Transmasculinidades, gestação e acolhimento na rede de saúde

Trans masculinities, pregnancy and welcoming in health services

Transmasculinidades, gestación y acogida en la red de salud

Matheus Madson Lima Avelino Lorrainy da Cruz Solano Ricardo Burg Ceccim João Mário Pessoa JúniorSobre os autores

Resumos

A gestação e a parentalidade de homens trans tensionam as fronteiras dos padrões hegemônicos de gênero, masculinidade e feminilidade, ampliando a discussão sobre sexualidade e reprodução no âmbito das políticas de saúde. Propomos uma reflexão sobre as implicações da gestação transmasculina para os serviços e políticas de saúde partindo de uma pesquisa-intervenção realizada em um ambulatório de saúde sexual e reprodutiva, em um hospital maternidade do Nordeste brasileiro, e apresenta a “Caderneta do Gestante” como uma abordagem de acolhimento em saúde que favorece a inclusão da diversidade de gênero, o exercício dos direitos reprodutivos das pessoas transmasculinas e o cuidado integral em saúde às pessoas trans. O contemporâneo reivindica uma pauta das transmasculinidades aos direitos reprodutivos de pessoas transmasculinas, sendo crucial aos profissionais e serviços de saúde que repensem a atenção integral à saúde dos homens e suas masculinidades diversas.

Palavras-chave
Transmasculinidades; Gestação; Parentalidade; Saúde reprodutiva


Pregnancy and parenting among trans men are pushing the boundaries of hegemonic patterns of gender, masculinity and femininity, broadening the discussion of sexuality and reproduction in the context of health policies. We propose a reflection on the implications of transmasculine pregnancy for health services and policies based on an intervention study conducted in a sexual and reproductive health outpatient clinic in a maternity hospital in Brazil’s Northeast region. We present the "The Pregnancy Book " as a welcoming approach to healthcare that promotes the inclusion of gender diversity, the exercise of transmasculine people's reproductive rights and comprehensive health care for trans people. Contemporary trans masculinities demand the creation of an agenda for the reproductive rights of transmasculine people. It is crucial that health professionals and services rethink comprehensive health care for men and their diverse masculinities.

Keywords
Trans masculinities; Pregnancy; Parenting; Reproductive health


La gestación y la parentalidad de hombres trans tensionan las fronteras de los estándares hegemónicos de género, masculinidad y femineidad, ampliando la discusión sobre sexualidad y reproducción en el ámbito de las políticas de salud. Proponemos una reflexión sobre las implicaciones de la gestación transmasculina para los servicios y políticas de salud, partiendo de una investigación-intervención realizada en un ambulatorio de salud sexual y reproductiva, en un hospital maternidad del nordeste brasileño y presenta la “Cartilla del Gestante” como un abordaje de acogida en salud que favorece la inclusión de la diversidad de género, el ejercicio de los derechos reproductivos de las personas transmasculinas y el cuidado integral de salud a las personas trans. Lo contemporáneo reivindica de las transmasculinidades una pauta para los derechos reproductivos de personas transmasculinas, siendo crucial que los profesionales y servicios de salud repiensen la atención integral a la salud de los hombres y sus masculinidades diversas.

Palabras clave
Transmasculinidades; Gestación; Parentalidad; Salud reproductiva


Introdução

A gestação em pessoas transmasculinas, as paternagens e maternagens de homens e mulheres transsexuais, travestis e pessoas não binárias como fatos sociais tensionam as fronteiras dos padrões hegemônicos de gênero, masculinidade e feminilidade, ampliando a discussão sobre sexualidade e reprodução mediante o rompimento com a ideia da gestação como exclusividade do corpo feminino cisgênero e heterossexual11 Dantas DS, Neves ALM. A parentalidade de homens trans: uma revisão integrativa. REBEH. 2023; 6(20):60-82.. A expressão “genitorialidade” tem sido utilizada em lugar de “parentalidade”, justamente para dar lugar à parentalidade biológica, não apenas a afetiva ou legal, quando se trata de as pessoas LGBT+ conceberem, gestarem, parirem e amamentarem os próprios filhos22 Pavei-Luciano M, Ceccim RB. Preconceito e desconhecimento no ensino e na atenção: saúde da família e a genitorialidade LGBT+. In: Ferla AA, Funghetto SS, organizadores. Reflexões sobre formação em saúde: trajetórias e aprendizados no percurso de mudanças. Porto Alegre: Editora Rede UNIDA; 2022. p. 227-44.. No âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), esses fatos se colocam como uma emergência à produção de ações que respondam às necessidades de saúde da população trans para além dos processos de afirmação de gênero11 Dantas DS, Neves ALM. A parentalidade de homens trans: uma revisão integrativa. REBEH. 2023; 6(20):60-82..

Contudo, o olhar mais aprofundado das políticas de atenção integral que têm o gênero em sua centralidade, especialmente a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (PNAISH), revela uma perspectiva cisgênera e heterossexual da compreensão dos direitos sexuais e reprodutivos, culminando no apagamento das subjetividades trans e travestis, sobretudo pela invisibilidade da gestação por pessoas transmasculinas33 Martins AM, Malamut BS. Análise do discurso da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem. Saude Soc. 2013; 22(2):429-40.,44 Angonese M, Lago MCS. Direitos e saúde reprodutiva para a população de travestis e transexuais: abjeção e esterilidade simbólica. Saude Soc. 2017; 26(1):256-70., como da amamentação por pessoas transmasculinas e transfemininas nas políticas de aleitamento materno e puericultura55 Bolissian AM, Ferreira BEC, Stofel NS, Borges FA, Camargo BT, Salim NR, et al. Aleitamento humano e a perspectiva da interseccionalidade queer: contribuições para a prática inclusiva. Interface (Botucatu). 2023; 27:e220440. doi: 10.1590/interface.220440.
https://doi.org/10.1590/interface.220440...
.

As ciências da saúde colocaram as questões reprodutivas das pessoas trans em um lugar de abjeção, operando-se uma condição de esterilidade simbólica. Reprodução e genitorialidades, portanto, parecem noções impensáveis quando se trata de considerar sujeitos constituídos pela ideia de abjeção44 Angonese M, Lago MCS. Direitos e saúde reprodutiva para a população de travestis e transexuais: abjeção e esterilidade simbólica. Saude Soc. 2017; 26(1):256-70.. Os profissionais de saúde nem sequer cogitam que a reprodução possa ser possível ou mesmo desejada pelas pessoas trans e travestis, criando assim uma lacuna assistencial para as questões reprodutivas das pessoas trans.

