Resumos
Este relato, com linguagens textual e imagética, sistematiza o processo de criação e produção de um material de educação em saúde e popularização científica: a graphic novel “180 graus: minhas reviravoltas com o câncer de mama”1. O livro aborda o câncer de mama por meio da linguagem dos quadrinhos para discutir este problema de saúde pública que, segundo estimativa do Instituto Nacional do Câncer (INCA), em 2023, afetaria mais de 73 mil mulheres no Brasil. O relato está organizado em cinco etapas: articulação de equipe e parcerias estratégicas; pesquisa e pré-produção do material para a história em quadrinhos (HQ); desenvolvimento da HQ; elaboração de materiais pedagógicos complementares à HQ; e edição e divulgação da HQ. Ao final, há também resultados, lições aprendidas e próximos passos.
Palavras-chave
Câncer de mama; História em quadrinhos; Cuidado em saúde; Autoetnografia
Using textual language and imagery, this account systematizes the process of creating and producing an educational tool for health education and science popularization in the form of the graphic novel “180 graus: Minhas reviravoltas com o câncer de mama”. The book addresses the issues of breast cancer, which, according to the National Cancer Institute (INCA), affected more than 73,000 women in Brazil in 2023, using comic book language to discuss a public health problem. The account is structured into five sections: coordination of the team and strategic partnerships; research and pre-production of the material for the comic book; development of the comic book; creation of complementary educational material; and editing and publicizing the book. At the end we present the results, lessons learned and next steps.
Keywords
Breast cancer; Comic book; Health care; Autoethnography
Este relato, con lenguajes textual y de imágenes, sistematiza el proceso de creación y producción de un material de educación en salud y popularización científica, la graphic novel “180 grados: Mis idas y vueltas con el cáncer de mama”1. El libro aborda el cáncer de mama por medio del lenguaje de los cómics para discutir un problema de salud pública que, según una estimativa del Instituto Nacional del Cáncer (INCA), en 2023 afectaría a más de 73 mil mujeres en Brasil. El relato está organizado en cinco etapas: articulación de equipo y alianzas estratégicas; investigación y pre-producción del material para el cómic; desarrollo del cómic; elaboración de materiales pedagógicos complementarios al cómic; y edición y divulgación del cómic. Al final, hay también resultados, lecciones aprendidas y próximos pasos.
Palabras clave
Cáncer de mama; Cómics; Cuidado de salud; Autoetnografía
Introdução
Este texto relata o processo de criação e produção de um material de educação em saúde e popularização científica, a graphic novel “180 graus: minhas reviravoltas com o câncer de mama”11 Ferraz D. 180 graus: minhas reviravoltas com o câncer de mama. Rio de Janeiro: Nau Editora; 2022.. Ao registrar detalhadamente essa experiência, os objetivos são incentivar a popularização da linguagem dos quadrinhos no campo da Saúde Coletiva brasileira e deixar sugestões para o uso desse tipo de material na educação e formação em saúde, assim como na divulgação científica.
O livro foi desenvolvido com financiamento obtido por meio de edital conjunto do CNPq e Fiocruz Brasília (processo n. 440192/2019-6). O projeto apresentado ao edital foi coordenado por Dulce Ferraz, analista da Escola de Governo da Fiocruz Brasília (EGF/Fiocruz), e Soraya Fleischer, professora do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília (DAN/UnB); e foi articulado, ainda, com várias profissionais da EGF/Fiocruz, do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF/FIOCRUZ) e com Fabiene Gama, do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (DAN/UFRGS). Seu objetivo principal foi desenvolver um material educativo em formato de graphic novel sobre câncer de mama em estágio inicial e sistematizar orientações metodológicas sobre o uso dessa forma de literatura no campo da Saúde Coletiva, especialmente na formação de profissionais de campos disciplinares variados que atuam na área da saúde. Trata-se, segundo o que pudemos apurar, do primeiro projeto de pesquisa a introduzir a abordagem da Medicina Gráfica no campo da Saúde Coletiva brasileira, o que atesta seu caráter não apenas inovador, mas também vanguardista.
A ideia de abordar o câncer de mama por meio da linguagem dos quadrinhos baseou-se, inicialmente, na magnitude dessa doença no Brasil e na consequente necessidade de difundir o conhecimento científico sobre o tema. Trata-se de um problema de saúde pública que afeta mais de 73 mil mulheres todos os anos no país e uma experiência com importantes impactos psicossociais para as pessoas diagnosticadas e para aquelas ao redor dela22 Rahool R, Haider G, Shahid A, Shaikh MR, Memon P, Pawan B, et al. Medical and psychosocial challenges associated with breast cancer survivorship. Cureus. 2021; 13(2):e13211.. O conhecimento científico sobre a doença tem evoluído rapidamente nos últimos anos, havendo um debate importante no campo da Saúde Coletiva acerca dos modos de diagnosticá-la e tratá-la22 Rahool R, Haider G, Shahid A, Shaikh MR, Memon P, Pawan B, et al. Medical and psychosocial challenges associated with breast cancer survivorship. Cureus. 2021; 13(2):e13211.,33 Migowski A, Stein AT, Ferreira CBT, Ferreira DMTP, Nadanovsky P. Diretrizes para detecção precoce do câncer de mama no Brasil: I - Métodos de elaboração. Cad Saude Publica. 2018; 34(6):e00116317.. Nesse sentido, destacam-se os questionamentos sobre o limitado impacto da mamografia de rotina para redução da mortalidade pela doença44 Diniz CSG, Pellini ACG, Ribeiro AG, Tedardi MV, Miranda MJ, Touso MM, et al. Breast cancer mortality and associated factors in São Paulo State, Brazil: an ecological analysis. BMJ Open. 2017; 7(8):e016395.,55 Welch HG, Prorok PC, O’Malley AJ, Kramer BS. Breast-cancer tumor size, overdiagnosis, and mammography screening effectiveness. New Eng J Med. 2016; 375(15):1438-47., os riscos de sobrediagnóstico e tratamento excessivo33 Migowski A, Stein AT, Ferreira CBT, Ferreira DMTP, Nadanovsky P. Diretrizes para detecção precoce do câncer de mama no Brasil: I - Métodos de elaboração. Cad Saude Publica. 2018; 34(6):e00116317.,66 Migowski A. Riscos e benefícios do rastreamento do câncer de mama no Brasil. Cienc Saude Colet. 2016; 21(3):989-9.,77 Welch HG, Black WC. Overdiagnosis in cancer. J National Cancer Institute. 2010; 102(9):605-13. e o surgimento de tecnologias que permitem tratamentos menos agressivos, como os testes moleculares88 Sparano JA, Gray RJ, Makower DF, Pritchard KI, Albain KS, Hayes DF, et al. Prospective validation of a 21-Gene expression assay in breast cancer. New Eng J Med. 2015; 373(21):2005-14..
