3.433.979/2019. Todos os participantes assinaram de forma voluntária o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Com o objetivo de manter o sigilo das identidades dos participantes, eles serão identificados com a letra "E", seguido pela referida ordem de numeração na qual ocorreu a entrevista, que vai de 1 a 29.
Resultados
Caracterização dos participantes
Entre os 29 usuários entrevistados, a maioria era do sexo feminino, com menos de trinta anos de idade, que se autodenominam pretos ou pardos, sem ensino superior, sem plano de saúde e que procuraram o PA devido a dor (como lombalgia) ou a problema respiratório (como gripe, tosse e dor de garganta). Este perfil, de certa forma, já era esperado em se tratando de uma pesquisa realizada em um serviço público de saúde, sendo que é sabido que tais serviços são majoritariamente usados pela maioria da população brasileira que vive com algum grau de vulnerabilidade socioeconômica. Além disso, é esperado que os serviços de saúde sejam utilizados mais frequentemente pelas mulheres e por pessoas de mais baixa escolaridade1818 Levorato CD, Mello LM, Silva AS, Nunes AA. Fatores associados à procura por serviços de saúde numa perspectiva relacional de gênero. Cienc Saude Colet. 2014; 19(4):1263-74..
Por outro lado, aparece aqui a questão do uso dos serviços de emergência pela população mais jovem. A literatura científica que versa sobre a utilização desse tipo de serviço já mostrou como as pessoas mais jovens utilizam muito as emergências para problemas considerados não urgentes. São diversas as motivações que levam esse público a optar pela emergência e não pela APS, como maior comodidade; possibilidade de realizar exames complementares (como exame de sangue ou raio X) no mesmo dia e de ter todas as demandas de saúde sanadas em uma única visita ao serviço; dificuldade de acesso dos jovens à APS - seja por uma questão de territorialização ou por uma questão de organização da agenda de atendimento do serviço priorizando outros grupos populacionais -; e maior proximidade do local de trabalho.
Distribuição da amostra conforme sexo, faixa etária, cor, escolaridade e plano de saúde (n = 29). Vitória, ES, 2019.
Os diferentes papéis de cada serviço e a busca pelo cuidado
Ao serem indagados sobre as motivações para buscarem atendimento no PA e não em outro lugar, foi possível observar que os entrevistados têm concepções muito peculiares sobre o papel que o PA e a Unidade Básica de Saúde (UBS) exercem no sistema de saúde. Quanto ao PA, os entrevistados entendem tratar-se de um lugar para atendimento de problemas de saúde que necessitam de cuidado urgente e pontual, sendo possível obter acesso a qualquer hora do dia ou da noite. Outro aspecto importante sobre o PA é a possibilidade de não apenas ter atendimento médico, mas também de receber medicações e realizar exames de maneira mais rápida e no mesmo dia.
Vem gente de Cariacica, vem gente da Serra [municípios da região metropolitana de Vitória], vem gente de Vitória. As pessoas não conseguem atendimento lá no seu município, procura aqui e é atendido. Demora um pouco, mas é atendido e sai satisfeito. (E5)
[...] no meu ponto de vista, é uma segurança [ser atendido no PA]. Ele tem um atendimento bom e uma equipe legal com as pessoas que vêm aqui. Então ele é supereficiente. Eu venho segura que eu vou ser atendida e que o meu problema vai ser resolvido. (E17)
Já a UBS teria um papel diferente, na visão dos entrevistados. Ali, as consultas e exames são agendados, o que demanda uma maior organização do usuário. É um serviço no qual se busca consultas para problemas leves (como, tal como foram citados, gripe, tontura, conjuntivite e dor de cabeça), atendimento com psicólogos e odontólogos, dispensação de medicamentos na farmácia e aplicação de vacinas.
