Normal e Patológico no naturalismo e no normativismo em saúde: a controvérsia entre Boorse e Nordenfelt

Normal and Pathological at naturalism and normativism in health: the controversy between Boorse and Nordenfelt

Paula Gaudenzi Sobre o autor

Resumo

Partindo do pressuposto que a demarcação entre o normal e patológico é flutuante e que o debate se atualiza constantemente, o intuito deste artigo é ampliar o leque de discussão sobre esses conceitos como forma de oferecer subsídios para resistir à patologização da existência sem abrir mão dos mesmos, que são fundamentais para a prática médica. O objetivo do trabalho é apresentar as disputas entre as perspectivas normativistas e naturalistas contemporâneas que buscam clarificar os conceitos genéricos de saúde e doença. A análise do estatuto epistemológico dos conceitos de saúde e doença ou de normal e patológico foi extensamente realizada por Canguilhem na década de 1940 e, atualmente, a investigação da temática indica que o aparato conceitual canguilhemiano merece ser refinado. Em função disso, apresenta-se a controvérsia na literatura filosófica anglo-saxônica entre as perspectivas naturalista e normativista, com base nos trabalhos de Christopher Boorse e Lennart Nordenfelt. Enquanto Boorse contribui para a discussão ao trazer um conceito naturalista e funcionalista da saúde a partir da ideia de uma "norma não normativa", Nordenfelt pauta a saúde na ação pragmática do sujeito no mundo, considerando o terreno da manifestação afetiva do ser humano.

Palavras-chave:
normal; patológico; naturalismo; normativismo.

Abstract

Assuming that the demarcation between normal and pathological is unfunded and that the debate is constantly updated, this article aimed to expand the range of discussion of these concepts in order to offer subsidies to resist the pathologization of existence without denying these concepts that are fundamental for clinical practice. It aims to present the dispute between the naturalist and normativist contemporary perspectives seeking to clarify the general concepts of health and disease. The analysis of the epistemological status of the concepts of health and disease or normal and pathological was widely held by Canguilhem in the 1940s and, currently, the subject of research indicates that the conceptual Canguilhemian apparatus deserves to be refined. As a result, the controversy in the Anglo-Saxon philosophical literature between naturalistic and normativist perspectives by reference to the work of Christopher Boorse and Lennart Nordenfelt is presented. While Boorse contributes to the discussion by bringing a naturalist and health functionalist concept from the idea of a "non-normative norm," Nordenfelt anchors health in pragmatic action of the subject in the world, considering the field of affective expressions of the human being.

Key words:
normal; pathological; naturalism; normativism

Introdução

Na década de 1970, desenvolveu-se uma literatura filosófica, principalmente anglo-saxônica, preocupada em dar continuidade à problemática extensamente trabalhada por Georges Canguilhem relativa à definição dos conceitos de saúde e doença. Teve início uma controvérsia, descrita na maioria das vezes como um debate entre "naturalistas" e "normativistas". Na origem da polêmica estão as publicações de Christopher Boorse: On the distinction between disease and illness (1975), What a theory of mental health should be (1976) e Health as a theoretical concept (1977).

O objetivo deste trabalho é apresentar as disputas entre o naturalismo e o normativismo na contemporaneidade, a partir de autores que compartilham com Canguilhem a convicção de que a análise filosófica pode contribuir para o esclarecimento dos conceitos médicos e que são os principais representantes do debate moderno entre essas duas perspectivas no campo da saúde: o americano Christopher Boorse e o sueco Lennart Nordenfelt. Preocupados em responder o que faz de uma condição física ou mental uma doença, esses autores, assim como Canguilhem, fazem uma análise rigorosa dos conceitos genéricos de saúde e doença, contribuindo significativamente para a análise de seu estatuto epistemológico.11Enquanto Nordenfelt declara que uma de suas influências teóricas é o trabalho de Caguilhem, Boorse faz apenas uma referência ao autor francês em seu artigo Concepts of Health, em 1987, quando sua obra já tinha sido traduzida para o inglês há nove anos.

Autores franceses contemporâneos que abordam o tema do normal e do patológico não se preocupam com a querela semântica implicada no uso ordinário ou técnico das duas palavras. Anne Fagot Largeault e Claude Debru22Ver Médecine et philosophie, de Fagot Largeault, e Science et non-science, de Debru. estudam a história e a filosofia das ciências biomédicas sem a pretensão de oferecer uma definição dos termos básicos da disciplina. É provável que este direcionamento seja resultado do compartilhamento da ideia canguilheminiana de que os conceitos de saúde e doença não podem ser definidos a priori, pois só têm sentido ao nível do organismo, da totalidade individual.

Além das mudanças significativas nos contextos médico e sociopolítico, a diferença de estilo filosófico torna difícil identificar semelhanças e eixos de encontro dos autores. Segundo Giroux (2012______. Philosophie de la medicine. Santé, maladie, pathologie. Paris: Libraire Philosophique J. Vrin, 2012.), há uma grande diferença entre o debate proposto por Canguilhem e os anglo-saxões na medida em que o primeiro segue o "estilo francês" em filosofia das ciências, que é marcadamente histórico e crítico e o segundo, de forma geral, segue o empirismo lógico ou, mais genericamente, o modo de argumentação da filosofia analítica. Ademais, enquanto Canguilhem não distingue completamente o domínio da filosofia da medicina do domínio da filosofia da biologia, os filósofos anglo-saxões contemporâneos tendem a separar os dois campos de análise.

O naturalismo em medicina

A abordagem naturalista em medicina - também chamada de empirista, objetivista ou positivista (RUSE, 1997RUSE, M. Defining disease: the question of sexual orientation. In: HUMBER, M. J.; ALMEDER, F. R. (Ed.) What is disease? Totowa: Humana Press, 1997.) - sustenta a existência de um fundamento racional, valorativamente neutro para se falar em saúde e doença. A meta dos naturalistas é mostrar que a distinção entre o normal e o patológico independe das contradições de nossas descrições do mundo, seguindo a tradição objetivista da explicação da doença e da normalidade.

Escoram-se no ideário da ciência moderna e buscam um estado da natureza que possa justificar as normas - e os desvios - do organismo vivo. Tipicamente, fundamentam a abordagem da doença e da saúde nas "ciências duras" - biologia, química e física - e evitam o saber das "ciências leves" como a história, a sociologia e a psicologia. A escolha vem do entendimento de que as primeiras são mais objetivas e menos sujeitas a influências culturais e ideológicas. Supostamente, as ciências duras dependeriam exclusivamente de valores epistêmicos como verdade, acurácia, coerência e simplicidade, enquanto as ciências leves dependeriam de valores morais, sempre vulneráveis à revisão.

Entender o sentido de objetividade no naturalismo é fundamental, pois nele se baseia a suposta superioridade epistêmica dessa teoria em relação ao normativismo. No livro The construction of social reality, John Searle faz uma distinção entre as noções de objetividade e subjetividade útil para elucidar o debate.