Diante desse cenário complexo, entendemos que buscar formas de comunicar o conhecimento científico à população em geral é parte essencial da nossa tarefa enquanto profissionais e pesquisadoras atuantes no campo da saúde. Foi para responder a esse desafio que articulamos neste projeto nossos conhecimentos interdisciplinares sobre Saúde Coletiva, Psicologia Social, Antropologia da Saúde, Antropologia Visual e Artes Visuais e buscamos abordagens teóricas e metodológicas inovadoras para promover conhecimento e reflexão sobre o câncer de mama. Desenvolvemos, assim, um material baseado no referencial teórico do cuidado99 Ayres JRCM. Uma concepção hermenêutica de saúde. Physis. 2007; 17(1):43-62.,1010 Ayres JRCM. Cuidado e reconstrução das práticas de Saúde. Interface (Botucatu). 2004; 8(14):73-92. doi: 10.1590/S1414-32832004000100005.
https://doi.org/10.1590/S1414-3283200400... , que usa a abordagem metodológica da autoetnografia1111 Ellis C, Adams TE, Bochner AP. Autoetnografía: un panorama. Astrolabio. 2015; (14):249-73.,1212 Gama F. A autoetnografia como método criativo: experimentações com a esclerose múltipla. An Antropol. 2020; 45(2):188-208. e recursos da Medicina Gráfica1313 Czerwiec MK, Williams I, Squier SM, Green MJ, Myers KR, Scott TS. Graphic medicine manifesto. Pennsylvania: The Pennsylvania State University Press; 2015.,1414 Green MJ, Myers KR. Graphic medicine: use of comics in medical education and patient care. BMJ. 2010; 340(3/2):c863-3..
O conceito de cuidado, conforme proposto por Ayres99 Ayres JRCM. Uma concepção hermenêutica de saúde. Physis. 2007; 17(1):43-62.,1010 Ayres JRCM. Cuidado e reconstrução das práticas de Saúde. Interface (Botucatu). 2004; 8(14):73-92. doi: 10.1590/S1414-32832004000100005.
https://doi.org/10.1590/S1414-3283200400... , chama atenção para a necessidade de práticas de saúde que respondam à complexidade das experiências de adoecimento, sem reduzi-las a meros fenômenos biomédicos sobre os quais se aplicam soluções exclusivamente técnicas. Isso implica em compreender os momentos assistenciais em saúde como encontros de sujeitos, todos portadores de saberes técnicos e práticos, durante os quais se busca a construção compartilhada de soluções para os problemas de saúde88 Sparano JA, Gray RJ, Makower DF, Pritchard KI, Albain KS, Hayes DF, et al. Prospective validation of a 21-Gene expression assay in breast cancer. New Eng J Med. 2015; 373(21):2005-14.,1515 Schraiber LB. Quando o "êxito técnico" se recobre de "sucesso prático": o sujeito e os valores no agir profissional em saúde. Cienc Saude Colet. 2011; 16(7):3041-2.. Reorientar o olhar para o câncer de mama a partir da perspectiva do cuidado nos parece um movimento particularmente fecundo em um cenário em que o diálogo acerca dos benefícios e os riscos envolvidos na aplicação de diversas tecnologias e de seus significados para cada paciente é imprescindível.
Promover tal compreensão do cuidado no campo do câncer de mama exigiu que buscássemos ferramentas comunicativas e pedagógicas que expressem as dimensões intersubjetivas dos processos de adoecimento e dos momentos assistenciais em saúde. Nesse sentido, a autoetnografia emergiu como um método potente, na medida em que favorece um olhar sobre a experiência do adoecimento na sua integralidade, articulando os desafios enfrentados pelas pessoas que recebem o diagnóstico de uma doença grave ou crônica com os debates científicos1212 Gama F. A autoetnografia como método criativo: experimentações com a esclerose múltipla. An Antropol. 2020; 45(2):188-208.. A adoção desse método foi possível tendo em vista que a coordenadora do projeto (Dulce Ferraz) havia passado pela experiência do câncer de mama e dispunha de informações científicas sobre o tema, dada sua formação no campo.
Como qualquer etnografia, a autoetnografia tem por objetivo produzir análises a partir de descrições densas para explorar nuances, rotinas cotidianas, versões e sucessões de interpretações, usando, para isso, intensa observação, convivência, interpelação e registro – no caso, de si mesma e daqueles atores significativos ao redor. Se a inserção pessoal da pesquisadora no tema estudado pode sugerir um foco extremo na subjetividade, ou mesmo na parcialidade da produção do conhecimento, é importante ressaltar que a pesquisa autoetnográfica não é realizada exclusivamente com base na experiência da pessoa que narra – pelo contrário, a narradora é vista de forma contextual, como sujeito partícipe de um processo mais amplo, partilhado socialmente com pessoas que também vivem experiências semelhantes. Não se trata, portanto, da contação da história pessoal, como acontece em uma autobiografia ou mesmo em uma obra literária de ficção: a autoetnografia exige que a pesquisadora olhe analiticamente suas experiências interpessoais, usando as ferramentas metodológicas e teóricas de que, por seu ofício, dispõe, para produzir narrativas densas e evocativas1111 Ellis C, Adams TE, Bochner AP. Autoetnografía: un panorama. Astrolabio. 2015; (14):249-73.. No caso do livro 180 graus, o material autoetnográfico foi complementado, aprimorado e densificado pela pesquisa bibliográfica e pela revisão do roteiro por um grupo interdisciplinar de especialistas, formado por sanitaristas, epidemiologistas, mastologistas, antropólogas, psicólogas e assistentes sociais, como detalhado na segunda parte deste relato.
Assim como a autoetnografia, a Medicina Gráfica é uma abordagem que favorece a compreensão das experiências de adoecimento em suas dimensões práticas e subjetivas, por parte tanto de profissionais de saúde quanto do público mais amplo, sejam as pessoas doentes ou aquelas do seu entorno. Vinculado às Humanidades em Saúde e à Medicina Narrativa1616 Hurwitz B, Charon R. A narrative future for health care. Lancet. 2013; 381(9881):1886-7., este campo explora o uso de recursos gráficos como ilustrações, infografia e histórias em quadrinhos (HQ) como ferramentas de comunicação em Saúde1717 Williams ICM. Graphic medicine: comics as medical narrative. Med Humanit. 2012; 38(1):21-7.. Trata-se de um campo bastante vigoroso em países de língua inglesa, que conta, inclusive, com linhas editoriais próprias, como a coleção Graphic Medicine55 Welch HG, Prorok PC, O’Malley AJ, Kramer BS. Breast-cancer tumor size, overdiagnosis, and mammography screening effectiveness. New Eng J Med. 2016; 375(15):1438-47., da Penn State University Press, e a EthnoGRAPHIC(d(d)Disponível em: https://www.utpteachingculture.com/announcing-ethnographic-a-new-series/ ), da University of Toronto Press.
