Zoe e a inovação no processo de cuidado: da tecitura das redes à ruptura no regime de verdade

Zoe and innovation in the care process: from the weaving of networks to rupture in the regime of truth

Zoe e innovación en el proceso de cuidado: del tejido de redes a la ruptura en el régimen de la verdad

Kênia Lara da Silva Sobre o autor

O texto de Leung, Cunha, Merhy e Kritski11 Leung JAM, Cunha FTS, Merhy EE, Kritski AL. As redes vivas na produção do cuidado com o usuário na centralidade do tratamento para tuberculose multidroga resistente. Interface (Botucatu). 2024; 28. doi: 10.1590/interface.230182.
https://doi.org/10.1590/interface.230182...
apresenta uma contribuição importante para o debate sobre a centralidade do sujeito na trajetória de tratamento para tuberculose multidroga resistente (TB-MDR) e fornece valiosas reflexões sobre os caminhos e desafios para se construir a noção de redes vivas para a produção do cuidado.

Ao se debruçar sobre a trajetória de Zoe – codinome da usuária que serviu de guia para analisar as experiências do cuidado vividas durante o acompanhamento no tratamento para TB-MDR – e de sua família, os autores expõem inovações no processo de cuidado.

Pelo menos em duas passagens essa inovação é destacada: 1) quando a enfermeira da unidade especializada busca aproximação com os profissionais das unidades de Atenção Primária para entender a dinâmica do cuidado no território, após Zoe expressar a dificuldade de seguimento; e 2) quando a psicóloga da Atenção Primária acompanha Zoe à unidade especializada por solicitação da usuária.

Em ambas as passagens, nota-se a centralidade da usuária que provoca, nos profissionais, uma reação na busca de articulações com outros serviços. O que se passa na relação entre Zoe e esses profissionais é determinante para a escuta e disponibilidade em abrir outros caminhos na tecitura das redes. Assim, é fundamental considerar os aspectos intersubjetivos que podem potencializar ou despotencializar o vínculo como condição dos encontros produtores de cuidado. Zoe encontrou profissionais que contribuíram nesse processo.

Essa relação é caracterizada como inovadora, pois, na análise dos autores, transpõe o sentido pragmático assistencial predominante nas práticas de saúde. Os autores salientam que as inovações emergem como quebras de estruturas, entrelaçando o que se faz no campo da saúde com o que se apreende do viver e da experiência dos sujeitos. A quebra rompe com o biopoder e fissura o regime de verdade que opera sobre as vidas e o modo de ofertar saúde.

Porém, de qual vida e de qual saúde estamos tratando? O que é a vida e a saúde quando o diagnóstico de TB-MDR é estabelecido? Como esse diagnóstico passa a orientar a vida de Zoe e de sua família; e as práticas dos profissionais de saúde? Que regime de verdade sobre TB-MDR circula e vincula Zoe, sua família e os profissionais a um certo governo da vida expresso em certas práticas de saúde?

Essas são questões que a leitura do texto de Leung, Cunha, Merhy e Kritski11 Leung JAM, Cunha FTS, Merhy EE, Kritski AL. As redes vivas na produção do cuidado com o usuário na centralidade do tratamento para tuberculose multidroga resistente. Interface (Botucatu). 2024; 28. doi: 10.1590/interface.230182.
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oferece ao debate.

Regime de verdade, na perspectiva de Foucault22 Foucault M. Do governo dos vivos. Cursos no Collège de France, 1979-1980 (excertos). 2a ed. São Paulo: CCS-SP/Achiamé; 2011., refere-se ao modo como a verdade é produzida e faz funcionar as relações de poder.

Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro.33 Foucault M. Microfísica do poder. 23a ed. São Paulo: Graal; 2004. (p. 12)

Na saúde, os regimes estão centralizados na forma do discurso científico, nas instituições que o produzem e nos sujeitos que o legitimam. O regime de verdade determina formas de viver e opera, no âmbito das práticas de saúde, condicionando certos modos de organizar, tratar e gerir uma população. E é esse regime que modula os projetos e ações assistenciais resumidos ao nível técnico com procedimentos observáveis, mensuráveis e classificáveis com o objetivo de administrar os corpos e governar a vida.

“Governar” pode querer dizer “conduzir alguém”, seja no sentido propriamente espiritual, do governo das almas – sentido então plenamente clássico, que vai durar e subsistir por muito, muito tempo –, seja de uma maneira ligeiramente defasada em relação a isso, “governar” pode querer dizer “impor um regime”, impor um regime a um doente: o médico governa o doente, ou o doente que se impõe certo número de cuidados se governa. […] “Governar” pode se referir também a uma relação entre indivíduos, relação que pode assumir várias formas, seja a relação de mando e de chefia: dirigir alguém, controlá-lo.44 Foucault M. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes; 2008. Aula de 8 de fevereiro de 1978; p. 155-80. (p. 163)

Os regimes de verdade se manifestam por meio de discursos. Portanto, os autores, ao explorarem as sequências discursivas na produção do discurso, mostram-nos que o cuidar no ato de viver com TB-MDR precisa transpor os estigmas e cultivar vínculos; que as redes vivas do cuidado para usuários com TB-MDR se conformam nos entremeios da norma e que há interfaces do cuidado usuário-trabalhador da saúde, ambos absorvidos pela intervenção do biopoder no controle de suas vidas, que concorre para assujeitá-los ao cumprimento de metas dos protocolos de TB-MDR.