Searle (1995SEARLE, J.R. The construction of social reality. London: Penguin Books, 1995.) propõe dois sentidos da distinção entre objetivo e subjetivo: o epistêmico e o ontológico. No epistêmico, objetivo e subjetivo são predicados de julgamentos; o que os distingue é se a verdade ou falsidade de cada um depende ou independe de nossas atitudes e pontos de vista. Exemplo de julgamento objetivo é: "Rembrandt viveu em Amsterdam no ano de 1632". Neste caso, a verdade do julgamento independe das crenças individuais e dos sentimentos do observador. Ao contrário, a assertiva "Rembrandt é um artista melhor que Rubens" é um julgamento subjetivo, diz Searle. A verdade ou falsidade desse julgamento estético não pode ser avaliada objetivamente, pois depende do ponto de vista do sujeito.

No sentido ontológico, o que distingue objetivo de subjetivo é a existência dependente ou independente da representação. Um pedaço de ouro é uma entidade ontologicamente objetiva, enquanto a dor é uma entidade ontologicamente subjetiva. Segundo Searle, o modo de existência do pedaço de ouro é independente de qualquer representação do observador, enquanto o modo de existência da dor depende de ser sentida por um sujeito, ou seja, a dor é uma experiência subjetiva (GAUDENZI, 2014GAUDENZI, P. A tensão naturalismo/normativismo no campo da definição da doença. Rev. latinoam. psicopatol. fundam, v. 17, n. 4, p. 911-924, 2014.). As coisas do mundo que existem independentemente de nossas descrições, Searle denomina de propriedades intrínsecas do mundo, enquanto aquelas que dependem do observador são características relativas à intencionalidade do observador (GUERRERO, 2011GUERRERO, J. D. Against naturalist conceptions of health: in defense of constrained normativism. Tese (Doutorado em Filosofia) - University of Calgary, Calgary, Canadá, 2011. ).

De acordo com Guerrero (2011GUERRERO, J. D. Against naturalist conceptions of health: in defense of constrained normativism. Tese (Doutorado em Filosofia) - University of Calgary, Calgary, Canadá, 2011. ), os sentidos epistêmico e ontológico, para Searle, fundamentam o pensamento naturalista em matéria de saúde e doença, e estabelecem as bases para a diferença entre naturalismo e normativismo. Diferentemente do normativismo, o naturalismo aborda a saúde e a doença sem fazer referência a fatos ontológicos e julgamentos epistêmicos subjetivos. O julgamento sobre a doença, portanto, deveria ser objetivamente falso ou verdadeiro, no sentido de Searle. Partindo da noção de objetividade ontológica de Searle, os naturalistas afirmam que os julgamentos sobre a saúde são epistemicamente objetivos.

Mas quais seriam os fundamentos teóricos livres de valor que forneceriam os pilares irremovíveis dos conceitos de saúde e de doença? Em que se apoiam os naturalistas para afirmar o caráter objetivo do estado normal? Na especulação médica clássica, a saúde é concebida como um estado do corpo que está em harmonia com a Natureza. Assim era para Aristóteles e Galeno, que afirmavam a teoria dos quatro elementos - terra, ar, fogo e água. A saúde era um balanço adequado entre eles no organismo humano (PORTER, 1997PORTER, R. The Greatest benefit to mankind: a medical history of humanity. New York: Norton, 1997.). Na tradição Galenica, dizer que nosso corpo está "de acordo com a natureza" é fazer referência, ao mesmo tempo, àquilo que prevalece e àquilo que é desejado.

Suportes teóricos do naturalismo

Grande parte das abordagens naturalistas contemporâneas toma o conceito de função natural como garantia da objetividade do conceito de doença. Dois aspectos deste conceito - a bioestatística e o selecionismo - são relidos de modo a apoiar a tese da atipia como sinônimo compulsório de doença. A abordagem estatística sustenta que a anormalidade é definida pelo desvio estatístico que torna certo indivíduo portador de uma desvantagem (VARGA, 2011VARGA, S. Defining mental disorder. Exploring the "natural function" approach. Philos Ethics Humanit Med, v. 6, n. 1, 2011.). No selecionismo, o estado saudável é aquele que está de acordo com o funcionamento próprio da espécie Homo sapiens. A doença, portanto, é a interferência daninha na função própria, ou seja, uma disfunção biológica. O comprometimento com a teoria evolucionista, nesta tese, é claro (RUSE, 1997RUSE, M. Defining disease: the question of sexual orientation. In: HUMBER, M. J.; ALMEDER, F. R. (Ed.) What is disease? Totowa: Humana Press, 1997.).

Boorse (1975BOORSE, C. On the distinction between disease and illness. Philosophy and Public Affairs, v. 5, p. 49-68, 1975., 1976, 1977, 1987, 1997, 2002), Caplan (1981CAPLAN, A. L. The "unnaturalness" of aging - a sickness unto death? In CAPLAN, A. L.; ENGELHARDT JR., H. T.; MCCARTNEY, J. J. (Ed.). Concepts of health and disease: interdisciplinary perspectives, p. 725-738. Reading, MA: Addison-Wesley, 1981.), Kendell (1975KENDELL, R. The concept of disease and its implications for psychiatry. Br J Psychiatry, v. 127, n. 4, p. 305-315, 1975.), Macklin (1981MACKLIN, R. Mental health and mental illness: some problems of definition and concept formation. In: CAPLAN, A. L.; ENGELHARDT, H. T.; MCCARTNEY, J. (Ed.). Concepts of health and disease: interdisciplinary perspectives. Reading, MA: Addison-Wesley ; 1981. p. 391-418.), Moore (1978MOORE, M. S. Discussion of the Spitzer-Endicott and Klein proposed definitions of mental disorder (illness). In: SPITZER, R. L.; KLEIN, D. F. (Ed.), Critical issues in psychiatric diagnosis. New York: Raven Press, 1978. p. 85-104), Wakefield (1997WAKEFIELD, J. C. When is development disordered? Developmental psychopathology and the harmful dysfunction analysis of mental disorder. Dev Psychopathol, v. 9, p. 269-290, 1997.) e Reznek (1987REZNEK, L. The nature of disease. London: Routledge and Kegan Paul, 1987.) são alguns autores contemporâneos que buscam a descrição objetiva da doença mediante o recurso à natureza e às noções de função e disfunção. Além disso, as teorias dos três últimos são consideradas por muitos estudiosos como abordagens híbridas, pois combinam elementos normativos e naturalistas na caracterização da saúde e da doença (VARGA, 2011VARGA, S. Defining mental disorder. Exploring the "natural function" approach. Philos Ethics Humanit Med, v. 6, n. 1, 2011.).

