Desassociar a tuberculose de sua metáfora: convite para um devir-abandonador

Disassociating tuberculosis from its metaphor: an invitation to become an abandoner

Desasociar la tuberculosis de su metáfora: invitación a devenir abandonador

Clarissa Terenzi Seixas Sobre o autor

A doença como metáfora11 Sontag S. Le sida et ses métaphores. Paris: Christian Bourgois Éditeur; 1989.. A leitura do artigo “As redes vivas na produção do cuidado com o usuário na centralidade do tratamento para tuberculose multidroga resistente”22 Leung JAM, Cunha FTS, Merhy EE, Kritski AL. As redes vivas na produção do cuidado com o usuário na centralidade do tratamento para tuberculose multidroga resistente. Interface (Botucatu). 2024;28. doi: 10.1590/interface.230182.
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reativou minha memória dessa bela obra publicada por Susan Sontag em 197811 Sontag S. Le sida et ses métaphores. Paris: Christian Bourgois Éditeur; 1989.. Nesse notável ensaio sobre a utilização alegórica e culpabilizante da doença na nossa cultura, Sontag analisa três afecções: a Aids (ensaio agregado à edição de 1989), o câncer e a tuberculose. Nos três casos, a doença é uma metáfora que constrói uma subjetividade que separa corpos “sadios” de corpos “doentes”, instaurando comportamentos e reconfigurando relações.

Sontag11 Sontag S. Le sida et ses métaphores. Paris: Christian Bourgois Éditeur; 1989. demonstra por meio de uma brilhante genealogia dos mitos em torno dessas afecções, no processo de construção da metáfora patológica, os medos profundos de uma sociedade são identificados à doença, que se torna metáfora. Esta, então, transforma-se em um qualificativo do que é desviante e anormal, imbuindo a doença de uma carga simbólica. Assim, ao longo dos séculos, a despeito de uma visão romântica da tuberculose certamente ligada ao adoecimento de poetas e artistas sorumbáticos, a representação mais comum da patologia relacionava-se à pobreza, à privação, a corpos magros de higiene deficiente e à alimentação inadequada. A partir do século XX, a tuberculose passa a ser associada também à insanidade e à vulnerabilidade, com o doente sendo percebido como febril; negligente; autodestrutivo; e culpado por sua devassidão e por um estado de degeneração psicológica11 Sontag S. Le sida et ses métaphores. Paris: Christian Bourgois Éditeur; 1989.. A doença desperta, até hoje, julgamentos morais e psicológicos, atribuindo-se a certas pessoas um perfil supostamente mais suscetível a contraí-la, o que acaba servindo como mais uma justificativa para o isolamento social do doente.

Encontramos vários desses qualificativos no relato de Zoe, personagem central do artigo em debate, e de seu adoecimento: “desinteressada”, “rebelde”, “descompromissada com a vida”, “usuário que não respeita as regras”, sendo todos esses qualificativos estereótipos que reforçam a metáfora da doença e que, na tuberculose multidroga resistente, somam-se ao do “abandonador”33 Michaelis Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa [Internet]. São Paulo: Melhoramentos; 2024 [citado 2 Jul 2024]. Abandonador. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=abandonador
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–“O paciente que abandona, que abandona e volta”22 Leung JAM, Cunha FTS, Merhy EE, Kritski AL. As redes vivas na produção do cuidado com o usuário na centralidade do tratamento para tuberculose multidroga resistente. Interface (Botucatu). 2024;28. doi: 10.1590/interface.230182.
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(p. 7) –, como bem mostrado pelos autores. Esse adjetivo, em verbete do dicionário Michaelis da Língua Portuguesa33 Michaelis Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa [Internet]. São Paulo: Melhoramentos; 2024 [citado 2 Jul 2024]. Abandonador. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=abandonador
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(s/p), aparece como:

abandonador (adj sm)

1 Que ou aquele que abandona e negligencia.

2 (JUR) Que ou aquele que desiste de seus direitos e bens.

E é fato que o estigma do abandonador, que negligencia e que desiste, cola (e gruda!) muito fácil na protagonista do artigo e nas tantas outras Zoes com quem nos deparamos no cotidiano dos serviços de saúde. Mas abandonar quem? Abandonar o quê? Zoe abandona um projeto terapêutico que não lhe serve, decidido por outros sem a sua participação, que se impõe na falta de maleabilidade de programas e protocolos e não se encaixam na sua vida.

Nada disso é novidade. Essa repetição de equipes intervencionistas, tentando fazer cumprir protocolos descendentes e distantes da singularidade de usuários é tão comum quanto a expectativa de docilidade e obediência por parte dos usuários (pessoas-cordeiro) ou o incômodo com aqueles que desobedecem44 Seixas CT, Baduy RS, Cruz KT, Bortoletto MSS, Slomp H Jr, Merhy EE. O vínculo como potência para a produção do cuidado em Saúde: o que usuários-guia nos ensinam. Interface (Botucatu). 2019;23. doi: 10.1590/Interface.170627.
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… ou que abandonam.

