Pós-modernidade: elementos para uma compreensão - entrevista com Michel Maffesoli

Postmodernity: elements for an understanding - an interview with Michel Maffesoli

Postmodernidad: elementos para una comprensión - una entrevista con Michel Maffesoli

Maria Lúcia Magalhães Bosi Sobre o autor

Palavras-chave
Pós-modernidade; Epistemologia; Sociologia

Keywords
Postmodernity; Epistemology; Sociology

Palabras clave
Posmodernidad; Epistemología; Sociología


Michel Maffesoli

Esta entrevista representa a síntese de encontros e diálogos, realizados de junho a outubro de 2023, com Michel Maffesoli, sociólogo e professor emérito da Université Sorbonne, durante um estágio pós-doutoral realizado pela entrevistadora em Paris, França, sob sua supervisão. Baseia-se no conjunto da sua obra, notadamente, no livro “Être Postmoderne”11 Maffesoli M. Être postmoderne. Paris: Les Éditions du Cerf; 2021., ainda não traduzido no Brasil. Discutem-se elementos centrais para a compreensão do que é a pós-modernidade como época e sua épistémè. A entrevista focaliza interfaces desses elementos com o campo das políticas; o papel das redes sociais e do universo digital; e o diálogo com teorias críticas e outras análises voltadas à pós-modernidade. Para Maffesoli, vivemos, neste momento, o que ele considera um período, ou seja, um espaço temporal que sinaliza o fim da modernidade e o início de uma nova época que, provisoriamente, ele nomeia como pós-modernidade.

Maria Lúcia Bosi: No seu livro “Être Postmoderne”11 Maffesoli M. Être postmoderne. Paris: Les Éditions du Cerf; 2021., o senhor afirma que há uma mutação em curso e emprega a expressão “um novo renascimento” e afirma, também, que as crises anunciam essa mutação, que é a própria pós-modernidade, sendo as crises um sinal da pós-modernidade. O senhor poderia descrever os traços mais essenciais da sua concepção de pós-modernidade? E falar um pouco de cada um deles?

Michel Maffesoli: Minha hipótese é que a cada quatro séculos há uma mudança – houve a idade média, o renascimento, muitos antropólogos, historiadores e filósofos consideram assim. E pode-se ver como a modernidade começa no século XVII com Descartes. A estrutura cartesiana que se constrói no século XVIII se sistematiza ao longo do XIX nos grandes sistemas de pensamento sobre o social. Filósofos, a exemplo de Michel Foucault, demonstraram como isso se estruturou no século XIX. Mais tarde, em meados do século XX, dá-se o fim dessa modernidade. É sempre assim: há o momento que é fundador, o momento do apogeu e depois a decadência. Observou-se ao longo do século XX, sobretudo depois dos movimentos de maio de 1968, na Europa e nos EUA, que já estava lá o sinal do fim de alguma coisa – da modernidade. Essa modernidade repousava em um tripé preciso: o individualismo, o racionalismo e o progressismo. Esses são os três princípios sobre os quais foram elaboradas todas as grandes instituições, tanto na Europa quanto em muitas outras partes do mundo. Há uma contaminação, eu poderia dizer dessa forma. Minha hipótese é que, a partir dos anos 1960, emerge uma crise em relação justamente a esse tripé, a esses valores e às instituições. As revoltas juvenis não fazem mais do que traduzir essa crise. Portanto, há uma época que se fecha. Em etimologia, a palavra “época”, em grego, significa “parêntese”. Um parêntese se abre no começo do século XVII e se fecha na metade do século XX. Vou falar agora da pós-modernidade que então se inicia. Entre as épocas, há o que eu denomino períodos. Os períodos duram algumas décadas nas quais se observa que os valores da idade moderna já não funcionam mais e se busca encontrar as palavras para expressar o que está em nascimento e é por isso que nesses períodos há crises. Crise em grego significa julgamento, que é feito sobre aquilo que está em nascimento e sobre aquilo que está cessando. No que concerne à pós-modernidade, ela está nascendo. É difícil construir sistemas de pensamento. Não se pode construir sistemas, senão progressivamente. Quando eu digo sistemas, refiro-me a sistemas teóricos. Só se pode, atualmente, indicar alguns indícios, apontando o que está em nascimento, e para mim o tripé que está emergindo é precisamente o contrário do tripé moderno. Não é mais o individualismo, é o “nous”, um conceito que eu desenvolvo bastante no meu livro “O tempo das tribos”22 Maffesoli M. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. 4a ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2010.. Não é mais o racionalismo, é o emocional – a paixão, as emoções, os afetos – que se tornam cada vez mais importantes, e não é mais o progressismo, mas, ao contrário, o retorno do presente. Eis um esquema um pouco caricatural, mas que sintetiza a transformação em curso. Cada vez que há uma época, há sempre um tripé a partir do qual se constrói a vida social.

