Gestão federal da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem: uma perspectiva histórico-crítica

Federal government management of the National Policy for Comprehensive Men's Health Care from a critical historical perspective

Gestión federal de la Política Nacional de Atención Integral a la Salud del Hombre: una perspectiva histórico-crítica

Celmario Castro Brandão Fernando Pessoa de Albuquerque Julianna Miwa Takarabe Isabela Machado Sampaio Costa Soares Amanda Amaiy Pessoa Salerno Caroline Picerni di Celio Rafael Silva Magalhães Jessica Trindade Lima Gabriela Santos Almeida Sobre os autores

Resumos

Este artigo analisou a gestão federal da Política Nacional de Atenção Integral Saúde do Homem (PNAISH) sob uma perspectiva histórico-crítica. Foi realizada análise documental do processo de implementação da política entre 2009 e 2024 contido no arquivo da Coordenação de Atenção à Saúde do Homem (COSAH). A análise de conteúdo resultou nas seguintes categorias temáticas: organização e gestão da COSAH; processo de revisão da PNAISH; e desafios e frentes estratégicas para a implementação da PNAISH. Foram encontradas fragilidades na institucionalização da coordenação, além de uma revisão da política, em 2021, marcada pelo discurso neoconservador, que excluiu as menções a gênero e direitos sexuais e reprodutivos. Esses princípios epistemológicos da PNAISH foram retomados em 2023 com ações de qualificação da Atenção Primária para abordagem das repercussões do machismo e do patriarcado sobre a saúde de homens, mulheres e crianças.

Palavras-chave
Saúde do homem; Políticas públicas; Avaliação de políticas de saúde


This study analyzed federal government management of the National Policy for Comprehensive Men's Health Care (PNAISH) from a critical historical perspective. We analyzed documents addressing the policy implementation process between 2009 and 2024 contained in the archives of the National Office for the Coordination of Men’s Healthcare (COSAH). The content analysis resulted in the following thematic categories: COSAH organization and management; the PNAISH review process; and challenges and key strategic areas for implementing the PNAISH. We found weaknesses in the institutionalization of coordination, in addition to a policy review in 2021 marked by neoconservative discourse excluding gender and sexual and reproductive rights. These epistemological principles of the PNAISH were revisited in 2023, stemming from actions to improve the quality of primary care addressing the effects of machismo and patriarchy on men’s, women’s and children’s health.

Keywords
Men’s health; Public policies; Health policy assessment


Este artículo analizó la gestión federal de la Política Nacional de Atención Integral Salud del Hombre (PNAISH), bajo una perspectiva histórico-crítica. Se realizó un análisis documental del proceso de implementación de la política entre 2009 y 2024, contenida en el archivo de la Coordinación de Atención a la Salud del Hombre (COSAH). El análisis de contenido resultó en las siguientes categorías temáticas: organización y gestión de la COSAH; proceso de revisión de la PNAISH; y desafíos y frentes estratégicos para la implementación de la PNAISH. Se encontraron fragilidades en la institucionalización de la coordinación, además de una revisión de la política, en 2021, marcada por el discurso neoconservador que excluyó las menciones a género y derechos sexuales y reproductivos. Esos principios epistemológicos de la PNAISH se retomaron en 2023 a partir de acciones de calificación de la atención primaria para el abordaje de las repercusiones del machismo y del patriarcado sobre la salud de hombres, mujeres y niños.

Palabras clave
Salud del hombre; Políticas públicas; Evaluación de políticas de salud


Introdução

A Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (PNAISH), que em 2024 completa 15 anos desde sua primeira publicação (em 2009), representa um marco fundamental no acesso da população masculina ao Sistema Único de Saúde (SUS) e na qualificação do cuidado integral ofertado aos homens no âmbito dos serviços de saúde11 Leal AF, Figueiredo WS, Nogueira-da-Silva GS. O percurso da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde dos Homens (PNAISH), desde a sua formulação até sua implementação nos serviços públicos locais de atenção à saúde. Cienc Saude Colet. 2012; 17(10):2607-16. doi: 10.1590/S1413-81232012001000010.
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O Brasil é o primeiro país na América Latina a instituir uma política especificamente voltada à saúde dos homens. A criação dessa política foi influenciada por estudos acadêmicos sobre homens e masculinidades, bem como pela ação política e social de profissionais de saúde, pesquisadores, representantes de instituições do Governo Federal e organizações não governamentais.

Nesse contexto, a PNAISH tem como principal objetivo promover ações de saúde que contribuam para a compreensão da realidade singular masculina em seus diversos contextos socioculturais e político-econômicos, buscando aumentar a expectativa de vida e reduzir os níveis de morbidade e mortalidade dessa população. Isso é feito por meio do enfrentamento aos fatores de risco e vulnerabilidades, promovendo o acesso a ações e serviços de atenção integral à saúde, respeitando as diferentes expressões de masculinidades22 Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem: princípios e diretrizes [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2009 [citado 10 Jul 2024]. Disponível em: http://www.unfpa.org.br/Arquivos/saude_do_homem.pdf
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A gestão federal de políticas de saúde no Brasil configura-se como um processo complexo e multifacetado, marcado pela atuação conjunta dos três níveis de gestão do SUS: Governo Federal, estados e municípios33 Paim JS, Teixeira CF. Configuração institucional e gestão do Sistema Único de Saúde: problemas e desafios. Cienc Saude Colet. 2007; 12 Supl:1819-29. doi: 10.1590/S1413-81232007000700005.
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,44 Baptista TWF. Análise das portarias ministeriais da saúde e reflexões sobre a condução nacional da política de saúde. Cad Saude Publica. 2007; 23(3):615-26. doi: 10.1590/S0102-311X2007000300020.
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. Nesse contexto, o Ministério da Saúde (MS) assume um papel central na indução, na normatização, na coordenação e no monitoramento das ações em saúde em todo o território nacional, conforme preconizado na Constituição Federal de 1988 e na Lei n. 8.080/1990 que dispõe sobre o SUS.

