Resumo
As secreções humanas podem indicar como os grupos sociais compreendem múltiplas formas de usos do corpo. Assim, o objetivo deste trabalho foi analisar como o suor pode ser concebido pelos alunos em academias de ginástica. Durante um ano, foi realizada pesquisa etnográfica comparativa em academias de pequeno e grande porte, respectivamente, inseridas em um bairro popular e nobre do Rio de Janeiro. Foi possível concluir que enquanto na academia de pequeno porte havia certa positividade atribuída ao suor devido à sociabilização e à noção de sucesso na performance durante as práticas corporais e cotidiano laboral, na academia de grande porte o mesmo tendia a ser visto com repulsa, limitando os encontros face a face e os esforços físicos extenuantes.
Palavras-chave:
suor; secreções corporais; academias de ginástica; etnografia; educação física e treinamento
Abstract
Human secretions can indicate how some social groups understand the large number of possibilities to use the body. This study aimed to analyze how sweat can be perceived by the users when they are in a fitness center. An ethnography research was conducted during one year in Rio de Janeiro city, comparing a small and a large fitness center, the former located in a popular neighborhood and the latter in a noble neighborhood. Therefore, as long as sweat was noticed in a positive way in the small fitness center and related to performance improvements, in the other fitness center sweat was conceived as something repulsive, limiting the meeting between users and the exhaustive exercises.
Key words:
sweat; bodily secretions; fitness centers; ethnography; physical education and training
Introdução
Para grande parte dos grupos sociais, as secreções humanas são concebidas como elementos negativos e até perigosos, na medida em que ultrapassam os limites e as margens corporais, seja por seus aspectos ou seus odores (DOUGLAS, 1991DOUGLAS, M. Pureza e perigo: ensaio sobre a noção de poluição e tabu. Rio de Janeiro: Edições 70, 1991.). Para Elias (1994ELIAS, N. O processo civilizador: uma história dos costumes. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.), isso corresponde, em parte, a um dado contexto sócio-histórico, ligado à autoimagem, pois depende da variedade de concepções de tabus ou restrições atreladas à moralidade da higiene.
O suor é um humor aquoso incolor, de odor particular, segregado pelas glândulas sudoríparas e eliminado através dos poros cutâneos, mas a ação de suar, saída ou emissão de suor, conhecida como transpiração, também se caracteriza por uma construção sociocultural. Destarte, a partir de Douglas (1991DOUGLAS, M. Pureza e perigo: ensaio sobre a noção de poluição e tabu. Rio de Janeiro: Edições 70, 1991.), a excreção ou a secreção desse fluido pode transitar entre os diferentes contextos e grupos sociais, ora como um fato "puro", ora como um ato "impuro".
Assim, através de uma abordagem antropológica, considera-se que as representações sobre o suor em uma perspectiva sociocultural podem assumir diferentes sentidos e significados em função dos contextos e grupos sociais. Isto é, como Maluf (2001MALUF, S. W. Corpo e corporalidade nas culturas contemporâneas: abordagens antropológicas. Esboços. Florianópolis, v. 9, n. 9, p. 87-101, 2001.) lembra, existe uma vasta discussão sobre "[...] os fluidos corporais que se articulam com diferentes representações do puro e do impuro, das obrigações e interdições etc., e que demarcam diferentes concepções do corpo na cultura" (p. 91). Ao emergir ou não na superfície da pele daqueles que se exercitam, o suor influencia nas suas relações dos praticantes com os esforços físicos.