Este trabalho tem por objetivo refletir sobre as implicações da gestação transmasculina para as políticas e serviços de saúde, especialmente a PNAISH, partindo de uma pesquisa-intervenção realizada em um ambulatório de um hospital maternidade durante o acompanhamento de um homem trans grávido. Apresenta a “Caderneta do Gestante” como uma abordagem de acolhimento e prática de cuidado integral em saúde que favorece a inclusão das subjetividades transmasculinas, o exercício dos seus direitos reprodutivos e a integralidade da Atenção em Saúde.

Método

O cenário desta pesquisa é um ambulatório de um hospital maternidade no Nordeste brasileiro, uma instituição filantrópica integrada ao SUS, referência para a Rede Alyne na região. O ambulatório é um atendimento para pacientes externos voltado à Atenção à Saúde sexual e reprodutiva, com uma linha de cuidado às pessoas LGBT+, atuando na perspectiva de cuidado integral, incluindo acompanhamento pré-natal para pessoas trans e planejamento familiar de casais transcentrados66 Avelino MML. Cartografias da produção de cuidado em saúde à população LGBT+ [dissertação]. Mossoró (RN): Universidade Federal Rural do Semi-Árido; 2022.. O ambulatório foi criado com inspiração no modelo consultórios familiares (consultori familiari) da Itália77 Lauria L, Lega I, Pizzi E, Bortolus R, Battimolo S, Tamburini C, et al. Indagine nazionale sui consultori familiari 2018-2019. Risultati generali. Roma: Istituto Superiore di Sanità; 2022., devendo servir de apoio matricial à rede de Atenção Básica dos municípios de sua macrorregião de saúde.

Como instrumentos de pesquisa, foram utilizadas a observação-participante, com registro em diários de campo, as entrevistas semiestruturadas e as “oficinas de pensamento coletivo” (espaço da palavra e oficina de colagem). As oficinas ocorreram em dois momentos: o primeiro foi um espaço de fala com usuários do serviço, mediado pela equipe de referência. Em um encontro posterior, o pesquisador conduziu uma oficina de colagem com um homem trans acompanhado pelo serviço, envolvendo também a população atendida e os profissionais. A atividade teve como palavra geradora o “acolhimento” e contou com uma média de 12 participantes entre pessoas cis e trans, usuários e profissionais.

No contexto da pesquisa-intervenção, a observação participante foi utilizada para além do seu sentido de perceber uma situação social com a finalidade de realizar investigação científica, mas como uma forma de imersão e de implicação no campo de pesquisa88 Passos E, Kastrup V, Escóssia L, organizadores. Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina; 2009. e de inserir-se de modo coparticipante na ação, nesse caso o consultório familiar. A observação participante pode avizinhar-se da etnografia, mas é também uma forma sensível de viver ou habitar o campo da pesquisa. O pesquisador, na pesquisa-intervenção, usa da percepção afetiva e destina sua atenção investigativa àquilo que o campo oferece, não controlando o campo, deixa-se controlar por ele88 Passos E, Kastrup V, Escóssia L, organizadores. Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina; 2009..

Na pesquisa-intervenção não falamos de um observador passivo, neutro e distante do campo, mas implicado nos espaços e nos indivíduos em sua ação cotidiana nos mais diversos ambientes88 Passos E, Kastrup V, Escóssia L, organizadores. Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina; 2009.. Nesse ponto, contextualizamos quem fala sobre essa experiência e sua implicação no campo. O pesquisador e autor principal, um homem cisgênero e aluno de Mestrado, atuava no consultório como pesquisador, facilitando a aproximação dos usuários LGBT+ ao serviço. Entre os demais colaboradores estão uma mulher cisgênero, enfermeira do serviço, que também é coordenadora do consultório, além de dois professores homens cisgêneros da universidade. Um deles é pesquisador do consultório e o outro, orientador da dissertação de Mestrado, vinculado ao programa de Pós-Graduação.

Os dados coletados por meio da observação-participante foram registrados em um diário de campo, enquanto materiais, como produções, gravações e fotografias, foram organizados em um dossiê. O processo de pesquisa é dinâmico, permitindo que as questões emergentes do campo direcionem a condução do trabalho sem a intenção de “congelar” o campo e coletar dados de forma rígida88 Passos E, Kastrup V, Escóssia L, organizadores. Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina; 2009.. Este estudo é parte da dissertação de Mestrado “Cartografias da produção de cuidado em saúde à população LGBT+”66 Avelino MML. Cartografias da produção de cuidado em saúde à população LGBT+ [dissertação]. Mossoró (RN): Universidade Federal Rural do Semi-Árido; 2022.. A pesquisa seguiu as Resoluções n. 466/2012 e n. 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde, com todos os participantes assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e utilizando nomes fictícios. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, sob o parecer n. 54407621.6.0000.5294.

A análise de dados na pesquisa-intervenção focou a captação de emergências, um processo que identifica elementos inesperados, subjetividades e linhas de fuga que surgem durante a intervenção. Essas emergências revelam aspectos fundamentais de saberes institucionalizados no campo, que são analisados pela pesquisa88 Passos E, Kastrup V, Escóssia L, organizadores. Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina; 2009.. Não nos concentramos em interpretar ou agrupar dados em categorias, mas em acompanhar os processos emergentes que ocorreram ao longo da intervenção. A síntese da análise aborda como os desdobramentos da intervenção impactam e transformam o campo e os sujeitos envolvidos.

Os resultados serão apresentados em duas linhas temáticas: a “Gestação como heterocisnormatividade e a formação das políticas de Atenção à Saúde sexual e reprodutiva”, que apresentam os dados da observação-participante e as narrativas dos interlocutores; e a “Caderneta do gestante como abordagem de acolhimento, prática cuidadora e subjetivação transmasculina”, que trata da exposição de um dos produtos da pesquisa, a caderneta de saúde destinada ao acompanhamento de pré-natal de pessoas transmasculinas.