Apesar das iniciativas para a implementação da PNAISH, estudos apontam que as ações voltadas para a saúde masculina ainda são consideradas incipientes, especialmente no âmbito da Atenção Primária à Saúde (APS), o que requer uma elevação em seu grau de prioridade na agenda tripartite de gestão das políticas públicas de saúde55 Corrêa ACP, Mozer IT. Gestão do processo de implementação da política de saúde do homem. Rev Enferm UERJ. 2016; 24(1):e9483. doi: 10.12957/reuerj.2016.9483.
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No campo da análise da gestão de políticas públicas no Brasil, os estudos apresentam uma trajetória bastante recente, sendo essa uma área em consolidação e com escassa acumulação de conhecimento66 Viana LA, Baptista TWF. Análise de políticas de Saúde. In: Giovanella L, organizador. Políticas e Sistema de Saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2009. p. 65-105..

Assim, o objetivo deste estudo é contribuir para a análise da gestão da PNAISH no âmbito federal por uma perspectiva histórico-crítica, com destaque para a atuação do MS no processo de condução da política, considerando a complexidade que permeia seu processo de implementação no país.

Método

Com o intuito de identificar, descrever e analisar os principais marcos no desenvolvimento da PNAISH, foi realizada uma pesquisa documental exploratória de registros formais do processo de elaboração da política e de seu monitoramento longitudinal, realizado pela Coordenação de Atenção à Saúde do Homem, do Departamento de Gestão do Cuidado Integral, da Secretaria de Atenção Primária à Saúde, do Ministério da Saúde (COSAH/DGCI/SAPS/MS) entre 2009 e 2024. Esse estudo consultou minutas e portarias da PNAISH, documentos orientadores sobre os eixos da política, relatórios de eventos realizados pelo MS sobre o tema, atas e relatos de reuniões técnicas desenvolvidas por membros da equipe técnica da COSAH ao longo desse período, bem como anotações de diários individuais dos atores que hoje atuam na coordenação.

O Quadro 1 descreve os documentos utilizados no estudo, incluindo atos normativos e documentos técnicos que detalham as bases conceituais e operacionais da política, além de relatórios e materiais técnicos de comunicação que refletem os esforços contínuos para adequar a PNAISH às necessidades da população masculina. Também foram consultadas notas técnicas que evidenciam o aprimoramento das diretrizes para o cuidado integral à saúde da população masculina.

Quadro 1
Descrição dos documentos utilizados na análise (2009-2024)

Tais relatos de vivências e experiências enriqueceram os achados e a análise, proporcionando também uma criticidade aprofundada pela visão desses trabalhadores ao longo de 15 anos de gestão da política em nível ministerial.

Diante disso, os dados foram atentamente analisados, identificando ideias recorrentes e elementos significativos. Os dados da pesquisa documental foram analisados por meio da Análise de Conteúdo, na modalidade Temático-Categorial, com base nas obras de Bardin77 Bardin L. Análise de conteúdo. 4a ed. Lisboa: Edições 70; 2011. e Creswell88 Creswell JW. Qualitative inquiry and research design: choosing among five approaches. 2a ed. Thousand Oaks: Sage Publications; 2007.. Esses autores forneceram os instrumentos teóricos e metodológicos necessários para uma análise segura e rigorosa dos dados.

O uso dessa metodologia permitiu organizar e interpretar os dados de forma sistemática, buscando identificar temas, categorias e subcategorias emergentes com base na análise do teor dos documentos. Isso revelou as continuidades e rupturas da gestão da PNAISH em nível federal e possibilitou aprendizados institucionais ao longo do processo histórico de acompanhamento da política.

Por meio dos registros documentais, foram definidas três categorias analíticas centrais, a saber: (1) organização e gestão da Coordenação de Atenção à Saúde do Homem (COSAH) do MS; (2) processo de revisão da PNAISH; e (3) desafios e frentes estratégicas para a implementação da PNAISH. Essas categorias estruturam a discussão deste artigo, sendo apresentadas e exploradas em capítulos específicos.

Os resultados foram expostos de maneira linear e coesa, proporcionando melhor compreensão do processo histórico, além de trazer elementos discursivos transversais que permeiam as distintas temáticas a serem discutidas.

Resultados e discussão

Organização e gestão da Coordenação de Atenção à Saúde do Homem (COSAH)

Ao longo desses 15 anos de existência da política, a área técnica do MS responsável pela gestão da PNAISH enfrentou uma série de desafios, especialmente relacionados ao processo de institucionalização da COSAH, além das constantes mudanças na gestão da coordenação. Durante cerca de 12 anos, a coordenação não constava formalmente no organograma ministerial, operando apenas como uma área técnica setorial. Essa informalidade, aliada à escassez de recursos financeiros para a operacionalização da política, dificultou o apoio à implementação da PNAISH e o fortalecimento da pauta em estados e municípios.

Desde o lançamento da PNAISH até a formalização da COSAH, no período de 2009 a 2019, a influência direta de fatores relacionados ao contexto político-organizacional e à condução nacional da política impactou o processo de implementação da PNAISH.