Maria Lúcia Bosi: Lendo o seu livro, observei que o senhor utiliza o termo “pós-modernidade” com cautela. E o senhor afirma que pós-modernidade não é uma antimodernidade. Mas, ao mesmo tempo, o senhor assinala uma ruptura entre essas duas épocas e, se eu bem compreendi, por esse motivo o senhor não utiliza expressões empregadas por outros autores, como “hipermodernidade” ou “modernidade tardia”. Como estabelecer uma relação mais precisa entre modernidade e pós-modernidade?

Michel Maffesoli: Você tem razão de fazer essa pergunta. Eu lembro que a palavra “modernidade” aparece tardiamente, no século XIX, e o poeta Baudelaire é quem utiliza esse termo pela primeira vez, porque naquele momento se falava de pós-medievalismo, o que acontecia após a idade média. Por que estou falando isso? Porque é sempre tardiamente que se consegue nomear o que se vive. Eu diria que só poderemos nomear o período atual dentro de cem anos. Acho que será nesse tempo que nós chegaremos a encontrar as palavras. Essa é a minha hipótese. Primeiramente, eu não diria que a pós-modernidade é antimoderna e, em segundo lugar, eu não concordo com aqueles que dizem que vivemos uma modernidade tardia ou uma hipermodernidade. Quem utiliza essas expressões resta obnubilado pela modernidade, por seus valores. As expressões “hipermodernidade” e “modernidade tardia” consideram que os valores modernos – ou seja, o individualismo, o racionalismo e o progressismo – continuam a existir. A minha hipótese, em particular, assim como as novas gerações, que, para mim, são importantes porque são as que irão constituir as sociedades de amanhã, essas jovens gerações não se reconhecem dentro desses valores de individualismo, racionalismo e progressismo. Então, há outros valores que vêm nascendo que é preciso considerar. Vou te dar dois exemplos: o que era importante para Marx era o valor trabalho – essa é uma expressão de Karl Marx, mas, atualmente, esse não é mais o valor essencial e é por isso que eu digo que outros valores estão nascendo e há uma avidez por criação, por criatividade. Eu já fiz muitas conferências para empresários que reconhecem que com a palavra “trabalho” eles não conseguem mobilizar as energias dos jovens, mas quando falam em “criatividade” as pessoas ficam mais motivadas a trabalhar. É isso que eu quero dizer: um valor cessa e outro nasce. É por isso que eu digo que não é antimoderno, é outra coisa. O segundo exemplo que eu dou e que foi a grande mola propulsora da modernidade é o utilitarismo, que foi a grande ideia moderna. O desenvolvimento do capitalismo repousa sobre a ideia de utilitarismo. Jean Baudrillard demonstra isso muito bem quando discute a sociedade de consumo. É interessante observar que hoje em dia essa ideia não é tão central; estou falando de tendência, certo? O valor trabalho continua, o utilitarismo continua, na sociedade oficial. Mas na sociedade oficiosa, essa das novas gerações, que é a que me interessa, pensa-se em fazer da vida uma obra de arte, no qualitativo da existência, divertir-se, brincar, valorizar os aspectos lúdicos, a dimensão festiva, aí está o deslizamento que nós vivemos neste momento. Em lugar do valor trabalho, a criatividade; e no lugar do utilitarismo, o qualitativo da existência.

Maria Lúcia Bosi: Podemos compreender isso como uma ruptura?