A ênfase na carga simbólica do suor associada às práticas corporais desenvolvidas nos espaços da musculação e nas academias de ginástica não é recente. Desde as décadas de setenta e oitenta, quando os ideais de corpo começaram a ser vistos como objetos de consumo (LE BRETON, 2011LE BRETON, D. Antropologia do corpo e modernidade. Petrópolis: Vozes , 2011.) e o modismo da chamada "academia" se proliferou pelo Brasil (SANT'ANNA, 2005SANT'ANNA, D. B. Cuidados de si e embelezamento feminino: fragmentos para uma história do corpo no Brasil. In: SANT'ANNA, D. B. (Org.) Políticas do corpo: elementos para uma história das práticas corporais. 2. ed., São Paulo: Estação Liberdade, 2005. p. 121-139.), as expressões como "malhação" e "suar a camisa" se tornaram imperativos cotidianos do mundo fitness. No âmbito da musculação em academias do Rio de Janeiro, a carga simbólica do suor durante as práticas corporais começou a se destacar ao longo do processo da expansão do mundo do fitness. Exemplarmente, em uma das publicações da revista Veja no ano de 1979, com a reportagem "O suor entrou na moda", é possível perceber a coerção social em imputar a necessidade de se movimentar representada na tal secreção corporal. Em outra edição da mesma revista, publicada em 1985, uma reportagem intitulada "Os lucros do suor: as academias de ginástica transformaram-se em empresas e disputam um mercado florescente" demonstra também a visibilidade dada ao culto ao corpo por meio do suor.11As reportagens "O suor entrou na moda" (edição n. 578, p. 50-58, 1979) e "Os lucros do suor: as academias de ginástica transformaram-se em empresas e disputam um mercado florescente" (edição n. 862, p. 100-101, 1985) estão disponíveis em: http://veja.abril.com.br.
Nesse sentido, investigar as representações sociais dos alunos referentes ao ato de suar durante as práticas corporais pode iluminar a prática profissional em Educação Física na compreensão de como as mesmas influenciam nos engajamentos dos exercícios físicos, sobretudo na inserção da área no campo da Saúde Coletiva (BAGRICHEVSKY; ESTEVÃO; PALMA, 2008BAGRICHEVSKY, M.; ESTEVÃO, A.; PALMA, A. La Educacion Fisica y su insercion en el campo de la salud colectiva en Brasil: en búsqueda de un diálogo crítico sobre interfaces, pertenencias y sentidos. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 18, n. 1, p. 123-142, 2008.). Do ponto de vista antropológico, faz pensar também como determinadas identidades são construídas nas interações do face a face, do dia a dia, auxiliando os profissionais de saúde na compreensão dos grupos sociais com os quais intervêm.
Assim, o objetivo deste trabalho foi analisar como o suor pode ser concebido pelos alunos em academias de ginástica de pequeno e grande porte, evidenciando dois grupos sociais distintos.22Este artigo faz parte de uma tese de doutorado defendida no Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (SILVA, 2014). O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do mesmo Instituto (CAAE: 01559712.7.0000.5286 / Número do parecer: 203.235).
Procedimentos metodológicos
Mais do que buscar explicar o mundo de outrem, o presente estudo qualitativo indica a necessidade de demonstrar a multiplicidade ou diversidade das relações sociais que se estabelecem em determinado contexto sociocultural (VIVEIROS DE CASTRO, 2002VIVEIROS DE CASTRO, E. O nativo relativo. Mana. Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, p. 113-148, 2002.). Entretanto, tal empreendimento de análise de um universo microscópico se realiza sem perder de vista os aspectos macroestruturais que engendram a realidade estudada (GOFFMAN, 2002GOFFMAN, E. A representação do eu na vida cotidiana. 10. ed. Petrópolis: Vozes , 2002.).
Entre julho/2012 e julho/2013, foi realizada observação participante em duas academias inseridas em distintos contextos socioeconômicos e culturais da cidade do Rio de Janeiro. Uma de pequeno porte, denominada aqui de "P", instalada em um bairro chamado Cidade de Deus (CDD), conhecido por ser uma região de classe baixa e média-baixa, caracterizada de "popular" e de "trabalhadores" (ZALUAR, 1984ZALUAR, A. A máquina e a revolta: as organizações populares e o significado da pobreza. São Paulo: Brasiliense, 1984. ). Concomitantemente, a pesquisa também transcorreu em uma academia de grande porte, chamada neste texto de "G", localizada no bairro da Barra da Tijuca (Barra), conhecido por abranger uma população de classe alta vista como "novos ricos" (VELHO, 1994VELHO, G. Prestígio e ascensão social: dos limites do individualismo na sociedade brasileira. In: VELHO, G. Individualismo e cultura: notas para uma antropologia da sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar , 1994. p. 39-54.), isto é, inseridos em um ethos emergente caracterizado por uma classe média que obteve certa mobilidade social e simbólica (LIMA, 2007LIMA, D. N. O. Ethos emergente: notas etnográficas sobre o "sucesso". Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, v. 22, n. 65, p. 73-83, out. 2007.).