A originalidade daquilo que os autores apresentam reside na investigação feita com os trabalhadores e no que ela desvela: o brotamento de um desejo de transformar modos instituídos. Assim, se por um lado temos trabalhadores da saúde buscando alcançar os resultados propostos pelo Programa de Controle da Tuberculose e se enervando com uma usuária que os afasta do sucesso nessa missão, também os vemos questionando-se sobre a pertinência dos caminhos existentes para alcançar tais resultados. Observamos profissionais divididos entre o obedecimento a protocolos rígidos, pouco permeáveis às mudanças e tentativas de mobilizar os saberes adquiridos de experiências vividas junto a tantas outras Zoes, para repensar e inovar a produção do cuidado à pessoa com tuberculose. Vemos trabalhadores enfrentando situações que desafiam o instituído e o comum ou habitual; reconhecendo a ineficiência de seus agires protocolares; articulando-se; e buscando criar possibilidades outras para Zoe, que, por sua vez, também aponta diversos problemas de organização do próprio sistema que dificultam sua “adesão”, como a demora no agendamento dos exames, os longos trajetos entre as unidades de saúde e o difícil acesso a elas, constituindo-se esse quadro em uma violência cotidiana.

Os autores também revelam que muitos trabalhadores gostariam de melhorar suas práticas, “enxergar mais o outro”, deixar de lado sua “onipotência” e preconcepções, deixar de ter “a solução pra sua vida…”22 Leung JAM, Cunha FTS, Merhy EE, Kritski AL. As redes vivas na produção do cuidado com o usuário na centralidade do tratamento para tuberculose multidroga resistente. Interface (Botucatu). 2024;28. doi: 10.1590/interface.230182.
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(p. 7). Então, por que não escutá-la e construir para Zoe, com Zoe?

Entre os ensinamentos da obra de Sontag, talvez esteja uma reflexão: precisamos urgentemente desassociar a(s) metáfora(s) da(s) doença(s), desmistificá-la(s) e, por conseguinte, aliviar as pessoas adoecidas da pesada aura que paira sobre elas e que lhes inflige uma dupla pena: a da afecção em si – frequentemente, com dura sintomatologia clínica – e a do julgamento moral, culpabilizante e amiúde punitivo da comunidade e de profissionais de saúde. É necessário conectar-nos menos com a metáfora e mais com o outro diante de nós, com suas fraquezas e suas potências. Só assim poderemos começar a superar a “austeridade”55 Michaelis Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa [Internet]. São Paulo: Melhoramentos; 2024 [citado 11 Jul 2024]. Austeridade. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=austeridade
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(s/p) que demasiadas vezes atravessa e determina o trabalho em saúde:

austeridade (sf)

1 Qualidade do que é austero.

[...]

3 Disciplina rigorosa.

4 Dureza no trato.

A austeridade talvez seja a resposta mais simples de equipes que, desprovidas de oportunidades para refletir sobre sua prática, assumem um agir prescritivo e controlador do modo como o outro deve levar a sua vida e cuidar de si.

Como defende Sontag, talvez a maneira mais honesta e mesmo saudável de viver o adoecimento seja resistir a esse pensamento metafórico e preconceituoso, como vem sabiamente fazendo Zoe. Ao “abandonar”, Zoe transgride, desobedece, deixa de ser paciente e afirma que aquela relação não pode funcionar daquela maneira. E mulheres como Zoe – pretas, pobres, faveladas, excluídas e chefes de família – são peritas em desobedecer. Sobrevivem desobedecendo em uma sociedade e frente a um Estado que vem sistematicamente exigindo-lhes obediência e oferecendo pouco ou quase nada em troca. A doença, nesse contexto, talvez seja apenas mais um percalço. Como afirmou Frédéric Gros66 Gros F. Désobéir. Paris: Albin Michel-Flammarion; 2017. em referência a Howard Zinn, o problema não é a desobediência, mas a obediência.

Finalmente, ouso esperar que as equipes possam se juntar às tantas Zoes e provocar tensões nos dispositivos instituídos para a produção do cuidado à pessoa com tuberculose. Que se tornem elas também abandonadoras quando as diretrizes e protocolos que buscam direcionar a produção do cuidado às muitas – tantas – Zoes espalhadas pelo Brasil não fizerem sentido e não atenderem às necessidades e demandas singulares dos cidadãos. Que possam despir-se de metáforas preconceituosas e aprisionantes, revisitar suas práticas e inventar para Zoe(s), com Zoe(s).

Referências

  • 1
    Sontag S. Le sida et ses métaphores. Paris: Christian Bourgois Éditeur; 1989.
  • 2
    Leung JAM, Cunha FTS, Merhy EE, Kritski AL. As redes vivas na produção do cuidado com o usuário na centralidade do tratamento para tuberculose multidroga resistente. Interface (Botucatu). 2024;28. doi: 10.1590/interface.230182.
    » https://doi.org/10.1590/interface.230182
  • 3
    Michaelis Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa [Internet]. São Paulo: Melhoramentos; 2024 [citado 2 Jul 2024]. Abandonador. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=abandonador
    » https://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=abandonador
  • 4
    Seixas CT, Baduy RS, Cruz KT, Bortoletto MSS, Slomp H Jr, Merhy EE. O vínculo como potência para a produção do cuidado em Saúde: o que usuários-guia nos ensinam. Interface (Botucatu). 2019;23. doi: 10.1590/Interface.170627.
    » https://doi.org/10.1590/Interface.170627
  • 5
    Michaelis Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa [Internet]. São Paulo: Melhoramentos; 2024 [citado 11 Jul 2024]. Austeridade. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=austeridade
    » https://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=austeridade
  • 6
    Gros F. Désobéir. Paris: Albin Michel-Flammarion; 2017.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Out 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    17 Jul 2024
  • Aceito
    30 Jul 2024
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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