Uma cura controversa: a promessa biomédica para a hanseníase em Portugal e no Brasil

A controversial cure: the biomedical promise for hanseniasis in Portugal and Brazil

Alice Cruz Sobre o autor

Resumos

Este artigo procura responder à pergunta, nascida na empiria do trabalho de campo: por que algumas pessoas portadoras de hanseníase e tratadas com a poliquimioterapia (PQT) se sentem curadas e outras não? Com base numa etnografia multissituada nas escalas transnacional (programa global para a hanseníase da Organização Mundial da Saúde), nacional (paisagens morais e paradigmas biopolíticos para a hanseníase em Portugal e Brasil) e local (prática clínica em contexto hospitalar e experiência incorporada das pessoas portadoras nos dois países), analisa como a incerteza documentada na clínica da hanseníase e a clivagem experienciada por algumas pessoas, entre a cura bacteriológica e o sentimento de se sentir sanado, abre uma controvérsia em torno dos principais postulados que sustentam o emprego da PQT como uma entidade autônoma do contexto e difratam a fronteira entre o normal e o patológico em que se baseia o enquadramento contemporâneo da hanseníase e as respostas institucionais à mesma. Finalmente, conclui pela necessidade de incluir uma escolha incorporada na atual política ontológica para a hanseníase que amplie a própria nosologia e refunde um novo paradigma de cuidado, de tipo participativo.

hanseníase; poliquimioterapia; cura; controvérsia; incerteza; escolha incorporada


This paper aims to answer the following question that arouse during fieldwork: why some people with hanseniasis and treated with multidrug therapy (MDT) feel healed and others don't? From a multi-sited ethnography in the transnational (global program for hanseniasis from the World Health Organization), national (Portuguese and Brazilian moral landscapes and biopolitical paradigms), local (clinical practice and incorporated experience of people with hanseniasis in both countries) scales, it examines how the uncertainty documented in the clinic and the gap experienced by some people between the bacteriological cure and the feeling of being healed, opens for a controversy on the main postulates that sustain the use of MDT as an autonomous entity and diffract the contemporaneous framing of hanseniasis and the institutional responses to it. Finally, it concludes on the need for including an incorporated choice that might widen hanseniasis' ontological politics and rebuild a new participatory paradigm of care.

hanseniasis; multidrug therapy; cure; controversy; uncertainty; incorporated choice


Introdução

O tratamento poliquimioterapêutico (PQT) da hanseníase, introduzido em 1982 pela Organização Mundial da Saúde (OMS), sintetiza uma tecnologia biomédica, a cura da hanseníase e a emancipação social das pessoas portadoras numa "caixa-preta" (LATOUR, 1987LATOUR, B. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994., p. 3),11 O conceito remete a um dispositivo epistêmico que torna desnecessária para sua operacionalização a compreensão da complexidade e das controvérsias que o constituíram. disseminada pelo mundo.

A hanseníase ou lepra, como é mais conhecida, apresenta uma expressão epidemiológica de tipo polar, entre uma doença incidente em países do Sul global (WHO, 2012) e uma doença escassa e importada em países do Norte global (LOCKWOOD; REID, 2001LOCKWOOD, D. N.; REID, A.J. The diagnosis of leprosy is delayed in the United Kingdom. QJM: An International Journal of Medicine, v. 94, n. 4, p. 207-12, 2001.). Mesmo em tratamento, algumas pessoas experimentam respostas imunológicas, designadas por estados reacionais que, em alguns casos, conduzem a lesões graves e irreversíveis no sistema nervoso periférico. Para os quadros reacionais, as únicas drogas disponíveis são os corticoides e a talidomida, que comportam sérios efeitos iatrogênicos. O risco de desenvolvimento de sequelas correlaciona-se com a precocidade ou morosidade do diagnóstico e início do tratamento. A cura mais eficaz para a hanseníase persiste, assim, dependente de uma detecção precoce da doença.22 Para uma sinopse da descrição etiológica e nosológica da lepra, ver Echevarría (2007). A relação estreita entre o diagnóstico precoce e a prevenção de sequelas leva a uma discussão sobre o acesso funcional à saúde que se encontra dependente tanto de fatores institucionais, quanto extrainstitucionais, tratada noutro lugar.33 Artigo intitulado "Leprosy as a multilayered biosocial phenomenon: the comparison of institutional responses and illness narratives of an endemic disease in Brazil and an imported disease in Portugal", aceito para publicação na revista Clinics in Dermatology.

Aqui, perscrutar-se-á a fronteira entre o normal e o patológico que, por sua vez, desenha a nosologia biomédica da hanseníase e as políticas públicas que lhe correspondem. Rememoro a estreiteza entre a delineação do normal e do patológico e a produção normativa da corporalidade, magistralmente identificadas por Canguilhem (1991CANGUILHEM, G. The normal and the pathological. New York: Zone Books, 1991., p. 182):

Esta fronteira entre o normal e o patológico é imprecisa para diversos indivíduos considerados simultaneamente mas é perfeitamente precisa para um mesmo indivíduo considerado sucessivamente. Para ser normativo em dadas condições, o que é normal torna-se patológico noutra situação se continuar a ser idêntico a si mesmo.44 Esta e outras traduções são da responsabilidade da autora.