Ao analisar alguns estudos e materiais técnicos produzidos entre 2009 e 2019, como o estudo desenvolvido pelo Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira99 Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira. Fortalecimento da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (PNAISH): compromisso versus ação na atenção básica [Internet]. Brasília: Fiocruz; 2013 [citado 27 Set 2024]. Disponível em: https://central3.to.gov.br/arquivo/494605/
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sobre a PNAISH, e os cursos de educação a distância sobre paternidade e cuidado, disponibilizados na plataforma Avasus e desenvolvidos em colaboração com o Instituto Promundo e Instituto Papai, observa-se que as parcerias com instituições de pesquisa renomadas colaboraram para o fortalecimento da PNAISH, assim como para o desenvolvimento de materiais que apoiaram as equipes de APS na execução de ações específicas para a população masculina.

No início do processo de implementação da PNAISH, devido à escassez de recursos financeiros para repasse aos municípios, a área técnica de saúde do homem optou por articular-se com outras áreas e políticas do MS, especialmente com a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB). Dessa forma, as ações específicas para a população masculina foram desenvolvidas com outros recursos já existentes, contribuindo para a capilarização e o fortalecimento da política.

No documento sistematizador que reúne os princípios e diretrizes da PNAISH22 Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem: princípios e diretrizes [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2009 [citado 10 Jul 2024]. Disponível em: http://www.unfpa.org.br/Arquivos/saude_do_homem.pdf
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lançado em 2009, é possível perceber um enfoque dado à abordagem específica para os agravos prevalentes na população masculina. Essa abordagem mais biomédica está relacionada à forte influência da Sociedade Brasileira de Urologia (SBU) no lançamento da PNAISH. Segundo Carrara et al.1010 Carrara S, Russo JA, Faro L. A política de atenção à saúde do homem no Brasil: os paradoxos da medicalização do corpo masculino. Physis. 2009; 19(3):659-78. doi: 10.1590/S0103-73312009000300006.
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, a SBU promoveu, desde o início da década, encontros científicos e campanhas de prevenção para o controle do câncer de próstata, com ênfase no debate sobre doenças urológicas.

O debate acadêmico extrapolou o campo biomédico por meio do processo de implementação da PNAISH, com a temática ganhando maior espaço no debate institucional e social. Isso promoveu novas reflexões, principalmente críticas à perspectiva biomédica que a política reforçava no início de sua instituição, passando a vincular o tema da saúde do homem a uma discussão mais abrangente sobre gênero e masculinidades1010 Carrara S, Russo JA, Faro L. A política de atenção à saúde do homem no Brasil: os paradoxos da medicalização do corpo masculino. Physis. 2009; 19(3):659-78. doi: 10.1590/S0103-73312009000300006.
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,11 Leal AF, Figueiredo WS, Nogueira-da-Silva GS. O percurso da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde dos Homens (PNAISH), desde a sua formulação até sua implementação nos serviços públicos locais de atenção à saúde. Cienc Saude Colet. 2012; 17(10):2607-16. doi: 10.1590/S1413-81232012001000010.
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,, como encontrado no Guia do Pré-natal do Parceiro para Profissionais de Saúde e no Guia de Saúde do Homem para Agentes Comunitários de Saúde (ACS).

Nesse contexto, com o avanço dos debates sobre a PNAISH no âmbito acadêmico, institucional e social, os documentos técnicos produzidos pela COSAH passaram a adotar uma abordagem mais voltada ao cuidado integral à saúde do homem, com foco na promoção da saúde e na abordagem das masculinidades.

A COSAH foi formalizada apenas em 2019, por meio do Decreto n. 9.795/2019. Acredita-se que sua formalização resultou do esforço da então gestão do MS, no governo ultraconservador de Jair Bolsonaro, de “esvaziar” a agenda da área técnica de saúde da mulher do MS, localizada no mesmo departamento que a saúde do homem. Essa tentativa de apagamento da área de saúde da mulher fundamenta-se no fato de que essa área vinha sendo marcada por avanços na agenda de direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, um tema naturalmente rejeitado pelo governo vigente devido à sua agenda de restrição de direitos, sobretudo os direitos das mulheres.

É importante lembrar que, nesse mesmo período, o Governo Federal, por meio do MS, priorizou agendas no contexto dos ciclos de vida que incluíram a redução do acesso ao aborto legal, a implementação de diretrizes para a abstinência sexual entre adolescentes e o bloqueio de agendas consideradas feministas, como o combate à violência obstétrica1111 Biroli F, Tatagiba L, Quintela DF. Reações à igualdade de gênero e ocupação do Estado no governo Bolsonaro (2019-2022). Opiniao Publica. 2024; 30:e3013. doi: 10.1590/1807-019120243013.
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Logo, depreende-se que a visibilidade dada à PNAISH entre 2019 e 2022, com um forte movimento de visibilidade às agendas da área técnica no MS, efetivamente compunha uma estratégia para marginalizar o debate sobre a saúde das mulheres, reduzindo seu acesso a políticas de cuidado e saúde reprodutiva.

Afortunadamente, importantes parcerias institucionais realizadas pela COSAH durante esse período permitiram a construção de agendas sérias e de grande impacto para o fortalecimento da PNAISH nos territórios. Uma dessas parcerias, realizadas com a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), possibilitou que, com os parceiros da academia, os técnicos da coordenação realizassem um acompanhamento mais próximo da implementação da política nos municípios.

Essa mesma parceria institucional viabilizou uma forte indução in loco da agenda do eixo de paternidade e cuidado da PNAISH, que inclui a Estratégia Pré-natal do Parceiro (EPNP). Foram realizadas oficinas de formação e difusão da EPNP em todas as Unidades da Federação, alcançando mais de 1.700 trabalhadores. A EPNP, caracterizada principalmente por um procedimento a ser realizado pelos profissionais e registrado nos sistemas de informações oficiais da APS, favorece a aproximação, a compreensão e o entendimento dos trabalhadores da APS em relação à pauta da saúde do homem, fortalecendo, assim, toda a agenda da PNAISH.