Etapas de preparação, produção e divulgação da graphic novel
Organizamos o relato em cinco etapas, a saber: articulação de equipe e parcerias estratégicas; pesquisa e pré-produção do material para a HQ; desenvolvimento da HQ; elaboração de materiais pedagógicos complementares à HQ; edição; e divulgação da HQ.
a) Articulação de equipe e parcerias estratégicas
Nossa primeira ação foi realizar, em fevereiro e março de 2020, reuniões com as equipes da Fiocruz que participaram da concepção da proposta, localizadas na EGF/Fiocruz e no IFF/Fiocruz. Nessas reuniões, pudemos apresentar o projeto a outros profissionais além daqueles que já haviam se envolvido na formulação dele e acordar as formas de colaboração de cada um na sua execução.
Além disso, também em fevereiro de 2020, realizamos quatro entrevistas para seleção de uma ilustradora para trabalhar no projeto. Nessas entrevistas, convidamos as candidatas a ilustrar uma cena que faria parte do roteiro da graphic novel, sendo que elas deveriam nos enviar tal cena por email no prazo de uma semana. Ao final do processo, selecionamos a artista brasiliense Camilla Siren para ser a ilustradora da HQ.
O núcleo principal da equipe de trabalho foi completado por Fabiene Gama, que atuou como consultora em antropologia visual do projeto e aportou, de maneira complementar, sua experiência no uso do método autoetnográfico para pesquisa em saúde.
b) Pesquisa e pré-produção do material para a graphic novel
Iniciamos esta etapa pela pesquisa de materiais educativos recentes sobre câncer de mama existentes no Brasil, a fim de identificar os formatos que vêm sendo utilizados e como nosso material poderia ser complementar a eles. Os principais materiais identificados foram os desenvolvidos pelo Instituto Nacional do Câncer (INCA) e a Sociedade Brasileira de Mastologia (SBM); e consistem em folders, cartilhas e manuais focados na transmissão de informações importantes sobre o câncer de mama, como os tipos existentes, as formas de prevenção, os métodos diagnósticos e os tratamentos existentes. Algumas inovações de formato, com uso de imagens fotográficas, merecem destaque, especialmente na produção do INCA. Contudo, não localizamos nenhum material que explorasse o uso dos quadrinhos, nem o desenvolvimento de narrativa densa a partir da perspectiva das pacientes, como proposto no nosso projeto.
A etapa seguinte foi a pesquisa da literatura, que se deu com três focos principais:
Primeiramente, foi feita uma pesquisa de literatura sobre câncer de mama, buscando atualizar os dados sobre magnitude da doença no Brasil e suas principais características epidemiológicas; situação epidemiológica entre mulheres abaixo dos quarenta e dos cinquenta anos (dois cortes etários possíveis para que sejam consideradas jovens em relação à ocorrência da doença); sobrediagnóstico e sobretratamento de câncer de mama em estágio inicial; tratamento de câncer de mama hormônio-responsivo; e uso de testes moleculares para estimativa de prognóstico e definição de tratamento de câncer de mama em estágio inicial. Outros tópicos foram acrescentados à pesquisa conforme os temas emergiram ao longo do desenvolvimento do roteiro do livro – foi o caso, por exemplo, da reprodução após tratamento e dos efeitos adversos dos tratamentos.
Em seguida, realizamos uma pesquisa na literatura sobre experiências de uso do método autoetnográfico para a produção de narrativas em saúde que dialoguem com problemas de Saúde Coletiva. Foram identificados estudos autoetnográficos que abordavam temas como saúde mental, esclerose múltipla e surdez, além de experiências de profissionais de saúde na prática do cuidado. Identificamos um crescimento importante do uso dessa abordagem metodológica no campo da saúde nos níveis internacional e local. Destacamos o fato de duas teses autoetnográficas terem recebido menção honrosa no Prêmio Capes em 2021, uma na Saúde Coletiva1818 Raimondi GA. Corpos que (não) importam na prática médica: uma autoetnografia performática sobre o corpo gay na escola médica [tese]. Campinas: Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas; 2019. e outra na Antropologia1919 Mello AG. Olhar, (não) ouvir, escrever: uma autoetnografia ciborgue [tese]. Florianópolis: Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina; 2019..
Finalmente, o terceiro passo foi uma pesquisa sobre graphic novels que abordam temas de saúde. A maior parte do material que encontramos estava disponível apenas em língua inglesa. Embora algumas tenham sido traduzidas para o português, não localizamos nenhuma que tenha sido criada e produzida no Brasil. Algumas das graphic novels que se destacaram como inspiração para o desenvolvimento do roteiro da nossa foram “Lissa: a story about medical promise, friendship, and revolution”, que trata da amizade de duas jovens mulheres, Layla e Anna, respectivamente do Egito e dos Estados Unidos, e que lidam com dois dilemas de saúde que se intersectam ao longo da história2020 Nye C, Bao S, Brewer C, Hamdy S. Lissa: a story about medical promise, friendship, and revolution. Anthropologica; 60(1):349-50.; “Mamãe está com câncer”, em que o quadrinista Brian Fies relata o acompanhamento do diagnóstico e tratamento de câncer de pulmão de sua mãe2121 Fies B. Mamãe está com câncer. Rio de Janeiro: Darkside; 2020.; “The hospital suite”, que conta a história do próprio autor, que, após ser operado de um tumor benigno no intestino, passa a conviver com diversas sequelas do procedimento e erros médicos cometidos2222 Porcellino J. The hospital suite. Montreal: Drawn and Quarterly; 2021.; “Parafusos: mania, depressão Michelangelo e eu” que aborda a experiência da autora com o transtorno bipolar2323 Forney E. Parafusos. São Paulo: WWF Martins Fontes; 2015.; e “Pílulas azuis”, também uma graphic novel autobiográfica em que o autor conta seu relacionamento amoroso com uma mulher que tem filho, sendo que ambos vivem com HIV2424 Peeters F. Pílulas azuis. Belo Horizonte: Nemo Editora; 2015..
Em paralelo à pesquisa bibliográfica, realizamos a análise do material empírico que embasaria a elaboração do roteiro da graphic novel. Esse material consistiu em documentos médicos e laboratoriais (laudos e resultados de exames) e um caderno de observações, similar a um diário de campo, que continha as anotações feitas pela autora durante seu processo de diagnóstico e tratamento do câncer de mama (imagem 1). Foram, assim, reunidos materiais sobre as etapas de identificação de sintomas; diagnóstico; investigação clínica e laboratorial; negociação dos procedimentos terapêuticos; realização desses procedimentos; reabilitação; e seguimento.