O posto [sinônimo de UBS] serve mais para casos sem urgência e o PA é pronto atendimento, que serve pra coisas mais urgentes que o posto não dá conta. (E9)
A unidade é básica, aquela situação de consulta rotineira, exame rotineiro. O PA é para aquela urgência mesmo, que tá com muita dor, tá sentindo tonteira, falta de ar. Aí eu tenho que procurar o PA. (E22)
No posto de saúde, a gente faz um acompanhamento anual ou mensal. E aqui [pronto atendimento] não. Aqui você vem, tomou o remédio e vai embora. Você vem, foi consultado, e vai embora. Você pode voltar aqui várias vezes no ano com outras coisas, mas você não tá aqui fazendo aquele acompanhamento que faz no posto de saúde. (E26)
Há uma forma de perceber o PA vinculada às noções de comodidade, rapidez e resolubilidade. Se a pessoa está com um problema, o entende como sendo de saúde e o percebe como sendo mais pontual e/ou urgente, conclui que o PA seria o local mais indicado para obter atendimento, já que ali já se faria a consulta, receberia a medicação, faria o exame e se resolveria o problema de maneira rápida e eficaz. Essa concepção do PA é tão forte que é preferível ficar por um longo tempo esperando (frequentemente esse tempo é superior a cinco horas) e em condições desconfortáveis o atendimento do que procurar outro tipo de serviço e correr o risco de não conseguir o que se deseja.
Eu prefiro vir pra cá [pronto atendimento] porque quando eu vou lá [unidade de saúde] eu não consigo então, é difícil... se é pra perder o tempo, ficar esperando, eu prefiro esperar aqui do que ficar lá e depois não conseguir, e vim pra cá. (E25)
A dificuldade de acesso à Unidade Básica de Saúde
Para além de uma percepção mais restrita do papel da APS no cuidado por parte das pessoas, os entrevistados foram enfáticos em apontar para problemas significativos no acesso aos cuidados primários em tempo oportuno para o manejo de seus problemas de saúde, em especial, os agudos.
[Ao] passar na unidade de saúde, creio que a resposta seria que eles não têm demanda pra atendimento e iriam tentar agendar pra outro dia. E eu estou me sentindo mal hoje. Pode acontecer que, no dia que eles marquem, para amanhã ou depois, eu não esteja [mais me sentido mal], porque eu já fiquei aborrecida e passei na farmácia e comprei um remédio. (E20)
Eu acho que deveriam ser disponibilizadas algumas vagas a mais, sem serem aquelas que têm agenda, porque a gente não escolhe o dia que vai passar mal e chegar lá [na unidade de saúde] tem que ficar esperando. Já aconteceu de eu ficar esperando, esperando, esperando e não conseguir. (E25)
Eu cheguei lá [unidade de saúde], eles falam que eles não podem consultar, que não pode nem chegar lá se você não tiver marcado nada. Aí eu esperei, porque ele falou que tinha uma pessoa marcada e, se cancelasse, ele conseguia me encaixar. Só que a pessoa chegou e eu tive que vir para cá [pronto atendimento]. (E3)
Seria [para ser atendido] no posto de saúde, mas lá o atendimento ainda é um pouco mais burocrático, mais demorado, porque teria que esperar um encaixe sem consulta marcada, e talvez demoraria bem mais do que aqui [no pronto atendimento]. (E26)
Nessas falas, as pessoas expressam experiências tanto prévias de não acesso à APS quando demandada quanto atuais de não obtenção de consulta na UBS, sendo este o motivo para a busca do PA. Essas experiências acumuladas, nos aspectos tanto individuais quanto coletivos, fazem com que muitas pessoas optem por já procurar o PA como primeira alternativa de cuidado em vez da UBS. Se no passado a pessoa não conseguiu atendimento quando julgou ser necessário e se as pessoas ao seu redor comentam cotidianamente sobre a mesma dificuldade, deixa de fazer sentido o enunciado de que a APS funciona como a principal porta de entrada no sistema. Ganha relevo o pragmatismo de buscar o serviço que, supostamente, vai resolver o problema no momento que se percebe a necessidade.