No caso de Zoe, as sequências discursivas são indicativas do preconceito, estigma e exclusão que marcam os usuários em tratamento de TB-MDR. O medo da TB, construído por um certo regime de verdade, assegura as relações de poder com mecanismos de vigilância e punição do/sobre corpos adoecidos, processo que é materializado em Zoe, que deve ser governada.

Aliás, nesse aspecto, a preocupação, em si, não é com Zoe, mas sim com o que ela representa, em termos biopolíticos, no (des)equilíbrio da ordem, da norma e da regularidade que se espera com as ações de vigilância epidemiológica. É por esse mecanismo que vai se definindo o campo de intervenções de poder para controlar e governar Zoe, mas sem considerá-la na sua dinâmica de vida, na acolhida dos seus desejos, em suas angústias e em suas dificuldades. Vigilância e atenção (no sentido de interesse e preocupação) quase nunca são combinadas como estratégias nas práticas de saúde.

Parece, ainda, haver uma exaltação dessa perspectiva de governar a vida quando se trata de TB-MDR, pois há um estatuto discursivo que atribui as recidivas ao abandono do tratamento, ainda que não exclusivamente.

O abandono do tratamento é considerado um grave problema que acarreta a persistência da fonte de infecção, a disseminação da doença, o aumento da morbimortalidade e as taxas de recidiva, além de ampliar o espectro de bacilos multidroga resistentes55 Ferreira DP, Souza FBA, Motta MCS. Abandono de tratamento anterior e caso de tuberculose multidroga resistente em uma instituição terciária na cidade do Rio de Janeiro. Rev Fun Care. 2019; 11(4):962-7..

Com isso, Zoe e outros usuários TB-MDR são tipicamente classificados como abandonadores, desinteressados, rebeldes e descompromissados com a própria saúde e vida. A definição sobre o que fazer – sobretudo, sobre o quanto fazer – e até onde investir limita-se aos critérios protocolares. A força que esse estatuto assume nas práticas define as relações que se estabelecem entre usuário e trabalhador. Por conseguinte, tudo o que se faz, para além dos protocolos, é excedente e gera exaustão, que advém também da tensão entre cuidar para criar vínculos e interpor-se às normas, não se aprisionando ao biopoder.

Há que se considerar que é no contrapoder que as brechas vão sendo abertas nos protocolos, nas normas e nos critérios. As práticas vão deixando de ser excedentes para serem essenciais, necessárias e prioritárias. Aquilo que se definia como limite passa a ter outras possibilidades sustentadas em ferramentas relacionais do encontro, da escuta e da atenção ao sujeito, que não nega a vigilância, mas a subordina ao cuidado.

É por Zoe insistir – com a enfermeira da atenção especializada, com a psicóloga da unidade de Atenção Primária e com tantos outros profissionais – que as estruturas vão se quebrando. Assim, Zoe não só reorienta as práticas de saúde, fazendo delas “inovadoras”, mas também provoca a tecitura de redes produtoras de cuidado que antes não se conformariam sob a égide do regime de verdade do governo dos corpos.

Considero que este é o ponto fundamental do novo, que nos permite entender por que uma prática que deveria ser considerada comum nas redes de atenção à saúde – que envolve buscar estar próximo, encaminhar, articular, vincular, etc. – coloca-se como inovadora para o cuidado de um usuário TB-MDR. É inovadora porque representa/representou para Zoe caminhos para a tecitura de uma rede que não está dada a priori e que se constrói com e a partir de Zoe.

Referências

  • 1
    Leung JAM, Cunha FTS, Merhy EE, Kritski AL. As redes vivas na produção do cuidado com o usuário na centralidade do tratamento para tuberculose multidroga resistente. Interface (Botucatu). 2024; 28. doi: 10.1590/interface.230182.
    » https://doi.org/10.1590/interface.230182
  • 2
    Foucault M. Do governo dos vivos. Cursos no Collège de France, 1979-1980 (excertos). 2a ed. São Paulo: CCS-SP/Achiamé; 2011.
  • 3
    Foucault M. Microfísica do poder. 23a ed. São Paulo: Graal; 2004.
  • 4
    Foucault M. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes; 2008. Aula de 8 de fevereiro de 1978; p. 155-80.
  • 5
    Ferreira DP, Souza FBA, Motta MCS. Abandono de tratamento anterior e caso de tuberculose multidroga resistente em uma instituição terciária na cidade do Rio de Janeiro. Rev Fun Care. 2019; 11(4):962-7.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Out 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    01 Jul 2024
  • Aceito
    07 Jul 2024
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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