Por duas vezes na semana, no horário das 17 às 21 horas, a observação foi dirigida aos alunos na faixa etária entre 15 a 50 anos, de ambas as academias. Para cada estabelecimento, foi elaborado um diário de campo, onde eram anotadas as situações cotidianas presenciadas pelo pesquisador.
Apresentação e discussão dos resultados
Tendo em vista a ideia de habitus de Bourdieu (1983BOURDIEU, P. Sociologia. São Paulo: Ática, 1983.), em que as classes sociais podem conter singularidades quanto aos usos do corpo, privilegiou-se aqui esse marcador social para identificar as diferentes percepções sobre o suor. Bertoncelo (2013BERTONCELO, E. R. E. Classes e práticas sociais. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, v. 28, n. 81, p. 185-211, fev. 2013.) afirma que é possível uma investigação empírica que se debruça nas aproximações entre classes e práticas sociais. As descrições confirmaram os diferentes sentidos e significados ao ato de transpirar nas duas academias. A carga simbólica de "suar a camisa" na musculação era representada como uma espécie de sinalizar um determinado "limite" do corpo.
Fassheber (2001FASSHEBER, J. R. M. Antropologia do corpo: reflexões sobre a diversidade corporal dos xamãs. Revista Conexões. Campinas, v. 1, n. 6, p. 112-126, 2001.) menciona que "[...] o corpo com seus excrementos é um símbolo natural usado como um mapa cognitivo para representar tipos de relações espaciais, sociais, naturais e sobrenaturais." (p. 118). Assim, a lógica simbólica do suor permeava todos os espaços da academia "G", como na "P", como poderá ser visto a seguir.
Academia "P": "secando" e "queimando" o corpo...
Na academia "P", notava-se que o suor era fruto do trabalho corporal entendido, de modo ressignificado, como um indício imediato de que o aluno alcançava seus resultados em prol da saúde e/ou para a estética. Portanto, nenhuma representação como impuro ou causa de repulsa lhe era atribuída em tal espaço:
Montanha: Olha o meu dedo!
Eu: Estou vendo, bem molhado!
Montanha: Eu tirei esse suor da testa, olha o que eu faço com ele!
Eu: Molhou o chão todo, contei treze gotas!
Montanha: Isso aqui é fruto de muito resultado!
Batista: Estou tendo que parar toda hora.
Eu: Por quê?
Batista: Apenas uma esteira faz efeito, porque me faz suar pra caramba, a outra não faz tanto, eu nem suo direito ali.
A ideia principal era que, através do suor, o sujeito "secava" ou "queimava" ao se exercitar, ou seja, perdia peso quanto mais seu corpo ficasse "molhado". A noção de "secar" ou "queimar" passava pela ideia de manter a massa muscular e "arrancar" a gordura do corpo. Entretanto, ao mesmo tempo que havia a busca pela eliminação da gordura em excesso por grande parte do público, tanto eles quanto elas privilegiavam mais as "carnes" do que os "ossos", no sentido de serem mais "cheinhos(as)" do que "magrinhos(as)".
Para Berger (2010BERGER, M. "Felicidade é entrar num vestido P": o culto ao corpo na sociedade urbana contemporânea. Cadernos de Campo. São Paulo, n. 19, p. 69-90, 2010.), a "valorização da magreza é mais intensa nas camadas superiores. Nos segmentos subalternos, para os quais a força muscular desponta como um atributo de maior valor, muitas vezes o magro é visto como 'fraco'" (p. 79). Exemplarmente, no trabalho de Ferreira (2001FERREIRA, J. Semiologia do corpo. In: LEAL, O. F. (Org.). Corpo e significado: ensaios de antropologia social. 2. ed., Porto Alegre, RS: Ed. UFRGS, 2001. p. 89-104.), foi possível observar que "A valorização da 'magreza' é relativa à situação social, uma vez que o meio material de subsistência das classes populares muitas vezes é a de atividade física, onde a força muscular é identificada visivelmente pela gordura" (p. 99). Zaluar (1984ZALUAR, A. A máquina e a revolta: as organizações populares e o significado da pobreza. São Paulo: Brasiliense, 1984. ) e Ferreira e Magalhães (2006) identificaram a mesma tendência nos depoimentos de mulheres de classe popular, quando valorizavam o "corpo obeso", por representar um "corpo utilitário" às atividades rotineiras e ao trabalho informal, logo, sua condição social.