Do ponto de vista dos entrevistados, essa dificuldade de acesso aos cuidados primários decorre, dentre outros fatores, de problemas na organização da agenda de atendimento dos profissionais; da alta rotatividade de profissionais, em especial de médicos; da quebra da longitudinalidade do cuidado e do vínculo com os profissionais do serviço; e da implementação problemática de tecnologias, pelo município, que visam facilitar o agendamento de consultas, como um aplicativo de marcação on-line de atendimentos (tais como o Vitória Online).
Há uma rotatividade de médicos muito grande. Então você não consegue criar um vínculo com aquele médico. (E15)
Já foi bem melhor o atendimento. Eu não sei se é porque são pessoas novas que estão lá agora, mas as pessoas antigas, que conhecem a gente já há muito tempo, eu acho que o tratamento era bem melhor. (E26)
Se a gente faltar na consulta, a gente fica bloqueado no site [Vitória Online]. Aí não consegue marcar mais e tem que ir no posto. (E13)
Eu não acho ele legal não [o aplicativo Vitória Online], porque a gente tem que ficar marcando e não consegue. (E24)
Dessa forma, fica evidente que os entrevistados almejam uma boa disponibilidade de vagas para atendimento em tempo oportuno ao de sua demanda (como no mesmo dia) e um fluxo de agendamento desse atendimento mais ágil e cômodo (como sem a necessidade de deslocamentos desnecessários e com garantia de ser atendido mesmo após tempo longo de espera, como ocorre no PA). Por outro lado, as entrevistas sugerem que uma relação mais próxima e duradoura da UBS com as pessoas seja um fator facilitador do acesso ao serviço, sendo desejável que o fortalecimento da APS pela gestão passe necessariamente pela produção de vínculo dos profissionais da UBS com seus usuários. Não bastaria, portanto, na visão dos entrevistados, implementar inovações e tecnologias neste contexto sem concomitantemente fortalecer a longitudinalidade do cuidado.
Caminhos percorridos diante de um problema percebido como urgente
Para além da percepção sobre o papel de cada tipo de serviço de saúde diante de problemas diversos de saúde e das barreiras que são encontradas no acesso ao serviço de APS, uma outra questão aparece nas entrevistas dos usuários do PA: a trajetória assistencial que as pessoas constroem na busca pelo cuidado a seu problema, percebido como agudo e urgente, não é linear e não respeita os fluxos formais pensados pela gestão do sistema. É nesse sentido que entra, por exemplo, a obtenção de cuidados na farmácia privada e todo um cálculo feito pela pessoa de tempo a ser dispendido no acesso ao cuidado almejado (relativo à comodidade e à proximidade territorial do local onde se encontra), ao trabalho ou a alguma outra tarefa cotidiana. Esse contexto faz com que a pessoa escolha entre um dos dois PAs existentes no município de Vitória.
Eu procurei [a farmácia] pra ele ver a minha situação, pra eu comprar um remédio e vê se resolvia o problema. Aí ele [o farmacêutico] falou: "Olha, eu não vou passar o remédio para você porque hoje é tudo com a receita do médico, entendeu?". Aí eu fiquei em casa em dúvida, não sabia se eu vinha, não sabia se ficava. Aí eu peguei e resolvi vir pra não agravar mais. (E1)
Eu fui numa farmácia pra conversar com o farmacêutico pra ele dar uma olhadinha pra ver o que ele achava, só que ele acabou me pedindo pra vir aqui [pronto atendimento] porque ele não podia medicar, já que eu estou com essa alergia há três dias e não passa. (E15)
Teria o [pronto atendimento] de São Pedro, que seria até mais próximo da minha casa, mas como eu tava na faculdade, eu vim direto pra cá [pronto atendimento da Praia do Suá]. (E10)
[Eu vim aqui] porque eu tava em Jardim da Penha [bairro de Vitória]. Aí pra vir pra cá era mais fácil, mais rápido e eu trabalho aqui do lado também. (E27)
Neste último caso, a pessoa opta por acessar um determinado PA na cidade e não o outro, mesmo o outro sendo conhecido popularmente por ter um tempo de espera menor e mais próximo de sua casa, em decorrência de fatores relacionados à proximidade e conveniência. Dessa forma, torna-se tarefa complexa entender e predizer o itinerário das pessoas na busca de cuidado, já que são muitas as variáveis envolvidas nessa tomada de decisão da pessoa, tais como o momento em que surge um problema de saúde (por exemplo, lombalgia), a percepção pessoal da necessidade de busca pelo serviço, o local onde se encontra a pessoa, suas possibilidades de deslocamento, seu entendimento sobre o funcionamento do sistema e o potencial de resolubilidade dos diferentes serviços.
