O feitiço das redes vivas no cuidado da tuberculose

The enchantment of live networks in tuberculosis care

El encanto de las redes vivas en la atención de la tuberculosis

Karla Santa Cruz Coelho Sobre o autor

Ao pensarmos na tuberculose no Rio de Janeiro e na história da doença e do samba, lembro da letra do grande Noel Rosa na música “Feitiço da Vila”: “Lá, em Vila Isabel/Quem é bacharel/Não tem medo de bamba”11 Feitiço da Vila. (Noel Rosa) Gravação de Claudia Ventura e Rodrigo Alzuguir. O samba carioca de Wilson Baptista. Biscoito Fino. 2013. Disco 2. Faixa 14.. Apesar de ter iniciado o curso de Medicina na Universidade Federal do Rio de Janeiro (instituição de ensino dos autores deste artigo), Noel Rosa abandonou os estudos para se dedicar à música. Essa decisão foi tomada aos 21 anos, e ele tinha profunda conexão com seu bairro natal, Vila Isabel. Sua vida foi breve, interrompida pela tuberculose aos 26 anos. Noel Rosa deixou um legado musical imenso.

Já a trajetória da história de vida de Zoe e da sua família, Gomes, segue as narrativas dos sujeitos que compõem as redes vivas do cuidado. Zoe, em 2023, com 38 anos, é natural do Rio de Janeiro, reside com sua mãe, a senhora Pilar, e seus três filhos, na comunidade do Borel, situada na zona norte da cidade do Rio de Janeiro, no bairro da Tijuca.

O artigo “As redes vivas na produção do cuidado com o usuário na centralidade do tratamento para tuberculose multidroga resistente”22 Leung JAM, Cunha FTS, Merhy EE, Kritski AL. As redes vivas na produção do cuidado com o usuário na centralidade do tratamento para tuberculose multidroga resistente. Interface (Botucatu). 2024; 28. doi: 10.1590/interface.230182.
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traz uma temática crucial no âmbito da produção do cuidado em tuberculose. A frase dos autores “Cuidar está na aproximação entre os sujeitos envolvidos no processo, com uso de ferramentas relacionais em sobreposição à doença”33 Leung JAM. A tuberculose resistente a drogas e as redes de cuidado ao usuário no sistema único de saúde [tese]. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2023. (p. 17) resume com maestria a essência do cuidado humanizado. O estudo derivado da tese de doutorado de Janaína Leung analisou as redes vivas do cuidado do usuário com tuberculose multidroga resistente (TB-MDR) e seu objetivo foi acompanhar uma usuária-guia, escutar as narrativas das redes vivas e analisar os discursos a partir dos encontros entre os sujeitos envolvidos na produção do cuidado.

Destaco a relevância do artigo por sua contribuição científica e impacto nos aspectos centrais no acompanhamento de usuários em tratamento de tuberculose resistente a drogas. Foi realizada análise dos discursos e as sequências discursivas foram reunidas em três categorias analíticas: 1) Cuidar no ato de viver: transpor os estigmas e cultivar vínculos; 2) Redes vivas do cuidado: os entremeios da norma e 3) Interfaces do cuidado usuário-trabalhador da saúde: existe sujeito lá e cá? Como cuidar?

É fundamental abrir o diálogo com todos os envolvidos no processo de cuidado para não ficarmos limitados apenas às normas, regras, portarias e vigilância epidemiológica. Isso evita a contraposição entre o “discurso epidemiológico” — com seu poder técnico-hegemônico que restringe o cuidado ao assistir ao outro — e a perspectiva do cuidado humanizado, que leva em conta as experiências e necessidades do indivíduo.

A pesquisa apresenta as tecnologias duras, leves-duras e leves no contexto do cuidado da tuberculose, desde os novos medicamentos injetáveis para tratamento da tuberculose multirresistente até as tecnologias leves como as relacionais, como nos ensinou Emerson Merhy44 Merhy EE. Saúde: cartografia do trabalho vivo em ato. 3a ed. São Paulo: Hucitec; 2002. (Saúde em Debate; 145).. A produção viva no acompanhamento da usuária invade os espaços formais, mobilizando todos: usuários, trabalhadores e gestores que auxiliam o acompanhamento desse tipo de usuário das equipes de saúde. O texto explorou com mais detalhes como as tecnologias relacionais – como a comunicação, o acolhimento e a escuta ativa – podem ser utilizadas para fortalecer o vínculo entre equipes de saúde e usuários em tratamento de tuberculose resistente. A partir das unidades de atenção primária e do cuidado compartilhado com o serviço especializado, foi possível promover a inovação do cuidado, resultando em um vínculo maior entre a usuária e os trabalhadores de saúde. Outras inovações no processo de cuidar e exemplos concretos de como as redes de cuidado, com a participação de diferentes profissionais e instituições, podem abrir espaço de reflexão compartilhada, aprendizagens e questionamentos, presentes no trabalho e em outras esferas da vida.

