“Conscientes, exaustas e conectadas”: até onde vão os agenciamentos de mulheres que amamentam?

“Conscientes, agotadas y conectadas”: ¿hasta dónde llegan las agencias de las mujeres lactantes?

Irene Rocha Kalil Sobre o autor

O artigo “Agenciamentos de mulheres que amamentam: refletindo sobre amamentação, maternidade e internet no Brasil”11 Fazzioni NH, Lerner K. Agenciamentos de mulheres que amamentam: refletindo sobre amamentação, maternidade e internet no Brasil. Interface (Botucatu). 2024; 28:e220698. doi: 10.1590/interface.220698.
https://doi.org/10.1590/interface.220698...
situa-se em um campo de pesquisas que se dedica a pensar as práticas e os discursos sobre maternidades, sobretudo no âmbito do que se nomeou como estudos de gênero, mas não apenas nele. Autoras/es da Psicanálise, por exemplo, também têm empreendido esforços no sentido de compreender causas e efeitos dos modelos de maternidade em vigor22 Iaconelli V. Manifesto antimaternalista: psicanálise e políticas de reprodução. Rio de Janeiro: Zahar; 2023.. Esse campo não é homogêneo em sua apreciação do fenômeno das maternidades no contexto contemporâneo. Ao mesmo tempo que presenciamos, mundialmente, a problematização de tais modelos de amamentação e maternidade33 Badinter E. O conflito: a mulher e a mãe. Rio de Janeiro: Record; 2011.

4 Hays S. Contradições culturais da maternidade. Rio de Janeiro: Gryphus; 1998.

5 Meyer DE. Educação, saúde e modos de inscrever uma forma de maternidade nos corpos femininos. Movimento. 2007; 9(3):33-58.
-66 Wolf JB. Is breast really best? Risk and total motherhood in the National Breastfeeding Awareness Campaign. J Health Polit Policy Law. 2007; 32(4):595-636., assistimos ao fortalecimento de uma “maternidade ecológica”33 Badinter E. O conflito: a mulher e a mãe. Rio de Janeiro: Record; 2011., que informa uma corrente essencialista do feminismo e é informada por ela, que “exalta a ‘diferença sexual’ e defende a existência de uma ‘essência feminina’”77 Araújo MF. Diferença e igualdade nas relações de gênero: revisitando o debate. Psic Clin. 2005; 17(2):41-52. (p. 45).

No caso do artigo em questão, ele incorpora uma perspectiva crítica com relação a um ideal que romantiza a maternidade e tem, dentre seus elementos primordiais, o aleitamento materno (AM). Como pontuou a filósofa francesa Elisabeth Badinter, o AM “está no cerne da revolução materna a que assistimos nos últimos vinte anos”33 Badinter E. O conflito: a mulher e a mãe. Rio de Janeiro: Record; 2011. (p. 86), constituindo o que ela nomeou, nada mais, nada menos, de “a batalha do leite”. As autoras ainda acrescentam, à discussão, a reflexão extremamente atual acerca das trocas comunicacionais que ocorrem entre mães de diferentes condições socioeconômicas em um ambiente de interação digital: o Baby Center, portal internacional de conteúdos sobre gravidez e bebês em sua versão brasileira. E, por isso mesmo, o texto carrega o mérito de problematizar dois objetos em inter-relação: os modelos de maternidade atuais e os usos das novas tecnologias de informação e comunicação pelas mães.

Sobre os modelos de maternidade que vigoram entre as mulheres entrevistadas, o estudo empreendido pelas autoras indica que reproduzem muito do que o discurso oficial preconiza, inclusive com o uso de “expressões técnicas, tais como ‘confusão de bicos’ e ‘amamentação exclusiva’”11 Fazzioni NH, Lerner K. Agenciamentos de mulheres que amamentam: refletindo sobre amamentação, maternidade e internet no Brasil. Interface (Botucatu). 2024; 28:e220698. doi: 10.1590/interface.220698.
https://doi.org/10.1590/interface.220698...
(p. 11), mesmo entre mulheres das classes sociais mais baixas e menos escolarizadas. Isso já havia sido registrado também por Kalil e Aguiar88 Kalil IR, Aguiar AC. Narrativas sobre amamentação e desmame: entrelaçamentos de experiências, políticas públicas e saúde. Rev Geminis. 2020; 11:45-69., cujo estudo aponta que muitos dos sentidos encontrados nas narrativas de mães entrevistadas “estão propostos nos discursos governamentais pró-AM de ontem e de hoje, (...) o que demonstra a força do discurso oficial na produção de sentidos das mulheres que vivem a experiência” (p. 52).