Buscando espelhar como a experiência do câncer de mama envolve amplo espectro de interações, a seleção do material usado na construção do roteiro levou em conta cenas de interação da autora com profissionais de saúde e outras pessoas que foram relevantes no processo de construção das decisões terapêuticas, tais como outras mulheres que tiveram câncer de mama, familiares, amigas, redes de apoio mobilizadas pela internet e pesquisadoras especialistas em câncer de mama. A seleção do material também considerou as informações clínicas e epidemiológicas a serem exploradas em cada etapa da trajetória, desde o diagnóstico até o seguimento clínico.
c) Desenvolvimento da graphic novel
Desenvolvimento conceitual
Com base no material empírico selecionado e nas revisões de literatura, passamos à escrita do roteiro da graphic novel. Este processo foi orientado teoricamente pelo conceito de cuidado em saúde99 Ayres JRCM. Uma concepção hermenêutica de saúde. Physis. 2007; 17(1):43-62.,1010 Ayres JRCM. Cuidado e reconstrução das práticas de Saúde. Interface (Botucatu). 2004; 8(14):73-92. doi: 10.1590/S1414-32832004000100005.
https://doi.org/10.1590/S1414-3283200400... . Buscamos mostrar a importância de práticas de saúde orientadas pelas necessidades das pessoas que estão sendo cuidadas, em diálogo com os conhecimentos técnicos dos profissionais de saúde. Na perspectiva do cuidado, os momentos assistenciais devem se configurar em momentos de construção compartilhada entre quem cuida e quem é cuidado daquilo que será o objeto das intervenções que serão realizadas para resolver um determinado problema de saúde. Procuramos retratar isso na HQ tanto por meio da afirmação – ou seja, retratando momentos em que esse diálogo ocorre – quanto pela negação – mostrando situações em que prevalecem abordagens verticalizadas, hierárquicas e até autoritárias. Isso nos permitiu explorar as reações, os sentimentos e os resultados dessas diferentes formas de interação.
As informações técnicas sobre os diferentes tipos de câncer de mama, os métodos de diagnóstico e os tratamentos existentes para cada tipo foram inseridas tanto como parte da história da personagem principal quanto de outras mulheres com as quais ela interage ao longo do livro. Para não sobrecarregar a história com explicações técnicas, optamos por inserir referências bibliográficas usando o estilo Vancouver e criamos um glossário no final da história, com os principais termos técnicos utilizados.
Tendo em vista que a história desenvolvida se inspira, mas não se limita, à experiência da autora com o câncer de mama, optamos por criar uma personagem para protagonizar o livro, chamada Carolina Passos (figura 2). Esse tipo de adaptação, bastante comum em narrativas literárias de inspiração autobiográfica, foi importante para transformar a história em literatura, aumentar a liberdade criativa da equipe e buscar construir cenas e situações que expressassem sentidos e significados compartilhados por mulheres afetadas pelo câncer de mama.
Na sequência, foram elaboradas propostas para as demais personagens da história (figura 3), sendo que uma das preocupações que tínhamos era a de apresentar uma diversidade de perfis no enredo.
Desenvolvimento operacional
Operacionalmente, a escrita do roteiro da graphic novel seguiu as seguintes etapas:
Concepção, pela autora e coordenadora do projeto (Dulce Ferraz), de uma história dividida em três capítulos: processo de diagnóstico, escolhas terapêuticas e tratamentos.
Redação do capítulo 1, também realizada pela coordenadora.
Revisão do capítulo 1, realizada pelas colaboradoras (Soraya Fleischer e Fabiene Gama).
Correção do capítulo 1 pela coordenadora.
Repetição dos mesmos procedimentos para os capítulos 2 e 3.
A fim de assegurar a validade científica das informações apresentadas no livro, bem com sua consistência teórico-metodológica por meio da revisão de pares, o roteiro foi enviado para um grupo de 12 especialistas de várias áreas e instituições, todas com experiência direta ou correlata ao fenômeno clínico, epidemiológico e social do câncer de mama66 Migowski A. Riscos e benefícios do rastreamento do câncer de mama no Brasil. Cienc Saude Colet. 2016; 21(3):989-9.. Esse processo contribuiu também para a análise da compreensibilidade e fluidez do material, fundamental em um material de divulgação científica. Vale destacar que essa foi uma maneira que encontramos para assegurar a revisão de pares no contexto da pandemia de Covid-19. No projeto original, havíamos previsto a realização de reuniões presenciais com especialistas e um pré-teste com estudantes, que foi inviável, já que, durante todo o processo de criação do livro, as atividades docentes estiveram profundamente perturbadas pela pandemia, ora suspensas, ora adaptadas para o formato on-line.
Depois de incorporadas as sugestões dos especialistas, a coordenadora encaminhou o material escrito à ilustradora, Camilla Siren, que teve total liberdade para criar, na forma das ilustrações, sua interpretação da história. A fim de compartilhar algumas ideias sobre como apresentar emoções e sensações em imagens, compartilhamos alguns exemplos de como elas foram elaboradas em algumas das graphic novels que nos inspiraram na pesquisa inicial. Para cenas que envolviam procedimentos médicos, como a mamografia mostrada na imagem a seguir, a autora selecionou e compartilhou com a ilustradora imagens de referência que mostravam as máquinas e a posição das mulheres durante o exame. Com base nessas referências técnicas e nas emoções e reações descritas no texto, a ilustradora criou as imagens.
A etapa de ilustração seguiu procedimentos similares ao da redação:
A ilustradora desenhou o primeiro capítulo e o enviou para revisão da autora e das colaboradoras.
Sugestões de modificações ou esclarecimentos foram debatidas em reuniões virtuais entre as quatro.
A ilustradora corrigiu o capítulo 1.
Repetimos os mesmos procedimentos para os capítulos 2 e 3.
Ao final, a ilustradora revisou o conjunto do material, a fim de assegurar sua harmonia visual. Após a aprovação do conteúdo integral das ilustrações pela equipe, a ilustradora passou à coloração do material e contou com uma equipe de colaboradores. O material ilustrado e colorido foi integralmente revisado pela autora e pelas colaboradoras, buscando principalmente diminuir a quantidade de texto nos quadrinhos, priorizar a comunicação visual e corrigir eventuais erros tanto textuais quanto imagéticos. Abrir mão de textos em prol das imagens foi um dos grandes desafios deste formato.
Coletivamente, demos ao livro o título “180 graus: minhas reviravoltas com o câncer de mama” e escolhemos a ilustração da capa. Propositalmente, a imagem escolhida vem de um momento intermediário do livro, em que a personagem, Carolina Passos, percebe como o tumor chacoalhou sua história (figura 5).