Gestação como heterocisnormatividade nas políticas de Atenção à Saúde sexual e reprodutiva

Os espaços de Atenção à Saúde sexual e reprodutiva, especialmente no planejamento familiar e no acompanhamento da gestação, historicamente reproduzem estereótipos de gênero e padrões hegemônicos de maternidade, paternidade e família, criando ambientes violentos e excludentes para as pessoas LGBT+. Essa exclusão se manifesta na negação da assistência e na invisibilização de casais homoparentais e da gestação de pessoas transmasculinas44 Angonese M, Lago MCS. Direitos e saúde reprodutiva para a população de travestis e transexuais: abjeção e esterilidade simbólica. Saude Soc. 2017; 26(1):256-70.,99 Albuquerque GA, Belém JM, Nunes JFC, Leite MF, Quirino GS. Planejamento reprodutivo em casais homossexuais na estratégia saúde da família. Rev APS. 2018; 21(1):104-11.,1010 Zambrano E. Parentalidades “impensáveis”: pais/mães homossexuais, travestis e transexuais. Horiz Antropol. 2006; 12(26):123-47.. Segundo Zambrano1010 Zambrano E. Parentalidades “impensáveis”: pais/mães homossexuais, travestis e transexuais. Horiz Antropol. 2006; 12(26):123-47., a naturalização da família nuclear heterossexual e cisgênera se baseia no fato biológico da procriação, associando-o a elementos que formam o vínculo familiar. Parentesco, filiação e cuidados com a criação são vistos como tão naturais quanto a concepção, fazendo que qualquer configuração familiar ou gestação fora do contexto cisgênero e heterossexual seja considerada impensável, ignorando seu caráter social22 Pavei-Luciano M, Ceccim RB. Preconceito e desconhecimento no ensino e na atenção: saúde da família e a genitorialidade LGBT+. In: Ferla AA, Funghetto SS, organizadores. Reflexões sobre formação em saúde: trajetórias e aprendizados no percurso de mudanças. Porto Alegre: Editora Rede UNIDA; 2022. p. 227-44..

Esse modelo de pensamento não só foi estruturante da sociedade ocidental como se capilarizou em diversos campos de conhecimento como uma verdade universal que precisa ser erodida22 Pavei-Luciano M, Ceccim RB. Preconceito e desconhecimento no ensino e na atenção: saúde da família e a genitorialidade LGBT+. In: Ferla AA, Funghetto SS, organizadores. Reflexões sobre formação em saúde: trajetórias e aprendizados no percurso de mudanças. Porto Alegre: Editora Rede UNIDA; 2022. p. 227-44.,1010 Zambrano E. Parentalidades “impensáveis”: pais/mães homossexuais, travestis e transexuais. Horiz Antropol. 2006; 12(26):123-47.. A saúde como instituição se coloca em operação desse modelo de pensamento quando estrutura suas práticas de atenção na direção de exercer controle sobre os modos de vida das pessoas por meio dos “discursos saudáveis” sobre sexualidade, reprodução, natalidade e lactação, sem a explícita inclusão de pessoas trans.

Para Foucault1111 Foucault M. História da sexualidade 1: a vontade de saber. São Paulo: Paz e Terra; 2014., a mudança dos discursos sobre a sexualidade característica da modernidade é marcada por um movimento de falar sobre a sexualidade de diferentes maneiras, sobretudo na colocação do sexo em um sistema de utilidade, algo que devesse ser gerido e regulado para o bem de todos e, assim, passível de intervenção e controle na garantia de formas de reprodução que invistam na manutenção e na vigência do Estado, da Economia e da Moral. Sendo assim, as primeiras políticas de saúde voltadas para reprodução, parto e nascimento foram estruturadas dentro do viés controlista e culpabilizante dos corpos grávidos com foco nas mulheres cis e seu papel reprodutor e de cuidadoras dos filhos1212 Souto K, Moreira MR. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher: protagonismo do movimento de mulheres. Saude Debate. 2021; 45(130):832-46..

Na experiência vivida em campo, a aproximação ao serviço de Atenção à Saúde sexual e reprodutiva das pessoas trans revelou as nuances de quanto esse pensamento está em jogo, mesmo em um espaço que se contrapõe ao modelo hegemônico de acolhimento e cuidado. O próprio nome “consultório familiar” se reportava à “consultoria em planejamento familiar às mulheres”, colocando em questão a que modelo de família e maternidade se propõe a “paternidade responsável”. Apesar de sabermos, por meio da descrição da oferta de serviços do Consultório Familiar, que seu atendimento é oferecido a homens e mulheres, cis e trans, e que a orientação em planejamento familiar inclui saúde sexual e direitos reprodutivos não se reduzindo ao modelo de família nuclear, imagens são geradas na população. Um Consultório “Familiar” em um hospital “maternidade”?

O fato de o serviço operar dentro de um hospital maternidade traz consigo imaginários e preconceitos atrelados a esse tipo de lugar. Em primeiro lugar, trata-se de um hospital onde, tradicionalmente, impera o discurso da clínica médica e das biociências da saúde; em segundo lugar, a ideia de maternidade ligada às perspectivas heterossexuais e cisgêneras e à romantização do tornar-se mãe. A gestação, a parturição e a maternidade são apresentadas nos discursos da promoção da saúde e nos discursos religiosos como algo desejado e um momento sublime para mulheres cis e heterossexuais.

Essa violência pode ser ainda mais grave se pensadas a gestação, a parturição e a paternidade de pessoas transmasculinas, das quais não se espera a gravidez e com as quais não ocorrerá a maternidade, mas a genitorialidade paterna. Genitorialidade sem romantismo ou “renormalização”: poderá haver a gravidez, desejada ou não, sendo levada ao parto ou não; poderá haver a parturição, sendo levada à paternagem ou não, com ou sem uma figura da intimidade para a maternagem; poderá haver a amamentação ou não, com ou sem a escolha por manter o bebê no núcleo familiar; poderá haver ou não o desenho de uma família22 Pavei-Luciano M, Ceccim RB. Preconceito e desconhecimento no ensino e na atenção: saúde da família e a genitorialidade LGBT+. In: Ferla AA, Funghetto SS, organizadores. Reflexões sobre formação em saúde: trajetórias e aprendizados no percurso de mudanças. Porto Alegre: Editora Rede UNIDA; 2022. p. 227-44.. O evento da gestação transcorrerá com desfecho em uma família monoparental ou não, ou não haverá o desfecho em uma família e o bebê será dado em adoção. A amamentação pode ser da companheira desse homem, sendo ela cis ou, sob circunstâncias especiais, sendo ela trans.