A classificação do normal e do patológico é reinvidincada como propriedade exclusiva da racionalidade biomédica detalhadamente analisada por Camargo Jr. (2005)CAMARGO JR., K.R. A biomedicina. Physis: Revista de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 15, n. 1, p. 177-201, 2005.. Em concomitância, a intervenção biomédica assenta no emprego de tecnologias que, embora se diferenciem consoante os fenômenos circunscritos a que se dirigem, são lançadas num uso impérvio ao contexto. Essas tecnologias são representadas como entidades autônomas, progressistas e de aplicação genérica, cujo resultado depende menos do contexto histórico de aplicação e mais da perícia de quem as aplica (LOCK; FARQUAR, 2007LOCK, M.; FARQUHAR, J. Beyond the body proper: reading the anthropology of material life. Durham and London: Duke University Press, 2007.). Sua credibilidade enlaça-se no signo da cura que constituiu o cerne do pendor soteriológico da prática biomédica, mas também de sua legitimação no espaço público. Nesse mesmo signo apoiam-se os discursos biomédico, institucional e jurídico-legal contemporâneos que enquadram a hanseníase na saúde global atual. Contudo, se para algumas pessoas diagnosticadas com hanseníase e tratadas com a PQT, a enfermidade foi experienciada como uma doença como outra qualquer, para outras a mesma converteu-se numa doença crônica e sem cura. Esta clivagem entre o que seria a cura, do ponto de vista do clínico, e o sentimento de se sentir curado, na perspectiva do paciente, endereça para a diferenciação, enunciada por Hahn (1995)HAHN, R.A. Sickness and healing: an anthropological perspective. Michigan: Yale University, 1995., entre a prestação de um cuidado médico curativo e o que seria uma fenomenologia da cura.

Este artigo analisa a PQT a partir da seguinte pergunta, nascida na empiria do trabalho de campo realizado em Portugal e no Brasil: por que algumas pessoas infectadas com hanseníase e tratadas com a mesma tecnologia biomédica se sentem curadas e outras não?

Como se verá, a resposta à referida controvérsia, ao invés de se situar na idiossincrasia do organismo humano, aponta um trilho analítico que difrata a hermenêutica biomédica sobre a corporalidade humana, a qual se confina a uma tautologia que demarca a natureza da cultura através de um trabalho de purificação (ver LATOUR, 1994). Ao contrário, tal resposta sedia-se, justamente, no "nó górdio" (LATOUR, 1994, p. 9) de interseção de uma com a outra.

Tal discussão terá início com uma breve resenha da consolidação da PQT como uma "caixa-preta" (LATOUR, 1987, p. 3) para analisá-la, em seguida, a partir da prática clínica e da experiência incorporada de pessoas portadoras de hanseníase que reivindicam uma persistência da doença após a cura bacteriológica, desembocando numa conclusão que aponta a necessidade de refletir e desenhar um novo paradigma de cuidado, de tipo participativo, da hanseníase.

Método

Este artigo baseia-se numa etnografia multissituada (MARCUS, 1998MARCUS, G.E. Ethnography through thick and thin. New Jersey: Princeton University Press, 1998.), realizada entre 2009 e 2011 em Portugal e no Brasil, nas escalas transnacional, nacional e local de produção das respostas institucionais à hanseníase e de sua substanciação experiencial. A pesquisa fez uso de diferentes técnicas, tais como a observação-participante, entrevistas abertas e semiabertas e pesquisa documental em arquivos históricos, epidemiológicos e governamentais. A escolha de Portugal e Brasil, na escala nacional, resultou da divergência epidemiológica entre ambos que representa a expressão polar da hanseníase no mundo contemporâneo (sendo uma doença importada em Portugal e endêmica no Brasil), estando, ainda, fortalecida pelos trânsitos epidemiológicos entre ambos os países.55 Para um estudo sobre os atuais trânsitos epidemiológicos da hanseníase do Brasil para Portugal, ver Medeiros, Catorze e Vieira (2009). Por outro lado, a divergência entre as respostas públicas à doença entre os dois países, manifestada num silêncio institucional em Portugal e numa polifonia institucional e social no Brasil, oferecia a possibilidade de inquirir a relação entre "paisagens morais" (PÁLSSON; HARDARDÓTTIR, 2002, p. 274),66 Com o conceito de "paisagens morais" Palsson e Hardardóttir (2002, p. 272) contextualizam cultural e politicamente as respostas e as disputas sociais em torno da saúde. implementação heterogênea da biomedicina enquanto prática socialmente enraizada (LOCK; NGUYEN, 2010) e a "política ontológica" (MOL, 2002MOL, A. The body multiple: ontology in medical practice. Durham and London: Duke University Press, 2002., p. viii)77 A partir de uma etnografia da arteriosclerose, Mol (2002; 2008) demonstra como os objetos das ciências biomédicas são um produto modelado pelas diferentes práticas que compõem a clínica, desmontando a antinomia entre ontologia e política. global para a hanseníase, desembocando numa interrogação mais discriminada acerca dos fatores sociais mediadores da promessa biomédica de uma cura como emancipação.

A etnografia na escala local como técnica de produção de "evidências alternativas" (BIEHL 2007BIEHL, J. Will to live: AIDS therapies and the politics of survival. Princeton and Oxford: Princeton University Press, 2007., p. 14) aprofundou-se em contexto hospitalar no Hospital Curry Cabral, em Lisboa (Portugal), que hoje assume o protagonismo no tratamento especializado da doença no país, e no Instituto Estadual de Dermatologia Sanitária, no Rio de Janeiro (Brasil), um dos três centros de referência estaduais em hanseníase do Estado do Rio de Janeiro e onde, em meados da década de 1980, foi introduzida, numa experiência piloto, a PQT no Brasil.88 Esta pesquisa resulta da tese de doutoramento intitulada Uma cura controversa: a promessa biomédica para a lepra em difracção entre Portugal e Brasil, financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, cujo projeto foi aprovado pela Faculdade de Economia/Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, cumprindo todos os requisitos éticos exigidos. O projeto também foi aprovado pelos comitês de ética do Hospital Curry Cabral e do Instituto Estadual de Dermatologia Sanitária do Rio de Janeiro. Na sua implementação, foram acautelados todos os procedimentos éticos, com uso de consentimento livre e esclarecido e de pseudônimos para salvaguarda do anonimato dos participantes.