Além disso, na academia "P", o suor era uma forma de sociabilidade em que, "unidos pelo suor", os engajavam no mesmo propósito: "malhar pingando" para demonstrar e legitimar seus esforços físicos. O suor aparecia como sinal de distinção entre os grupos sociais do estabelecimento. Expressões do tipo: "Tá suado, hein, cara, e aí, como você está?", "Mandou bem hoje, tu tá pingando, neguinho!", "Cadê o seu suor? Bora malhar!", etc., eram recorrentes. Olhares punitivos eram lançados aos que "não suavam" ao frequentar a academia. Mesmo que nosso propósito na academia fosse a pesquisa e não a malhação, éramos "cobrados" porque não suavam. Ao nos despedir de um aluno da academia "P", este perguntou em um "tom" irônico se já iríamos embora sem suar. Assim, na academia "P", o transpirar era uma maneira de interagir com mais facilidade ou não entre os alunos.
A sociabilidade por meio do suor também podia ser vista em aparentes paqueras que ocorriam na musculação da academia "P". Eventualmente, as alunas questionavam os alunos se "suavam a camisa de verdade". Um aluno, por exemplo, a todo instante mostrava o suor dele para uma aluna recém-chegada, passando os dedos na testa e lançando as gotículas da secreção no chão próximo de onde ela estava, como forma de chamar sua atenção. As alunas faziam comentários entre si elogiando os alunos "sarados", "fortes" e "suados". A mesma alusão era feita no que diz respeito às relações sexuais, onde "fazer o outro suar", significaria ter ou dar prazer sexual. Nesse sentido, cabe lembrar que:
As academias de ginástica e musculação configuram espaços nos quais se forja uma pedagogia do corpo - como ele deve, mas, sobretudo, como não deve ser [...] ganha ares de importante investimento no mercado afetivo e na reafirmação do que se espera dos ideais de masculinidade e feminilidade. São também espaços de visibilidade, de exposição corporal e de preparação para que esta se dê do lado de fora das academias, desde que, obviamente, as medidas corporais autorizem o espetáculo (TORRI; BASSANI; VAZ, 2007TORRI, G.; BASSANI, J. J.; VAZ, A. F. Dor e tecnificação no contemporâneo culto ao corpo. Pensar a Prática. Goiânia, v. 10, n. 2, p. 261-273, jul./dez. 2007., p. 270).
Essa carga simbólica do suor como um indicativo de possíveis benefícios corporais e relacionais não se restringia apenas ao corpo físico, mas também se caracterizava por uma extensão da vida dos alunos que se exercitavam ali. A categoria "trabalho" não era voltada exclusivamente ao "trabalho corporal" relativo aos exercícios físicos, mas também ressignificada ao "trabalho da vida árdua em termos financeiros" em que os sujeitos estavam inseridos ali na CDD:
Eu: Está sumido! Chegou tarde hoje, estava soltando pipa de novo?
Wilson: É, estou sumido, mas nem foi por causa de pipa. Cheguei tarde porque trabalhei demais hoje. Queria suar, mas não vou; não vou fazer tantos exercícios hoje, muito menos esteira. Hoje eu já malhei muito no meu trabalho. Suei muito na obra, se eu fosse correr hoje, eu ia morrer de verdade.
Elma: Até gosto de suar, mas no trabalho eu já suei demais hoje, sou cozinheira, então imagina, muito quente!
Heder: Que ritmo fraco é esse? Aumenta a velocidade na bicicleta!
Carlson: Me deixa!
Heder: Ué, mas já vai? Nem suou!
Carlson: Sou trabalhador, suei, vou suar lá também!
Tal academia se configurava assim, como mais um espaço da vida dos sujeitos que ali frequentavam, pois grande parte cultuava o "suor do trabalho ou do trabalhador", confirmando que, nesse caso, a inserção em dada classe social poderia ser decisiva de como concebiam o corpo. A qualidade do exercício físico deveria estar no nível dos esforços físicos que se tinham no cotidiano laboral. O valor dado ao suor significava a efetividade do exercício físico, sua compensação, tal como "a vida é ganha com o suor do trabalho", o que remonta desde os tempos bíblicos (DOUGLAS, 1991DOUGLAS, M. Pureza e perigo: ensaio sobre a noção de poluição e tabu. Rio de Janeiro: Edições 70, 1991.). Corbin (2009CORBIN, A. Dores, sofrimentos e misérias do corpo. In: CORBIN, A.; COURTINE, J. J.; VIGARELLO, G. (Org.) História do corpo: da revolução à grande guerra. 3. ed., Petrópolis: Vozes, 2009. p. 267-343.) lembra que o corpo "desgastado" do trabalhador se constrói desde o século XVIII com o impulso significativo da industrialização. Para Boltanski (1984BOLTANSKI, L. As classes sociais e o corpo. 2. ed., Rio de Janeiro: Graal, 1984.), as classes populares tendem a se concentrar em uma experiência corpórea de modo mecanicista, como se o corpo fosse um instrumento de trabalho e de sobrevivência.