Além disso, a referida parceria permitiu, ainda, uma perspectiva de problematização da construção social das masculinidades, mesmo que a expressão “gênero” não fosse abordada diretamente, sendo explicitamente vetada pelo governo nas agendas da época. Apesar desse silenciamento, avalia-se que essa parceria com a academia, além da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas/OMS), apoiou a realização de ações de qualificação para gestores e profissionais de saúde de estados e municípios para implementação dos cinco eixos da PNAISH. Além disso, possibilitou a manutenção de alguns princípios da PNAISH, mesmo diante de uma ação organizada do governo Bolsonaro que se empenhava em cercear direitos e excluir da política pública a compreensão de gênero como um determinante social da saúde.

Outra dimensão identificada na análise da atuação da COSAH na gestão federal da PNAISH diz respeito à disponibilidade orçamentária da coordenação para ações de apoio à implementação da política. O orçamento disponível para a área, que chegou a mais de R$ 8.000.000,00 (oito milhões de reais) em 2015, sofreu sucessivos cortes, chegando a apenas R$ 4.000.000,00 (quatro milhões de reais) em 2023, ou seja, um decréscimo de mais de 50% no orçamento da coordenação.

Sousa et al.1212 Sousa AR, Oliveira JA, Almeida MS, Pereira Á, Almeida ÉS, Escobar OJV. Implementação da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem: desafios vivenciados por enfermeiras. Rev Esc Enferm USP. 2021; 55:e03759. doi: 10.1590/S1980-220X2020023603759.
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realizaram uma avaliação da implementação da PNAISH entre profissionais de enfermagem e identificaram que a baixa disponibilidade orçamentária se mostrou um grande limitador para a continuidade das ações e o comprometimento desses profissionais no processo de execução política.

No âmbito federal, durante um longo período, a área técnica de saúde do homem fez parte do Departamento de Ações Programáticas Estratégicas (Dapes), da Secretaria de Atenção à Saúde (SAS), cujo objetivo era desenvolver ações direcionadas para grupos específicos. Essa “localização institucional” pode ser considerada estratégica, pois coloca a pauta em outras coordenações, como as de Saúde da Criança e Aleitamento Materno, de Saúde do Adolescente e do Jovem, de Saúde da Mulher, de Saúde do Idoso (que atualmente fazem parte do Departamento de Gestão do Cuidado Integral - DGCI/Saps) e de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas. Entretanto, percebeu-se, na prática, que a área técnica acabou conduzindo a política de forma paralela, mas desarticulada com o processo de implementação da PNAB, que orientou a organização e o trabalho na APS tendo, inclusive, passado por dois processos de revisão já na vigência da PNAISH.

O processo de revisão da PNAISH

Segundo Carrara et al.1010 Carrara S, Russo JA, Faro L. A política de atenção à saúde do homem no Brasil: os paradoxos da medicalização do corpo masculino. Physis. 2009; 19(3):659-78. doi: 10.1590/S0103-73312009000300006.
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, revelar a saúde do homem como foco de ação governamental implica refletir as particularidades das necessidades de saúde dos homens e problematizar que os sentidos das “novas” necessidades de saúde constituem uma complexa articulação de processos econômicos, culturais, tecnológicos e políticos.

Nesse sentido, a PNAISH passou por um amplo processo de revisão pelos encontros coletivos com as instâncias gestoras do SUS, coordenadores e profissionais de saúde, além do controle social, incluindo o debate na plenária da 312ª reunião do Conselho Nacional de Saúde e na 1ª Conferência Nacional de Vigilância em Saúde. Algumas das oficinas realizadas no processo de revisão ocorreram durante a 1ª Conferência Nacional de Vigilância em Saúde, por meio de grupos focais com diferentes áreas do MS, além de discussões no Pleno do Conselho Nacional de Saúde. De acordo com o relatório dos grupos focais realizados, todas essas atividades foram realizadas ao longo de 2018.

Entre as críticas levantadas nesses grupos focais, destacam-se: a escassa operacionalização da abordagem de gênero, reconhecendo as diversas masculinidades, bem como a intersecção com as dimensões de raça e cor; as doenças e os agravos do homem ainda focados apenas no aparelho geniturinário; a ausência na abordagem de identidade de gênero e transmasculinidades; a limitação ao recorte da faixa etária de 20 a 59 anos, ao qual se destina a PNAISH; a supressão do recorte de gênero no mundo do trabalho; e a ausência de um eixo temático relacionado à Saúde Mental, ao álcool e a outras drogas1313 Brasil. Conselho Nacional de Saúde. Relatório Final da 1ª Conferência Nacional de Vigilância em Saúde [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2018 [citado 27 Set 2024]. Disponível em: https://www.gov.br/conselho-nacional-de-saude/pt-br/assuntos/conferencias/1a-cnvs/relatorio-final-da-1a-cnvs.pdf
https://www.gov.br/conselho-nacional-de-...
,1414 Brasil. Conselho Nacional de Saúde. Ata da Tricentésima décima segunda reunião ordinária do Conselho Nacional de Saúde - CNS [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2018 [citado 27 Set 2024]. Disponível em: https://docs.bvsalud.org/biblioref/2021/03/1150354/ata312_ro.pdf
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Pelos espaços de debate público, as principais sugestões de modificação na política vigente foram: a inclusão de todos os ciclos de vida, dos termos cuidado e autocuidado, e dos determinantes sociais de saúde, reconhecendo as vulnerabilidades socioculturais das masculinidades; o enfoque sobre a qualificação dos profissionais e gestores da saúde para o atendimento da população masculina; o estímulo e o incentivo aos gestores no desenvolvimento de ações e estratégias específicas; a inserção da discussão das masculinidades, transmasculinidades, abordagem raça/cor e etnia; e a incorporação dos saberes tradicionais dos homens do campo, da água e da floresta, de ciganos e migrantes, além de destacar a prevenção e a promoção, aprimorando o foco na APS.