A PQT como uma caixa-preta

Em 1873, Gerard A. Hansen perscrutava os nódulos linfáticos de pacientes de hanseníase com o auxílio da tecnologia (o microscópio) que consentira a extensão do olhar biomédico aos mundos invisíveis de corpos corpusculares (os micróbios) (GOULD, 2005GOULD, T. A disease apart: leprosy in the modern world. New York: St. Martin's Press, 2005.). Hansen cumpria, desta forma, a missão heróica de uma medicina encorpada por conquistas epistêmicas sobre uma realidade que aguardava ser desvendada, pronunciando, enfim, a descoberta da causa da hanseníase, uma micobactéria a que foi dado o nome de Mycobacterium leprae (ROBERTSON, 2003ROBERTSON, J. Leprosy and the elusive M leprae: colonial and imperial medical exchanges in the nineteenth century. História, Ciências, Saúde Manguinhos, v. 10, n. 1, p. 13-40, 2003.), consolidando a medicalização da enfermidade. Em 1943, Guy Faget, médico norte-americano a laborar na Leprosaria Nacional de Carville, registrava numa publicação especializada, os resultados de um estudo experimental que vinha obrando, desde 1940, nos corpos de pacientes de hanseníase que residiam em Carville, endereçando a seus pares a afirmação de haver descoberto o primeiro tratamento para uma doença que, durante milênios, palmilhara o mundo sem cura (FAGET et al., 1943). Em 1982, o grupo de peritos que compunha o programa de investigação em quimioterapia da lepra (THELEP), promovido pelo Programa Especial de Investigação e Treino em Doenças Tropicais (TDR) da OMS, propunha a implementação generalizada de um esquema terapêutico estandardizado que combinava a ação de três drogas (WHO, 1982).

Não sem ironia, foi a terceira descoberta que balizou a história interna da hansenologia moderna a, simultaneamente, abater os efeitos iatrogênicos da tecnologia sulfônica desenvolvida por Fauget, demonstrando sua eficácia em doses menores, e comprovando a resistência primária à mesma droga. Se a primeira evidência auxiliava o tratamento em massa almejado pelo controle público da enfermidade (LECHAT, 2004LECHAT, M.F. The saga of dapsone. In: WHO. Multidrug therapy against leprosy: development and implementation over the past 25 years. Geneva: WHO, 2004. p. 1-7. ), a segunda denunciava o perigo de derrocada do mesmo. A ameaça importada para o espaço público pela própria droga que nele fora introduzida para o defender, constituiu a motriz para a diligência por uma nova tecnologia terapêutica. Não seriam, portanto, os efeitos iatrogênicos da tecnologia sulfônica no corpo-próprio a movimentar a ciência leprológica, mas os efeitos iatrogênicos da mesma no corpo social, desvelando, sem hesitações, os objetivos que norteavam a disciplina que, desde os alvores da medicalização da hanseníase, diligenciava a expulsão da última do espaço público.

Foi assim que, em 1981, o Grupo de Estudo para a Quimioterapia da Lepra da OMS se reuniu em Genebra para regulamentar a uniformização de um esquema multidroga e promover sua universalização, relacionando o controle da hanseníase com os objetivos de Alma Ata. Na tecnologia que ficou conhecida como poliquimioterapia ou pelo seu acrônimo PQT, em português, e MDT (multi-drug therapy), em inglês, abraçavam-se duas esperanças: a diminuição do tempo de tratamento e a simplificação da metodologia de administração. Seria uma das drogas que compunham esse regime a assegurar o cumprimento de ambas as expectativas. Oriunda do campo científico da tuberculose, a poderosa rifampicina, com o seu efeito bactericida, desassombrava a clínica da hanseníase com uma tecnologia de cura rápida, eficaz e simples de administrar. Porém, embora arrecadasse um reconhecimento consensual enquanto droga indispensável num regime que combinasse diferentes drogas, a dosagem da rifampicina estimulava uma controvérsia científica, apenas resolúvel, em teoria, através de uma metodologia experimental assente em testes diferenciados e na observação de seus resultados após o tratamento. Sugestivamente, seriam critérios economicistas a resolver a dita controvérsia científica (SANSARRICQ, 2004SANSARRICQ, H. The study group. In: WHO. Multidrug therapy against leprosy: development and implementation over the past 25 years. Geneva: WHO, 2004. p. 31-44. ). Com a trincha da simplificação, obliterou-se o laboratório como dispositivo constitutivo da clínica, uniformizou-se a prescrição e fracionou-se a classificação das diferentes formas da hanseníase em duas formas polares (paucibacilar e multibacilar), fazendo corresponder as últimas à antepenúltima (WHO, 1994). Estas linhas operacionais veicularam uma política de descentralização dos cuidados da doença de Hansen para os serviços gerais de saúde (SANSARRICQ, 2004).

No início da década de 1990, a tecnologia poliquimioterapêutica tornara-se uma "caixa-preta" (LATOUR, 1987, p. 2-3) e um "aparato de produção" (HARAWAY, 1988HARAWAY, D.J. Situated knowledges: the science question in feminism and the privilege of partial perspective. Feminist Studies, v. 14, n. 3, p. 575-599, 1988., p. 506) do corpo com hanseníase composto por uma tecnologia biomédica tida como uma entidade autônoma, quer do contexto, quer de um conhecimento especializado, seria posto em marcha pelo mundo (DAUMERIE, 2004DAUMERIE, D. Implementation of MDT. In: WHO. Multidrug therapy against leprosy: development and implementation over the past 25 years. Geneva: WHO, 2004. p. 45-67. ). O elevado sucesso da PQT, comprovado empiricamente pela clínica durante os anos subsequentes à sua introdução, conduziu a que, em 1991, a OMS aprovasse uma resolução intitulada "Eliminação da doença de Hansen como um problema de saúde pública no ano 2000". Na esteira deste Programa Global, a síntese da evolução histórica da hanseníase era, em 2004, enlaçada na tecnologia que havia, aparentemente, transformado a doença de Hansen de uma doença à parte numa doença como outra qualquer (MOREL, 2004MOREL, C. Foreword. In: WHO. Multidrug therapy against leprosy: development and implementation over the past 25 years. Geneva: WHO, 2004. p. Vii-viii.).