Discussão
A utilização de PAs por motivos não urgentes é uma questão relevante no contexto da organização de sistemas e serviços de saúde. A compreensão dos fatores que levam os usuários a buscar esse tipo de atendimento é fundamental para a melhoria do sistema de saúde e a promoção de um cuidado mais adequado e eficiente. Disfunções no uso dos escassos recursos da saúde podem reduzir a qualidade do cuidado prestado e contribuir para um ciclo negativo de baixa resolubilidade da atenção à saúde, gastos crescentes e insatisfação das pessoas.
Neste estudo, observou-se que usuários de um PA classificados com motivos não urgentes de utilização percebem os serviços urgência e emergência como aqueles nos quais obterão cuidados imediatos com maior facilidade e resolubilidade, já que é difícil acessar a APS e nela muito provavelmente não terão tudo aquilo que consideram necessário para manejar seu problema (como consulta, exames e medicações) de uma maneira imediata, rápida e resolutiva. Para essas pessoas, a APS é um serviço voltado para problemas de menor gravidade e mais "simples", para os quais é possível aguardar dias para serem atendidos sem maiores riscos à saúde. Logo, porque ir a um lugar que o agendamento das consultas é mais difícil, que o atendimento não está garantido, no qual não se tem certeza sobre a resolução do problema (ou pelo menos sobre o acesso aos procedimentos para sua resolução) e que não garante que você será atendido pelos profissionais que melhor o conhecem?
É nesse sentido que este trabalho sugere que uma parcela significativa dos usuários do PA tem uma percepção restrita do papel da APS no cuidado integral; uma vivência traumática, seja do ponto de vista individual ou coletivo, no acesso à APS; uma visão que superestima o potencial de resolubilidade do PA; uma necessidade mais imediatista por resolver seus problemas de saúde, cujo grau de gravidade e ameaça à vida é limitado; um apreço grande por comodidade e facilidade de acesso ao serviço de saúde, optando pelo PA que está mais próximo, no qual tem a certeza de ser atendido e de que receberá aquilo que julga ser necessário; e uma experiência em buscar cuidados que não se encaixa na linearidade racional na qual é pensado e organizado o sistema de saúde, tendo a porta de entrada preferencial na APS e a urgência e emergência destinada aos problemas com potencial de dano à vida55 Tofani LFN, Furtado LAC, Andreazza R, Nasser MA, Chioro A. Construção da integralidade na Rede de Atenção às Urgências e Emergências: o cuidado para além dos serviços. Interface (Botucatu). 2022; 26:e210690. doi: 10.1590/interface.210690.
https://doi.org/10.1590/interface.210690... ,77 Cecilio LCO, Carapinheiro G, Andreazza R, Souza ALM, Andrade MGG, Santiago SM, et al. O agir leigo e o cuidado em saúde: a produção de mapas de cuidado. Cad Saude Publica. 2014; 30(7):1502-14..