Após esses debates, a COSAH elaborou um documento que passou por diversas versões, contando com a participação de todos os envolvidos anteriormente e resultando em um texto final aprimorado. Entretanto, no período de 2019 a 2022, com a mudança na gestão federal, foram realizadas alterações que retrocederam anos de conquistas sociais, tais como a exclusão dos termos “gênero”, “saúde sexual” e “saúde reprodutiva” da política, além do distanciamento das demais esferas de gestão do SUS. Tais exclusões comprometeram significativamente os princípios fundamentais do arcabouço teórico-prático da PNAISH.

A dinâmica do processo de revisão da PNAISH foi marcada, então, por um revisionismo1515 Passos, FA. O revisionismo e os perigos da mentira deliberada na perspectiva de Hannah Arendt. Trans/Form/Ação. 2021; 44(3):115-34. doi: 10.1590/0101-3173.2021.v44n3.10.p115.
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e por alterações epistemológicas da fundamentação da referida política, visto que os relatórios dos grupos focais de discussão apresentaram outras demandas supracitadas, que foram desconsideradas no texto publicado na Portaria GM/MS n. 3.562, de 12 de dezembro de 2021.

O texto é fruto do processo original de revisão da PNAISH e estabelecia a inclusão entre os objetivos do enfoque de gênero, orientação sexual, identidade de gênero e condição étnico-racial nas ações socioeducativas, registrando, como uma das competências da União, promover ações educativas relacionadas aos estereótipos de gênero22 Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem: princípios e diretrizes [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2009 [citado 10 Jul 2024]. Disponível em: http://www.unfpa.org.br/Arquivos/saude_do_homem.pdf
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. No entanto, toda essa formulação foi suprimida no texto da portaria de 2021.

O texto publicado em 2021 enfatiza a necessidade de promoção do acesso dos homens à Rede de Atenção à Saúde (RAS), com destaque para a função da APS na transversalização das ações com os demais ciclos de vida. Além disso, preconiza o respeito às diferentes expressões de masculinidades, reconhecendo sua construção sociocultural, e inclui cinco eixos de trabalho: acesso e acolhimento; prevenção de violência e acidentes; sexualidade responsável e planejamento familiar; paternidade e cuidado; e doenças prevalentes na população masculina1616 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS nº 3.562, de 12 de Dezembro de 2021. Altera o Anexo XII da Portaria de Consolidação GM/MS nº 2, de 28 de Setembro de 2017, para dispor sobre a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (PNAISH) [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2021 [citado 10 Jul 2024]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2021/prt3562_15_12_2021.html
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No entanto, mais uma vez contrariando o processo de revisão, a política publicada pela gestão bolsonarista sofreu modificações que retiraram a palavra “gênero” de todo o texto, reforçando a ofensiva da retórica reacionária antigênero de grupos conservadores1717 Junqueira RD. A invenção da “ideologia de gênero”: um projeto reacionário de poder. Brasília: Letras Livres; 2022..

Apesar disso, o termo “construção sociocultural das masculinidades” no novo texto da política demarca uma permanência e uma resistência dos estudos de gênero nas políticas públicas, mesmo com o enfraquecimento do debate, imprescindível para a gestão de ações voltadas à saúde dos homens.

A interdição do conceito “gênero” e sua desvirtuação para o desconhecido conceito de “ideologia de gênero”, promovida como falsa premissa de desconstrução dos papéis de gênero tradicionais e, por consequência, da família, dentro da formulação de políticas públicas, despertou uma espécie de pânico moral.

Esse discurso neoconservador, advindo de representações políticas de movimentos fundamentalistas e partidos ligados à extrema-direita, se baseia na família heteronormativa e na suposta ameaça que essa estrutura enfrenta, associando-a à alegada doutrinação e sexualização precoce de crianças promovidas por “ideólogos de gênero”. Nesse contexto, a “ideologia de gênero” é utilizada como uma ferramenta retórica para impedir os avanços dos direitos humanos LGBTQIAPN+, funcionando como um instrumento de violência simbólica. Esse discurso recorre a argumentos falsos e religiosos para marginalizar as populações sexo-diversas, relegando-as a uma posição secundária de humanidade1818 Bitencourt LO, Oliveira MHB. ‘Meninos vestem azul e meninas vestem rosa’: análise do discurso crítica sobre a ‘ideologia de gênero’ no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Saude Debate. 2023; 47(1 Spec No):e9092. doi: 10.1590/2358-28982023E19092P.
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A partir de 2010, uma agenda ofensiva estruturou-se em âmbito nacional, encontrando no termo “ideologia de gênero” “uma forma de unificação discursiva da oposição às políticas em gênero e sexualidade que eram implementadas pelo Governo Federal e por diversos governos locais”1919 Moreira AEMM, Teixeira CF. Evangélicos, ‘agenda neoconservadora’ e política de saúde das mulheres: uma revisão narrativa (2016-2021). Saude Debate. 2024; 48(141):e8910. doi: 10.1590/2358-289820241418910P.
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(p. 114). Essa mobilização social induziu a retirada das expressões “gênero” e “orientação sexual” de diversas políticas públicas, como o plano nacional de educação e materiais de educação em saúde elaborados pelo Departamento de Prevenção ao HIV/AIDS do MS, iniciando uma onda que teve como um dos ápices a disseminação da falácia de que o governo federal distribuía um kit gay. Com isso, em muitos municípios, houve exclusão total de qualquer estratégia ou proposição que envolvesse temas relacionados a gênero e a sexualidade2020 Aragusuku HA. O percurso histórico da “ideologia de gênero” na Câmara dos Deputados: uma renovação das direitas nas políticas sexuais. Agenda Polit. 2020; 8(1):106-30..