Para elucidar a démarche do naturalismo, aborda-se de forma sucinta a tese de Boorse, o mais influente teórico naturalista em matéria de saúde e doença (ERESHEFSKY, 2009ERESHEFSKY, M. Defining "health" and "disease". Stud Hist Philos Biol Biomed Sci, v. 40, n.3 p. 221-227, 2009.) que se diferencia de outros proponentes da abordagem estatística da normalidade médica ao sugerir uma teoria mais refinada, cujo conceito fundamental é o de funcionamento biológico. O autor busca elucidar o que seria o suporte biológico-natural da doença sem se restringir ao vocabulário das ciências físicas. Para ele, nos processos orgânicos há um comportamento que difere das leis físico-químicas, um comportamento teleológico sem conotação metafísica. Compreende que há um modo típico, teleologicamente normal de o nosso organismo existir.

A teoria funcionalista de Christopher Boorse

Boorse, filósofo americano, é professor da University of Delaware, onde leciona os cursos de Filosofia da Biologia e Filosofia da Medicina. É o representante mais influente do Modelo Científico da Saúde na contemporaneidade. Concentraremos a apresentação de sua teoria sobre aspectos que permitem expor as principais questões atuais que desafiam o naturalismo em medicina. São elas: (1) a diferença entre os conceitos teóricos e práticos no domínio da medicina; (2) o funcionamento biológico normal; e (3) a noção de normalidade estatística.

Um dos aspectos fundamentais da teoria de Boorse (1997______. A rebuttal on health. In: HUMBER J. M.; ALMEDER R. F. (Ed.). What is disease? Totowa, New Jersey: Humana Press, 1997.) é a diferenciação que faz entre os conceitos teórico e prático de doença como forma de ilustrar o erro dos normativistas. Estes, diz, confundem o conceito de illness, que é um conceito prático e intrinsecamente axiológico, relevante para a prática clínica, com o conceito de disease, que é teórico e livre de qualquer componente moral, que concerne ao patologista.

Boorse se aproxima de Claude Bernard (GIROUX, 2011GIROUX, E. Después de Canguilhem: definir la salud y la enfermedad. Bogota: Universidad El Bosque, 2011.), para quem as normas fisiológicas podem ser determinadas experimentalmente e o patológico pode ser inferido delas quantitativamente. Afirma a disease como o conceito primário, o conceito cientificamente estabelecido, e illness o conceito subjetivo derivado. Para o autor, por trás do quadro conceitual da medicina prática há um quadro teórico autônomo, uma doutrina sobre a natureza do corpo capaz de revelar com segurança o que é o funcionamento saudável e de classificar os desvios desse funcionamento como doenças. Sob esse prisma, Boorse se alia à concepção da medicina moderna de que o conhecimento sobre a natureza da doença seria abstrato, geral, universal e que é absolutamente diferente do conhecimento sobre a experiência subjetiva do adoecimento e do sofrimento. Para Boorse, o corpus teórico médico, em continuidade com a teoria da biologia e outras ciências naturais, é livre de valor.

É com base na teoria da biologia - sobretudo no que se refere à noção de função biológica - que Boorse constrói os fundamentos de sua teoria da doença. Para o autor, haveria um funcionamento normal, um modus operandi típico da maquinaria fisiológica interna de uma espécie que serviria de base para a análise do estado saudável ou doente (BOORSE, 1977______. Health as a theoretical concept. Philosophy of Science, v. 44, n. 4, p. 542-573, 1977.).

Pode-se dizer, de forma sintética, que há uma divisão nas concepções de função biológica na biologia. Há aqueles que sugerem um conceito não normativo e não teleológico ou anistórico de função e aqueles que defendem um conceito normativo e teleológico, histórico ou etiológico da função biológica. Um marco na linhagem das interpretações teleológicas é o artigo Functions, de Larry Wright, de 1973 (WRIGHT, 1998WRIGHT, L. Functions. In: ALLEN, C.; BEKOFF, M.; LAUDER, G. (Ed.). Nature's purposes - analyses of function and design in biology. Cambridge: MIT Press, 1998. p. 51-78.), enquanto o artigo Functional analysis, de Robert Cummins, de 1975CUMMINS, R. Functional analysis. The Journal of Philosophy, v. 72, n. 20, p. 741-765, 1975., é a referência das abordagens não teleológicas (CHEDIAK, 2006CHEDIAK, K. Análise do conceito de função a partir da interpretação histórica. Filosofia e História da Biologia, v. 1, p. 161-174, 2006. ).

Historicamente, o conceito de função aplicado ao mundo natural sofreu transformações. No mundo pré-científico, predominava a linguagem finalista de caráter metafísico para a descrição do mundo natural. O organismo e os órgãos teriam uma função, e as ações dos animais são realizadas objetivando atingir certas metas. Com o desenvolvimento do pensamento científico e da biologia moderna, a aplicação da teleologia ao mundo natural foi problematizada. Entendia-se que as concepções teleológicas dependentes de agentes externos à natureza estariam em contradição com o espírito mecanicista da ciência contemporânea (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. M. A teleologia na biologia contemporânea. Scientle studia, v. 1, n. 2, p. 183-193, 2003. ). Dizer que a função do coração é bombear sangue e não produzir um som regular equivale a dizer que o órgão tem por finalidade cumprir esta atividade e que se espera que o faça. Mas como podemos afirmar que a função do coração é esta se não há um designer por trás? Sem considerar a intenção de um Criador, como saber quais seriam as funções de nossas células, órgãos e comportamentos?

É nesta espinhosa discussão que Boorse é envolvido. Se o autor afirma que há um funcionamento biológico normal que deve ser referência para a caracterização do conceito teórico de doença, deve ser capaz de sustentar uma teoria que permita precisar quais efeitos são funções e quais são acidentais.

Grosso modo, Cummins defende uma abordagem sistêmica da função que se baseia na premissa de que a biologia é uma ciência como qualquer uma das ciências físicas, isto é, as explicações funcionais podem ser propostas independentemente de argumentos evolutivos ou adaptativos. A seu ver, as funções são relativas às capacidades de um dado sistema e são descritas de acordo com interesses explicativos de quem as descreve. O solo de sua tese sobre o funcionamento orgânico são as "disposições" e as "capacidades complexas". Atribuir função a algo é, em parte, "atribuir uma disposição a este algo". Assim, se a função de X em S é F, então X tem a "disposição para F" em S. Atribuir uma disposição a um objeto é dizer que o comportamento desse objeto está sujeito a certa regularidade similar às leis que regem regularidades científicas. A função do acúmulo de nuvens, por exemplo, é fazer chover, mas não existe algo como um "mau funcionamento desse sistema", em caso de malogro da previsão. Também não se trata de considerar que o propósito das nuvens é causar chuva. Se as condições da disposição são encontradas, a disposição é manifestada. Cummins (1975) fala em disposições ao invés de normas de função; "disposicionalidade" ao invés de "normatividade". É essa "maleabilidade", isto é, a negação de uma determinação a priori da função com base na "escolha" da seleção natural, que faz com que autores como Ariew (2002ARIEW, A.; PERLMAN, M. Platonic and Aristotelian roots of teleological arguments. In: ARIEW, A.; CUMMINS, R.; PERLMAN, M. (Ed.). New essays in the Philosophy of Psychology and Biology. Oxford: Oxford University Press, 2002.) denominem sua teoria como pragmática.