De uma forma geral, os achados deste estudo estão em acordo com o que foi encontrado em diferentes tipos de revisões sobre o uso de serviços de emergência por motivos não urgentes88 Carret ML, Fassa AC, Domingues MR. Inappropriate use of emergency services: a systematic review of prevalence and associated factors. Cad Saude Publica. 2009; 25(1):7-28.
9 McIntyre A, Janzen S, Shepherd L, Kerr M, Booth R. An integrative review of adult patient-reported reasons for non-urgent use of the emergency department. BMC Nurs. 2023; 22(1):85.
10 O’Cathain A, Connell J, Long J, Coster J. ‘Clinically unnecessary’ use of emergency and urgent care: a realist review of patients’ decision making. Health Expect. 2020; 23(1):19-40.
11 Coster JE, Turner JK, Bradbury D, Cantrell A. Why do people choose emergency and urgent care services? A rapid review utilizing a systematic literature search and narrative synthesis. Acad Emerg Med. 2017; 24(9):1137-49.
12 Kraaijvanger N, Van Leeuwen H, Rijpsma D, Edwards M. Motives for self-referral to the emergency department: a systematic review of the literature. BMC Health Serv Res. 2016; 16(1):685.-1313 Uscher-Pines L, Pines J, Kellermann A, Gillen E, Mehrotra A. Emergency department visits for nonurgent conditions: systematic literature review. Am J Manag Care. 2013; 19(1):47-59.. Especificamente em relação à revisão de O'Cathain et al.1010 O’Cathain A, Connell J, Long J, Coster J. ‘Clinically unnecessary’ use of emergency and urgent care: a realist review of patients’ decision making. Health Expect. 2020; 23(1):19-40., que incluiu estudos qualitativos e quantitativos com vistas à teorização do comportamento humano de busca pelo serviço, nosso trabalho corrobora muitos aspectos levantados, mas também traz a perspectiva de um sistema universal público de saúde de um país do Sul Global de baixa e média renda, como é o Brasil, algo pouco comum na literatura. No entanto, um aspecto pouco abordado em trabalhos prévios, e ausente do modelo teórico de O'Cathain et al.1010 O’Cathain A, Connell J, Long J, Coster J. ‘Clinically unnecessary’ use of emergency and urgent care: a realist review of patients’ decision making. Health Expect. 2020; 23(1):19-40., é o fato de incidir sobre o problema não apenas a dificuldade de acesso à APS, mas também a própria compreensão individual e coletiva do papel da APS e do PA. No contexto no qual se insere este trabalho, esse aspecto tem um relevo não visto em outros estudos feitos nos países de alta renda.
Fica evidente, portanto, a complexidade que é abordar do ponto de vista gerencial o uso excessivo do PA por pessoas com problemas considerados não urgentes. Primeiramente, não se trata apenas de "culpar" o usuário do serviço por não usar adequadamente o sistema de saúde, o que nos levaria a pensar, como estratégias principais de enfrentamento do problema, a "conscientização" da sociedade sobre o uso "correto" dos serviços de saúde, bem como a criação de "barreiras" para essa inadequada utilização.
Mesmo reconhecendo que vivemos em uma sociedade imediatista e medicalizante1919 Conrad P. The medicalization of society: on the transformation of human conditions into treatable disorders. Baltimore: The John Hopkins University Press; 2007. e que isso se materializa em um uso excessivo e problemático do sistema de saúde2020 Rosenstock IM. Why people use health services. Milbank Q. 2005; 83(4):10., percebe-se que há problemas evitáveis na organização dos serviços de saúde, em especial, na APS. Afinal, se a agenda de atendimentos prioriza os pacientes com consultas previamente agendadas, voltadas em sua grande maioria para pessoas com problemas não percebidos como urgentes (ex. acompanhamento de pessoas com doenças crônicas) ou se implementamos tecnologias que seriam destinadas a facilitar o acesso ao cuidado, mas que na prática tem efeito oposto em grupos populacionais relevantes, se por qualquer motivo a continuidade do cuidado se encontra prejudicada, é problemático querer que as pessoas, ou parte significativa delas, respeitem os itinerários previstos e desejáveis diante de seus problemas de saúde, em particular diante de demandas e necessidades agudas.