O período de 2016 a 2022 no Brasil foi marcado pelo fortalecimento do autoritarismo e desse neoconservadorismo, que contribuiu para o retrocesso de conquistas históricas dos movimentos feministas e LGBTQIAPN+, retrocedendo, também, na equidade de gênero no campo das políticas de saúde1919 Moreira AEMM, Teixeira CF. Evangélicos, ‘agenda neoconservadora’ e política de saúde das mulheres: uma revisão narrativa (2016-2021). Saude Debate. 2024; 48(141):e8910. doi: 10.1590/2358-289820241418910P.
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, bem como no fortalecimento de discursos conservadores masculinistas que se contrapõem às políticas que problematizam as desigualdades de direitos entre homens e mulheres2121 Cavati B, Prates N. Fino señores: misoginia, masculinismo e extrema direita. Rev Pet Economia UFES. 2023; 3(3):25-8., como no caso da PNAISH.

A alteração da expressão “direitos sexuais e direitos reprodutivos” – que vinha sendo trabalhada no processo democrático de revisão da PNAISH – para “sexualidade responsável e planejamento familiar”, seguindo orientação da então gestão do MS, demonstra maior preocupação com questões de fundamentação moralista em vez de buscar a inclusão e o reconhecimento de diversos grupos da sociedade. Além disso, retrocede a conquista de que o planejamento da própria reprodução é um direito de todos e não somente das famílias cis-heteronormativas. Embora a expressão “direitos sexuais e direitos reprodutivos” possa parecer uma redundância, ela é importante para dar visibilidade também ao exercício livre da sexualidade, protegendo e promovendo os direitos relativos a esse conceito e à identidade de gênero. Como demonstra Gomes (2021)2222 Gomes JCA. Direitos sexuais e reprodutivos ou direitos sexuais e direitos reprodutivos? Dilemas e contradições nos marcos normativos nacionais e internacionais. Rev Direito GV. 2021; 17(3):e2136. doi: 10.1590/2317-6172202136.
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[...] a indiferenciação dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos tem o potencial de subordinar e condicionar os primeiros aos segundos, invisibilizando-os. Dessa forma, a abordagem de sexualidade e da identidade de gênero é limitada a uma visão médica e/ou cis-heteronormativa, impactando negativamente direitos de sujeitos e grupos frequentemente já marginalizados e inviabilizando uma perspectiva mais positiva e emancipatória da sexualidade. Nesse contexto, conferir aos direitos sexuais conteúdo autônomo tem permitido não apenas abarcar e mobilizar práticas e identidades tradicionalmente excluídas, mas também conceber perspectivas contra-hegemônicas de sexualidade e gênero2222 Gomes JCA. Direitos sexuais e reprodutivos ou direitos sexuais e direitos reprodutivos? Dilemas e contradições nos marcos normativos nacionais e internacionais. Rev Direito GV. 2021; 17(3):e2136. doi: 10.1590/2317-6172202136.
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. (p. 26)

Além disso, o discurso neoconservador produziu alterações nas políticas públicas que obscureceram os Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos (DSDR), reforçando padrões de sexualidade e de concepção nos moldes da “família tradicional cristã”, com intuito de bloquear avanços no campo dos direitos sexuais, redefinir o sentido dos direitos e das políticas públicas e, em alguns casos, legitimar a censura1111 Biroli F, Tatagiba L, Quintela DF. Reações à igualdade de gênero e ocupação do Estado no governo Bolsonaro (2019-2022). Opiniao Publica. 2024; 30:e3013. doi: 10.1590/1807-019120243013.
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.

Entende-se, então, que o processo participativo e democrático de revisão da PNAISH, ao assumir uma gestão de extrema direita no MS, sucumbiu, em parte, aos riscos relacionados ao uso dessa política para o reforço de padrões de gênero e sexualidade, visando à produção de modos hegemônicos de masculinidade no âmbito das políticas públicas de saúde.

Desafios e frentes estratégicas para a implementação da PNAISH

O fortalecimento da PNAISH pode representar, perante o Estado brasileiro, formas de reconhecer e cuidar dos corpos masculinos como sujeitos de direitos e cidadania. Associar masculinidades e práticas de cuidado se contrapõe ao histórico disciplinar do Estado que, por meio das forças de segurança pública, vigia, disciplina e pune especialmente os corpos que performam masculinidades subordinadas, como as masculinidades negras, gays e de classes populares2323 Mbembe A. Necropolítica. 3a ed. São Paulo: N-1 edições; 2018..

Sousa et al.1212 Sousa AR, Oliveira JA, Almeida MS, Pereira Á, Almeida ÉS, Escobar OJV. Implementação da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem: desafios vivenciados por enfermeiras. Rev Esc Enferm USP. 2021; 55:e03759. doi: 10.1590/S1980-220X2020023603759.
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, que analisaram a implementação da PNAISH, apontam que a análise crítica da política revela falhas em sua concepção e implementação relacionadas à sua operacionalização nos serviços de APS. Além disso, destacam que o título da política, ao utilizar o termo genérico “homem”, ignora a multiplicidade de masculinidades e reforça um modelo único de masculinidade, sem questionamentos sobre as várias formas de ser homem e suas relações com as práticas de saúde e cuidado.