A vertente etiológica de Wright (1998WRIGHT, L. Functions. In: ALLEN, C.; BEKOFF, M.; LAUDER, G. (Ed.). Nature's purposes - analyses of function and design in biology. Cambridge: MIT Press, 1998. p. 51-78.) é mais "rígida", pois afirma que o efeito identificado como a função do item é uma pista para sua existência. Entende-se que há olhos porque eles permitem a visão ou polegares opositores porque eles permitem agarrar (CUMMINS, 2002______. Neo-Teleology. In: ARIEW, A.; CUMMINS, R.; PERLMAN, M. (Ed.). New essays in the Philosophy of Psychology and Biology. Oxford: Oxford University Press, 2002. p. 157-172.). Wright pretende oferecer uma teoria da função que permita distinguir função de efeito acidental e, além disso, atribuir "função" a uma característica ou a um processo mesmo se ela for virtual ou disfuncional. Não se limita a identificar a disposição de um item, ou aquilo que realiza atualmente, propondo uma teoria normativa da função. Defende uma "abordagem etiológica" da função, isto é, sugere que as funções de um item são aquelas cujos efeitos explicam historicamente a existência do item. Dizer que uma parte X de um sistema biológico S tem a função de fazer F é dizer mais do que X faz F ou que F é efeito de X ou que X é uma condição necessária de F.

Exemplificando a diferença entre o caráter funcional e o caráter acidental dos órgãos e artefatos, diz que a "função" do coração é bombear sangue e não produzir sons no eletrocardiograma. Este, apesar de útil para a avaliação médica, é apenas fortuito "efeito colateral" da função executada pelo órgão. A função do coração é aquele efeito particular que explica porque os animais o têm. Atribuir função a um traço é dizer algo sobre sua etiologia ou história causal. A respiração é a função das brânquias dos peixes porque é por esse efeito que sua existência pode ser causalmente explicada (WRIGHT, 1998WRIGHT, L. Functions. In: ALLEN, C.; BEKOFF, M.; LAUDER, G. (Ed.). Nature's purposes - analyses of function and design in biology. Cambridge: MIT Press, 1998. p. 51-78.). A consequência imediata da atribuição de uma função apriorística de um item é a minimização de sua utilidade casual, diante da etiologia e da teleologia.

Boorse se distancia da concepção de Wright ao referir que sua concepção de função não está comprometida com a história evolutiva e, neste sentido, aproxima-se da teoria sistêmica de Cummins. O autor busca manter o caráter teleológico dos processos biológicos sem ancorá-lo na seleção natural. Aceita a visão sistêmica, de acordo com a análise funcional, mas mantém o caráter proposital ou teleológico dos processos orgânicos. Na leitura de Giroux (2011GIROUX, E. Después de Canguilhem: definir la salud y la enfermedad. Bogota: Universidad El Bosque, 2011.), Boorse maneja o conceito "não normativo de função", no sentido de desatrelar o termo "norma" de valores sociais ou subjetivos e da história evolutiva dos organismos. Assim, sua teoria é "não normativa" no sentido lato, mas é normativa no sentido deflacionado, que permite distinguir o "disfuncional" do "não funcional" e identificar o desempenho que define a significação do órgão investigado.

Mas como Boorse distingue função de disfunção? Como escapar do problema da concepção sistêmica que não diferencia um efeito funcional de um acidental? Boorse espera resolver esta dificuldade relativizando os enunciados funcionais a certa classe de entidades, a "classe de referência". Assim, uma função fisiológica é uma contribuição padrão de características dos indivíduos em uma espécie dada. Os enunciados funcionais descrevem espécies ou características populacionais e não individuais (BOORSE, 1977______. Health as a theoretical concept. Philosophy of Science, v. 44, n. 4, p. 542-573, 1977.). O juízo clínico, normativo, sobre a saúde individual é feito na base de uma normalidade funcional típica.

A função normal se define pela contribuição individual, "estatisticamente típica" em relação à classe de referência, tendo como objetivo a sobrevivência individual e a reprodução da espécie. Portanto, há um design que nada mais é do que a "organização funcional interna de uma estrutura fisiológica" estatisticamente típica dos membros da classe de referência e que tornam o alvo da sobrevivência e da reprodução dos membros dessa classe bem-sucedido. Em suma, a função normal é aquilo que é estatisticamente típico de acordo com o design.

Portanto, é necessário definir objetivamente a espécie à qual os enunciados são relativos. Como defini-la como uma categoria natural sem recorrer a uma história seletiva portadora de normatividade? Segundo Boorse (1977______. Health as a theoretical concept. Philosophy of Science, v. 44, n. 4, p. 542-573, 1977.), a evolução biológica leva naturalmente a certo equilíbrio, a uma uniformidade do design da espécie, certa estabilização de um conjunto de indivíduos. E, diz, a uniformidade funcional da espécie não é então outra coisa que o resultado da "seleção normalizante". Portanto, é difícil concordar com Boorse que seu conceito de função não evoca a utilidade passada e a história seletiva, como fazem os defensores da concepção etiológica.

O normativismo em medicina

A corrente normativista é também chamada de subjetivista ou construtivista, e afirma que tudo que existe só faz sentido dentro de um universo linguístico com regras de consistência de entendimento e dentro de um universo genealógico - de uma história de saberes, de poderes, de determinações éticas ou estéticas. O normativismo pode ser compreendido como uma variante do historicismo, do construtivismo e do pragmatismo, que defende que o sentido que damos às coisas é dependente do background cultural, genealógico, gramático, epistemológico e histórico que possuímos.

Opõe-se às concepções deterministas e reducionistas em saúde, afirmando a presença necessária de critérios antropológicos na definição da saúde e da doença. Os normativistas são céticos em relação à existência de algo estável, fixo e distintivo para a caracterização dos conceitos médicos. Contrapõem-se à ideia dominante em medicina segundo a qual a doença pode ser definida objetiva e cientificamente como um desvio em relação a uma norma estatística ou fisiológica e afirmam o caráter subjetivo e intencional da caracterização de qualquer condição como desviante. Sendo os conceitos de saúde e doença necessariamente valorativos, não são passíveis de ser descobertos, mas apenas (re)descritos. Os normativistas se preocupam com a gênese do significado e não com a origem ou a essência das coisas.

A maioria dos filósofos da medicina adeptos do normativismo aderem à concepção pragmática da saúde, acomodando a tensão entre as demandas científicas para uma base descritiva da linguagem da doença e as implicações práticas do uso dessa linguagem. Em geral, não dialogam com os filósofos da biologia, pois não têm interesse em discutir a pertinência do conceito de função natural e se limitam a problematizar quais valores estão em jogo na distinção entre o normal e o patológico.

Os normativistas se dividem entre os que acreditam que o valor da saúde é algo externo ao organismo e os que acreditam que se trata de um valor interno, determinado pela própria vida. Os primeiros sustentam que a avaliação do estado saudável depende do juízo da comunidade na qual se elaboram as normas de saúde. Os segundos alegam que a norma advém do fenômeno biológico, da própria vida, sendo o estado saudável universalmente valioso.