Michel Maffesoli: Para mim, a palavra não é “ruptura” porque a palavra “ruptura” ainda é muito ligada ao esquema moderno, dominado por uma concepção muito marxista do mundo, ao propor uma ruptura entre o sistema capitalista e o socialista, essa velha ideia da ruptura. A palavra que eu proponho e uso bastante no meu livro é a palavra “saturação” – muito importante essa palavra –, que não é um conceito propriamente teórico, é uma palavra simples. Pra citar a fonte, eu adoto de um autor, um sociólogo da cultura americano, que se chama Pitirim Sorokin, muito pouco conhecido na França, não sei se é conhecido no Brasil. Ele mostra que a cultura não pode ser racionalizada, em certo momento isso não funciona mais. E a imagem que ele dá é a da saturação. A saturação em química – eu acho esta metáfora interessante – é quando diversas moléculas que compõem um corpo não podem mais ficar juntas. Porém, e o que é mais interessante: essas mesmas moléculas vão entrar em uma outra composição. Portanto, não é uma ruptura: é uma recomposição. Eu posso dar vários exemplos: na Europa, por exemplo, no fim do Império Romano, os templos foram destruídos e foi com as pedras desses mesmos templos que as igrejas foram construídas. Essa é a ideia da recomposição. E há vários outros exemplos na história do que é destruído e entra em uma nova composição. Uma construção a partir do que cessa; a partir do que foi desconstruído é que vai se dar uma nova construção. Um exemplo é quando eu digo que a partir da desconstrução do trabalho se dá a construção da abstração.

Maria Lúcia Bosi: É isso que o senhor nomeia como enraizamento criativo?

Michel Maffesoli: Não é propriamente isso. O enraizamento criativo é uma outra questão. A grande mitologia moderna foi o progressismo “ordem e progresso”. No meu livro intitulado “A violência totalitária”33 Maffesoli M. A violência totalitária. Lisboa: Instituto Piaget; 2001., publicado em 1978 (não sei se está traduzido para o português), eu faço uma crítica ao mito do progresso, que foi o grande mito moderno, o grande mito do século XIX. O progressismo é a grande ideologia da modernidade. Augusto Comte reduziu a duas palavras esse mito ao dizer “ordem e progresso”, uma redução genial porque demonstra que ele compreendeu muito bem a modernidade. O progresso é uma negação dos valores tradicionais, uma vez que se vai ultrapassá-los, vai-se progredir. É a ideia da sociedade perfeita no futuro, a ideia moderna de futuro. O que me parece interessante observar nesse momento, na atualidade, é o retorno desses valores tradicionais nas novas gerações, por exemplo, o retorno do sagrado. O retorno de certas formas de religiosidade, o retorno da ligação com a natureza, da ecosofia; é isso que eu chamo de enraizamento. Quero dizer, retorno às raízes. O progressismo é uma negação das raízes. Há três dias, eu estava em uma conferência em uma outra cidade e lá estavam vários jovens de vinte, 25, trinta anos e eles me diziam que estiveram na procissão de Chartres, uma peregrinação muito tradicional que ocorreu na semana passada. Nela, havia 16.000 jovens que partiram de Paris até Chartres; são 100 km a pé. A peregrinação de Chartres é uma velha tradição religiosa, mas que havia sido abandonada e, após uma década, é retomada.

Maria Lúcia Bosi: O senhor utiliza com muita frequência a figura de retórica do oxímoro, tanto em títulos de livros seus quanto para fazer referência à pós-modernidade. Essa figura corresponderia a uma dialética sem síntese, na qual os contrários coexistem sem resolução?