Em relação ao abandono do tratamento, perguntamos quem são os aparelhos do Estado operando sobre o sujeito, culpabilizando somente a ele pelo insucesso/descontinuidade do tratamento, sem levar em conta a questão “Quem abandona quem”? Outro elemento fundamental é o apagamento das doenças negligenciadas, pois atinge as pessoas mais vulnerabilizadas, pobres e negras. No Boletim Epidemiológico Especial da Saúde da População Negra55 Brasil. Ministério da Saúde. Boletim epidemiológico saúde da população negra [Internet]. Brasília: Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente; 2023 [citado 20 Jun 2024]. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/boletins/epidemiologicos/especiais/2023/boletim-epidemiologico-saude-da-populacao-negra-numero-especial-vol-1-out.2023/view
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, constatou-se a redução de pessoas curadas da tuberculose e o aumento do percentual de interrupção do tratamento, merecendo destaque a porcentagem de interrupção do tratamento das pessoas pretas, que teve maior proporção (17,1%, n = 1.050) em 2021.

Enfatiza-se a importância crucial das ações intersetoriais, incluindo a destinação de recursos para a implementação de medidas de segurança alimentar e nutricional para todos os usuários com diagnóstico de tuberculose. O transporte, como evidenciado no caso da usuária em questão, também se configura como um elemento essencial para o sucesso do tratamento.

Nesse sentido, resgata-se a pergunta do professor Emerson Merhy em 2017, na banca de qualificação que originou este estudo: “Há sujeito do cuidado na tuberculose? Há sujeito do cuidado e há sujeito em quem cuida?”. Essas perguntas são fundamentais para discutir os desafios e as oportunidades para a implementação de redes de cuidado eficazes no contexto do Sistema Único de Saúde, considerando as realidades socioeconômicas e culturais dos usuários.

Mais um desafio se coloca no caso: a pandemia de Covid-19. Na ocasião, as equipes e a coordenação da área programática de saúde do Complexo do Borel realizaram visitas domiciliares. Além disso, o uso de determinadas tecnologias – como ligações por videochamada e teleatendimento –, considerando as restrições da pandemia, também possibilitou o contato entre paciente e familiares. A busca ativa dos familiares e contactantes é uma estratégia de prevenção para identificar a ocorrencia de casos suspeitos. Junto do tratamento diretamente observado e supervisionado pelo profissional de saúde, da ingestão dos medicamentos pela pessoa em tratamento, essas ações de apoio e monitoramento do tratamento da usuária com tuberculose foram fundamentais. Foi essencial nesse cuidado a criação do grupo de trabalho e a elaboração do Projeto Terapêutico Singular, contudo, mesmo assim, há ainda um longo caminhar para a produção de visibilidades que nos ajudem a pensar o cuidado e as potências de vida.

Ao analisar a letra “Feitiço da Vila”11 Feitiço da Vila. (Noel Rosa) Gravação de Claudia Ventura e Rodrigo Alzuguir. O samba carioca de Wilson Baptista. Biscoito Fino. 2013. Disco 2. Faixa 14. e a trajetória de Zoe, ambos da zona norte do Rio de Janeiro, percebemos a profunda influência das origens sociais na vida das pessoas e a persistente presença da tuberculose em nossa sociedade, mesmo diante dos avanços tecnológicos da Medicina. O presente estudo se destaca por sua relevância e atualidade ao abordar um tema crucial para a saúde pública, oferecendo valiosas contribuições para a compreensão das dinâmicas do cuidado em redes e do papel das tecnologias no combate à tuberculose resistente. Sugerimos utilizar esse artigo na formação dos novos profissionais de Saúde e na Educação Permanente em saúde para que seja possível melhorar o cuidado aos usuários com tuberculose resistente.

Referências

  • 1
    Feitiço da Vila. (Noel Rosa) Gravação de Claudia Ventura e Rodrigo Alzuguir. O samba carioca de Wilson Baptista. Biscoito Fino. 2013. Disco 2. Faixa 14.
  • 2
    Leung JAM, Cunha FTS, Merhy EE, Kritski AL. As redes vivas na produção do cuidado com o usuário na centralidade do tratamento para tuberculose multidroga resistente. Interface (Botucatu). 2024; 28. doi: 10.1590/interface.230182.
    » https://doi.org/10.1590/interface.230182
  • 3
    Leung JAM. A tuberculose resistente a drogas e as redes de cuidado ao usuário no sistema único de saúde [tese]. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2023.
  • 4
    Merhy EE. Saúde: cartografia do trabalho vivo em ato. 3a ed. São Paulo: Hucitec; 2002. (Saúde em Debate; 145).
  • 5
    Brasil. Ministério da Saúde. Boletim epidemiológico saúde da população negra [Internet]. Brasília: Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente; 2023 [citado 20 Jun 2024]. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/boletins/epidemiologicos/especiais/2023/boletim-epidemiologico-saude-da-populacao-negra-numero-especial-vol-1-out.2023/view
    » https://www.gov.br/saude/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/boletins/epidemiologicos/especiais/2023/boletim-epidemiologico-saude-da-populacao-negra-numero-especial-vol-1-out.2023/view

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Out 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    28 Jun 2024
  • Aceito
    07 Jul 2024
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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