O debate anglo-saxão segue a primeira orientação, cuja noção de normatividade difere daquela defendida por Canguilhem, que se situa na interface das duas orientações. Para os primeiros, a normatividade é, antes de tudo, de natureza social e cultural. Como refere Engelhardt (1996ENGELHARDT, H. T. The foundations of Bioethics. New York: Oxford University Press, 1996.), a evolução biológica é um processo cego e mecânico que não tem perspectiva própria; na natureza, não há uma continuidade entre os efeitos da evolução biológica e os interesses dos indivíduos e das sociedades humanas.

A acepção de "objetividade" defendida pelos normativistas é que há algo que pode ser "universalmente valioso", enquanto para os naturalistas, "objetivo" refere-se à independência em relação a valores, normas e à cultura. Discute-se, porém, se os autores que defendem a existência de valores inerentes à própria vida são normativistas ou naturalistas.33Não é simples situar a tese de Canguilhem na polarização proposta. Segundo Giroux (2011), há certa dificuldade de apreender a maneira que Canguilhem articula normas sociais e biológicas. Apesar de no Ensaio ele identificar a origem vital de toda normatividade consciente e intencional, em Novas reflexões, insiste na diferenciação entre as normas sociais e a normatividade biológica.

Suportes teóricos do normativismo

Na filosofia da medicina contemporânea, representantes do normativismo, como Agich (1997AGICH, J. G. Toward a pragmatic theory of disease. In: HUMBER, M. J.; ALMEDER, F. R. What is disease? Totowa: Humana Press Inc., 1997.) Margolis (1976MARGOLIS, J. The concept of disease. J Med Philos, v. 1, n. 3, p. 238-255, 1976.), Engelhardt (1986), Nordenfelt (1994NORDENFELT, L. Introduction. In: NORDENFELT, L. (Ed.). Concepts and measurement of quality of life in health care. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers; 1994. p. 1-15., 1995, 1999, 2000, 2001, 2006), Fulford (1989FULFORD, K. W. M. Moral theory and medical practice. Cambridge: Cambridge University Press, 1989.), Porns (1993PÖRN, I. Health and Adaptedness. Theor. Med, v. 14, n. 14, p. 295-303, 1993.), entre outros, divergem em suas abordagens quanto aos valores em questão no julgamento da condição saudável e à relevância dos fatos empíricos para o julgamento do estado de saúde. Em comum, defendem que a definição de saúde e doença é necessariamente valorativa e que a demarcação entre o normal e o patológico só pode ser feita a partir de um julgamento normativo sobre a condição.

Há duas orientações principais, não excludentes. Alguns dão prioridade à prática clínica e ao agir humano, e defendem uma concepção que podemos denominar de "pragmática" ou "intervencionista" da doença, resultante da interpretação da medicina como resposta prática a pedido de ajuda dos sujeitos (AGICH, 1997AGICH, J. G. Toward a pragmatic theory of disease. In: HUMBER, M. J.; ALMEDER, F. R. What is disease? Totowa: Humana Press Inc., 1997.) Compreendem que a doença está relacionada primeiramente com necessidades práticas, e não com aspectos ontológicos ou lógicos das teorias da doença. Outros são mais favoráveis ao projeto de definição e propõem uma concepção da saúde ou da doença a partir da teoria analítica da "ação humana", ao invés da análise da função fisiológica (GIROUX, 2012______. Philosophie de la medicine. Santé, maladie, pathologie. Paris: Libraire Philosophique J. Vrin, 2012.).

Nordenfelt segue a segunda orientação e trabalha na tradição da filosofia analítica anglo-saxônica. Constrói suas reflexões sobre os conceitos médicos, levando em conta os valores e os elementos descritivos na definição dos mesmos. Sua teoria é frequentemente mencionada como uma versão moderada do normativismo.

A teoria pragmática de Lennart Nordenfelt

Nordenfelt é sueco e professor de Filosofia da Medicina e Cuidado em Saúde na Universidade de Linköping. Concentra seus estudos nas áreas da Epistemologia médica e da Ética, e tem como influências principais os trabalhos de Georges Canguilhem, Caroline Whitbeck e Ingmar Pörn. Com base nesses autores, Nordenfelt (1995CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.) constrói sua teoria, no intuito de propor um conceito de saúde aplicável tanto à saúde física como à saúde mental. Sua estratégia é combinar as ideias centrais da filosofia moderna da medicina com algumas noções da teoria analítica da ação da escola anglo-saxônica de pensamento.

Apesar de Nordenfelt compartilhar com Boorse a ambição de elaborar uma teoria científica para a saúde/doença aplicável ao físico e ao mental, ele é um dos principais críticos da teoria boorsiana. Apoia-se em uma perspectiva holística e positiva da saúde que integra a noção de bem-estar. Isto difere radicalmente da perspectiva analítica negativa de Boorse, cuja atenção é dirigida a segmentos do organismo humano.

O autor se interessa pela semântica da saúde/doença na linguagem ordinária e em explicar a rede de conceitos aos quais os dois termos se articulam. Por achar que a rede conceitual médica é deficiente, visa construir uma teoria próxima do uso comum dos termos "saúde" e "doença" e, deste modo, poder alternar a rede conceitual prevalente. Desse aspecto, sugere a (in)capacidade como o conceito base para uma teoria geral da saúde.

Para Nordenfelt (1995______. On the nature of health: an action-theoretic approach, Reidel, Dordrecht, The Netherlands, 1995. , 2001), nas doenças físicas há uma experiência de incapacidade em realizar a ação pretendida, e nas doenças mentais há falha nas capacidades relativas à percepção e à crença na própria capacidade, que resultam igualmente em impossibilidades de agir. Concentraremos a apresentação da teoria de Nordenfelt sobre alguns aspectos-chave da mesma: (1) a prioridade de um conceito positivo da saúde; (2) o conceito de capacidade ou habilidade; e (3) a noção de metas vitais.

Nordenfelt defende uma Teoria Reversa, isto é, inverte a concepção convencional de saúde, por entender que o conceito médico básico é a illness, e não conceitos "científicos", como disease. A illness é logicamente anterior à disease, pois apenas após a percepção de que a pessoa não está bem, busca-se uma explicação desse estado. Para o autor, a linguagem da doença jamais será isenta de valor. O que é identificado como doença é dependente da experiência subjetiva do mal-estar. No entanto, Nordenfelt (2001) propõe uma teoria positiva da saúde, em que o conceito médico primário não é o negativo, mas o positivo, a saúde. Ele julga não ser possível identificar a illness ou a disease sem uma visão tácita sobre o que é a saúde positiva. O intuito de priorizar logicamente a saúde deriva da compreensão dos sujeitos como agentes que interagem entre si em um contexto social na busca por interesses. Ademais, entende que uma análise da doença como incapacidade pressupõe a noção de capacidade, lógica e empiricamente anterior à primeira.