Aos enunciados bélicos do programa de eliminação, era então anexada uma retórica que sintetizava a cura da hanseníase com a emancipação social das pessoas portadoras, obrando a síntese entre a PQT, a cura e a emancipação social das pessoas portadoras. Com efeito, a eliminação da hanseníase como problema de saúde pública enlaçava-se, inextrincavelmente, na sua cura no corpo individual enfermo: "Para eliminar a lepra, precisamos detectar todos os pacientes e curá-los com a PQT" (WHO, 2000, p. 3).

A inclusão de uma tecnologia de cura no "aparato de produção" (HARAWAY, 1988, p. 506) do corpo com hanseníase não induziu, contudo, a uma "revolução científica" (KUHN, 2005KUHN, T.S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2005., p. 125) na hansenlogia moderna. Na verdade, a "plataforma biomédica" (KEATING; CAMBROSIO, 2003, p. 3)99 Este conceito evidencia a interdependência entre a clínica e o laboratório na produção da ciência. entre a ciência e a clínica não conduziu a um novo paradigma, mas acumulou sobre o mesmo "paradigma biopolítico" (EPSTEIN, 2007EPSTEIN, S. Impure science: AIDS, activism, and the politics of knowledge. Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1996., p. 15),1010 Epstein (2007) cunhou este termo para se referir às teorias e práticas sobre saúde que têm origem numa articulação entre a biomedicina e políticas estatais., votado à expurgação da hanseníase da modernidade, um novo enunciado que metamorfoseou o axioma profilático que, no passado, sacrificara a cidadania das pessoas portadoras em prol do bem público, no sentido da atual defesa da primeira como mecanismo indispensável para a preservação do segundo.

Logo, a guinada discursiva que acompanha a atual "política ontológica" (MOL, 2002, p. viii) transnacional para a hanseníase, aparenta decorrer de uma inversão na dialética entre cidadania e público no interior de um mesmo paradigma que persiste em dirigir a intervenção biomédica para o corpo individual como locus da doença.

A incerteza na clínica

Em Portugal, a consulta semanal de hanseníase do Hospital Curry Cabral, localizado na cidade de Lisboa, atendia, entre 2009 e 2011, cerca de trinta pacientes em estado ativo da doença por ano. A esmagadora maioria sendo pacientes de origem brasileira, oriunda dos estados, por ordem decrescente, de Minas Gerais, Goiânia, Mato Grosso, Baía, Paraná, Rondônia, Rio de Janeiro e Ceará, ou seja, de estados com índices diferenciados de hanseníase. Os mesmos pacientes deram entrada em Portugal, sobretudo, a partir do ano 2000. Do ponto de vista clínico, a maioria exibia formas paucibacilares da doença.

Esta expressão da hanseníase na paisagem portuguesa, por um lado ilustra a desestabilização do binômio clássico entre território e saúde pública pela reemergência de patologias infecciosas pretensamente ultrapassadas em países do Norte global, caracterizados por uma transição epidemiológica das últimas para as doenças crónicas. Por outro lado, padece da carência de respostas institucionais à doença pelo Estado Português, verificando-se uma incapacidade da rede de atenção primária para responder à doença e a contígua centralização do cuidado médico da hanseníase numa consulta especializada, mas também a formação de uma clínica-previdência,1111 Apelo, aqui, ao conceito de "Sociedade-providência" (SANTOS, 1993, p. 46), para pensar a clínica. A médica responsável pela consulta de hanseníase do Hospital Curry Cabral faz uso da sua rede profissional para solicitar, pessoalmente, o atendimento desses casos, uma vez que, por vias institucionais, esbarra num sistema de saúde que não prevê a complementaridade de cuidados. com assento na rede social médica informal, face a problemas adjacentes à infecção pelo Mycobacterium leprae que solicitam cuidados médicos de outras especialidades ou complementares.

A hanseníase assoma, assim, como uma doença importada que assume as características sociológicas de uma doença rara, nomeadamente a parca cobertura do sistema público de saúde, em função do baixo conhecimento sobre ela (PAZ; GROFT, 2010PAZ, M. P.; GROFT, S.C. Rare diseases: advances in experimental medicine and biology. London and New York: Springer, 2010. ). No entanto, os fluxos globais de pessoas e de doenças desmontam, igualmente, padrões de conhecimento, encimados sob o postulado da imunização da biologia humana à história. Ora, tal como Lock e Nguyen (2010) enunciaram a propósito de um exame de diferentes fenomenologias da menopausa em contextos históricos distintos, a clínica da hanseníase, em Portugal, desencobre a importação de uma doença no país através de corpos que evidenciam "biologias locais" (LOCK; NGUYEN, 2010, p. 90), ou seja, a constituição mútua entre a biologia e a vida social. Ouça-se a voz da médica dermatologista que se ocupa do cuidado médico da hanseníase em Portugal:

Esta doença tem muitas nuances. Por exemplo, com os casos do Brasil, eles têm formas diferentes do que eu estou habituada a ver. Porque é um país de alta endemicidade e tem várias formas que eu só tinha lido nos livros.

Também a própria tecnologia biomédica não é imune a uma apreciação detalhada pela especialista que problematiza o discurso veiculado pela OMS. Para a clínica, "padrões de ignorância" (HARDING, 1998HARDING, S. Is science multicultural? Postcolonialisms, feminisms, and epistemologies. Blomington: Indiana Press, 1998., p. 58) ensombram uma doença que se desdobra em quadros de reações para os quais os únicos recursos tecnológicos disponíveis são drogas obsoletas e prenhes de efeitos iatrogénicos. Assim, a avaliação do programa global pela especialista diverge da imagem, difundida pelo mesmo programa, de uma enfermidade eliminável através do emprego de uma tecnologia de cura:

A OMS é muito otimista! Eu tenho doentes com sequelas. Mas são sequelas que só eles próprios sabem. Por exemplo, têm uma zona da pele que nunca mais recuperou a sensibilidade. Que eles próprios dizem: "- Doutora é aqui", porque eu já não consigo ver.