Michel Maffesoli: Nossa maneira moderna de pensar se vincula à clássica dialética tese, antítese e síntese, ou seja, o modelo hegeliano. Isso significa que chegaremos a uma síntese e para tanto teremos que ultrapassar a antítese. O grande conceito de Hegel é zu übertreffen, que significa ultrapassar. Ultrapassamos a antítese e alcançamos a síntese. Eu diria que o grande conceito moderno é esse, ou seja, iremos ultrapassar – “vamos ultrapassar a doença”, “vamos ultrapassar a morte”, “vamos ultrapassar a crise” – isso é o trans-humanismo, um ponto de desdobramento do progressismo. E a figura que eu encontrei para representar o nosso momento é o oxímoro. É a manutenção dos dois opostos. Em latim se diz coincidentia oppositorum. Oxímoro é a figura da pós-modernidade. Uma imagem que eu cito é a do mosaico: cada peça do mosaico guarda a sua cor, a sua forma, mas funciona no conjunto; outra imagem que eu dou é a das grutas das catedrais góticas – as grutas repousam sobre a tensão das pedras. É a tensão que mantém as grutas das catedrais, e não uma ultrapassagem. Então, não se trata de ultrapassar, mas sim de se dar conta de criar uma conjunção de diversos elementos. É perceber a coincidência das coisas opostas. Aqui eu faço referência a um sociólogo que é Durand, de quem fui aluno, e dele tomo de empréstimo a expressão “lógica contraditorial” que, diferentemente da lógica dialética, não afirma que se vai ultrapassar a antítese, e sim manter os contrários. A lógica contraditorial é manter em tensão os contrários. Algumas vezes eu também emprego a expressão “harmonia conflituosa”. Também se constata essa ideia em grande parte da obra de Edgar Morin, quando ele analisa a complexidade. É um grande conceito a complexidade. A complexidade é isso: não tentar reduzir, mas aceitar a dimensão complexa. Então, a lógica contraditorial de Durand e a complexidade em Morin são ideias que se correspondem. E a figura retórica que traduz esse modelo é o oximoro. O oximoro é a maneira de compreender esta sociedade complexa. Augusto Comte tem uma definição muito simples do século XIX, que é o apogeu da modernidade, que é “a redução a um”, ou seja, reduzir alteridade, diversidade, reduzir os contrários. Isso está presente nas ideias modernas de indivíduo, de Estado-nação, dos grandes sistemas teóricos. Isso é o contrário do oxímoro. O que está em jogo neste momento é a complexidade, que eu prefiro dizer em latim: coincidentia oppositorum; a coincidência das coisas opostas.

Maria Lúcia Bosi: Eu penso que essas ideias têm muitas consequências se nós pensarmos na formulação de políticas porque, pensando especificamente no Brasil, as políticas são muito homogeneizadas, em um país muito diverso, e se considera nas planificações, ou melhor, no planejamento em saúde, por exemplo, essa redução a um, que não funciona mais.

Michel Maffesoli: Sim, não funciona mais. Mas, se pensarmos no Brasil em relação a nós… na França o que se vê é essa grande ideia moderna, o que chamamos jacobinismo. É a ideia do poder centralizado, o presidente, os tecnocratas. A vantagem do Brasil é que ele tem regiões, é uma federação, e então pode acontecer uma descentralização que não existe aqui na França. Esse nosso modelo vem da Revolução Francesa e representa a centralização do poder, a verticalização.

Maria Lúcia Bosi: Eu penso que essa concepção que o senhor defende nos seus livros sobre a convivência dos contrários em tensão poderia ter muitas consequências ou desdobramentos na formulação de políticas. O que o senhor pensa a esse respeito?

Michel Maffesoli: Sim. Acho que sim. Eu não posso falar sobre o Brasil porque, apesar de gostar muito e já ter ido ao Brasil várias vezes, eu não o conheço suficientemente. Mas posso falar da França. Aqui o que vigora é, como eu acabo de mencionar, o jacobinismo, a verticalidade, o que vem de cima, a tecnocracia. Podemos dizer que é esse o fundamento da política aqui. E a gente pode ver claramente que esse modelo não funciona, essa imposição vertical; podemos ver isso pelas crises, pelas várias manifestações que vêm ocorrendo. Um pequeno exemplo que eu posso te dar são as últimas eleições presidenciais e para deputados, nas quais houve 60% de abstenção da população em geral, sendo 84% de abstenção da população jovem. Isso mostra muito claramente que a estrutura vertical da política já não funciona mais no nosso país. A desconfiança por parte dos intelectuais, dos jornalistas e de outros grupos é imensa e é por isso que a gente vê todas essas manifestações, os movimentos dos grupos mais jovens, que são expressões, podemos dizer, de desamor pela política.