A saúde, na teoria de Nordenfelt, é avaliada em graus. Estende-se da saúde perfeita até um estado de má saúde máxima. A linha divisória entre saúde e má saúde, por sua vez, não pode ser estabelecida conceitualmente; depende do grau mínimo de saúde que a pessoa acha aceitável. Para Nordenfelt (2000), o paciente é, na maioria das vezes, a pessoa em melhor posição para determinar se uma situação é satisfatória. Por esta razão, seria um equívoco o médico tentar achar critérios independentes para traçar uma linha exata entre saúde e má saúde, no caso de um paciente em particular.

Em Nordenfelt, a ideia de fronteira cede lugar à ideia de gradação, aproximando-se de Canguilhem, que dissolve a distinção rígida entre normalidade e doença, ao afirmar a saúde como normatividade e a doença como normatividade reduzida. Canguilhem fala em graus de normatividade; Nordenfelt, em graus de saúde. A relevância da concepção gradativa da saúde e da doença reside, como indica Bezerra Junior (2007), na possibilidade de reconhecer algum grau de normatividade em qualquer forma de adoecimento. Por mais comprometida que seja a vida de um sujeito, há sempre alguma capacidade de invenção de novas normas de vida.

O conceito-chave da teoria de Nordenfelt é, portanto, a capacidade e seu correlato, a deficiência ou incapacidade. O autor se inspira em conceitos e ideias da Teoria da Ação, assinalando a estreita relação entre conceitos patológicos e o funcionamento nas atividades da vida, substituindo a noção de doença como disfunção biológica por uma noção de doença como disfunção em relação às expectativas individuais e sociais.

Para Nordenfelt (1995______. On the nature of health: an action-theoretic approach, Reidel, Dordrecht, The Netherlands, 1995. , 2006), a saúde é um conceito intrinsecamente relacional, que deve ser pensado a partir de três elementos fundamentais: (1) o sujeito com sua capacidade de agir; (2) os seus objetivos ou fins vitais; e (3) o ambiente ou as oportunidades. Dizer que uma pessoa não possui habilidade em um aspecto particular nos coloca diante da descrição da habilidade em causa. Deste aspecto, Nordenfelt (2000) recusa a normalidade estatística como norma para a capacidade humana, mas não nega a necessidade conceitual e prática de alguma norma ou linha orientadora. A norma, porém, é individual e não coletiva, social ou formalmente abstrata. Dessa forma, corrobora a tese de Canguilhem de que a instauração do normal não pode ser reduzida a padrões gerais preestabelecidos.

Nordenfelt pretende refinar o conceito de capacidade introduzido por Canguilhem e, para isso, aproveita as contribuições de Ingmar Pörn e Caroline Whitbeck, ambos influenciados pelo trabalho do americano Talcott Parsons, um dos principais fundadores da sociologia da medicina nos anos de 1950. Para Parsons, a saúde pode ser definida como o estado ótimo de capacidade de um indivíduo para a performance efetiva dos papéis para os quais foi socializado (NORDENFELT, 1995______. On the nature of health: an action-theoretic approach, Reidel, Dordrecht, The Netherlands, 1995. ).

Seguindo Durkheim, Parsons (1951PARSONS, T. The social system. New York: Free Press, 1951.) compreende a sociedade e a cultura como um sistema integrado de funções. No terreno da saúde, a integração refere-se ao exercício competente de papéis sociais e a doença corresponde a um comportamento desviante, com capacidade de funcionamento diminuída. A ênfase do autor na ação como uma importante dimensão da saúde foi retomada por Pörn, Whithbeck e Nordenfelt para reforçar a ideia de que saúde consiste na capacidade do sujeito em realizar suas metas. Habilidade ou capacidade são possibilidades de ação determinadas por fatores internos ao corpo ou à mente do agente.

Nordenfelt (1995______. On the nature of health: an action-theoretic approach, Reidel, Dordrecht, The Netherlands, 1995. ) sugere dois tipos de capacidades: a capacidade de primeira ordem e a capacidade de segunda ordem. No caso da saúde, diz o autor, o que está em jogo é a segunda. A primeira é a incapacidade de exercer, ocasionalmente, uma competência fundamental (incapacidade de se sustentar na Suécia). A capacidade de segunda ordem é a capacidade potencial, isto é, a capacidade que a pessoa tem de, após um treinamento, superar a condição incapacitante e aprender habilidades necessárias à nova situação. Como diz Nordenfelt (2006), nascemos equipados com pré-condições biológicas e psicológicas para nossas habilidades futuras. Estas pré-condições são as habilidades de segunda ordem e é delas que se trata ao falarmos de saúde.

Evidentemente, a falha da pessoa em alcançar a capacidade de primeira ordem após o treinamento não quer dizer que ela tenha, necessariamente, uma deficiência na habilidade de segunda ordem. A falha pode ser da circunstância do treinamento. Fala-se que a pessoa tem uma deficiência de segunda ordem em realizar uma ação F se, e apenas se, dadas as circunstâncias padrão e após seguir todo o treinamento corretamente, for deficiente para adquirir a capacidade de primeira ordem solicitada. Assim, dizer que alguém tem uma habilidade de segunda ordem é o mesmo que dizer que a pessoa tem os recursos básicos para agir - físicos e mentais - se as condições necessárias para tal forem oferecidas.

A delimitação da saúde e da doença à (in)capacidade de segunda ordem, porém, está longe de esgotar a teoria de Nordenfelt. A pergunta que permanece é: quais são as ações que uma pessoa saudável deve ser capaz de executar? Pressupõe-se que há uma gama de fins/metas que uma pessoa saudável deva ser capaz de alcançar. Outra forma de colocar a pergunta é: quais são as metas que uma pessoa saudável deve ser capaz de realizar?

Nordenfelt elabora então o conceito de "fins vitais", que são as metas que a pessoa deve ter a capacidade de alcançar na condição saudável. Para descrevê-las, recorre a duas teorias. Na primeira, os fins vitais são definidos como necessidades humanas fundamentais; na segunda, como metas estabelecidas pelo próprio agente. Nordenfelt reconhece os méritos das duas, mas acredita que, sozinhas, não respondem pelos fins vitais do homem. Em seu ponto de vista, não é possível considerar a saúde como a capacidade de realizar quaisquer fins determinados pelo sujeito. Há casos em que o sujeito estabelece para si metas impossíveis, muito baixas ou danosas. Assim, o fato de a meta ser desejada pelo sujeito não é suficiente para ser caracterizada como uma meta vital.

Considerando estes pontos, Nordenfelt propõe uma teoria da saúde pautada no bem-estar e na noção de felicidade. A ideia de relacionar saúde com felicidade é a forma que Nordenfelt encontra para dar consistência ao vínculo entre as teorias da necessidade e dos fins subjetivos. Mas, apesar de relacionar a felicidade com os fins individualmente escolhidos, Nordenfelt pondera que nem todos os fins intencionados visam ao bem-estar. Além disso, identifica que há fins no sentido do bem-estar que não são buscados pelo agente.