Do ponto de vista da PNAISH, falar sobre homens que gestam impõe o desafio de transcender a visão binária de gênero, entendendo que lidar com masculinidades é abrir-se à diversidade de todas as possibilidades de ser homem e suas repercussões na saúde33 Martins AM, Malamut BS. Análise do discurso da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem. Saude Soc. 2013; 22(2):429-40.. Nesse sentido, os direitos sexuais e reprodutivos tratados na política centram o debate na paternidade de homens cisgêneros heterossexuais por meio do discurso da paternidade responsável, sendo invisível às demandas de homens trans que também possuem atravessamentos das masculinidades.

Nesse ponto, destacamos algumas interseções entre as questões levantadas e a PNAISH, especialmente no eixo “saúde sexual e reprodutiva”. A política de saúde considera a participação ativa de homens cis na prevenção de infecções sexualmente transmissíveis (IST), contracepção e planejamento familiar. Acreditamos que esse eixo deve dar visibilidade e desenvolver estratégias para garantir os direitos sexuais e reprodutivos de pessoas transmasculinas, incluindo a naturalização do processo de gestação e o planejamento de estratégias contraceptivas. O enfoque não deve se limitar à prevenção das IST, já amplamente abordada, mas também incluir a introdução de métodos contraceptivos, como o dispositivo intrauterino (DIU).

A pesquisa-intervenção problematizou essas questões. O consultório foi escolhido por não se saber ao certo quais necessidades sociais em saúde ele cobriria. Atender sexualidades dissidentes foi uma oportunidade para as residências em saúde da família e ginecologia. Relatamos a chegada de um homem trans grávido, encaminhado de um município vizinho, em gestação de alto risco. Ele participou do acolhimento interprofissional e de um grupo de apoio, o Espaço da Palavra, voltado para pessoas LGBT+ e suas redes de apoio, junto com sua mãe. Na aproximação com o gestante e sua mãe, os imaginários sobre família e maternidade, inclusive com os nomes Consultório Familiar e hospital maternidade, vieram à tona. Diz o rapaz:

[...] Eu tava até com receio de vir, porque era uma maternidade e tal, achei que ia ser do mesmo jeito, mas quebrou tudo que eu estava pensando porque eu fui muito bem recebido aqui.

(Pedro)

Quando o rapaz fala “do mesmo jeito”, refere-se à transfobia vivida em seu município na busca por atendimentos em saúde. Tanto o rapaz quanto sua mãe se queixavam das dificuldades de acolhimento e da transfobia sofrida cotidianamente, de forma que ambos expressavam o desejo de realizar todo o acompanhamento pré-natal ali no Consultório Familiar por se tratar de um lugar onde foram bem recebidos.

[...] Aqui eu me senti bem recebido e respeitado, não é como lá, em que o povo já vai chamando de sapatão, essas coisas. Por isso que hoje eu prefiro vir fazer tudo aqui.

(Pedro)

A própria chegada do rapaz ao serviço já anunciava, antes mesmo de sua escuta, as violências que havia vivido em seu itinerário até chegar ali.

Pouco tempo após o usuário chegar, a enfermeira do serviço trouxe um encaminhamento realizado pela médica psiquiatra que o acompanhava. Nele, ela contava sobre o processo de disforia de gênero e da gestação, porém o que chamava atenção no encaminhamento era que estava escrito o nome feminino com o nome social entre parênteses. Após conversar com o médico preceptor da residência em ginecologia, o mesmo alertou ao médico residente para que tratasse o rapaz pelo nome social.

(Diário de campo do pesquisador principal)

O discurso biomédico é central na produção de violência contra as pessoas trans e travestis nos serviços de saúde, pois ele deslegitima as identidades de gênero com base no discurso essencialista dos papéis de sexo e gênero e nega o gênero como fato social, além de estigmatizar as pessoas trans, tomando suas identidades como de ordem patológica1313 Grubba LS. Equidade em saúde para pessoas trans: análise do processo transexualizador brasileiro. Direito Estado Soc. 2022; (60):164-89.. Aqui, observamos tal discurso operando na prática, primeiro pelo desrespeito ao nome social utilizando o nome civil em destaque em detrimento do seu nome social. O rapaz não havia retificado seus documentos, por isso o nome social como seu nome principal e a colocação do nome do registro civil entre parênteses, não o contrário. Dos diagnósticos ao encaminhamento constavam a incongruência de gênero e o transtorno da identidade sexual. Dessa forma, não só sua identidade como pessoa trans não foi respeitada, mas, principalmente, foi patologizada. O encaminhamento não se fazia a um serviço de acolhimento, mas a um serviço de atendimento especializado nas respectivas nosologias assinaladas.

O cotidiano nos serviços de saúde é marcado pela constante presença desses estereótipos de gênero de forma compulsória, ora explícitos, ora velados, que vão produzindo espaços excludentes. Esse processo foi denominado como heterossexualidade compulsória1414 Rich A. Heterossexualidade compulsória e existência lésbica. Bagoas. 2010; 4(05):18-44., imposição da heterossexualidade como a única norma possível de viver a sexualidade, que é operada por diversas estruturas sociais que empurram as pessoas a viver a heterossexualidade independentemente de seus afetos e do desejo.

Aqui, optamos por ampliar o termo, originalmente desenvolvido com base na existência lésbica, para incluir a hetero[cis]sexualidade compulsória. Essa normatização não se restringe à sexualidade, mas entrelaça-se com a identidade de gênero e os papéis sociais esperados para homens e mulheres. A ampliação do termo vai além do reconhecimento da categoria como norma individual; ela revela como essa categoria analítica sustenta práticas discursivas em diversas instituições sociais. Assim, é utilizada sistematicamente para apagar as subjetividades de pessoas trans. Adrienne Rich1414 Rich A. Heterossexualidade compulsória e existência lésbica. Bagoas. 2010; 4(05):18-44. exemplifica essa operação ao destacar a destruição das memórias de existências lésbicas. Nesse contexto, o apagamento e a invisibilidade das demandas da população trans nos serviços de saúde configuram-se como uma manifestação sistemática dessa dinâmica.

