Extrair e analisar as representações sociais presentes no universo dos profissionais de saúde que atuam na atenção primária da rede pública de Campinas, no contexto da inserção das medicinas alternativas e complementares no Sistema Único de Saúde (SUS), é a proposta do livro de Nagai & Queiroz - Introdução de métodos terapêuticos alternativos: a experiência desenvolvida na rede básica de Campinas.
O livro retrata a experiência desenvolvida em Campinas-SP, considerado um dos municípios pioneiros no Brasil na implantação das práticas alternativas e complementares nas unidades básicas de saúde. A pesquisa foi empreendida no ano de 2004, no momento de ampliação da assistência, a partir da reforma que a Secretaria Municipal de Saúde realizou nos serviços de atenção primária em 2001, com o denominado Projeto Paideia de Saúde. Seu objetivo era ampliar o vínculo dos profissionais com os pacientes e suas famílias, fomentando estratégias no tocante a prevenção de doenças, promoção da saúde, cura e reabilitação, incluindo as dimensões ambientais, sociais e subjetivas, possibilitando assim um alargamento da prática clínica e da atuação das equipes multiprofissionais.11 Este trabalho é parte da pesquisa teórica de pós-doutorado intitulada Fronteiras da Homeopatia na Atenção Primária em Saúde: percepções de médicos homeopatas, desenvolvida no Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP, financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Para apoiar esse projeto, foi criado o Grupo de Trabalho de Racionalidades Integrativas em Saúde (GTRIS), com o propósito de implementar a oferta das práticas integrativas e complementares na rede básica e organizar eventos que estimulassem a inclusão de novos sistemas terapêuticos nas unidades de saúde do município. O livro cita as ações ocorridas de 2002 a 2004, quando o GTRIS desenvolveu atividades relacionadas a Fitoterapia, Medicina Tradicional Chinesa, Programa Corpo em Movimento, Homeopatia, Yoga e Toque Terapêutico.
Os autores salientam que a pesquisa se desenvolveu em meio a certa instabilidade no período, caracterizado por conflitos e contradições inerentes ao próprio desafio de inserir saberes diferentes e, muitas vezes, divergentes no interior do modelo de cuidado instalado. Nesse aspecto, considera-se a escolha da metodologia qualitativa extremamente oportuna, uma vez que a execução de entrevistas promoveu maior liberdade a cada ator social, para exprimir suas percepções a respeito do contexto da unidade de saúde e da especialidade em que atuava. Esta dimensão metodológica é explicada no capítulo I, em que é delineado o alcance da abordagem qualitativa fundamentada pela perspectiva fenomenológica e etnográfica, aproximando-se de uma realidade vivenciada, sentida e interpretada, tecendo ligações entre as representações simbólicas e as outras categorias que desenharam a estrutura do fenômeno.
No capítulo II, os autores desenvolvem uma reflexão sobre o processo saúde-doença, a partir de uma perspectiva histórica, explorando as fronteiras entre o paradigma biomédico e aqueles que orientam as medicinas alternativas e complementares. Também é abordada a grande influência que a Organização Mundial da Saúde (OMS) exerceu sobre os sistemas de saúde dos seus 191 países-membros, ao preconizar, por meio de documentos como "Estratégias da OMS sobre Medicinas Tradicionais 2002-2005", as ações necessárias para que os sistemas de saúde viabilizem o acesso e o uso racional das medicinas tradicionais, complementares e alternativas.
No capítulo III, é relatado todo o processo de construção do SUS no Brasil, do ponto de vista de seu significado e abrangência, tendo as unidades básicas como centros promotores de informações e conhecimentos voltados para a educação e prevenção. Também neste capítulo é apresentado o contexto do SUS em Campinas, dentro do já citado Projeto Paideia, visando aumentar a assistência por meio da clínica ampliada.