No Brasil, entre o mesmo período de 2009 e 2011, as consultas de hanseníase no ambulatório de dermatologia do Instituto Estadual de Dermatologia Sanitária do Rio de Janeiro (IEDS) decorriam duas vezes por semana e eram ministradas por dois médicos dermatologistas que laboravam nas mesmas consultas desde o período de introdução da poliquimioterapia no mesmo ambulatório. A par com as consultas médicas, eram oferecidas, tal como previa o então Programa Nacional de Controle da Hanseníase do Ministério da Saúde, consultas de terapia ocupacional, psicologia e assistência social. A tabulação das consultas de hanseníase contabilizava cerca de 150 casos novos por ano, sendo que, como me foi afirmado pelos profissionais de saúde, e também como pude verificar numa análise amostral dos ficheiros clínicos, cerca de metade se orientava para o controle de reações. Este dado não é alheio ao fato de o IEDS ser um centro de referência estadual em hanseníase e, logo, atender casos que não foram satisfatoriamente respondidos na rede de atenção básica.

Finalmente, como também me foi observado pelos funcionários do serviço, mas como pude aferir na consulta dos prontuários clínicos, os pacientes de hanseníase atendidos no IEDS procediam de diversos municípios do estado do Rio de Janeiro, convergindo, não obstante, residir em áreas de maior vulnerabilidade habitacional e social em cada um desses mesmos municípios, denunciando a "cidade escassa" que engrossa o estado e que "começa na escassez da casa, ou melhor na escassez de endereço, que é dizer mais, para quem vive fora dos limites da cidade formal" (BURGOS, 200, p. 21). Esse contexto ilustra a associação, reconhecida pelo Estado Brasileiro (muito embora não respondida pelo mesmo na governamentalidade da doença no país), da hanseníase com populações periféricas no interior do país ou com o que o geógrafo brasileiro Milton Santos (1979, p. 37) denominaria o "circuito inferior" das sociedades urbanizadas do Sul global, que remete a uma sobreposição da subalternidade socioeconômica de largas faixas da população com a segregação no espaço.

É precisamente, para um acesso diferenciado aos bens e serviços públicos que os clínicos a laborar no IEDS endereçam os fatores explicativos da persistência da endemia no país. Não obstante, o programa centralizado no Ministério da Saúde tem falhado em implementar uma "prevenção primordial" e "primária" (BARBOSA et al., 2010BARBOSA, J. et al. Módulos de princípios de epidemiologia para o controle de enfermidades. Módulo 1: apresentação e marco conceitual. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde, 2010., p. 12)1212 Para uma contextualização da história recente do combate à hanseníase no Brasil ver Moreira (2002), Oliveira (2008), Penna (1995). Para o papel da sociedade civil, ver Fabrino (2009). Para uma análise da relação entre acesso à saúde, qualidade da atenção médica e os itinerários terapêuticos das pessoas portadoras de hanseníase, ver Martins e Iriart (2014). que atue a montante da doença, convertendo o corpo individual enfermo no campo de batalha para a missão heróica da prática biomédica. Em observação de várias consultas, presenciei a invocação de um "modelo explicativo" (KLEINMAN, 1980KLEINMAN, A. Patients and healers in the context of culture. Berkeley: University of California Press, 1980., p. 105) bélico como hermenêutica da ação da biomedicina sobre a infecção causada pelo Mycobacterium leprae no corpo individual. Por outro lado, o maior detalhe oferecido pela clínica patenteia como a epidemiologia, enquanto técnica cartográfica da geografia médica da população, produz tanto padrões de conhecimento, quanto padrões de ignorância, convertendo-se, enfim, numa tecnologia de invisibilidade (BIEHL, 2007, p. 204). Ouça-se a voz de um dos dois médicos brasileiros a laborar no IEDS:

Uma coisa é o médico que trabalha com o paciente vivendo os seus problemas, outra coisa é o planejador que trabalha atrás de uma escrivaninha, lá em Brasília, na central do Ministério da Saúde. Essas pessoas estão preocupadas com estatísticas, com números. Não estão preocupadas com gente. Então qual é a preocupação? É baixar a incidência, é baixar a prevalência. Como é que se faz isso? Tratando mais rápido. Quanto mais rápido você trata, mais cedo você dá alta. Os números todos diminuem. Se você pega uma pessoa e dá alta, acabou, aquela pessoa deixa de ser um problema numérico. Ela vai ser um problema para mim. Por quê? Porque eu vou dar alta para ela e daqui a três meses ela vai voltar com reação. Ela não faz mais parte da estatística, mas ela faz parte da minha estatística, do meu problema, que vou ter que ficar tratando da reação dela. O sistema pode ser ótimo, pode ter ótimos resultados estatísticos. Mas na prática vai criar problemas. Na prática você vai ter mais gente mal tratada com risco de incapacidade.

A prática clínica desvenda o paradoxo de uma enfermidade cujo "aparato de produção" (HARAWAY, 1988, p. 506) almeja transformá-la numa doença como outra qualquer, diagnosticável e tratável na rede de atenção básica e cuidados gerais de saúde, e uma fenomenologia complexa e desdobrável que, muitas vezes, apela a uma intervenção apurada e especializada.

Também o próprio sucesso da intervenção biomédica emerge como estando dependente não somente de processos hermenêuticos e do tipo de tecnologia empregue, e ainda de fatores extrainstitucionais adjacentes à ancoragem social e profissional dos pacientes. Escute-se o outro médico a laborar no IEDS:

Acontece que o paciente se aposenta mas esse salário não é suficiente e ele trabalha numa outra coisa. Mas sem a proteção do Estado. E aí ele ganha o salário dele, mas aquele trabalho ali é mutilante. Ele é aposentado, tem um perfurante plantar, mas ele carrega saco de batata no mercado.