Além da HQ, foram elaborados textos complementares para compor o livro, que tiveram por objetivo reforçar o caráter pedagógico deste material para formação tanto de profissionais que atuam na saúde quanto de pesquisadoras interessadas em métodos inovadores, principalmente os aplicados à divulgação científica. Assim, foram elaborados quatro textos didático-pedagógicos, reunidos ao final do livro, que são:
“Como este livro foi criado”2525 Fleischer S, Ferraz D, Gama F, Siren C. Como este livro foi produzido?. In: Ferraz D. 180 graus: minhas reviravoltas com o câncer de mama. Rio de Janeiro: Nau Editora; 2022. p. 281-94., um relato a quatro vozes (Soraya Fleischer, Dulce Ferraz, Fabiene Gama e Camilla Siren) que detalha as etapas de criação do livro. O jogral expõe o processo de pesquisa, roteirização e ilustração, esperando que isso possa inspirar outras pesquisadoras a criar maneiras de combinar ciência e arte para a popularização do conhecimento científico e favorecer a educação e a formação em Saúde Coletiva.
“Por que usar quadrinhos para falar sobre câncer de mama?”2626 Ferraz D. Por que usar quadrinhos para falar sobre câncer de mama?. In: Ferraz D. 180 graus: minhas reviravoltas com o câncer de mama. Rio de Janeiro: Nau Editora; 2022. p. 295-300. (Dulce Ferraz), discute o potencial desta linguagem para tratar de temas de saúde. Aponta, por exemplo, como em países anglófonos o campo da Medicina Gráfica tem se consolidado nas últimas décadas como uma abordagem valiosa de construção de narrativas em saúde, graças à capacidade dos quadrinhos de favorecer a empatia e a abordagem das dimensões sociais e subjetivas do adoecimento.
“A potência da autoetnografia para a área da saúde”2727 Gama F. A potência da autoetnografia para a área da saúde. In: Ferraz D. 180 graus: minhas reviravoltas com o câncer de mama. Rio de Janeiro: Nau Editora; 2022. p. 301-6. (Fabiene Gama) explica o que é o método autoetnográfico aplicado no livro e em trabalhos de sua própria autoria. Gama explica como esse método de pesquisa e gênero literário situado na intersecção entre ciência e arte tem consolidado sua legitimidade ao longo dos anos, reiterando a potência de combinar rigor científico e abordagens experimentais, emocionais e esteticamente atraentes.
“Como esta HQ pode ser usada”2828 Fleischer S. Como este livro pode ser aproveitado? In: Ferraz D. 180 graus: minhas reviravoltas com o câncer de mama. Rio de Janeiro: Nau Editora; 2022. p. 307-12. (Soraya Fleischer) elenca sugestões de como o livro pode ser utilizado em atividades pedagógicas em diversos contextos, como na formação de profissionais de saúde, em grupos de apoio mútuo entre mulheres com câncer de mama e em serviços de saúde que cuidam dessas mulheres.
O livro conta, também, com um glossário organizado em ordem alfabética para ajudar na compreensão do conteúdo técnico-científico que aparece ao longo da história. Nele, junto com uma explicação breve dos termos, indicamos fontes nas quais as leitoras podem encontrar mais informações sobre cada termo na internet, em linguagem acessível. O livro é composto, ainda, de uma apresentação assinada pela coordenadora do projeto; um prefácio de José Ricardo Ayres, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), cuja produção teórica sobre o cuidado em saúde foi a principal referência conceitual para o desenvolvimento do livro; e um texto de contracapa assinado por Claudia Fonseca, do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), reconhecida pelo trabalho com os temas de saúde, ciência e tecnologia e que, há uma década, também vivenciou um câncer de mama.
d) Edição do livro
Para o trabalho de edição e impressão do livro, contactamos diversas editoras que trabalham na área tanto de divulgação científica quanto de HQ. Esta foi uma etapa que se mostrou surpreendentemente difícil em função do caráter pioneiro do projeto. Entre as editoras que responderam nossas tentativas de contato, aquelas que atuam na área de divulgação científica tiveram dificuldade de compreender o caráter científico do livro e algumas alegaram não terem a expertise necessária para finalizar um material em formato de quadrinhos. No diálogo com elas, procuramos explicar os métodos de nosso estudo e a importância do formato para justamente promover a popularização do conhecimento científico. Do outro lado, as editoras especializadas em quadrinhos explicaram trabalhar apenas com profissionais já experientes nesse tipo de linguagem, além de considerarem que o recurso financeiro de que dispúnhamos no projeto era insuficiente para a contratação do trabalho delas. Assim, paralelamente à busca de editoras, consultamos também produtoras gráficas que pudessem finalizar o material para uma publicação independente. Finalmente, encontramos a Nau Editora, que, embora nunca tivesse trabalhado com material em quadrinhos, tinha expertise com livros tanto de divulgação científica quanto de imagens, principalmente de fotografia. A parceria com a Nau foi possível também graças à abertura da editora em negociar conosco um orçamento coerente com os recursos de que dispúnhamos em um projeto financiado com recursos públicos.
O trabalho da editora incluiu as seguintes etapas: criação do projeto gráfico; revisões de texto e provas; tratamento das imagens para e-book e impressão; criação da capa, com base na ilustração previamente selecionada pela equipe; e registro do Padrão Internacional de Numeração de Livro (ISBN). O livro foi produzido em duas versões e dois ISBN: uma versão de e-book e com download gratuito no site da editora(e(e)Disponível em: https://naueditora.com.br/ebook_gratuito/180-graus-minhas-reviravoltas-com-o-cancer-de-mama/ ) e uma versão impressa de quinhentos exemplares comercializada também pela editora(f(f)https://naueditora.com.br/).
e) Divulgação e lançamento do livro
Para a divulgação do livro, contratamos uma equipe de comunicação para: produzir e distribuir um release para a imprensa e para assessorias de imprensa das instituições envolvidas no projeto; intermediar convites para entrevistas na imprensa; criar perfil do livro no Instagram (@180_camama(g(g)Disponível em: www.instagram.com/180_camama/ )) e Facebook (180_ca_mama(h(h)Disponível em: https://www.facebook.com/profile.php?id=100086498298086 )); alimentar os perfis durante as duas semanas prévias ao lançamento; e divulgar os eventos de lançamento do livro (figura 6).
Eventos de lançamento foram planejados estrategicamente para outubro de 2022, mês dedicado à visibilidade do câncer de mama. Naquele momento, privilegiamos a realização de eventos de lançamento em instituições que apoiaram o projeto: Faculdade de Medicina da USP, Departamento de Antropologia da UnB, Fiocruz Brasília e IFF/Fiocruz. Todos esses eventos foram oportunidades de realizar debates públicos sobre o livro, contribuindo para sua difusão e a divulgação das informações sobre câncer de mama.