O mesmo se dá com o discurso das evidências científicas, como notaram Fazzioni e Lerner, que não está confinado às mães mais escolarizadas, mas se espraia – ainda que não de forma homogênea – por todas as mães sujeitas ao paradigma de uma “maternidade baseada em evidências”99 Carvalho F, Nucci MF. Ocitocina e a “maternidade baseada em evidências”. Concepções sobre natureza e ciência em uma rede virtual de mães [Internet]. In: Anais do 12o Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva; 2018; Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Associação Brasileira de Saúde Coletiva; 2018 [citado 1 Mar 2024]. p. 1. Disponível em: https://abrascoeventos.org.br/saudecoletiva/2018/programacao/exibe_trabalho.php?id_trabalho=26072&id_atividade=3069&tipo=#topo
https://abrascoeventos.org.br/saudecolet...
, sucessora da “maternidade científica”. Enquanto a maternidade científica1010 Apple RD. Mothers and medicine: a social history of infant feeding 1890-1950. Madison: The University of Wisconsin Press; 1987. (Part Three, Scientific Motherhood; p. 95-132). visa nomear a transformação no exercício da maternidade, que deixa de estar calcado na tradição e passa a se estruturar em bases científicas na virada do século 19 para o 20, a maternidade baseada em evidências, embora surja de um movimento em defesa da desmedicalização do corpo feminino em um contexto de humanização das práticas assistenciais, apoia-se, de forma paradoxal, “em ‘evidências científicas’ como matriz privilegiada de legitimação das práticas humanizadas de parto e amamentação, ancoradas nos pressupostos de uma natureza feminina universal e que o corpo feminino é uma extensão das mamíferas do reino animal”99 Carvalho F, Nucci MF. Ocitocina e a “maternidade baseada em evidências”. Concepções sobre natureza e ciência em uma rede virtual de mães [Internet]. In: Anais do 12o Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva; 2018; Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Associação Brasileira de Saúde Coletiva; 2018 [citado 1 Mar 2024]. p. 1. Disponível em: https://abrascoeventos.org.br/saudecoletiva/2018/programacao/exibe_trabalho.php?id_trabalho=26072&id_atividade=3069&tipo=#topo
https://abrascoeventos.org.br/saudecolet...
(p. 1).

Em razão da ideologia dessa maternidade baseada em evidências, que questiona o poder médico, mas, ao mesmo tempo, contrapõe-se aos valores de cuidado mais tradicionais, trazidos pelas avós, em razão do conflito geracional, as mães de hoje acabam por repelir o único apoio (ou um dos poucos apoios) de que dispõem, de sua mãe ou sogra, por serem elas vistas como potenciais inimigas da amamentação. Mães e sogras que, muitas vezes, parecem ser as únicas pessoas que olham para a mulher recém-parida e se preocupam com o seu cuidado, enquanto o restante do entorno só tem olhos para “sua majestade o bebê”1111 Iaconelli V. Mal-estar na maternidade: do infanticídio à função materna. 2a ed. São Paulo: Zagodoni; 2020. (p. 63).

Por outro lado, um ponto de tensionamento seria a inferência, feita pelas autoras11 Fazzioni NH, Lerner K. Agenciamentos de mulheres que amamentam: refletindo sobre amamentação, maternidade e internet no Brasil. Interface (Botucatu). 2024; 28:e220698. doi: 10.1590/interface.220698.
https://doi.org/10.1590/interface.220698...
, de que, enquanto algumas mães passam pela experiência da maternidade e da amamentação de maneira mais discreta, mulheres com menor capital econômico e social carregam “um desejo de monetizar as relações com a produção de informações em torno da maternidade”11 Fazzioni NH, Lerner K. Agenciamentos de mulheres que amamentam: refletindo sobre amamentação, maternidade e internet no Brasil. Interface (Botucatu). 2024; 28:e220698. doi: 10.1590/interface.220698.
https://doi.org/10.1590/interface.220698...
(p. 11). Creio que isso possa ser problematizado se considerarmos o número de perfis de novas influenciadoras digitais, profissionais da saúde ou não, no âmbito dos discursos sobre maternidade e amamentação nas redes sociais.

As próprias doulas e consultoras de amamentação, que são profissões relativamente jovens, parecem já ter iniciado sua recente existência em meio ao ambiente digital e investem cada vez mais tempo e recursos na produção de conteúdo para atrair seguidores/clientes para seus perfis nas redes sociais. Muitas dessas novas profissionais do cenário do parto e puerpério “vivenciaram tais processos de maternidade, que consideram transformadores, e buscaram cursos livres para formação de doulas ou consultoras como forma de conjugar seus novos interesses, conhecimentos e experiências como mães com uma nova atuação profissional”1212 Nucci M, Russo J. Ciência, natureza e moral entre consultoras de amamentação. In: Silva CD, organizadora. Saúde, corpo e gênero: perspectivas teóricas e etnográficas. Juiz de Fora: Editora UFJF; 2021. p. 70-87. (p. 70). E, em grande medida, imbuídas da autoridade da experiência, elas vêm conquistando, nos últimos anos, um lugar de novas especialistas no contexto da maternidade baseada em evidências.