A noção de felicidade de Nordenfelt é inspirada nos trabalhos de Tatarkiewicz, Telfer e Griffin, defensores da abordagem descritiva mais difundida desses conceitos (FELDMAN, 2008FELDMAN, F. Whole life satisfaction concepts of happiness. Theoria, v. 74, n. 3, p. 219-238, 2008.). Os autores entendem a felicidade como satisfação sustentada, completa e justificada com a vida como um todo. Nesta concepção, uma pessoa está feliz se julga que aspectos importantes de sua vida correspondem a suas expectativas. Nordenfelt concorda com esta visão e especialmente com a versão de Tatarkiewicz, que opta por uma concepção de satisfação que envolve tanto o elemento intelectual como o emocional.

Pode-se dizer que a definição completa de saúde de Nordenfelt (1999______. On disability and illness: a reply to Edwards. Theor. med. bioethics, v. 20, n. 2, p. 181-189, 1999. ; 2000) é: A está completamente saudável se, e somente se, A se encontra em um estado físico e mental tal que A tenha a capacidade de segunda ordem, em circunstâncias aceitáveis, de realizar o gênero de coisas que são necessárias e suficientes para a felicidade mínima e durável de A.

Considerações finais

É importante pontuar que a distinção naturalismo/normativismo é simplista por desconsiderar as diversas escolas - "realista", "nominalista", "ontológica" e "fisiológica" - que são usadas para classificar os conceitos de doença. Ademais, vários sentidos de "norma" - epistêmica, axiológica, social, natural - e diversos tipos de valores - objetivo ou subjetivo, social, moral, estético, cultural, natural - são pressupostos nas diferentes teorias (GIROUX, 2010) e, portanto, faz-se necessário distingui-los, sem obrigatoriamente separá-los, para uma melhor compreensão do sentido de doença.

Outro ponto relevante é que os autores apresentados não se enquadram completamente na polarização proposta. Foi mantida a distinção como artefato heurístico destinado a identificar os principais fundamentos utilizados pelos defensores dessas abordagens e a analisar o lugar das normas e valores nos conceitos de saúde e doença.

O debate se estrutura, sobretudo, em relação à prioridade dada aos componentes biológicos ou práticos na concepção de doença. Aqueles que defendem a prioridade lógica do componente biológico ou da fisiologia sobre o componente prático, clínico ou experiencial na definição da doença, denominamos "naturalistas". Os normativistas, por sua vez, mostram que a dimensão prática é anterior à teórica, e que a valoração da condição precede sua conceitualização como doença.

Se fôssemos situar a tese de Canguilhem na polarização proposta pelos anglo-saxões, teríamos dificuldade. À primeira vista, ela parece se aproximar da abordagem normativista, pois é precisamente a dedução do patológico do fisiológico e a subordinação da clínica à fisiopatologia, um dos principais objetos de críticas de Canguilhem. O autor indica que, preocupados em fazer da medicina uma "ciência propriamente dita", os naturalistas caem em um excessivo reducionismo, pois recusam a necessária negatividade da doença para o indivíduo, isto é, a experiência vivida de sofrimento e impotência, que é o objeto por excelência da"pathos - logia". Porém, por fundar a normatividade na filosofia do vivente e em uma normatividade natural ou biológica, parece haver um expressivo caráter naturalista na teoria de Canguilhem. É possível dizer, com Lefève (2007LEFÈVE, C. Le normal et le pathologique. In: J.-M. MOUILLIE; LEFÈVE, C.; VISIER, L. (dir.). Médecine et sciences humaines. Manuel pour les études médicales. Pari:, Belles-Lettres, 2007. p. 86-104.), que o autor defende um naturalismo não reducionista e nota-se que a teoria de Canguilhem escapa à polarização proposta pelos anglo-saxões.

Por fim, pode-se dizer que as teorias de Boorse e Nordenfelt trazem boas contribuições para o debate sobre o normal e patológico, mas que ambas possuem dificuldades importantes do ponto de vista epistemológico. O que parece mais significativamente problemático na teoria de Boorse é que sua teoria é entrelaçada com uma noção positivista de ciência que envolve a suposição que problemas teóricos e práticos podem ser ordenadamente separados e que teorias científicas devem se originar de generalizações indutivas. Em relação à teoria de Nordenfelt, há inúmeras dificuldades práticas em avaliar o sentimento de felicidade de uma pessoa em particular. Ademais, com a linguagem e a pauta emocional, temos um sistema que se autonomiza de tal maneira que começa a ter regra própria do que é a saúde e a doença.

Um ponto positivo da teoria de Boorse é abrir um espaço de discussão para o conceito naturalista e funcionalista da saúde trazendo a "norma não normativa" como substrato da noção de doença. A definição mínima da doença proposta por Boorse - como condição que ameaça a sobrevivência individual e a reprodução da espécie - também pode ser aproveitada. Apesar de ser uma visão reducionista, pensar a doença dessa maneira permite que as formas de vida atípicas que não ameaçam esses "fins biológicos" possam ser vistas como saudáveis e boas de viver. Mas se associa o conceito de saúde ao de normalidade, entendida como frequência estatística, toda e qualquer anomalia ficará inevitavelmente associada à patologia.

Os principais ganhos, porém, advêm das críticas direcionadas aos naturalistas mais do que propriamente das teorias naturalistas. Dizer que há um fundamento natural para o que chamamos de função normal é perigoso. É precisamente este tipo de crença que sustenta a ideia de um tipo biológico normal e de um tipo desviante que deve ser normatizado, justificando práticas abusivas e discriminatórias.

Uma das contribuições de Nordenfelt é pautar a saúde na ação pragmática do sujeito no mundo, considerando o terreno da manifestação afetiva do ser humano, o bem-estar e a felicidade. Ademais, propõe a individualização da norma e do normal o que parece deixar fluida as fronteiras entre o normal e o patológico. Deixar nebulosa esta demarcação sem abrir mão dela tem um valor inestimável, pois em toda forma de adoecimento podemos reconhecer alguma normatividade, alguma possibilidade de ser criativo e construir uma forma de vida satisfatória. Abrir mão da demarcação, ao contrário, seria afirmar que somos indiferentes à capacidade normativa e, portanto, à vida e à morte.