Maria Lúcia Bosi: Eu li em várias outras obras de outros autores uma ênfase no individualismo como um traço da contemporaneidade. Isso é quase um clichê. Mas o senhor fala de um ideal comunitário. Como isso se exprime? O senhor poderia citar fenômenos que ilustram essa sua posição? Porque antes de eu ler o seu livro eu tinha uma ideia muito forte de que nós somos muito individualistas e é mesmo difícil para mim, considerando o contexto brasileiro, de enxergar a presença desse ideal comunitário, pelo menos, no Brasil.

Michel Maffesoli: Sim, é preciso compreender que, para mim, o individualismo expressa a modernidade. O “eu penso, logo existo “, a célebre frase de Descartes, inaugura o individualismo moderno. Antes, na idade média, a ideia era de comunidade. Quando Descartes diz cogito ergo sum, esse é o fundamento da revolução moderna. Minha hipótese – mas, veja, é uma hipótese – é que considero que muitos intelectuais (mas são muitos mesmo) continuam a falar no individualismo contemporâneo. Mas eu acho que é uma falsa ideia. Até pode ser válido para pessoas da minha geração, os velhos, a geração que viveu 68 aqui na França, mas os membros das novas gerações estão o tempo todo ligados entre si. É isso que eu chamo ideal comunitário, que, com ajuda da internet, forma as várias tribos: sexuais, musicais, esportivas, religiosas, etc. As redes sociais, os fóruns de discussão e blogs são as novas tribos. Tem um colega de quem gosto muito que trabalha em São Paulo, na USP [Universidade de São Paulo], que escreveu muito sobre net ativismo e que demonstra que graças às redes sociais se dá esse fenômeno. Ele retoma a minha ideia de tribalismo, como nomeio no meu livro “O tempo das tribos”22 Maffesoli M. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. 4a ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2010.. Oficialmente, continuamos falando em individualismo, mas oficiosamente há sempre o desejo de estar juntos, sobretudo com ajuda da internet. Uma das minhas hipóteses – e, por vezes, eu digo que o Brasil é o laboratório da pós-modernidade – é que as pessoas estão sempre juntas. Aqui, em Paris, os brasileiros estão sempre juntos. Se você olha os meus alunos brasileiros eles estão sempre juntos, comem juntos, fazem festas, trabalham juntos, então para mim a palavra é “avec” [“com”, em francês]. É o fundamento desse ideal comunitário. A sociedade oficial se refere sempre ao individualismo, mas você sai nas ruas e vê as pessoas todo tempo se comunicando, todo tempo se relacionando com o outro; é isso que eu chamo de tribo, de comunidade. Portanto, não se vê esse individualismo; as pessoas estão sempre em relação. No plano filosófico, eu diria que há duas palavras importantes: “indivíduo”, que, em latim, significa “indivisível”. Esse indivíduo tem uma identidade – sexual, profissional, ideológica. Isso é a modernidade. Uma segunda palavra que agora ganha relevo é “pessoa”. Então não é mais uma identidade, mas identificações: sexuais, profissionais, religiosas, políticas. Você compreende a diferença? Indivíduo é um, a pessoa é plural. Rimbaud, um poeta francês importante, dizia “je est un autre”. Em lugar de uma identidade, as identificações; por isso as pessoas se sentem atraídas por diversas tribos, ao mesmo tempo. Inclusive, podem variar de tribos: hoje pertence a uma, amanhã a outra.

Maria Lúcia Bosi: O senhor atribui a emergência da pós-modernidade à internet?

Michel Maffesoli: Sim, observe uma definição que eu uso em todas as minhas conferências sobre esse tema: a sinergia entre o arcaico e o desenvolvimento da tecnologia. Isso entra na minha definição de pós-modernidade. Sinergia significa, na etimologia grega, a multiplicação dos efeitos; não se trata, portanto, de adição, mas de multiplicação dos efeitos. “Arcaico” deriva de arché, em grego, significando o que é fundamental, não o que ficou no passado. Então, há uma sinergia entre o desenvolvimento tecnológico e os valores do passado. Em outras palavras, observa-se o retorno da tradição; isso é o arcaico: as religiões, o sagrado, o espiritual que se encontram nas redes sociais. Generosidade, solidariedade e troca são palavras arcaicas, não palavras capitalistas. São palavras pré-capitalistas, quando havia convivência em suas diversas modulações. Então é assim que eu vejo a internet na definição do que é a pós-modernidade.