Estes materiais de divulgação permitiram que a equipe fosse convidada a apresentar o livro em entrevistas em diversas mídias, tais como televisão (TV Globo(i(i)Disponível em: https://g1.globo.com/globonews/jornal-globonews/video/inca-estima-704- mil-novos-casos-de-cancer-ate-2025-11159231.ghtml ), SBT(j(j)Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=p5qSnYr-n_I ) e TV Alese(k(k)Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=23-rb8lS8I8 )), podcasts (Outras Mamas(l(l)Disponível em: https://podcasts.apple.com/br/podcast/outras-mamas/id1371450602 ) e Viva Maria, da Empresa Brasileira de Comunicações(m(m)Disponível em: https://radios.ebc.com.br/viva-maria/2022/10/conheca-historia-de-dulce-ferraz-lanca-um-livro-sobre-luta-contra-o-cancer-de )), rádio (Rádio da Empresa Brasileira de Comunicações(n(n)Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/cultura/audio/2022-10/hq-conta-historia-de-mulher-jovem-na-luta-contra-o-cancer-de-mama ) e Nacional Jovem, da Rádio Nacional(o(o)Disponível em: https://radios.ebc.com.br/nacional-jovem/2022/10/quadrinhos-conta-historia-de-uma-mulher-com-cancer-de-mama )), portais on-line (Coluna de Jairo Bouer no UOL(p(p)Disponível em: https://doutorjairo.uol.com.br/leia/livro-em-quadrinhos-aborda-de-forma-colorida-o-cancer-de- mama/?fbclid=IwAR0wHKk079HyyegLi90xKSX5Kgjk_gemDxz1pNJAUw o7qhrY6g6mK3Sycmk ) e Portal da UFRGS(q(q)Disponível em: https://www.ufrgs.br/ifch/index.php/br/graphic-novel-sobre-cancer-de-mama-tem-colaboracao-de-fabiene-gama )), revistas (Revista Radis/FIOCRUZ(r(r)Disponível em: https://radis.ensp.fiocruz.br/reportagem/cancer-de-mama/cuidado-em-quadrinhos ) e Eu Estudante do Correio Braziliense(s(s)Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/euestudante/cultura/2022/10/5045477-psicologa-que-enfrentou-cancer-de-mama-relata-experiencia-em-forma-de-hq.html )), jornais (Metrópoles(t(t)Disponível em: https://www.metropoles.com/saude/apos-tratar-cancer-de-mama-pesquisadora-cria-hq-sobre-o-assunto ); Agência Fiocruz(u(u)Disponível em: https://agencia.fiocruz.br/pesquisadora-da-fiocruz-lanca-livro-em-quadrinhos-sobre-cancer-de-mama )) e newsletter (AzMina(v(v)Disponível em: https://mautic.azmina.com.br/email/view/6352da0419651956659546 )).
O e-book foi disponibilizado para download gratuito no site da Nau Editora. Já a tiragem do livro impresso foi dividida, sendo parte destinada para venda, cujos recursos têm sido reinvestidos na divulgação do livro (no formato de pagamento de taxa de inscrição em prêmios literários e em passagens aéreas para a autora e as colaboradoras participarem de eventos acadêmicos e outros lançamentos), e parte para doações a associações comunitárias, universidades, instituições de saúde e bibliotecas.
Continuando na divulgação do material e na proposição de metodologias de uso em diferentes contextos, apresentamos dois trabalhos sobre o livro em eventos científicos internacionais on-line dedicados ao campo da Medicina Gráfica(x(x)Panel 5: Illness Narratives – “My twists and turns with breast cancer”. https://www.graphicmedicine.org/unconvention-panel-schedule-saturday-august-14/ ) e realizamos duas oficinas com o material, uma no 9o Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas em Saúde(w(w)Oficina 15 – “Usos de histórias em quadrinhos na Saúde Coletiva: Conversando sobre formação, educação em saúde e popularização da ciência”. https://cshs.org.br/cursos/index.php ), em Recife, e outra na V Reunião de Antropologia da Saúde(y(y)Minicurso 1 – “A HQ para falar de antropologia e de educação em saúde”. https://www.even3.com.br/vras/ ), em Cuiabá.
Principais resultados alcançados
Os principais resultados do projeto foram a inauguração da aplicação da Medicina Gráfica no campo da Saúde Coletiva brasileira e a reflexão sobre o potencial da literatura, em geral, e dos quadrinhos, em particular, para produzir novas compreensões e visões sobre o adoecimento. O material explicita como os quadrinhos produzem uma forma de interação que favorece a imersão na história e a empatia com a história vivida por seus personagens, permitindo conhecer como as pessoas vivem as doenças, inclusive em suas dimensões mais dolorosas e nas maneiras como afetam o cotidiano e as relações. Os potenciais benefícios dessa linguagem para o campo da saúde são bem documentados na produção anglófona sobre Medicina Gráfica e fazem com que o material que produzimos seja particularmente salutar para pessoas que estão atravessando o câncer de mama, pessoas próximas a elas e profissionais de saúde implicados no cuidado delas1717 Williams ICM. Graphic medicine: comics as medical narrative. Med Humanit. 2012; 38(1):21-7.,2929 Tschaepe M. Representations of patients’ experiences of autonomy in graphic medicine. AMA J Ethics. 2018; 20(2):122-9.,3030 Glazer S. Graphic medicine: comics turn a critical eye on health care. Hastings Cent Rep. 2015; 45(3):15-9.. Além disso, a escolha de dois formatos – em versão impressa e em formato de e-book – também contribui para que o livro alcance seu objetivo de popularizar informações sobre o câncer de mama.
Inovando em relação aos formatos até então utilizados na divulgação de informações sobre esta doença, majoritariamente centrados em cartilhas informativas, o livro contribui especialmente para favorecer a reflexão sobre a necessidade de abordagens de saúde orientadas pela decisão livre e informada das mulheres em relação aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos do câncer de mama, o que é prioritário no contexto de controvérsias e, sobretudo, de riscos de sobrediagnóstico e sobretratamento77 Welch HG, Black WC. Overdiagnosis in cancer. J National Cancer Institute. 2010; 102(9):605-13.. Nesse sentido, a aplicação do referencial teórico do cuidado é também uma importante contribuição do livro para o campo da Saúde Coletiva, na medida em que propõe o diálogo acerca dos benefícios e dos riscos envolvidos na aplicação de cada tecnologia e de seus significados para cada paciente; e valoriza os profissionais de saúde não como o “administradores de tecnologias”, mas como sujeitos que agem de maneira crítica e reflexiva nas interações intersubjetivas1515 Schraiber LB. Quando o "êxito técnico" se recobre de "sucesso prático": o sujeito e os valores no agir profissional em saúde. Cienc Saude Colet. 2011; 16(7):3041-2..
Outro resultado muito relevante é o potencial de aplicação pedagógica do material. Contribuir para a formação de recursos humanos no campo da saúde foi um dos principais objetivos deste projeto e guiou, portanto, a concepção tanto da história em quadrinhos quanto dos textos paradidáticos que completam o livro. A graphic novel tem sido usada em sala de aula, em repositórios bibliográficos e como exercício de escrita e resenha. Além das atividade em congressos científicos previamente relatadas, o material já começou a ser aplicado em atividades de formação universitária, entre elas: curso de graduação em Antropologia e Enfermagem e de pós-graduação em Antropologia Social na UFRGS, com Fabiene Gama; cursos de graduação em Antropologia e em Fisioterapia e de pós-graduação em Antropologia na UFPel, com Claudia Turra; curso de graduação em Ciências Sociais e Saúde Coletiva, com Soraya Fleischer; aula aberta na disciplina de Antropologia da Saúde da Faculdade de Saúde Pública da USP, coordenada por José Miguel Olivar. Além disso, o material será incorporado em atividades de formação realizadas pela Fiocruz Brasília, sob coordenação de Dulce Ferraz.