O capítulo IV explica a atuação do GTRIS no tocante a seu papel de instância promotora de debates científicos e ações que visaram ao aprimoramento dos profissionais e resoluções para os desafios da alta demanda dos usuários e problemas referentes à implantação de diferentes práticas (Lian-Gong, Projeto Corpo em Movimento, Toque Terapêutico, Medicina Tradicional Chinesa, Fitoterapia, Homeopatia e outras) em contextos distintos.
No capítulo V, os autores analisam as entrevistas realizadas, mostrando, pela perspectiva qualitativa, como as medicinas alternativas e complementares foram operacionalizadas pelos atores sociais dentro das instituições de saúde. São destacadas as inter-relações estabelecidas com os representantes da medicina biomédica, com os gestores dos serviços e também entre as equipes de trabalho. O conteúdo das entrevistas fornece elementos para se pensar o processo de implantação nos diferentes contextos da rede de serviços públicos de saúde, evidenciando a necessidade social de uma educação em saúde que mostre a importância de se conhecer profundamente os diferentes saberes presentes na unidade básica em que o profissional se insere.
Como conclusão, a experiência de se implantar diferentes Racionalidades Médicas e práticas terapêuticas na atenção básica do SUS em Campinas foi considerada positiva, uma vez que representou a introdução de um novo olhar sobre as doenças e os processos terapêuticos, ampliados pelo diálogo interdisciplinar que a própria abordagem suscita e que converge com os propósitos do SUS e da OMS. Os profissionais entrevistados não se colocaram em oposição à medicina biomédica; ao contrário, mostraram-se abertos para dialogar em prol de uma ampliação da abordagem do cuidado em saúde, visando a outras dimensões além da biológica. Nesse aspecto, os autores destacam a ampla aceitação dos profissionais de saúde, incluindo os coordenadores dos serviços, com relação à introdução de outras práticas nos serviços de atenção primária.
Os problemas de comunicação entre as diferentes especialidades e de desconhecimento das medicinas alternativas e complementares foram vistos como prejudiciais à prática do cuidado, e geraram a necessidade de um melhor planejamento para se coordenar processos de implantação e implementação nos serviços de atenção primária. Também foi destacado o perigo de se transformar diferentes racionalidades médicas em meros instrumentos operacionais para a resolução dos problemas de saúde, apagando a profundidade dos respectivos saberes e da própria dimensão subjetiva que envolve o cuidado na perspectiva da integralidade.
O livro é importante para o contexto brasileiro, pois contribui para o desenvolvimento da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) do SUS (BRASIL, 2006BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS (PNPIC). Brasília: Ministério da Saúde, 2006.), tratando de uma experiência rica e pioneira se comparada aos outros estados e municípios brasileiros. A abordagem qualitativa, associada à dimensão teórica que discute os diferentes paradigmas da ciência, auxilia a compreensão das relações de complementaridade entre as pessoas e os saberes, apontando na esfera institucional o propósito de integração.22 S.M.P. Peres elaborou a resenha e N.F. de Barros realizou a revisão do material.
Referências
- LUZ, T. M. Medicina e racionalidades médicas: estudo comparativo da medicina ocidental, contemporânea, homeopática, tradicional chinesa e ayuvérdica. In: CANESQUI, A.M. (Org.). Ciências sociais e saúde para o ensino médico. São Paulo: Hucitec, 2000.
- ______. Natural, racional, social: razão médica e racionalidade científica moderna. Rio de Janeiro: Campus, 1988.
- BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS (PNPIC). Brasília: Ministério da Saúde, 2006.
- 1Este trabalho é parte da pesquisa teórica de pós-doutorado intitulada Fronteiras da Homeopatia na Atenção Primária em Saúde: percepções de médicos homeopatas, desenvolvida no Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP, financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
- 2S.M.P. Peres elaborou a resenha e N.F. de Barros realizou a revisão do material.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Jul-Sep 2014
Histórico
- Recebido
27 Ago 2012 - Aceito
21 Maio 2013