Maria Lúcia Bosi: Recentemente, Manuel Castells declarou, em uma entrevista bastante divulgada no Brasil, que nós vivemos em uma época sem futuro. Mas eu compreendo a leitura que o senhor faz, na sua obra em sociologia, como uma posição otimista em relação ao mundo. Se eu tiver razão nesta afirmação, de onde vem esse otimismo?

Michel Maffesoli Se você me permitir, cito um fato de uma maneira um tanto divertida, já que você colocou esta questão. Eu fui o presidente da banca de defesa de tese de Castells. Na verdade, o orientador não fui eu, mas Alain Touraine, mas eu fui o presidente da banca na Sorbonne. Eu considerei que a tese que ele defendeu não me interessava porque a tese dele era totalmente marxista – isso era em 1980, 1981, se bem me recordo. Claro que, como marxista, ele pode dizer “não há futuro” porque sua grande ideologia não funcionou, porque essa visão da história corresponde à busca de uma sociedade perfeita, chegar ao paraíso terrestre por meio da luta de classes, da ditadura do proletariado, e então chegamos a uma sociedade perfeita, um dia. Então, como isso não funcionou, os marxistas mais ortodoxos consideram que não há futuro.

Por outro lado, a palavra “otimista” não corresponde à minha posição, porque é uma categoria moral, e não é a minha posição. Quando me dizem “você é otimista”, eu sempre respondo “Não, eu sou realista”. O que eu quero dizer com realista? Quero dizer que eu observo. Os estudantes que fizeram sua tese sob a minha direção sempre escutam a frase “é preciso saber ver”, ou seja, não trazer uma ideologia a priori, mas ver, sentir, respirar os fenômenos sociais. Então, no meu percurso, isso é sempre presente; eu me considero discípulo de Aristóteles, de São Tomás de Aquino e do meu professor Gilbert Durand, o que podemos denominar uma sociologia fenomenológica – ou seja, do fenômeno, daquilo que está lá, e não apenas o que corresponde a construções idealizadas. Então, minha posição não é otimista porque seria uma posição moral de dizer “isso é bom, isso não é”, mas o que eu quero dizer é: eu constato. É isso que eu chamo sociologia compreensiva; aquela que compreende os vários fenômenos, os diversos fenômenos. Compreender, se formos à etimologia, significa tomar todos os elementos.

Maria Lúcia Bosi: Agora, umas questões mais específicas sobre certas passagens do seu livro “Être Postmoderne”11 Maffesoli M. Être postmoderne. Paris: Les Éditions du Cerf; 2021.. O que significa o retorno de l’enfant éternel na vida social?

Michel Maffesoli: Eu me inspiro aqui em Durkheimn, que mostrou que, em cada época, há uma figura emblemática. Eu gosto desta imagem da figura emblemática. Emblemática no sentido de dominante. Durkheimn mostra que a figura emblemática do século XIX é o adulto, sério, racional, produtor e reprodutor. Eu tentei mostrar que justamente a figura da pós-modernidade não é mais o adulto, mas a criança. Todo mundo quer se manter jovem, falar como os jovens, vestir-se como os jovens. É por isso que eu uso a expressão “enfant éternel” que, de tempos em tempos, volta. É o mito do pequeno príncipe, do menino Jesus, regularmente nós temos essas imagens que definem e é a criança que predomina como figura emblemática da pós-modernidade. Essa é a ideia.

Maria Lúcia Bosi: Eu compreendo as palavras “juvenoïa” e “epinoïa” como neologismos, é isso?

Michel Maffesoli: Sim, é uma reapropriação de termos filosóficos, uma retomada de velhos conceitos filosóficos

Maria Lúcia Bosi: O senhor tem um capítulo no seu livro “Être Posmoderne”11 Maffesoli M. Être postmoderne. Paris: Les Éditions du Cerf; 2021. (ainda não traduzido em português) que se intitula “Juvenoïa”. O que exatamente este conceito significa?