Por fim, a prática clínica desencobre a "incerteza" (WALKER et al., 2003WALKER W. E. et al. Defining Uncertainty: a conceptual basis for uncertainty management in model-based decision support. Integrated Assessment, v. 4, n. 1, p. 5-17, 2003., p. 5) do programa global, mas também do programa nacional, lembrando que a última é entendida como um desvio do ideal pressuposto pelo conhecimento determinista de determinado sistema:

Você diz para um paciente que ele vai tomar remédio durante doze meses e depois você lhe dá alta e diz que ele tá curado. Aí o sujeito volta três meses depois com reação. Você começa, por exemplo, a dar talidomida para ele. Como é que você vai querer que uma pessoa leiga, não vou nem dizer ignorante, porque pode ser uma pessoa de ótimo nível educacional, mas como é que você vai querer que uma pessoa leiga entenda que ela está curada e que ela ainda tem que tomar remédio? Impossível você exigir isso de alguém. É até incompreensível para alguém técnico, alguém da área. Olha você está curado, mas você tem que tomar cortisona ou talidomida. E pior, você toma a talidomida e não tem sono de noite, você toma a cortisona e você fica inchado.

Uma cura controversa

Anelise é uma mulher que, à data do início do trabalho de campo em Portugal, no ano de 2009, tinha 42 anos. Sendo natural do estado do Rio de Janeiro, imigrara para Portugal em 2007, residindo na periferia de Lisboa e trabalhando como esteticista. Fora em vésperas de imigrar que a hanseníase, que já havia irrompido na vida do seu pai, anos antes, irrompeu na sua. Quando da entrevista abaixo, Anelise terminara o tratamento de seis meses para casos paucibacilares. Em setembro de 2010, quando reencontrei Anelise, os sintomas persistiam, bem como uma dor que, do ponto de vista da clínica a laborar no Hospital Curry Cabral, se oferecia como uma "categoria clínica sem sanção oficial, uma categoria anómala" (KLEINMAN et al., 1995, p. 4), para a qual sobravam respostas turvadas pela incerteza, fazendo com que Anelise se sentisse cada vez mais isolada num corpo carente de inteligibilidade:

Não sinto mais alegria em nada. Não posso ficar sozinha. Começo a pensar. Que eu tenho que ir embora. Eu tenho que tomar uma decisão na minha vida. A Doutora tem que me ajudar para eu fazer contas no meu trabalho. Se é que ainda há tempo. O tempo passa e eu não sinto melhora, não faço tratamento. O que eu sinto não é normal, as dores que eu tenho não é normal. E eu não posso nem me emocionar que é pior. As dores aumentam mais ainda.

Já Elisa, 36 anos, natural do estado de Rondônia, vivia em Portugal desde 2000, tendo sido diagnosticada com hanseníase multibacilar em 2008, embora viesse percorrendo os serviços de saúde em Portugal desde 2006, afirmando inutilmente aos médicos que a atendiam (mas que não a escutavam) que tinha hanseníase, pois reconhecia no seu corpo os mesmos sintomas que observara no seu pai. A experiência de Elisa ilustra vincadamente a falha dos serviços públicos em diagnosticar a hanseníase tanto no país de origem, quanto no país de imigração. No Hospital Curry Cabral deu início ao tratamento poliquimioterapêutico para casos multibacilares, sem que parassem os quadros reaccionais que conduziram, pela sua gravidade, a seu internamento por diversas vezes. Elisa narra uma fenomenologia distante de se converter numa doença como outra qualquer:

Dores muito fortes, agudas, em todo o intestino, dói tudo. Tenho enjoos, dores de cabeça e insónia. Há um ano comecei a ter a vista turva e de repente começou a sair muitas lágrimas. Até que chegou um dia que não conseguia ler ou ver televisão. Foi de repente. De Janeiro a Março houve dois traumatismos muito grandes no olho. E tive que ficar dois dias no escuro. Também não posso fazer a cirurgia do cálculo renal. Pelo que eu percebi, a medicação do rim que eles vão dar, entra em choque com a medicação da hansen. Já perdi muita sensibilidade nas mãos e nos braços que estão a ficar atrofiados. Tanto que eu me queimei várias vezes e não percebia. Eu consigo pegar peso, mas não um peso tão, tão forte, eu não consigo segurar.

O atraso no diagnóstico da hanseníase desencadeara um avanço da enfermidade, deixando no corpo de Elisa marcas que não abalariam jamais e que demandam cuidados cirúrgicos e complementares, desde a cirurgia reconstrutiva até à terapia ocupacional (inexistentes em Portugal) e que fazem questionar a cura da enfermidade: "A pessoa sempre fica com medo. O medo de não conseguir... é aquele medo um pouco de não conseguir, se vai ter mesmo a cura. Cura, mesmo".

Em 2012, Elisa subsistia em fazer tratamento poliquimioterapêutico, bem como terapia com corticoides para controle das reações. Após uma longa hesitação, a médica responsável resolveu prescrever talidomida para reforçar o uso insuficiente dos corticoides.

Também para Amadeu, com a mesma idade de Elisa, residente no município de Nova Iguaçu no Rio de Janeiro e diagnosticado em 2007, a hanseníase estava longe de ser uma doença como outra qualquer. Conheci Amadeu em 2009, durante uma consulta para controle de reações. Ele tomava, então, corticoides e talidomida. O clínico que dele se ocupava tentara já uma redução das doses de ambas as drogas mas Amadeu piorara significativamente, em especial no que toca às dores. Durante a consulta, Amadeu queixava-se de dores e inquiria o médico se existia alguma forma de "acabar com os tremores". O último, respondendo que somente baixando a dosagem dos corticóides, finalizara a afirmação, dirigindo-se a mim para dizer: "Desde julho, a gente está nessa novela".