Para Rocha e Rodrigues (s/d, p. 21), "suar pode não ser o simples resultado do trabalho de certas glândulas, mas a representação material da relação entre trabalho e repouso, mérito e demérito, privilégio e exploração". Da mesma forma, a combinação de baixa renda financeira, duras e longas jornadas de trabalho, em um ambiente muitas vezes insalubre, configura esse aspecto simbólico do suor (LAGERIE, 2012LAGERIE, P. B. Le salaire de la sueur: un éclairage socio-historique sur la lutte anti-sweatshop. Sociologie du Travail. Paris, v. 54, p. 45-69, 2012.). Enfim, o suor do "malhar" e do "trabalhar" fazia parte do mesmo drama social (GOFFMAN, 2002GOFFMAN, E. A representação do eu na vida cotidiana. 10. ed. Petrópolis: Vozes , 2002.), onde as performances dos alunos deveriam ser exibidas e aprimoradas (SCHECHNER, 2006SCHECHNER, R. Performance studies: an introduction. 2. ed. New York & London: Routledge, 2006.).
Portanto, o suor poderia ser traduzido como uma espécie de "limite" corporal, caracterizando-se pela ideia de conquista ou pureza (DOUGLAS, 1991DOUGLAS, M. Pureza e perigo: ensaio sobre a noção de poluição e tabu. Rio de Janeiro: Edições 70, 1991.). Muitas vezes, o corpo é o equilíbrio da existência usado como objeto transicional para suportar a dureza das circunstâncias (LE BRETON, 2010LE BRETON, D. Escarificações na adolescência: uma abordagem antropológica. Horizontes Antropológicos. Porto Alegre, v. 16, n. 33, p. 25-40, jan./jun. 2010.), que, no caso da academia "P", parecia derivar das condições de trabalho e de sobrevivência cotidiana. Sobre essa lógica positiva dada ao "suor do trabalhador", era possível considerar que:
Jogando com as oposições polares trabalhador e vagabundo, em que o valor está no primeiro termo, desmembrando-se em decência, vergonha, dever e responsabilidade, qualificações que o separam do segundo, opera-se também, por essa via, uma inversão de categorias cuja primeira aproximação é material, estabelecendo o produto deste trabalho feito com sangue, suor e lágrimas como uma riqueza colocada sobre a inexplícita pobreza. (GUEDES, 1997GUEDES, S. L. Jogo de corpo: um estudo de construção social de trabalhadores. Niterói: EDUFF, 1997., p. 166).
Academia "G": buscando o equilíbrio do corpo...
Todo o ambiente da academia "G" era pensado e mantido de modo mais asséptico possível, evitando qualquer indício visual e olfativo referente ao suor. Rocha e Rodrigues (s/d, p. 14) argumentam:
Não confiamos tanto no olfato: nossa atitude diante das sensações olfativas, dos conhecimentos que nos chegam por esta via, é de desconfiança, de suspeita, de insegurança, como expressamos em nosso vocabulário ("isto não me cheira bem", "sinto cheiro de confusão"...).
Por ser altamente climatizado e, por vezes, demasiado frio, a questão do suor não estava presente e nem era representada da mesma forma que na academia "P". A questão do suor na musculação da academia "G" tinha mais relação com a questão da higiene e da moralidade. Goffman (2011GOFFMAN, E. Ritual de interação: ensaios sobre o comportamento face a face. Petrópolis: Vozes , 2011., p. 65) aponta que "[...] aparentemente, quanto mais alta a classe, mais extensos e elaborados serão os tabus contra o contato". O próprio antropólogo Malysse (2008MALYSSE, S. Diário acadêmico. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2008.) passou por tal situação, como pode ser visto no seu diário de campo no espaço da musculação: "Pergunto-me se é uma boa idéia começar pela corrida, pois molho todos os aparelhos com o meu suor..." (p. 51). Embora Rodrigues (2006RODRIGUES, J. C. Tabu do corpo. 7. ed., Rio de Janeiro: Fiocruz, 2006.) tenha apontado que o "suor atlético", expelido culturalmente, tendia a ser considerado menos digno de nojo, observava que tal premissa não se confirmava na academia "G".