O e-book também está disponível no Portal de Boas Práticas do Instituto Fernandes Figueira, repositório acessado por profissionais que atuam no campo da Saúde das mulheres em todo o Brasil(z(z)Disponível em: https://portaldeboaspraticas.iff.fiocruz.br ).
Finalmente, o livro teve uma resenha publicada na revista Cadernos de Saúde Pública pela pesquisadora da Antropologia da UERJ Waleska Aureliano3131 Aureliano WA. Narrativas de adoecimento e alternativas textuais: o câncer de mama em quadrinhos. Cad Saude Publica. 2023; 39(6):e00049323. e foi resenhado por três pesquisadoras da Antropologia – uma da USP e duas da UnB – e está em processo de avaliação por periódicos de Antropologia e de Saúde Coletiva.
Lições aprendidas e próximos passos
A realização deste projeto nos permitiu uma série de aprendizados importantes, que certamente colaborarão para o desenvolvimento de trabalhos futuros de pesquisa, ensino e extensão. A principal expertise que adquirimos foi trabalhar colaborativamente com artistas visuais, buscando a complementaridade das linguagens científica e artística e das linguagens textual e imagética para formular maneiras compreensíveis e atraentes de se comunicar sobre saúde.
Outro aprendizado importante diz respeito aos limites existentes no mercado editorial brasileiro para a produção de materiais que aliem, a um só tempo, conteúdo científico e abordagens visuais. Na nossa busca por editoras, as diversas recusas que recebemos e, principalmente, as alegações de editoras acadêmicas de que só publicam material científico deixaram clara a necessidade de um amplo debate sobre o papel dessas organizações na popularização do conhecimento científico no Brasil. Difundir o conhecimento produzido pela pesquisa científica para o público não acadêmico é parte fundamental do trabalho de pesquisadoras e das universidades. Notamos que, em países como os Estados Unidos e o Canadá, as editoras acadêmicas têm tido papel central na consolidação do campo da Medicina Gráfica, hoje já bastante vigoroso nesses países.
Os próximos passos visam, sobretudo, dar continuidade ao trabalho de divulgação do livro, buscando fazê-lo chegar aos diferentes públicos que podem se beneficiar dele. Isso significa investir em três públicos principais: mulheres enfrentando processos de investigação e tratamento do câncer de mama e suas redes de apoio; profissionais de saúde que atuam no cuidado a essas mulheres e na gestão dos serviços de saúde; e estudantes em processo de formação para atuar no campo da saúde.
No diálogo com as esferas de gestão, buscaremos também participar do processo de aprimoramento de políticas públicas alinhadas às evidências científicas, como já tem sido feito no Brasil33 Migowski A, Stein AT, Ferreira CBT, Ferreira DMTP, Nadanovsky P. Diretrizes para detecção precoce do câncer de mama no Brasil: I - Métodos de elaboração. Cad Saude Publica. 2018; 34(6):e00116317., focando temas que debatemos no livro e que consideramos que precisam ser atualizados nas diretrizes nacionais (por exemplo, a ênfase na decisão informada sobre a mamografia, as possibilidades de uso de testes moleculares nos casos em estágio inicial e nas especificidades da atenção a mulheres jovens que enfrentam o câncer de mama). Como destacamos na conclusão do livro, é fundamental que o cuidado a essas mulheres compreenda não apenas ações no campo da saúde, mas também contemple o fortalecimento da rede intersetorial de cuidado, que envolve desde pesquisas sobre o tema até a proteção trabalhista durante o tratamento e o apoio comunitário, por exemplo.
Finalmente, desejamos continuar refletindo sobre o uso dos quadrinhos em processos formativos. A literatura sobre Medicina Gráfica indica justamente a necessidade de avançar na análise dos efeitos que os materiais podem ter em grupos específicos e de compará-los a outras abordagens científicas e artísticas1616 Hurwitz B, Charon R. A narrative future for health care. Lancet. 2013; 381(9881):1886-7.,2626 Ferraz D. Por que usar quadrinhos para falar sobre câncer de mama?. In: Ferraz D. 180 graus: minhas reviravoltas com o câncer de mama. Rio de Janeiro: Nau Editora; 2022. p. 295-300.. No caso de formação de profissionais que atuam na saúde, seria interessante, por exemplo, analisar se e como o material que produzimos pode colaborar para habilidades específicas também indicadas na literatura, como formulação da anamnese, entendimento da temporalidade narrativa da experiência, raciocínio diagnóstico pautado na narrativa das pacientes e discussão ética sobre sua autonomia e consentimento1414 Green MJ, Myers KR. Graphic medicine: use of comics in medical education and patient care. BMJ. 2010; 340(3/2):c863-3.,1717 Williams ICM. Graphic medicine: comics as medical narrative. Med Humanit. 2012; 38(1):21-7.,2929 Tschaepe M. Representations of patients’ experiences of autonomy in graphic medicine. AMA J Ethics. 2018; 20(2):122-9.,3030 Glazer S. Graphic medicine: comics turn a critical eye on health care. Hastings Cent Rep. 2015; 45(3):15-9.,3232 Vaccarella M. Exploring graphic pathographies in the medical humanities. Med Humanit. 2013; 39(1):70-1.
33 Maatman T, Green MJ, Noe MN. Graphic medicine in graduate medical education. J Grad Med Educ. 2022; 14(1):113-4.-3434 Ronan LK, Czerwiec MK. A novel graphic medicine curriculum for resident physicians: boosting empathy and communication through comics. J Med Humanit. 2020; 41(4):573-8..
Em síntese, pretendemos continuar investindo no debate sobre a Medicina Gráfica e o método autoetnográfico no campo da Saúde Coletiva brasileira e, principalmente, nas formas de popularizar o conhecimento científico sobre o câncer de mama e outros temas de relevância para o campo.