Ainda de acordo com Sousa et al.1212 Sousa AR, Oliveira JA, Almeida MS, Pereira Á, Almeida ÉS, Escobar OJV. Implementação da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem: desafios vivenciados por enfermeiras. Rev Esc Enferm USP. 2021; 55:e03759. doi: 10.1590/S1980-220X2020023603759.
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, os principais obstáculos à implementação da política, na perspectiva de profissionais de saúde da APS, incluem a inoperância das ações governamentais, as fragilidades na gestão municipal, o subfinanciamento e a descontinuidade das ações. Além disso, há carência de orientações técnicas claras aos trabalhadores do SUS sobre como concretizar a PNAISH no cotidiano dos serviços, o que limita a ampliação do acesso dos homens aos serviços de saúde e a efetividade das ações propostas pela política.

Para fortalecer as ações governamentais em todos os níveis de gestão, faz-se necessária a criação de protocolos claros e orientações ministeriais para guiar o trabalho de profissionais na Atenção à Saúde masculina. Além disso, é fundamental aumentar o financiamento tripartite voltado à implementação da política, garantindo que as equipes tenham os recursos necessários para realizar suas atividades de forma eficaz. Outra recomendação é promover capacitações específicas para os profissionais de saúde, focando nas demandas masculinas e na ampliação do acesso aos serviços por essa população1212 Sousa AR, Oliveira JA, Almeida MS, Pereira Á, Almeida ÉS, Escobar OJV. Implementação da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem: desafios vivenciados por enfermeiras. Rev Esc Enferm USP. 2021; 55:e03759. doi: 10.1590/S1980-220X2020023603759.
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.

Além disso, observa-se que a baixa participação social, com ausência de representações de homens que debatam masculinidades e saúde, invisibiliza a PNAISH no âmbito do controle social do SUS. De acordo com Souto2424 Souto KMB. Participação social, políticas públicas e os caminhos da (para a) democracia participativa: trajetórias das políticas de saúde das mulheres, saúde do homem e saúde LGBT. Brasil. 2003-2019 [tese]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca; 2022., é importante salientar que, no Brasil, não existe um movimento social coeso e unificado com foco nos homens.

A presença masculina é marcante em diversos movimentos sociais, especialmente no sindical, porém sua participação se dá como trabalhadores, defendendo seus direitos laborais, e não sob a identidade de “homem” ou com o objetivo de discutir as masculinidades. A invisibilidade da participação da sociedade civil na implementação da PNAISH compromete a corresponsabilização pelas ações e o reconhecimento da relevância da política1212 Sousa AR, Oliveira JA, Almeida MS, Pereira Á, Almeida ÉS, Escobar OJV. Implementação da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem: desafios vivenciados por enfermeiras. Rev Esc Enferm USP. 2021; 55:e03759. doi: 10.1590/S1980-220X2020023603759.
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. Dessa forma, considera-se fundamental, até para a própria subsistência da política, a difusão e a formação de base social que dê sustentação política, técnica e teórica à PNAISH, o que pode ser alcançado por meio da capacitação qualificada para ativistas e representantes da sociedade civil, especialmente aqueles que atuam estrategicamente em instâncias de controle social no âmbito do SUS, contribuindo para o processo de implementação e monitoramento da PNAISH.

Observa-se que, a partir de 2023, a temática da violência voltou a ser reconhecida como uma questão de gênero importante. Essa observação apresenta a necessidade de uma atuação estratégica voltada à prevenção das violências envolvendo homens (como vítimas ou perpetradores), a fim de fortalecer o eixo de prevenção de violência da PNAISH.

A literatura sobre a temática aponta o crescimento, internacionalmente, do entendimento de que, para prevenir a violência doméstica/intrafamiliar, é fundamental o desenvolvimento de ações de prevenção e enfrentamento das violências junto do público masculino, elaborando estratégias de cuidado e atenção para identificação e prevenção do envolvimento dos homens nessas situações de violência. De acordo com Nothaft e Beiras2525 Nothaft RJ, Beiras A. O que sabemos sobre intervenções com autores de violência doméstica e familiar? Rev Estud Fem. 2019; 27(3):e56070. doi: 10.1590/1806-9584-2019v27n356070.
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Principalmente porque, na maioria dos casos, são homens que perpetram essa violência, as construções de masculinidades desempenham um papel crucial nas suas formas, e os homens também têm a ganhar com a sua diminuição, tanto em relacionamentos mais saudáveis quanto em uma maior liberdade em relação às “definições dominantes de masculinidade”. Nesse sentido, só conseguiremos prevenir violências se mudarmos atitudes, identidades e relações que encorajam violência, pois a linguagem relacional violenta não se modifica sem mudanças de percepção dos atores envolvidos2525 Nothaft RJ, Beiras A. O que sabemos sobre intervenções com autores de violência doméstica e familiar? Rev Estud Fem. 2019; 27(3):e56070. doi: 10.1590/1806-9584-2019v27n356070.
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. (p. 1)

Entre 2017 e 2019, o eixo de prevenção de violência e acidentes da PNAISH teve grande visibilidade, uma vez que, nesse período, a COSAH liderou o grupo de trabalho de prevenção do suicídio do MS.

Nesse ponto, vale registrar o trabalho integrado do Comitê Gestor de Prevenção ao Suicídio para a produção de materiais, uma vez que esse processo se deu de forma coletiva, contando com a participação de diversas Secretarias do MS, da OPAS/OMS, além de ter incorporado contribuições de outros parceiros, como secretarias estaduais e municipais de saúde, associações, conselhos de classes e universidades.