Nesse sentido, o atravessamento das nossas experiências pela midiatização percorre todas as camadas sociais, talvez em diferentes graus e formas de apropriação por meio dos distintos contextos. O “bios midiático”, como definiu o pesquisador Muniz Sodré:

[...] é uma espécie de clave virtual aplicada à vida cotidiana, à existência real-histórica do indivíduo. Em termos de puro livre-arbítrio, pode-se entrar e sair dele, mas nas condições civilizatórias em que vivemos [...] estamos imersos na virtualidade midiática1313 Sodré M. Bios midiático. Dispositiva. 2013; 2(1):108-10.. (p. 108)

As autoras constataram que as mulheres entrevistadas não utilizam a internet apenas para o consumo de informações, mas também para sua produção. Notaram, ainda, que, embora defendam as máximas preconizadas pelo discurso oficial – sobre o leite materno como melhor alimento e amamentação exclusiva nos primeiros seis meses –, elas precisam, por seus contextos objetivos e também subjetivos de vida, negociar sentidos, fazendo o melhor que podem ou o melhor que conseguem. Mas, mesmo tendo alguma margem de manobra, elas se encontram, como bem definem as autoras, “conscientes, exaustas e conectadas” (até porque estar conectada é, hoje, mais uma condição da maternidade). Para Fazzioni e Lerner, ao mesmo tempo que as redes permitem às mulheres serem também produtoras de informação, e não somente receptoras, “por outro lado tal movimento parece adicionar maior sobrecarga no que se refere aos cuidados com seus filhos”11 Fazzioni NH, Lerner K. Agenciamentos de mulheres que amamentam: refletindo sobre amamentação, maternidade e internet no Brasil. Interface (Botucatu). 2024; 28:e220698. doi: 10.1590/interface.220698.
https://doi.org/10.1590/interface.220698...
(p. 13). Nessa direção, cabe problematizar: até onde vão os agenciamentos maternos diante de modelos hegemônicos tão poderosos – do aleitamento materno como medida da boa mãe e da maternidade baseada em evidências como padrão ideal – e da midiatização da vida como uma realidade que nos afeta a todos/as?

Referências

  • 1
    Fazzioni NH, Lerner K. Agenciamentos de mulheres que amamentam: refletindo sobre amamentação, maternidade e internet no Brasil. Interface (Botucatu). 2024; 28:e220698. doi: 10.1590/interface.220698.
    » https://doi.org/10.1590/interface.220698
  • 2
    Iaconelli V. Manifesto antimaternalista: psicanálise e políticas de reprodução. Rio de Janeiro: Zahar; 2023.
  • 3
    Badinter E. O conflito: a mulher e a mãe. Rio de Janeiro: Record; 2011.
  • 4
    Hays S. Contradições culturais da maternidade. Rio de Janeiro: Gryphus; 1998.
  • 5
    Meyer DE. Educação, saúde e modos de inscrever uma forma de maternidade nos corpos femininos. Movimento. 2007; 9(3):33-58.
  • 6
    Wolf JB. Is breast really best? Risk and total motherhood in the National Breastfeeding Awareness Campaign. J Health Polit Policy Law. 2007; 32(4):595-636.
  • 7
    Araújo MF. Diferença e igualdade nas relações de gênero: revisitando o debate. Psic Clin. 2005; 17(2):41-52.
  • 8
    Kalil IR, Aguiar AC. Narrativas sobre amamentação e desmame: entrelaçamentos de experiências, políticas públicas e saúde. Rev Geminis. 2020; 11:45-69.
  • 9
    Carvalho F, Nucci MF. Ocitocina e a “maternidade baseada em evidências”. Concepções sobre natureza e ciência em uma rede virtual de mães [Internet]. In: Anais do 12o Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva; 2018; Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Associação Brasileira de Saúde Coletiva; 2018 [citado 1 Mar 2024]. p. 1. Disponível em: https://abrascoeventos.org.br/saudecoletiva/2018/programacao/exibe_trabalho.php?id_trabalho=26072&id_atividade=3069&tipo=#topo
    » https://abrascoeventos.org.br/saudecoletiva/2018/programacao/exibe_trabalho.php?id_trabalho=26072&id_atividade=3069&tipo=#topo
  • 10
    Apple RD. Mothers and medicine: a social history of infant feeding 1890-1950. Madison: The University of Wisconsin Press; 1987. (Part Three, Scientific Motherhood; p. 95-132).
  • 11
    Iaconelli V. Mal-estar na maternidade: do infanticídio à função materna. 2a ed. São Paulo: Zagodoni; 2020.
  • 12
    Nucci M, Russo J. Ciência, natureza e moral entre consultoras de amamentação. In: Silva CD, organizadora. Saúde, corpo e gênero: perspectivas teóricas e etnográficas. Juiz de Fora: Editora UFJF; 2021. p. 70-87.
  • 13
    Sodré M. Bios midiático. Dispositiva. 2013; 2(1):108-10.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    29 Nov 2023
  • Aceito
    28 Fev 2024
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br