Foi possível observar como o suor no estabelecimento da Barra já se constituía e era classificado como um aspecto relativamente negativo durante as interações sociais:
Ingrid: Eu acabei de fazer o exercício de escada ali, estou suando demais, que droga!
Neide: Eu odeio suar!
Gabriela: Oi, quanto tempo!
Brenda: Oi, mas não me encosta não porque você vai ficar toda colada.
Na musculação da academia "G", era possível observar os alunos tentando conter tais secreções corporais, de forma que a realização de exercícios físicos não precisava ser tão intensa. O nojo e a repulsa ao suor impunham limites aos contatos entre os sujeitos. O nível da quantidade de suor era decisivo para limitar os contatos face a face, gerando, no sentido de Goffman (2008GOFFMAN, E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4. ed., Rio de Janeiro: LTC, 2008.), certos estigmas àqueles que, para os alunos da academia "G", estavam "sujos", "fedidos" ou "nojentos".
Os alunos circulavam pelo espaço da academia com "metros" de papéis e toalhas particulares ou alugadas no estabelecimento, a fim de conter qualquer fluido corporal em excesso, bem como para forrar o estofado "suado" de qualquer aparelho de musculação que desejassem usar. Os alunos chamavam frequentemente os faxineiros para higienizarem os equipamentos e os aparelhos de musculação. A equipe de limpeza dessa academia ficava atenta para cada saída de um aluno de determinado aparelho da musculação ou do setor aeróbio, pois tinham que imediatamente enxugar o local antes que alguém entrasse para se exercitar. Por vezes, observava faxineiros acompanhando, quase que de maneira exclusiva, alguns alunos que transpiravam demasiadamente em toda sua estadia no estabelecimento. E, se não o fizessem, eram criticados. As roupas e o uso de alguns artifícios dos alunos também eram para controlar essa secreção: camisas de tecido de dry-fit e/ou de dupla-face, desodorantes antitranspirantes e tênis com tecnologia de ventilação.
Tal representação estaria em consonância a uma perspectiva do que é de dentro não deveria ser visto ou tocado, isto é, era preciso retirar do campo visual e olfativo. Por serem considerados "fontes de impureza", historicamente sempre houve a ideia de dissimular os odores corporais e eliminar humores excessivos do organismo, conforme já relatado (DOUGLAS, 1991DOUGLAS, M. Pureza e perigo: ensaio sobre a noção de poluição e tabu. Rio de Janeiro: Edições 70, 1991.). Segundo Ortega (2007ORTEGA, F. Corporeidade e biotecnologias: uma crítica fenomenológica da construção do corpo pelo construtivismo e pela tecnobiomedicina. Ciência & Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, p. 381-388, 2007., p. 384): "[...] remete a alguma coisa da ordem da animalidade, da morte e da visceralidade, que escapa da inscrição simbólica, e que ameaça a estabilidade da imagem corporal ideal: carne, sangue, muco, fezes, urina, suor, saliva, vômitos e outros fluidos corporais".
No site da academia "G", rotineiramente havia o seguinte slogan: "Transpire mais vida! Transpire mais vida todos os dias. Viva com energia sempre. Viva com saúde e bem-estar!". A alusão à transpiração aqui se dava de uma forma positiva, e não necessariamente às secreções corporais. Os cartazes de marketing espalhados pela academia "G" sempre continham fotos de pessoas se exercitando com um "sorriso estampado" e com cargas notoriamente "leves", mas nunca com expressões faciais que remetessem aos esforços físicos extenuantes, bem como indícios de suor. Quando algumas dessas imagens possuíam uma pessoa se exercitando com o "corpo molhado", vinham associadas ou com a intenção de divulgar alguma bebida para o consumo, geralmente um isotônico, um repositor hidrolítico com a qual a academia "G" tinha parceria. Silveira e Neves (2009SILVEIRA, V. T.; NEVES, F. W. Corpo e mercado: a eficiência do sistema Body Systems de ginástica. In: SEMINÁRIO NACIONAL DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA, 1, 2009, Paraná. Anais... Paraná: UFPR, 2009. p. 1-11 .) argumentam que o atual desenvolvimento do mercado fitness "[...] nos faz acreditar que outros produtos venham a complementar e a ampliar a linha já existente: abrigos e calçados esportivos, adereços e bebidas energéticas" (p. 8).