Em suma, a redução da busca por PAs por motivos não urgentes requer uma abordagem abrangente, na medida que os fatores que respondem por esse padrão são multifacetados e inter-relacionados99 McIntyre A, Janzen S, Shepherd L, Kerr M, Booth R. An integrative review of adult patient-reported reasons for non-urgent use of the emergency department. BMC Nurs. 2023; 22(1):85.. Apesar de muitas intervenções ainda carecerem de estudos e evidências mais robustos, ainda podem contribuir para a redução desses atendimentos ações como melhorias na infraestrutura e nos recursos disponíveis nas UBSs2121 Van Den Berg MJ, Van Loenen T, Westert GP. Accessible and continuous primary care may help reduce rates of emergency department use. An international survey in 34 countries. Fam Pract. 2016; 33(1):42-50.; qualificação da equipe de saúde e promoção de vínculos profundos e duradouros entre população e UBS2121 Van Den Berg MJ, Van Loenen T, Westert GP. Accessible and continuous primary care may help reduce rates of emergency department use. An international survey in 34 countries. Fam Pract. 2016; 33(1):42-50.,2222 Ionescu-Ittu R, McCusker J, Ciampi A, Vadeboncoeur AM, Roberge D, Larouche D, et al. Continuity of primary care and emergency department utilization among elderly people. CMAJ. 2007; 177(11):1362-8.; redução da rotatividade de profissionais nos serviços; investimento em acesso à APS em horários não comerciais2323 O’Malley AS. After-hours access to primary care practices linked with lower emergency department use and less unmet medical need. Health Aff (Millwood). 2013; 32(1):175-83.; ações de educação em saúde99 McIntyre A, Janzen S, Shepherd L, Kerr M, Booth R. An integrative review of adult patient-reported reasons for non-urgent use of the emergency department. BMC Nurs. 2023; 22(1):85.; empoderamento dos pacientes para lidarem com a ansiedade e a incerteza diante dos problemas de saúde99 McIntyre A, Janzen S, Shepherd L, Kerr M, Booth R. An integrative review of adult patient-reported reasons for non-urgent use of the emergency department. BMC Nurs. 2023; 22(1):85.,1010 O’Cathain A, Connell J, Long J, Coster J. ‘Clinically unnecessary’ use of emergency and urgent care: a realist review of patients’ decision making. Health Expect. 2020; 23(1):19-40.; melhoria das informações dadas aos pacientes na sua alta do PA2424 Hoek AE, Anker SCP, Van Beeck EF, Burdorf A, Rood PPM, Haagsma JA. Patient discharge instructions in the emergency department and their effects on comprehension and recall of discharge instructions: a systematic review and meta-analysis. Ann Emerg Med. 2020; 75(3):435-44.; e implementação de sistemas eficientes de agendamento2525 Yoon J, Cordasco KM, Chow A, Rubenstein LV. The relationship between same-day access and continuity in primary care and emergency department visits. PLoS One. 2015; 10(9):e0135274.. Somente assim será possível promover um sistema de saúde mais equitativo, acessível e eficiente, atendendo de forma adequada às necessidades da população. Além disso, aumentar a probabilidade de as pessoas terem experiências positivas no acesso à APS tem o potencial de gradativamente mudar a percepção coletiva do sistema2121 Van Den Berg MJ, Van Loenen T, Westert GP. Accessible and continuous primary care may help reduce rates of emergency department use. An international survey in 34 countries. Fam Pract. 2016; 33(1):42-50..