A literatura demonstra como essa categoria é utilizada para oprimir pessoas LGBT+, pois os profissionais sempre supõem a heterossexualidade dos indivíduos1515 Fébole DS. A produção de violências na relação de cuidado em saúde da população LGBT no SUS [dissertação]. Maringá (PR): Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Estadual de Maringá; 2017.. Isso também se relaciona com a identidade de gênero, por exemplo, no pressuposto de que homens e mulheres trans e trasvestis sempre serão heterossexuais, assim mantendo relações sexuais com pessoas cis de gênero oposto àquele com o qual se identificam, o que reforça o mito da infertilidade ou da esterilidade simbólica dessa população, a impossibilidade de reprodução biológica pelas pessoas trans por desenvolverem “relações sem potencial de gestação”44 Angonese M, Lago MCS. Direitos e saúde reprodutiva para a população de travestis e transexuais: abjeção e esterilidade simbólica. Saude Soc. 2017; 26(1):256-70..

Esses fenômenos puderam ser atestados tanto nas falas do rapaz como de sua mãe quando narraram experiências vividas em sua cidade.

[...] Quer ver eu virar bicho? É quando ela tá saindo de casa, aí vem algum infeliz e chama ela de sapatona. Eu fico pra morrer, dizem “onde já se viu uma sapatona dessa engravidar”?

(Ana)

Percebemos que a mãe do rapaz, semelhante às pessoas a quem faz menção, também não utiliza o pronome e o gênero adequado à identidade do filho, referindo-se a ele constantemente no feminino. Pelas características físicas e pela sua história, o rapaz ainda é tido pela sua vizinhança e pelos profissionais de saúde que o acompanham como uma mulher lésbica, como ficou explícito na fala durante o atendimento quando relatou que ali não era “como lá”, em que “o povo já vai chamando de sapatão, essas coisas”. Estar grávido, sendo um homem trans ou uma mulher lésbica (aos olhos dos outros), é, portanto, considerado uma transgressão à norma da heterossexualidade cis e passível de punição por meio das chacotas e agressões verbais.

Faz-se necessário repensar a assistência pré-natal que é pautada não só em uma perspectiva feminina de gestação, mas também em uma ideia romântica de maternidade, para incluir a gestação de pessoas transmasculinas. Pode ser um desejo ou não, infrequente ou não, mas é preciso pensar nos desdobramentos e reconfigurações que precisam ser adotados para contemplar a realidade em que pessoas trans existem e a genitorialidade em pessoas trans existe, desejada ou não. Sobretudo, é preciso não reproduzir a transfobia atrelada à hetero[cis]normatividade compulsória. É urgente questionar as linguagens que são produzidas para esse tipo de atenção, repensar os discursos sobre paternidades, quais efeitos de subjetivação são acionados mediante os discursos produzidos no cotidiano dos serviços de saúde, na comunicação visual, na ambiência, nas linguagens produzidas e divulgadas e nos instrumentos utilizados no cuidado em saúde.

É necessário criar espaços de visibilidade da gestação transmasculina como algo legítimo e que não está desassociado da identidade de gênero masculina dos homens trans e pessoas transmasculinas; é preciso transgredir a norma da gestação como regra do feminino e ofertar espaços de atenção que atendam às necessidades de saúde das pessoas transmasculinas grávidas11 Dantas DS, Neves ALM. A parentalidade de homens trans: uma revisão integrativa. REBEH. 2023; 6(20):60-82.. De verdade, o encaminhamento recebido pelo consultório não se justificava pelo pré-natal no serviço de referência da maternidade; poderia ser justificado como parte da preparação para o parto, o que nos levou a criar a categoria qualitativa de “transicionar a Atenção Básica”, qualificá-la para o acolhimento da gestação e da amamentação em pessoas e casais trans.

A categoria “transicionar a Atenção Básica” surge do processo de fortalecimento da atenção integral à saúde de pessoas trans e travestis. Não se trata de uma expansão ou ampliação da capacidade, mas sim da reorientação da capacidade instalada desse nível de atenção para acolher as necessidades de saúde de pessoas trans e travestis66 Avelino MML. Cartografias da produção de cuidado em saúde à população LGBT+ [dissertação]. Mossoró (RN): Universidade Federal Rural do Semi-Árido; 2022.. Na experiência trans e travesti, o termo “transição” não denota sair de “um” para se tornar o “outro”, mas sim se tornar o que se é e o que nunca se deixou de ser. Isso ocorre porque as pessoas trans sempre se sentiram e reconheceram em “sua” identidade de gênero, embora tenham vivido com a identidade de gênero que lhes foi designada ao nascimento. Portanto, transicionar é assumir a introdução de novidade às configurações não binárias e não cisnormativas de gênero em suas linguagens, metáforas, práticas de acolhimento, educação em saúde, cuidado e tratamento. Assim, “transicionar a Atenção Básica” é a consolidação de um atributo fundamental da atenção integral à saúde visando fortalecer o acolhimento e a longitudinalidade, reconhecendo que os cuidados oferecidos às pessoas trans e travestis na Atenção Básica já fazem parte do cotidiano66 Avelino MML. Cartografias da produção de cuidado em saúde à população LGBT+ [dissertação]. Mossoró (RN): Universidade Federal Rural do Semi-Árido; 2022..

Caderneta do gestante como abordagem de acolhimento, prática cuidadora e subjetivação transmasculina.

Ao longo da história da Reforma Sanitária Brasileira e da consolidação do SUS, houve uma contribuição substancial do movimento feminista para se romper com a abordagem intitulada “materno-infantil” para o desenvolvimento de uma política ampla que englobasse a saúde da mulher, não a saúde da mãe ou futura mãe e os direitos reprodutivos1616 Leal MC, Szwarcwald CL, Almeida PVB, Aquino EML, Barreto ML, Barros F, et al. Saúde reprodutiva, materna, neonatal e infantil nos 30 anos do Sistema Único de Saúde (SUS). Cienc Saude Colet. 2018; 23(6):1915-28.. Tal fato favoreceu a compreensão do gênero na determinação social da saúde e, sobretudo, na formulação das demais políticas que têm a categoria gênero como algo central e estruturante, a exemplo da PNAISH e da Política Nacional de Saúde Integral LGBT+.