Michel Maffesoli: Sim, como posso explicar isso? Em cada um dos meus livros, eu proponho uma reflexão. Uma das ideias fundamentais é que a imagem da pós-modernidade é a criança eterna e eu afirmo isso com base em pesquisas que fizemos ao longo de muito tempo no CEAQ [Centre d’Étude sur l’Actuel et le Quotidien]. Então juvenoïa corresponde aos valores juvenis que, cada vez mais, predominam na nossa sociedade pós-moderna. Na modernidade, você via pessoas da minha idade se vestindo com ternos, assim como os funcionários das instituições se vestindo assim. Agora, você observa que todos os professores usam calça jeans, T-shirts, não usam mais gravatas, usam tênis, etc. Mesmo para os jornalistas que antigamente usavam roupas formais, hoje já não usam mais. Isso é um exemplo da contaminação, se eu posso usar essa palavra, dos valores juvenis no cotidiano. É todo mundo querendo se vestir jovem, falar como jovem, comportar-se como jovem. É a dimensão que eu chamaria de jovialidade que prepondera na contemporaneidade. O que Durkheimn propôs: que cada época tem a sua figura emblemática e é essa figura que desenvolve valores; a figura emblemática do século XIX era o adulto, racional, sério e que se vestia como tal, e na pós-modernidade a figura emblemática é a criança eterna [l’enfant éternel], ou seja, a jovialidade e as manifestações não apenas na vestimenta, mas também na sexualidade, na forma de trabalhar, ou seja, essa figura emblemática se estende por vários domínios da nossa vida.

Maria Lúcia Bosi: E epinoïa, o que quer dizer?

Michel Maffesoli: Eu considero que, depois do século XIX e talvez mesmo um pouco depois do século XVII, o que predominava era um pensamento vertical. Lembrando a etimologia grega e a simbologia grega, o pensamento vertical é a paranoia – o racionalismo tem essa dimensão paranoica. O pensamento, em lugar de um pensamento vertical, atualmente temos um pensamento que é horizontal – isso eu nomeio epinoïa. Então, a epinoïa corresponde a uma forma de pensar que não é aplicar o conhecimento a um fenômeno, mas alguma coisa que emerge que vem de baixo para cima, vem da experiência, e esta é uma hipótese minha desenvolvida em vários livros e que eu sustento há muitos anos. Significa não se contentar em impor ideias preconcebidas, mas, ao contrário, tentar, da maneira mais rigorosa possível, partir dos fenômenos. Eu cito frequentemente uma frase de Max Weber, que é “estar na altura do cotidiano”, partir do cotidiano, da vida cotidiana. Um exemplo que podemos citar é a Wikipédia, no contraste com as grandes enciclopédias universais. Todo mundo participa da elaboração, ou seja, é horizontal. Não mais a verticalidade baseada naqueles que sabem mais. Em lugar disso, uma construção partilhada, a troca e a participação.

Maria Lúcia Bosi: Eu observei que, na sua obra, o senhor não faz referência às categorias que são da teoria crítica, por exemplo: globalização, dominação, colonização, emancipação, entre outras presentes em praticamente todos os autores que discutem a pós-modernidade. Então eu gostaria de saber qual o lugar que as teorias críticas ocupam no seu pensamento. Qual é o lugar da tradição crítica no seu pensamento?