Nesse sentido, um dispositivo que cabe destacar são as flexibilizações do agendamento na APS, designado na literatura como acesso avançado2626 Murray M, Tantau C. Redefining open access to primary care. Manag Care Q. 1999; 7(3):45-55.. Essa estratégia tem sido utilizada em algumas regiões do país2727 Pires Filho LAS, Azevedo-Marques JM, Duarte NSM, Moscovici L. Acesso Avançado em uma Unidade de Saúde da Família do interior do estado de São Paulo: um relato de experiência. Saude Debate. 2019; 43(121):605-13.
28 Soares LS, Junqueira MAB. A percepção sobre o acesso avançado em uma unidade unidade-escola de atenção básica à saúde. Rev Bras Educ Med. 2022; 46(1):e031.-2929 Cirino FMSB, Schneider Filho DA, Nichiata LYI, Fracolli LA. O Acesso Avançado como estratégia de organização da agenda e de ampliação do acesso em uma Unidade Básica de Saúde de Estratégia Saúde da Família, município de Diadema, São Paulo. Rev Bras Med Fam Comunidade. 2020; 15(42):2111., apresentando potencialidades ao promover mudanças no formato cristalizado de agendamento pautado em ações programáticas, mas também carrega limites pelo seu viés fortemente gerencialista, que desconsidera as características do território e reforça o modelo biomédico. Assim, é necessário se manter um diálogo permanente e prófícuo entre trabalhadores, gestores e usuários na implementação e avaliação desses processos3030 Stelet BP, Modesto AAD, Oliveira Neto A, Aragão CM, Reigada CLL. "Avançado" ou "precipitado"? Sobre o Modelo de Acesso Avançado/Aberto na Atenção Primária à Saúde. Trab Educ Saude. 2022; 20:e00588191..
É importante mencionar algumas limitações deste estudo. Primeiramente, a pesquisa foi realizada em um único PA de um município específico, sendo este uma capital de estado com estrutura em saúde robusta, com investimentos de muitos anos e com uma complexa rede de atenção à saúde. Além disso, a amostra foi composta por usuários que buscaram atendimento em um período específico do ano em horário comercial; e o período de realização do estudo é anterior à pandemia por Covid-19.
Mesmo em se tratando de uma pesquisa qualitativa, que não almeja representação fiel de uma dada realidade (pois entende que isso não é possível) ou generalização e universalização dos seus achados (pois busca uma produção de conhecimento contextualizado), entende-se que tais características deste estudo devem levar a um cuidado maior na interpretação, contextualização e aplicação de suas conclusões a outras realidades, em especial, de serviços e sistemas de saúde de localidades menores, com estrutura de saúde mais modesta. Além disso, a pandemia provocou profundos impactos e exigiu reformulações na organização do sistema de saúde que podem de alguma forma ter mudado a maneira como as pessoas se relacionam com o conjunto dos serviços de saúde.
Considerações finais
O estudo explicita as lacunas existentes no atendimento às demandas não urgentes que chegam cotidianamente aos serviços de PA, sob o ponto de vista dos usuários.
A análise das trajetórias aponta para uma compreensão de "certeza do atendimento" nos PAs por parte dos participantes do estudo, em detrimento da ideia de "não garantia da vaga" nas unidades de atenção primária.
Fortalecer as unidades de saúde de modo a qualificar sua eficiência frente ao acolhimento e à resolubilidade das demandas não urgentes impõe-se como um desafio.
- Rodrigues MM, Sarti TD, Almeida APSC, Fontenelle LF, Lazarini WS. Uso de serviço de emergência por motivos não urgentes: estudo qualitativo com usuários de um pronto atendimento, Vitória, ES, Brasil, 2019. Interface (Botucatu). 2024; 28: e230493 https://doi.org/10.1590/interface.230493
Financiamento
Chamada Universal Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações/Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - MCTIC/CNPq 2018.
Referências
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
06 Set 2024 - Data do Fascículo
2024
Histórico
- Recebido
09 Out 2023 - Aceito
05 Jun 2024