Nos anos seguintes, entre as produções desse grupo, citamos: a Agenda de Ações Estratégicas para a Vigilância e Prevenção do Suicídio e Promoção da Saúde no Brasil: 2017 a 2020; a cartilha com orientação para veículos de comunicação sobre suicídi e um folheto voltado para a população; além do Boletim Epidemiológico sobre o tema. Apesar dessas produções, o comitê foi extinto pelo Decreto n. 9.759/2019, juntamente com um grande número de outros grupos de trabalho do MS, interrompendo um trabalho bem-sucedido.

No que se refere à paternidade e ao cuidado, a “Carta do Recife”, elaborada pelos participantes do “Seminário Nacional e Internacional Paternidade e Cuidado”, realizado pela COSAH e pelo GEMA/UFPE em agosto de 2023, aborda diversos pontos essenciais para promover uma política pública de atenção integral aos homens na saúde, visando à promoção desse eixo da política no Brasil. Embora a paternidade fosse o tema central do evento, os trabalhos desenvolvidos resultaram em uma carta ampla, que demarca um momento político de retomada das discussões sobre gênero e direitos sexuais e reprodutivos no país.

Esse documento pode ser considerado um marco da retomada dos princípios originais da PNAISH, passando também a incluir diálogos e intersecções com performances de gênero e masculinidades contemporâneas, emergentes no campo político nos últimos 15 anos.

Entre os principais pontos, destacam-se a inclusão e o apoio aos homens no cuidado gestacional e paterno, criando condições para que possam acompanhar o pré-natal, parto e pós-parto, garantindo e pautando a ampliação do direito à licença-paternidade. Reconhece-se, ainda, as particularidades do exercício da paternidade por homens cisgênero ou transgênero, considerando marcadores culturais, simbólicos e estruturais relativos a raça/cor, origem, classe social, território, orientação sexual, identidade de gênero e diversidade de famílias.

Além disso, a carta defende a acolhida de diversos tipos de pais, incluindo adolescentes e jovens que enfrentam vulnerabilidades específicas devido à idade, e a promoção da equidade de gênero no cuidado infantil, incentivando o compartilhamento de tarefas domésticas e a participação dos homens no planejamento reprodutivo e na prevenção de infecções sexualmente transmissíveis. Ademais, ainda recomenda o fomento de políticas que abordem as repercussões do machismo e do patriarcado sobre a saúde de homens, mulheres e crianças. Essas ações visam desconstruir valores e estereótipos tradicionais associados ao masculino, promovendo masculinidades pautadas no respeito, na igualdade e nas responsabilidades compartilhadas.

A carta também enfatiza a facilitação do acesso a cuidados de saúde e ao apoio psicossocial, ampliando a oferta de apoio psicológico e cuidados em Saúde Mental para homens no exercício da paternidade, promovendo o desenvolvimento de afetos e compromissos com os cuidados domiciliares e familiares. Ademais, defende a disponibilização de ofertas formativas e a disseminação do pré-natal do parceiro como forma de promover o acesso dos homens aos cuidados em saúde e ao exercício da paternidade.

Considerações finais

A implementação, o fortalecimento e o alcance dos objetivos da PNAISH ainda enfrentam agruras de caráter político e organizacional no SUS. Tal fato desencadeia as desigualdades no acesso à saúde, a persistência de estereótipos de masculinidade, a falta de recursos humanos e financeiros e a dificuldade de alcançar a população masculina em situação de vulnerabilidade.

A superação desses desafios exige um esforço multissetorial e interinstitucional que valorize a participação social e reconheça como pressupostos essenciais o conjunto de determinantes e condicionantes do processo saúde-doença-cuidado da população masculina na sociedade brasileira.

Diante dos desafios e potencialidades encontrados na implementação da PNAISH nos últimos 15 anos, observa-se que o fortalecimento dessa política tem o potencial de colaborar na construção e na expressão de masculinidades possíveis e sensíveis para intervir sobre as iniquidades nas relações de gênero, assim como promover a participação ativa dos homens na construção de uma sociedade igualitária, não violenta, solidária e justa para homens e mulheres.

Para isso, é necessário fomentar projetos e programas que construam espaços de escuta e problematização dos processos de subjetivação masculinos, como grupos terapêuticos de homens, grupos de autoajuda e ações de saúde desenvolvidas em espaços tradicionalmente masculinos, como campos de futebol, bares, barbearias, entre outros.

Ressalta-se que a retomada da perspectiva de gênero como elemento norteador da PNAISH, a partir de 2023, propicia a inclusão da dimensão relacional de gênero nas ações de promoção à saúde da população masculina. A proximidade dos homens com as práticas de cuidado de si e dos outros pode colaborar na distribuição das tarefas de cuidado entre homens e mulheres.

Ainda, a concretização da PNAISH no cotidiano do SUS demanda um investimento em APS, expandindo o acesso dos homens aos serviços de saúde e promovendo um cuidado integral com vultoso enfoque na promoção da saúde e na prevenção de doenças.

Esse processo possibilitará o desenvolvimento de estratégias de enfrentamento ao machismo e aos estereótipos de masculinidade, promovendo, assim, modelos positivos de masculinidade que valorizem a saúde física e mental, o cuidado com a família e a comunidade, e o engajamento social. Por isso, é tão necessária a promoção de pesquisas científicas sobre a saúde do homem que agreguem conhecimento e subsidiem a formulação de políticas públicas efetivas e eficientes.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Dez 2024
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    08 Ago 2024
  • Aceito
    08 Nov 2024
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br