Michel Maffesoli: Antes de responder a essa questão eu relembro, uma vez mais, que meu trabalho nunca partiu de conceitos preestabelecidos, mas segue uma perspectiva weberiana, que é uma constatação fenomenológica, compreensiva. Partindo de uma perspectiva filosófica, o fenômeno é isto que aparece. Então meu pensamento, influenciado por autores como Weber e Heidegger, interessa-se por aquilo que se vê, ou seja, o fenômeno, algo que é da ordem do olhar, da constatação, e desse modo eu não retomo as grandes categorias das teorias críticas. Ao longo de quarenta anos, meu trabalho consistiu em elaborar categorias de constatação. No livro a “Ordem das coisas”44 Maffesoli M. A ordem das coisas: pensar a pós-modernidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2016. e em todos os meus livros, eu não faço referência a conceitos preestabelecidos, mas, ao contrário, insisto em tentar, o mais rigorosamente possível, fazer constatações, descrever. No começo da minha carreira, eu me inspirei em um sociólogo que é muito importante, Simmel, que enfatizava a forma. Eu criei um neologismo considerando uma “sociologia formista” para mostrar a importância de descrever o mais rigorosamente possível a forma. Então está aí uma primeira posição que é não me apoiar nas categorias globalização, emancipação etc, mas descrever, constatar. Ou seja, uma sociologia formista. Em segundo lugar, minha posição sempre foi a de uma crítica da crítica, em concordância com um dos meus grandes amigos que foi Jean Baudrillard. Eu considero que as tradições filosóficas e sociológicas fazem crítica. Eu tentei fazer o que considero uma crítica, mas uma crítica radical. Vou me explicar: o pensamento crítico, retomando a etimologia da palavra “crítica”, refere-se a julgamento, que, na simbologia, corresponde à figura da balança, ou seja, avalia-se e a partir disso se julga, e minha posição sempre foi afirmar, com base em uma perspectiva weberiana, nenhuma posição judicativa, nem uma posição normativa. Eu não pretendo fazer um julgamento, ou seja, nem dizer se tal coisa é boa ou é má; nem ser normativo, ou seja, dizer o que é preciso fazer. Então se trata de não ser judicativo, nem normativo, que é uma expressão de Max Weber – é importante citar a fonte. Quanto a isso, eu quero dizer que 3/4 dos analistas na França são judicativos e normativos, sobretudo aqueles que se posicionam mais à esquerda. Eu não pretendo dizer se o que eu analiso é bom ou é mau. O que eu pretendo é compreender. É nisso que, em oposição à palavra “crítica”, eu tomo uma posição radical. Novamente voltando à etimologia, “radical” se liga à raiz. Interessa-me o que é profundo, o que está na raiz dos fenômenos e em todos os meus livros, a partir de 1982, eu tento chegar à raiz dos fenômenos, que eu nomeio “enraizamento dinâmico”. Então, eu considero que o meu pensamento é enraizado na vida cotidiana, enraizado na sabedoria popular. Eu busco um saber horizontal, por isso, não faço referência às categorias críticas que, para mim, não são mais pertinentes, tampouco eficazes. Um ponto que eu quero destacar, porque eu não sei se você observou, é que eu não uso o termo “conceito”. No meu livro “O conhecimento comum: introdução à sociologia compreensiva”55 Maffesoli M. O conhecimento comum: introdução à sociologia compreensiva. Porto Alegre: Editora Sulina; 2007., que é meu livro de epistemologia que data de 1985 (ainda que eu retome algumas ideias em outras obras), esse é o livro mais importante para mim sob o ponto de vista epistemológico. Nesse texto, eu mostro que é importante nos desvencilharmos dos conceitos e trabalhar mais com noções, metáforas, alegorias, porque o conceito é crítico, enquanto a noção e a metáfora descrevem, retêm o movimento, descrevem a vitalidade, o momento, o que está em movimento e para mim a vida cotidiana é sobretudo movimento. Porque eu crítico o conceito? Porque o conceito é rígido, enquanto a noção é muito mais fluida, corresponde mais à imagem do movimento.

  • Financiamento

    Bolsista de produtividade Nível 1 – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
    Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico – FUNCAP.
  • Bosi MLM. Pós-modernidade: elementos para uma compreensão: entrevista com Michel Maffesoli. Interface (Botucatu). 2024; 28: e240118 https://doi.org/10.1590/interface.240118

Referências

  • 1
    Maffesoli M. Être postmoderne. Paris: Les Éditions du Cerf; 2021.
  • 2
    Maffesoli M. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. 4a ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2010.
  • 3
    Maffesoli M. A violência totalitária. Lisboa: Instituto Piaget; 2001.
  • 4
    Maffesoli M. A ordem das coisas: pensar a pós-modernidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2016.
  • 5
    Maffesoli M. O conhecimento comum: introdução à sociologia compreensiva. Porto Alegre: Editora Sulina; 2007.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    29 Mar 2024
  • Aceito
    06 Ago 2024
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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