Para Cardoso1717 Cardoso TVB. Transfeminismo: apagamento e luta das mulheres trans e travestis dentro do feminismo. REBEH. 2022; 5(18):119-33., o debate de gênero foi fundamental para o avanço do próprio feminismo e o surgimento de outros movimentos de campos correlatos, como o dos estudos sobre as masculinidades, o movimento LGBT+ e o transfeminismo. Todavia, a centralidade do gênero dentro da pauta feminista alimentou a ideia de que apenas essas eram sujeitos generificados, ou que apenas pessoas de gênero diverso viviam o gênero, apagando a ideia de que homens também vivem e são atravessados pelas questões de gênero, o que refletiu no discurso produzido dentro da PNAISH que focaliza a saúde do homem como sinônimo de saúde da próstata33 Martins AM, Malamut BS. Análise do discurso da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem. Saude Soc. 2013; 22(2):429-40..

A perspectiva transfeminista é muito influenciada pela perspectiva das feministas negras e lésbicas que ampliaram o diálogo para um campo mais plural de valorização das singularidades das experiências e das feminilidades diversas, um lugar onde as contribuições das mulheres transexuais e travestis pudessem ser validadas de forma legítima1818 Peçanha LMB, Monteiro AA, Jesus JG. Transfeminismo das transmasculinidades: diálogos sobre direitos sexuais e reprodutivos de homens trans brasileiros. REBEH. 2023; 6(19):90-104.. Cabe lembrar que há um segmento de pessoas transmasculinas que não cogita esconder as mamas ou realizar intervenções biomédicas, por isso falamos de transmasculinidades diversas.

Dentro do debate sobre gestação e parentalidade, o transfeminismo abala as formas de defender ou contrapor o pensamento que estruturou as diversas políticas de atenção integral. Alguns autores ressaltam que o processo transexualizador é pensado de forma heterocisnormativa, quase como uma castração química, pois elimina a possibilidade de pessoas trans serem pais e mães biológicos1818 Peçanha LMB, Monteiro AA, Jesus JG. Transfeminismo das transmasculinidades: diálogos sobre direitos sexuais e reprodutivos de homens trans brasileiros. REBEH. 2023; 6(19):90-104.. A perspectiva das transmasculinidades coloca questões novas ao transfeminismo, isso porque pessoas transmasculinas, em seu lugar de masculinidade, também possuem intersecções dentre suas reivindicações quanto ao respeito aos seus direitos sexuais e reprodutivos, incluindo temas como menstruação, gestação, abortamento, paternidade, enfrentamento da violência obstétrica e amamentação, entre outros1818 Peçanha LMB, Monteiro AA, Jesus JG. Transfeminismo das transmasculinidades: diálogos sobre direitos sexuais e reprodutivos de homens trans brasileiros. REBEH. 2023; 6(19):90-104..

Pensar a saúde sexual e reprodutiva considerando as transmasculinidades implica criar espaços voltados às necessidades de homens em todo o espectro, além de superar a heterocisnormatividade. É essencial dar visibilidade à diversidade de gênero e suas demandas, pois a invisibilidade gera exclusão e falta de acolhimento. Precisamos de espaços não segmentados, que incluam novas existências junto das já reconhecidas. As novas reivindicações, legitimadas por direito, devem habitar todos os espaços de atenção aos direitos sexuais e reprodutivos, não apenas na política LGBT+, mas também na PNAISH e em todas as políticas.

Ao final do primeiro atendimento de acolhimento do rapaz grávido, a enfermeira do serviço contou que havia esquecido de lhe entregar a “caderneta da gestante”. Essa provocação disparou a criação, até ali inédita, da caderneta “do” gestante, pois se avaliou que a entrega de uma caderneta “da” gestante para o rapaz seria tão violento quanto todas as outras violências já sofridas até ali. Além de toda a linguagem feminina, por meio das palavras e ilustrações utilizadas, a caderneta oficial trazia a ideia de uma gestação muito romantizada, com todos os papéis moralmente idealizados na gestação.

A partir desse dia, passou-se a “transicionar o cuidado”, isto é, a desenvolver um instrumento que fosse adequado para as necessidades do rapaz, não a necessidade de registros de informações clínicas para os sistemas de informação em saúde. Algo respeitoso da identidade de gênero, de sua expressão de gênero, algo que produzisse autorreconhecimento e autoafirmação de seu lugar masculino.

No andar da pesquisa, foram realizadas oficinas de colagem como parte da estratégia Espaço da Palavra. O material produzido nessa Oficina de Colagem foi utilizado como material de base para as outras ações de investigação da pesquisa-intervenção em curso, como a formação para o processo inclusivo de homens trans no atendimento pré-natal e para o desenvolvimento de uma Caderneta do Gestante (Figura 1).

Figura 1
Caderneta do Gestante: capa e registro dos exames laboratoriais.

A inclusão do rapaz grávido no atendimento pelo Consultório Familiar para o acompanhamento pré-natal mobilizou uma série de intervenções a que a pesquisa, por seu desenho interventivo, pôde aderir e construir caminhos de escuta atenta àquilo que se movia na realidade da atenção integral à saúde de pessoas trans. Uma das ações investigativas foi a intervenção formativa. Uma série de formações destinadas aos profissionais da maternidade sobre o acolhimento às pessoas trans e travestis, especialmente às pessoas transmasculinas que pudessem vir a parir naquela maternidade, sobretudo o rapaz grávido em acolhimento pré-natal. Além de disparar outros debates como o aleitamento materno impositivo, a inserção de DIU pós-parto ou laqueadura e a entrega legal à adoção.

A Caderneta do Gestante teve a capa ilustrada com um homem transmasculino negro e grávido, ambientado na região do semiárido brasileiro, segundo os elementos gráficos do bioma da caatinga, também em referência direta à imagem símbolo do Consultório Familiar gerado no âmbito da Rede de Pesquisas e Projetos de Educação e Cooperação Internacional com o Semiárido na Área da Saúde (Rede Precisa), cuja arte trazia a composição da figura de uma mulher grávida que, ao mesmo tempo, é Gaia, a Mãe-Terra, a mãe primordial, e foi retratada negra. Optou-se por conservar a sinonímia no nome da caderneta, de Caderneta da Gestante para Caderneta do Gestante, buscando a naturalização do termo. Na contracapa o registro dos exames laboratoriais. No lado interno, a segunda página correspondeu aos dados de identificação: nome social assim como os pronomes para o tratamento do gestante. A folha de identificação permitia uma interação com os profissionais que atendem ao usuário, minimizando a possibilidade de violência de gênero ao garantir que, em qualquer serviço onde o rapaz passasse em seu itinerário terapêutico, fosse visível a forma pela qual quer ser tratado, além dos demais dados de saúde (Figura 2). Nas outras páginas constaram o acompanhamento de exames, ganho ponderal e antropometria.