Amadeu não tinha antecedentes familiares da doença e quando os sintomas emergiram procurou assistência médica na atenção básica. Seu itinerário pela atenção básica é composto por delongas quer no diagnóstico da doença, quer no diagnóstico das reações, que agravaram, substancialmente, seu estado de saúde:

Não, ainda tomo remédio. Podem falar que eu tou curado mas... tomo remédio por causa dela, então não tou curado. Vou tar curado quando eu não tomar mais nada. Enquanto isso, eu não tou curado. Tanto por aparecer essas reações, quanto por ainda tomar medicamento. Vou-me sentir curado quando não tomar mais medicamento nenhum, quanto não tiver mais nenhuma reação.

Lauro, de 45 anos de idade, residente na Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, iniciou o tratamento para hanseníase em 2003, e desde então não parou de tomar medicação para estados reacionais agudos. Quando o conheci, em 2009, face à incerteza se seu caso seria provocado por reações ou por uma recidiva da doença, Lauro reiniciava o tratamento poliquimioterapêutico. Para ele, a hanseníase é uma enfermidade sem cura:

Até hoje eu tomo remédio, porque se diminui vem logo as reações. E eu venho aqui sempre que é preciso eu vir, o medicamento eu nunca deixo de tomar, se me encaminham para ir fazer exames de outra coisa, eu vou. Se fala que há cura, mas não há, ela é controlada. Portanto tem que seguir correto os medicamentos e tar sempre se acompanhado, se observando. Por exemplo, eu fiz a cirurgia na parte da perna, mas eu ainda não tenho sensibilidade, não mexo a perna direito. A dormência, a falta de sensibilidade nessa região não passa. Na mão também foi feita descompressão. Mas fiquei com essa garra. Então eu acho que não tem uma estabilização. Tá entendendo porque eu acho que não tem cura? Há um congelamento. E se congelou, aquilo pode descongelar. Porque quando você fala tem cura, é entre aspas, né? Porque o bacilo ainda está dentro de si e a qualquer momento, ele adormece, mas ele pode acordar. E aí vêem as reações. O que é as reações? É ele brigando para poder sair. É que nem um rio que se seca e você não vê um peixe, choveu, choveu, tá cheio de peixinho novo. Só da água da chuva. Não tava adormecido ali os ovos? Tendo o remédio eu tou bom. Mas qualquer medicamento que corta, ele surge.

Considerações finais

Não obstante a clínica ser uma prática profissional inserida na, e enformada pela, organização burocrática do Estado,1313 Ver Kleinman (1995). mas também ancorada num dado relevo socioeconômico e cultural que produz processos heterogêneos de medicalização das enfermidades, as vozes dos clínicos a laborar em Portugal e no Brasil sublinham a inescapável dependência de sua prática de tecnologias biomédicas que persistem subsidiárias de motrizes economicistas, situando sua prática num sistema mundial de saúde que galopa velozmente para a conversão do corpo humano numa mercadoria e no qual subsistem populações sem acesso a tecnologias terapêuticas ou que recebem nos seus corpos uma intervenção assente em tecnologias de eficácia duvidosa ou mesmo com efeitos iatrogênicos graves (PETRYNA; KLEINMAN, 2006PETRYNA, A.; KLEINMAN, A. Global pharmaceuticals: ethics, markets, practices. London: Duke University Press, 2006.).

É nesse contexto que são ativamente produzidas doenças negligenciadas para as quais as tecnologias terapêuticas em uso colocam dilemas deontológicos na prática clínica, como o uso de cortisona e de talidomida para o tratamento de quadros reaccionais da hanseníase, que conduz um clínico brasileiro a afirmar em entrevista: "Para você ver a contradição. A droga que melhora a dor dela, é a droga que mutila ela".

E mais, as mesmas tecnologias aviltradas como entidades autônomas do contexto, na prática, revelam uma incerteza que, como explicam Walker et al. (2003), conduz à necessidade de incluir processos participativos nas tomadas de decisão, como forma de precaver e gerir portenciais danos.

Lembrando a voz de Farmer (2010)FARMER, P. Partner to the poor. Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 2010. acerca de categorias de evidência, modeladas por uma ideologia neoliberal, que fornecem os traços que desenham as estratégias de governamentalidade das enfermidades, devemos perguntar-nos se não mereceria considerar-se como categorias de evidência alternativas a avaliação das tecnologias biomédicas no corpo-próprio leigo.

Com efeito, é pela experiência incorporada das pessoas, cujos corpos constituem seu território de atuação, que a PQT sofre uma suspensão inquisitiva que a abre com a chave da controvérsia gerada por uma crise de credibilidade1414 Ver Epstein (1996). em torno dos seus postulados. No lastro dessa crise de credibilidade, emerge uma hermenêutica para a doença que difracciona a própria nosologia biomédica da hanseníase, deslocando a fronteira entre o normal e o patológico. Por conseguinte, será também aí que impera a inclusão de uma escolha incorporada,1515 Como questiona Mol (2008), cabe identificar quem faz política ontológica, ou seja, identificar a localização social da escolha e, subsequentemente, descerrar os espaços para uma escolha incorporada que inclua os sujeitos visados. uma vez que, como demonstra Latour (1992), mas também a história médica e científica da própria PQT, a política jamais falha em penetrar no laboratório.

Para as mulheres e homens com hanseníase, a cura da hanseníase parece menos dependente da cura bacteriológica, alcançada com a PQT, e mais do grau de saúde que lhe é contíguo, revelando como a farmacêutização da saúde pública é menos geradora de experiências de saúde do que da contenção das doenças no espaço público.

Assim, e em primeiro lugar, para alguns sujeitos submetidos à intervenção poliquimioterapêutica, a hanseníase tornou-se uma doença curável como outra qualquer, enquanto que, para outros (cujas vozes foram aqui invocadas), a mesma enfermidade, tratada com a mesma tecnologia, é experienciada como uma patologia crônica e sem cura. Logo, a PQT não é uma entidade autônoma do contexto; antes, é fortemente mediada pela história, pela cultura, pelo Estado e pelas interseções entre a doença e a sociedade. São as vozes das pessoas com hanseníase que, justamente, reatam o "nó górdio" entre "os conhecimentos exatos e o exercício do poder, digamos a natureza e a cultura" (LATOUR, 1994, p. 9).