- (d)
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- (g)Disponível em: www.instagram.com/180_camama/
- (h)Disponível em: https://www.facebook.com/profile.php?id=100086498298086
- (i)
- (j)Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=p5qSnYr-n_I
- (k)Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=23-rb8lS8I8
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- (x)Panel 5: Illness Narratives – “My twists and turns with breast cancer”. https://www.graphicmedicine.org/unconvention-panel-schedule-saturday-august-14/
- (w)Oficina 15 – “Usos de histórias em quadrinhos na Saúde Coletiva: Conversando sobre formação, educação em saúde e popularização da ciência”. https://cshs.org.br/cursos/index.php
- (y)Minicurso 1 – “A HQ para falar de antropologia e de educação em saúde”. https://www.even3.com.br/vras/
- (z)Disponível em: https://portaldeboaspraticas.iff.fiocruz.br
Agradecimentos
Agradecemos à Fiocruz Brasília e ao CNPq, pelo financiamento do projeto; às nossas instituições (Fiocruz Brasília, UnB e UFRGS), pelo apoio institucional ao desenvolvimento deste trabalho; à Camilla Siren, pela parceria e ilustração do livro, às e aos especialistas que contribuíram na revisão do conteúdo técnico do roteiro; e às colegas da Fiocruz Brasília (Francini Lube Guizardi, Luiza Acioli e Fernanda Severo) e do Instituto Fernandes Figueira (Maria Gomes, Ana Lucia Tiziano e Viviane Esteves) que colaboraram no desenvolvimento do projeto.
- Ferraz D, Fleischer S, Gama F. Um graphic novel sobre o câncer de mama: instrumento de educação em saúde e popularização da ciência. Interface (Botucatu). 2024; 28: e240017 https://doi.org/10.1590/interface.240017
Financiamento
O projeto que deu origem ao livro “180 graus: minhas reviravoltas com o câncer de mama” foi financiado por meio de edital conjunto do CNPq e da Fiocruz Brasília (processo n. 440192/2019-6).
Referências
- 1Ferraz D. 180 graus: minhas reviravoltas com o câncer de mama. Rio de Janeiro: Nau Editora; 2022.
- 2Rahool R, Haider G, Shahid A, Shaikh MR, Memon P, Pawan B, et al. Medical and psychosocial challenges associated with breast cancer survivorship. Cureus. 2021; 13(2):e13211.
- 3Migowski A, Stein AT, Ferreira CBT, Ferreira DMTP, Nadanovsky P. Diretrizes para detecção precoce do câncer de mama no Brasil: I - Métodos de elaboração. Cad Saude Publica. 2018; 34(6):e00116317.
- 4Diniz CSG, Pellini ACG, Ribeiro AG, Tedardi MV, Miranda MJ, Touso MM, et al. Breast cancer mortality and associated factors in São Paulo State, Brazil: an ecological analysis. BMJ Open. 2017; 7(8):e016395.
- 5Welch HG, Prorok PC, O’Malley AJ, Kramer BS. Breast-cancer tumor size, overdiagnosis, and mammography screening effectiveness. New Eng J Med. 2016; 375(15):1438-47.
- 6Migowski A. Riscos e benefícios do rastreamento do câncer de mama no Brasil. Cienc Saude Colet. 2016; 21(3):989-9.
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- 8Sparano JA, Gray RJ, Makower DF, Pritchard KI, Albain KS, Hayes DF, et al. Prospective validation of a 21-Gene expression assay in breast cancer. New Eng J Med. 2015; 373(21):2005-14.
- 9Ayres JRCM. Uma concepção hermenêutica de saúde. Physis. 2007; 17(1):43-62.
- 10Ayres JRCM. Cuidado e reconstrução das práticas de Saúde. Interface (Botucatu). 2004; 8(14):73-92. doi: 10.1590/S1414-32832004000100005.
» https://doi.org/10.1590/S1414-32832004000100005 - 11Ellis C, Adams TE, Bochner AP. Autoetnografía: un panorama. Astrolabio. 2015; (14):249-73.
- 12Gama F. A autoetnografia como método criativo: experimentações com a esclerose múltipla. An Antropol. 2020; 45(2):188-208.
- 13Czerwiec MK, Williams I, Squier SM, Green MJ, Myers KR, Scott TS. Graphic medicine manifesto. Pennsylvania: The Pennsylvania State University Press; 2015.
- 14Green MJ, Myers KR. Graphic medicine: use of comics in medical education and patient care. BMJ. 2010; 340(3/2):c863-3.
- 15Schraiber LB. Quando o "êxito técnico" se recobre de "sucesso prático": o sujeito e os valores no agir profissional em saúde. Cienc Saude Colet. 2011; 16(7):3041-2.
- 16Hurwitz B, Charon R. A narrative future for health care. Lancet. 2013; 381(9881):1886-7.
- 17Williams ICM. Graphic medicine: comics as medical narrative. Med Humanit. 2012; 38(1):21-7.
- 18Raimondi GA. Corpos que (não) importam na prática médica: uma autoetnografia performática sobre o corpo gay na escola médica [tese]. Campinas: Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas; 2019.
- 19Mello AG. Olhar, (não) ouvir, escrever: uma autoetnografia ciborgue [tese]. Florianópolis: Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina; 2019.
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- 22Porcellino J. The hospital suite. Montreal: Drawn and Quarterly; 2021.
- 23Forney E. Parafusos. São Paulo: WWF Martins Fontes; 2015.
- 24Peeters F. Pílulas azuis. Belo Horizonte: Nemo Editora; 2015.
- 25Fleischer S, Ferraz D, Gama F, Siren C. Como este livro foi produzido?. In: Ferraz D. 180 graus: minhas reviravoltas com o câncer de mama. Rio de Janeiro: Nau Editora; 2022. p. 281-94.
- 26Ferraz D. Por que usar quadrinhos para falar sobre câncer de mama?. In: Ferraz D. 180 graus: minhas reviravoltas com o câncer de mama. Rio de Janeiro: Nau Editora; 2022. p. 295-300.
- 27Gama F. A potência da autoetnografia para a área da saúde. In: Ferraz D. 180 graus: minhas reviravoltas com o câncer de mama. Rio de Janeiro: Nau Editora; 2022. p. 301-6.
- 28Fleischer S. Como este livro pode ser aproveitado? In: Ferraz D. 180 graus: minhas reviravoltas com o câncer de mama. Rio de Janeiro: Nau Editora; 2022. p. 307-12.
- 29Tschaepe M. Representations of patients’ experiences of autonomy in graphic medicine. AMA J Ethics. 2018; 20(2):122-9.
- 30Glazer S. Graphic medicine: comics turn a critical eye on health care. Hastings Cent Rep. 2015; 45(3):15-9.
- 31Aureliano WA. Narrativas de adoecimento e alternativas textuais: o câncer de mama em quadrinhos. Cad Saude Publica. 2023; 39(6):e00049323.
- 32Vaccarella M. Exploring graphic pathographies in the medical humanities. Med Humanit. 2013; 39(1):70-1.
- 33Maatman T, Green MJ, Noe MN. Graphic medicine in graduate medical education. J Grad Med Educ. 2022; 14(1):113-4.
- 34Ronan LK, Czerwiec MK. A novel graphic medicine curriculum for resident physicians: boosting empathy and communication through comics. J Med Humanit. 2020; 41(4):573-8.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
15 Jul 2024 - Data do Fascículo
2024
Histórico
- Recebido
12 Jan 2024 - Aceito
28 Mar 2024