Nesse contexto, Race (2012RACE, R. "Frequent sipping": bottled water, the will to health and the subject of hydration. Body & Society. London, v. 18, n. 3-4, p. 72-98, 2012.) discute a questão comercial do fitness e da evolução dos saberes voltados às ciências do esporte em estimular os sujeitos a serem "sedentos" indiscriminadamente. A academia "G", quando remetia ao suor, buscava exclusivamente "vender" as bebidas que ajudariam o sujeito a se hidratar melhor e mais rápido. Muitas vezes, tais propagandas eram respaldadas por meio de discursos científicos medicalizados relativos a "devolver para o corpo o que perderam", isto é, determinadas substâncias (íons sódio, potássio, cálcio e magnésio), que seriam fundamentais para um bem-viver saudável e longe de possíveis "riscos". Esses próprios discursos técnico-científicos biomédicos acerca da hidratação e suas relações com as práticas corporais tão discutidos na literatura, como vistos por Carvalho e Mara (2010CARVALHO, T.; MARA, L. S. Hidratação e nutrição no esporte. Revista Brasileira de Medicina do Esporte. São Paulo, v. 16, n. 2, p. 144-148, mar./abr. 2010.), são questionáveis e podem ser ressignificados e compreendidos à luz de certos contextos sociais. Machado-Moreira et al. (2006) problematizam tal situação ao realizarem uma revisão sobre a hidratação e discutirem se, durante o exercício físico, a reposição de líquidos de acordo com a sede, por exemplo, seria suficiente para hidratar o indivíduo. Em suma, na academia "G", era possível observar que a ideia de que um produto que tornasse o corpo supostamente saudável em equilíbrio e/ou higienizado seria indispensável.
Por outro lado, nessa academia, havia também a ideia de que era preciso "equilibrar altas doses de exaustividade corporal" ou "evitar danos ao corpo", haja vista as possibilidades de riscos à saúde. O "recuperar" e o "renovar" também tinham o sentido de ir de encontro ao "cotidiano agitado". Nesse sentido, a academia "G" incitava também a ideia dicotômica de corpo que, para além de "trabalhar o físico no 'limite' do suor", era preciso "recuperar e renovar" as "energias por meio da mente de forma autoconsciente e interiorizada".
No site deste estabelecimento isso também estava explícito com slogans do tipo: "Pratique o equilíbrio! Equilíbrio é estar em sintonia perfeita com o seu eu. E isso só acontece quando mente e corpo trabalham juntos. Relaxe e saia com seu equilíbrio renovado!"; "Equilibre sua rotina diária!". Nesse aspecto, Siqueira e Faria (2007SIQUEIRA, D. C. O.; FARIA, A. A. Corpo, saúde e beleza: representações sociais nas revistas femininas. Comunicação, mídia e consumo. São Paulo, v. 4, n. 9, p. 171-188, mar. 2007., p. 180) destacam que "[...] ao lado do exercício intenso antes exigido do corpo, agora também e preciso adotar a preocupação com seu bem-estar físico e mental, ou seja, uma passagem discursiva do fitness [...] para o wellness - bem-estar físico e mental [...]". Crossley (2006CROSSLEY, N. In the gym: motives, meaning and moral careers. Body & Society. London, v. 12, n. 3, p. 23-50, 2006.) comenta que, muitas vezes, o exercício físico pode ser considerado uma forma de "relaxamento", de combater o "estresse", de "desabafar", etc. Logo, no que diz respeito à busca constante do equilíbrio sobre o exercitar-se, era possível considerar que:
As práticas de "manutenção" da forma e de treinamento se deslocaram, como é confirmado pelos slogans das novas academias de ginásticas, nos anos 1980, feitas para abrir um parêntesis no coração da vida ativa, reencontrar um oásis de frescor, o tempo para se ocupar consigo e com o próprio corpo. Enquanto vai bruscamente aumentando seu público, o projeto dessas academias se orquestra em torno de um tema indefinidamente repetido: o da "volta a si mesmo". Todas sugerem um tempo "colocado em parêntesis" ou um espaço "posto fora do tempo", para melhor garantir a "redescoberta do corpo". Ginástica sem dúvida, mas o projeto é com certeza o de "tomar consciência do próprio corpo", ficar à sua escuta, postular a partir dele um bem-estar tanto psicológico como interiorizado. (VIGARELLO, 2008VIGARELLO, G. Treinar. In: CORBIN, A.; COURTINE, J. J.; VIGARELLO, G. (Org.) História do corpo 3. As mutações do olhar: o século XX. Petrópolis: Vozes , 2008. p. 197-250., p. 245).