Referências

  • AGICH, J. G. Toward a pragmatic theory of disease. In: HUMBER, M. J.; ALMEDER, F. R. What is disease? Totowa: Humana Press Inc., 1997.
  • ARIEW, A.; PERLMAN, M. Platonic and Aristotelian roots of teleological arguments. In: ARIEW, A.; CUMMINS, R.; PERLMAN, M. (Ed.). New essays in the Philosophy of Psychology and Biology. Oxford: Oxford University Press, 2002.
  • BEZERRA JUNIOR, B. C. Um apelo à clínica: nem o respaldo da norma, nem o extravio na dor. Cad. saúde ment.; v. 1, n.1, p. 23-31, 2007.
  • BOORSE, C. On the distinction between disease and illness. Philosophy and Public Affairs, v. 5, p. 49-68, 1975.
  • ______. What a theory of mental health should be. Journal for the Theory of Social Behaviour v. 6, n. 1. p. 61-84, 1976.
  • ______. Health as a theoretical concept. Philosophy of Science, v. 44, n. 4, p. 542-573, 1977.
  • ______. Concepts of health. In: VANDEVEER, D.; REGAN T. (Ed.). Health care ethics: an introduction. Temple University Press, Filadelfia, 1987. p. 359-393.
  • ______. A rebuttal on health. In: HUMBER J. M.; ALMEDER R. F. (Ed.). What is disease? Totowa, New Jersey: Humana Press, 1997.
  • ______. A rebuttal on functions. In: ARIEW, A.; CUMMINS, R.; PERLMAN, M. (Ed.). New essays in the Philosophy of Psychology and Biology. Oxford: Oxford University Press, 2002.
  • CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
  • CAPLAN, A. L. The "unnaturalness" of aging - a sickness unto death? In CAPLAN, A. L.; ENGELHARDT JR., H. T.; MCCARTNEY, J. J. (Ed.). Concepts of health and disease: interdisciplinary perspectives, p. 725-738. Reading, MA: Addison-Wesley, 1981.
  • CHEDIAK, K. Análise do conceito de função a partir da interpretação histórica. Filosofia e História da Biologia, v. 1, p. 161-174, 2006.
  • CUMMINS, R. Functional analysis. The Journal of Philosophy, v. 72, n. 20, p. 741-765, 1975.
  • ______. Neo-Teleology. In: ARIEW, A.; CUMMINS, R.; PERLMAN, M. (Ed.). New essays in the Philosophy of Psychology and Biology. Oxford: Oxford University Press, 2002. p. 157-172.
  • ENGELHARDT, H. T. The foundations of Bioethics. New York: Oxford University Press, 1996.
  • ERESHEFSKY, M. Defining "health" and "disease". Stud Hist Philos Biol Biomed Sci, v. 40, n.3 p. 221-227, 2009.
  • FELDMAN, F. Whole life satisfaction concepts of happiness. Theoria, v. 74, n. 3, p. 219-238, 2008.
  • FERREIRA, A. M. A teleologia na biologia contemporânea. Scientle studia, v. 1, n. 2, p. 183-193, 2003.
  • FULFORD, K. W. M. Moral theory and medical practice. Cambridge: Cambridge University Press, 1989.
  • GAUDENZI, P. A tensão naturalismo/normativismo no campo da definição da doença. Rev. latinoam. psicopatol. fundam, v. 17, n. 4, p. 911-924, 2014.
  • GIROUX, E. Después de Canguilhem: definir la salud y la enfermedad. Bogota: Universidad El Bosque, 2011.
  • ______. Philosophie de la medicine. Santé, maladie, pathologie. Paris: Libraire Philosophique J. Vrin, 2012.
  • GUERRERO, J. D. Against naturalist conceptions of health: in defense of constrained normativism. Tese (Doutorado em Filosofia) - University of Calgary, Calgary, Canadá, 2011.
  • KENDELL, R. The concept of disease and its implications for psychiatry. Br J Psychiatry, v. 127, n. 4, p. 305-315, 1975.
  • LEFÈVE, C. Le normal et le pathologique. In: J.-M. MOUILLIE; LEFÈVE, C.; VISIER, L. (dir.). Médecine et sciences humaines. Manuel pour les études médicales. Pari:, Belles-Lettres, 2007. p. 86-104.
  • MACKLIN, R. Mental health and mental illness: some problems of definition and concept formation. In: CAPLAN, A. L.; ENGELHARDT, H. T.; MCCARTNEY, J. (Ed.). Concepts of health and disease: interdisciplinary perspectives. Reading, MA: Addison-Wesley ; 1981. p. 391-418.
  • MOORE, M. S. Discussion of the Spitzer-Endicott and Klein proposed definitions of mental disorder (illness). In: SPITZER, R. L.; KLEIN, D. F. (Ed.), Critical issues in psychiatric diagnosis. New York: Raven Press, 1978. p. 85-104
  • MARGOLIS, J. The concept of disease. J Med Philos, v. 1, n. 3, p. 238-255, 1976.
  • NORDENFELT, L. Introduction. In: NORDENFELT, L. (Ed.). Concepts and measurement of quality of life in health care. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers; 1994. p. 1-15.
  • ______. On the nature of health: an action-theoretic approach, Reidel, Dordrecht, The Netherlands, 1995.
  • ______. On disability and illness: a reply to Edwards. Theor. med. bioethics, v. 20, n. 2, p. 181-189, 1999.
  • ______. Action, ability and health. Essays in the philosophy of action and welfare. Dordrecht: Kluwer, 2000.
  • ______. Health, science and ordinary language. New York: Editions Rodopi, 2001.
  • ______. On health, ability and activity: comments on some basic notions in the ICF. Disabil Rehabil., v. 15, n. 28, p. 1461-5, 2006.
  • PARSONS, T. The social system. New York: Free Press, 1951.
  • PÖRN, I. Health and Adaptedness. Theor. Med, v. 14, n. 14, p. 295-303, 1993.
  • PORTER, R. The Greatest benefit to mankind: a medical history of humanity. New York: Norton, 1997.
  • REZNEK, L. The nature of disease. London: Routledge and Kegan Paul, 1987.
  • RUSE, M. Defining disease: the question of sexual orientation. In: HUMBER, M. J.; ALMEDER, F. R. (Ed.) What is disease? Totowa: Humana Press, 1997.
  • SEARLE, J.R. The construction of social reality. London: Penguin Books, 1995.
  • VARGA, S. Defining mental disorder. Exploring the "natural function" approach. Philos Ethics Humanit Med, v. 6, n. 1, 2011.
  • WAKEFIELD, J. C. When is development disordered? Developmental psychopathology and the harmful dysfunction analysis of mental disorder. Dev Psychopathol, v. 9, p. 269-290, 1997.
  • WRIGHT, L. Functions. In: ALLEN, C.; BEKOFF, M.; LAUDER, G. (Ed.). Nature's purposes - analyses of function and design in biology. Cambridge: MIT Press, 1998. p. 51-78.

  • 1
    Enquanto Nordenfelt declara que uma de suas influências teóricas é o trabalho de Caguilhem, Boorse faz apenas uma referência ao autor francês em seu artigo Concepts of Health, em 1987, quando sua obra já tinha sido traduzida para o inglês há nove anos.
  • 2
    Ver Médecine et philosophie, de Fagot Largeault, e Science et non-science, de Debru.
  • 3
    Não é simples situar a tese de Canguilhem na polarização proposta. Segundo Giroux (2011), há certa dificuldade de apreender a maneira que Canguilhem articula normas sociais e biológicas. Apesar de no Ensaio ele identificar a origem vital de toda normatividade consciente e intencional, em Novas reflexões, insiste na diferenciação entre as normas sociais e a normatividade biológica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2016

Histórico

  • Recebido
    26 Out 2015
  • Aceito
    05 Fev 2016
PHYSIS - Revista de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: publicacoes@ims.uerj.br