Em outra paginação foi incluído espaço para o plano de parto, em que poderiam ser introduzidas as escolhas sobre o tipo de parto e como escolher. Também foi introduzida uma pauta de direitos, sobretudo pensando em afirmar o direito de ser tratado pelo nome social e por pronomes masculinos durante o atendimento de pré-natal, parto e puerpério (Figura 3). A transfobia deve ser entendida como violência de gênero, mas durante o período gestacional de pessoas transmasculinas deve ser entendida como uma prática de violência obstétrica, sendo apontada como intercessão entre a transmasculinidade e o transfeminismo, pois ganha contornos específicos por meio da transfobia e outras formas de violência como o racismo1818 Peçanha LMB, Monteiro AA, Jesus JG. Transfeminismo das transmasculinidades: diálogos sobre direitos sexuais e reprodutivos de homens trans brasileiros. REBEH. 2023; 6(19):90-104..

Figura 2
Dados de identificação e registros clínicos.

A inserção de uma página com os direitos do usuário dentro do SUS, referente aos direitos das pessoas trans, segue o entendimento de que somente os direitos das pessoas gestantes não contemplam as necessidades das pessoas transmasculinas grávidas, e como respaldo ao usuário diante das situações de possível violação de direitos nos serviços de saúde por parte de profissionais de saúde (Figura 3). Por fim, deve-se ressaltar duas páginas onde constam mensagens referentes à vivência da identidade de gênero masculina e a gestação, utilizando-se a imagem de pessoas transmasculinas que foram veiculadas na cartilha do Ministério da Saúde sobre a prevenção das Infecções Sexualmente Transmissíveis para pessoas transmasculinas (Figura 4).

Figura 3
Carta de direitos das pessoas trans no SUS e plano de parto.

A gestação, por estar associada a um fenômeno feminino, atormenta a possibilidade de pessoas transmasculinas se reconhecerem dentro dessa vivência. No entanto, é possível que concretizem seus projetos parentais, inclusivepela gravidez de uma forma que isso também esteja associado à sua vivência masculina11 Dantas DS, Neves ALM. A parentalidade de homens trans: uma revisão integrativa. REBEH. 2023; 6(20):60-82.,1818 Peçanha LMB, Monteiro AA, Jesus JG. Transfeminismo das transmasculinidades: diálogos sobre direitos sexuais e reprodutivos de homens trans brasileiros. REBEH. 2023; 6(19):90-104.. O atendimento às pessoas trans deve considerar que a vivência da identidade de gênero de pessoas trans não obedece às normas da heterocisnormatividade. Masculinidades e feminilidades trans não são experiências universais, e sim plurais, cabendo aos serviços de saúde garantir a autonomia dessas pessoas de decidir sobre qual será o meio de exercer sua parentalidade11 Dantas DS, Neves ALM. A parentalidade de homens trans: uma revisão integrativa. REBEH. 2023; 6(20):60-82..

Figura 4
A vivência da transmasculinidade e a gestação.

É urgente a produção de experiências que deem visibilidade à vivência gestacional de pessoas transmasculinas no setor da saúde para que esses homens possam se reconhecer no processo de acompanhamento pré-natal, garantindo o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos no SUS. Do ponto de vista do eixo “acesso e acolhimento” da PNAISH, as raízes culturais do machismo afetam tanto homens cis quanto pessoas transmasculinas, afastando-os dos serviços de saúde por meio do machismo e da transfobia. É essencial que todos os homens se reconheçam nesses espaços. O combate aos estigmas que afastam as masculinidades do cuidado deve ser amplo, enfrentando o machismo e a transfobia. Nesse contexto, a “Caderneta do Gestante”, criada na pesquisa-intervenção, qualifica o cuidado e reforça que a saúde também é um espaço para pessoas transmasculinas.

Para além do problema do não reconhecimento, experienciar a gravidez sendo uma pessoa transmasculina traz diversas questões que podem acirrar processos de adoecimento psíquico, como a transfobia, a interrupção da terapia hormonal e o medo de perder sua passabilidade como homem devido às mudanças físicas da gestação11 Dantas DS, Neves ALM. A parentalidade de homens trans: uma revisão integrativa. REBEH. 2023; 6(20):60-82.. Sendo assim, é importante que esse acompanhamento pré-natal seja atravessado pela integralidade da atenção, entendendo que além das necessidades obstétricas há ainda as demandas psicossociais. A Caderneta do Gestante revelou-se uma estratégia de acolhimento e produção de subjetividade individual e institucional, uma forma de dar visibilidade a essa experiência nos serviços de saúde e de singularizar a atenção, sobretudo como uma forma de garantir o exercício dos direitos sexuais e reprodutivos no SUS, devendo ser incluída como parte das políticas de atenção ao pré-natal, parto e nascimento para as pessoas trans.

Na intersecção com a PNAISH, atentamos para a insuficiência do eixo de promoção da paternidade em abarcar as subjetividades transmasculinas. Em um primeiro momento, evidencia-se o caráter heterocisnormativo da compreensão de paternidade, que não contempla a gestação de homens trans como uma forma de paternidade biológica. Para isso, reforçamos a ideia de “genitorialidade”, pois as experiências transmasculinas de paternidade podem incluir a gestação, mas não se restringem apenas à paternidade biológica.

O contemporâneo reivindica, das transmasculinidades, a introdução de nova pauta aos direitos reprodutivos de pessoas transmasculinas, sendo crucial aos profissionais e serviços de saúde que repensem a atenção integral para todos os homens1717 Cardoso TVB. Transfeminismo: apagamento e luta das mulheres trans e travestis dentro do feminismo. REBEH. 2022; 5(18):119-33.,1818 Peçanha LMB, Monteiro AA, Jesus JG. Transfeminismo das transmasculinidades: diálogos sobre direitos sexuais e reprodutivos de homens trans brasileiros. REBEH. 2023; 6(19):90-104.. Nos resultados da pesquisa, chamamos simbolicamente essa necessidade por necessidade de “transicionar a atenção”. A Atenção Básica é o lugar primordial do cuidado em território, sem necessidade de encaminhamento aos serviços especializados; é chegada a hora, portanto, de “transicionar a Atenção Básica”.