Considerações finais
Foi possível compreender que o ato de suar pode ser concebido pelos alunos de forma plural, a depender dos contextos socioeconômicos e culturais que caracterizavam as academias. Mais do que polarizar os achados ou reduzir e essencializar as realidades estudadas, o trabalho etnográfico comparativo pôde demonstrar como o suor evidenciava tendências de usos do corpo nas práticas corporais no setor da musculação, nas suas interações sociais e no seu cotidiano.
Na academia "P", o suor assumia simbolicamente um dado concreto e imediato de sucesso referente ao alcance de determinado resultado corporal, geralmente associado a fadigas durante os exercícios físicos. Nesse estabelecimento, transpirar significava também uma forma de se relacionar com o outro, na medida em que todos estavam se exercitando em prol de objetivos comuns, formas estas de pertencimento social. Além disso, a ideia de performance durante trabalho corporal na musculação representada por tal secreção estava conectada diretamente ao desempenho laboral.
Na academia "G", havia a tendência de evitar a secreção do suor por ser visto como um elemento negativo. O nojo e a repulsa referentes ao mesmo vinculavam-se à ideia depreciativa de que o sujeito estava sujo, logo moralmente abalado (RODRIGUES, 2006RODRIGUES, J. C. Tabu do corpo. 7. ed., Rio de Janeiro: Fiocruz, 2006.). Por isso, o fato de estar suado era um dos aspectos que comprometiam a sociabilidade naquele estabelecimento. Ademais, pelo fato de o suor não ser concebido necessariamente como um indício de resultado da realização das práticas corporais, os esforços físicos não precisavam ser duradouros e intensos, com exceção se os alunos equilibrassem os tais desgastes físicos.
Explorar o contexto dos alunos e das academias face aos "limites" do suor se torna um empreendimento antropológico interessante de como o profissional de Educação Física pode lidar com seus alunos no dia a dia, haja vista que as relações sociais e o engajamento nos exercícios físicos são atravessados, em parte, por múltiplas noções acerca de tal secreção corporal. Embora tais dados revelem um contexto microscópico referente ao setor da musculação em academias, análises macroestruturais a partir dos "limites" do suor puderam ser realizadas, demonstrando certas construções identitárias dos alunos. Tais aspectos são potencialmente importantes para pensar na realidade dos demais profissionais de saúde face ao usuário e suas representações sobre as secreções corporais durante o cotidiano dos serviços.33A. C. Silva foi responsável pelo trabalho de campo e desenvolvimento de todas as etapas da pesquisa. J. Ferreira foi responsável pela revisão crítica do conteúdo, orientando em todas as etapas do estudo, bem como pela aprovação da versão final deste manuscrito.
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- 1As reportagens "O suor entrou na moda" (edição n. 578, p. 50-58, 1979) e "Os lucros do suor: as academias de ginástica transformaram-se em empresas e disputam um mercado florescente" (edição n. 862, p. 100-101, 1985) estão disponíveis em: http://veja.abril.com.br.
- 2Este artigo faz parte de uma tese de doutorado defendida no Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (SILVA, 2014). O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do mesmo Instituto (CAAE: 01559712.7.0000.5286 / Número do parecer: 203.235).
- 3A. C. Silva foi responsável pelo trabalho de campo e desenvolvimento de todas as etapas da pesquisa. J. Ferreira foi responsável pela revisão crítica do conteúdo, orientando em todas as etapas do estudo, bem como pela aprovação da versão final deste manuscrito.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Jul-Sep 2016
Histórico
- Recebido
08 Jul 2015 - Aceito
05 Fev 2016