Em segundo lugar, as narrativas das mulheres e homens com hanseníase reivindicam uma persistência da doença pós-cura bacteriológica que revela como a "caixa-preta" (LATOUR, 1987, p. 3) que sintetiza a PQT, a cura e a emancipação social das pessoas portadoras, é forjada por uma "ideologia da cura" (GARLAND-THOMSON, 2006, p. 264) que lança para a subalternidade as corporalidades que escapam ao afã regenerador da biomedicina, alojando-as num espaço liminar entre os polos aposicionais da saúde e da doença. Tal ideologia é, por conseguinte, inextrincável de um capacitismo1616 Este termo, forjado na esteira de outros mecanismos de opressão como o racismo, o sexismo ou a homofobia, visa contextualizar criticamente a ideia generalizada de que "as pessoas com deficiência como um grupo são inferiores às pessoas sem deficiência" (LINTON, 2006, p. 161), desvelando sua inserção histórica num determinado sistema de relações de força. que lavra sociedades desenhadas por um sistema econômico de produção e de desenvolvimento capitalista que subalterniza a deficiência e a doença crônica e desqualifica socialmente as pessoas delas portadoras.

É assim que largas camadas de pessoas com hanseníase são declaradas curadas pela cartografia oficial global da hanseníase, ao mesmo tempo em que persistem em ser objeto de uma clínica dirigida a quadros reaccionais, com uso de drogas obsoletas com efeitos iatrogênicos severos, ou convivendo com dor crónica e/ou sequelas irreversíveis, muitas vezes não reconhecidas pelos sistemas de previdência social dos Estados.

Seu testemunho, no entanto, ao reivindicar uma categorização mais ampla da própria patologia, reinvindica igualmente um novo paradigma de cuidado para a hanseníase que não apenas problematiza o paradigma curativo que informa a medicina moderna e, em particular, a lógica atomista, setorial e vertical de governamentalidade da saúde pública, mas força a entrada dos saberes leigos na própria representação das qualidades primárias do corpo - ou seja, que estende "as linhas de combate para dentro das próprias ciências" (LATOUR, 2008, p. 59).

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  • 1
    O conceito remete a um dispositivo epistêmico que torna desnecessária para sua operacionalização a compreensão da complexidade e das controvérsias que o constituíram.
  • 2
    Para uma sinopse da descrição etiológica e nosológica da lepra, ver Echevarría (2007).
  • 3
    Artigo intitulado "Leprosy as a multilayered biosocial phenomenon: the comparison of institutional responses and illness narratives of an endemic disease in Brazil and an imported disease in Portugal", aceito para publicação na revista Clinics in Dermatology.
  • 4
    Esta e outras traduções são da responsabilidade da autora.
  • 5
    Para um estudo sobre os atuais trânsitos epidemiológicos da hanseníase do Brasil para Portugal, ver Medeiros, Catorze e Vieira (2009).
  • 6
    Com o conceito de "paisagens morais" Palsson e Hardardóttir (2002, p. 272) contextualizam cultural e politicamente as respostas e as disputas sociais em torno da saúde.
  • 7
    A partir de uma etnografia da arteriosclerose, Mol (2002; 2008) demonstra como os objetos das ciências biomédicas são um produto modelado pelas diferentes práticas que compõem a clínica, desmontando a antinomia entre ontologia e política.
  • 8
    Esta pesquisa resulta da tese de doutoramento intitulada Uma cura controversa: a promessa biomédica para a lepra em difracção entre Portugal e Brasil, financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, cujo projeto foi aprovado pela Faculdade de Economia/Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, cumprindo todos os requisitos éticos exigidos. O projeto também foi aprovado pelos comitês de ética do Hospital Curry Cabral e do Instituto Estadual de Dermatologia Sanitária do Rio de Janeiro. Na sua implementação, foram acautelados todos os procedimentos éticos, com uso de consentimento livre e esclarecido e de pseudônimos para salvaguarda do anonimato dos participantes.
  • 9
    Este conceito evidencia a interdependência entre a clínica e o laboratório na produção da ciência.
  • 10
    Epstein (2007) cunhou este termo para se referir às teorias e práticas sobre saúde que têm origem numa articulação entre a biomedicina e políticas estatais.
  • 11
    Apelo, aqui, ao conceito de "Sociedade-providência" (SANTOS, 1993, p. 46), para pensar a clínica. A médica responsável pela consulta de hanseníase do Hospital Curry Cabral faz uso da sua rede profissional para solicitar, pessoalmente, o atendimento desses casos, uma vez que, por vias institucionais, esbarra num sistema de saúde que não prevê a complementaridade de cuidados.
  • 12
    Para uma contextualização da história recente do combate à hanseníase no Brasil ver Moreira (2002), Oliveira (2008), Penna (1995). Para o papel da sociedade civil, ver Fabrino (2009). Para uma análise da relação entre acesso à saúde, qualidade da atenção médica e os itinerários terapêuticos das pessoas portadoras de hanseníase, ver Martins e Iriart (2014).
  • 13
    Ver Kleinman (1995).
  • 14
    Ver Epstein (1996).
  • 15
    Como questiona Mol (2008), cabe identificar quem faz política ontológica, ou seja, identificar a localização social da escolha e, subsequentemente, descerrar os espaços para uma escolha incorporada que inclua os sujeitos visados.
  • 16
    Este termo, forjado na esteira de outros mecanismos de opressão como o racismo, o sexismo ou a homofobia, visa contextualizar criticamente a ideia generalizada de que "as pessoas com deficiência como um grupo são inferiores às pessoas sem deficiência" (LINTON, 2006, p. 161), desvelando sua inserção histórica num determinado sistema de relações de força.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2016

Histórico

  • Recebido
    13 Fev 2015
  • Aceito
    15 Dez 2015
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