Considerações finais

As políticas de atenção aos direitos sexuais e reprodutivos são estruturadas no modelo de família nuclear e embasadas no fato biológico da reprodução humana, reforçadas pelos discursos da hetero[cis]sexualidade compulsória, que tomam a gestação como fenômeno e norma do feminino, produzindo violências e espaços excludentes para a pessoa trans dentro das políticas de saúde. Todavia, a gestação e o exercício da parentalidade são uma realidade que pode, ou não, ser desejada por pessoas transmasculinas; sendo assim, esses homens devem ter garantidos os seus direitos sexuais e reprodutivos e a assistência pré-natal de qualidade.

As desnaturalizações e contribuições do movimento feminista têm sido absolutamente relevantes à construção de políticas de saúde, favorecendo a inclusão da transmasculinidade nas políticas de atenção à gravidez, ao parto e ao puerpério, e nas políticas de amamentação. A gestação de pessoas transmasculinas coloca a reprodução, o parto e o nascimento como pautas também da atenção integral à saúde do homem. O transfeminismo e suas intersecções com as transmasculinidades reivindicam, em sua agenda, a pauta dos direitos reprodutivos das pessoas transmasculinas, auxiliando a pensar espaços que atendam a suas demandas.

Dar visibilidade à gestação das pessoas transmasculinas passa pela abertura de espaços e modelos de cuidado em saúde que incluam as experiências trans e suas particularidades. Essa visibilidade está em lhes assegurar acompanhamento pré-natal de qualidade, garantindo o exercício de seus direitos e da sua dignidade. A Atenção à Saúde sexual e reprodutiva não pode ser uma agenda obscura ou a infertilidade ser uma admissão tácita, e precisa considerar os direitos reprodutivos de forma universal, isto é, de todas as pessoas, com direitos não subjugados à norma hetero[cis]normativa. “Transicionar a atenção” é fundamental para a garantia do direito universal à saúde, nela incluída a saúde reprodutiva.

Não haverá universalidade, tampouco atenção integral à saúde dos homens, sem o real e efetivo acolhimento das transmasculinidades, sem um posicionamento pelo acesso cuidador e respeitoso, sem o incentivo à autonomia em direitos, sem transformação pela alteridade e pelo reconhecimento das singularidades e especificidades da população trans, quando finalmente essa população tiver as portas abertas da rede de saúde à sua entrada e ao seu poder de renovação dessa rede.

  • Avelino MML, Solano LC, Ceccim RB, Pessoa Junior JM. Transmasculinidades, gestação e acolhimento na rede de saúde. Interface (Botucatu). 2025; 29 (Supl. 1): e240382 https://doi.org/10.1590/interface.240382

Referências

  • 1
    Dantas DS, Neves ALM. A parentalidade de homens trans: uma revisão integrativa. REBEH. 2023; 6(20):60-82.
  • 2
    Pavei-Luciano M, Ceccim RB. Preconceito e desconhecimento no ensino e na atenção: saúde da família e a genitorialidade LGBT+. In: Ferla AA, Funghetto SS, organizadores. Reflexões sobre formação em saúde: trajetórias e aprendizados no percurso de mudanças. Porto Alegre: Editora Rede UNIDA; 2022. p. 227-44.
  • 3
    Martins AM, Malamut BS. Análise do discurso da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem. Saude Soc. 2013; 22(2):429-40.
  • 4
    Angonese M, Lago MCS. Direitos e saúde reprodutiva para a população de travestis e transexuais: abjeção e esterilidade simbólica. Saude Soc. 2017; 26(1):256-70.
  • 5
    Bolissian AM, Ferreira BEC, Stofel NS, Borges FA, Camargo BT, Salim NR, et al. Aleitamento humano e a perspectiva da interseccionalidade queer: contribuições para a prática inclusiva. Interface (Botucatu). 2023; 27:e220440. doi: 10.1590/interface.220440.
    » https://doi.org/10.1590/interface.220440
  • 6
    Avelino MML. Cartografias da produção de cuidado em saúde à população LGBT+ [dissertação]. Mossoró (RN): Universidade Federal Rural do Semi-Árido; 2022.
  • 7
    Lauria L, Lega I, Pizzi E, Bortolus R, Battimolo S, Tamburini C, et al. Indagine nazionale sui consultori familiari 2018-2019. Risultati generali. Roma: Istituto Superiore di Sanità; 2022.
  • 8
    Passos E, Kastrup V, Escóssia L, organizadores. Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina; 2009.
  • 9
    Albuquerque GA, Belém JM, Nunes JFC, Leite MF, Quirino GS. Planejamento reprodutivo em casais homossexuais na estratégia saúde da família. Rev APS. 2018; 21(1):104-11.
  • 10
    Zambrano E. Parentalidades “impensáveis”: pais/mães homossexuais, travestis e transexuais. Horiz Antropol. 2006; 12(26):123-47.
  • 11
    Foucault M. História da sexualidade 1: a vontade de saber. São Paulo: Paz e Terra; 2014.
  • 12
    Souto K, Moreira MR. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher: protagonismo do movimento de mulheres. Saude Debate. 2021; 45(130):832-46.
  • 13
    Grubba LS. Equidade em saúde para pessoas trans: análise do processo transexualizador brasileiro. Direito Estado Soc. 2022; (60):164-89.
  • 14
    Rich A. Heterossexualidade compulsória e existência lésbica. Bagoas. 2010; 4(05):18-44.
  • 15
    Fébole DS. A produção de violências na relação de cuidado em saúde da população LGBT no SUS [dissertação]. Maringá (PR): Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Estadual de Maringá; 2017.
  • 16
    Leal MC, Szwarcwald CL, Almeida PVB, Aquino EML, Barreto ML, Barros F, et al. Saúde reprodutiva, materna, neonatal e infantil nos 30 anos do Sistema Único de Saúde (SUS). Cienc Saude Colet. 2018; 23(6):1915-28.
  • 17
    Cardoso TVB. Transfeminismo: apagamento e luta das mulheres trans e travestis dentro do feminismo. REBEH. 2022; 5(18):119-33.
  • 18
    Peçanha LMB, Monteiro AA, Jesus JG. Transfeminismo das transmasculinidades: diálogos sobre direitos sexuais e reprodutivos de homens trans brasileiros. REBEH. 2023; 6(19):90-104.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Dez 2024
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    06 Ago 2024
  • Aceito
    08 Nov 2024
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br