A construção da agenda pública brasileira de enfrentamento da violência sexual infanto-juvenil

The construction of Brazilian public agenda to face child sexual abuse

Alexandre Ferreira do Nascimento Suely Ferreira Deslandes Sobre os autores

Resumo

O presente artigo analisa a emergência da questão social da violência sexual infanto-juvenil como problema público, sua inclusão e permanência na agenda formal das políticas nacionais nas décadas de 1990 e 2000. À luz de estudos sobre construção de agendas de políticas públicas e a partir da análise documental, o artigo contextualiza o amplo movimento de articulação e mobilização social da década de 1990, o Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-juvenil como política pública intersetorial e a década de 2000 pautada pela sua implementação.

Palavras-chave:
violência sexual infanto-juvenil; rede de políticas públicas; direitos humanos sexuais de crianças e adolescentes.

Abstract

This article analyzes the emergence of the issue of child sexual abuse as a public problem, its inclusion and permanence in the national policy agenda in the decades of 1990 and 2000. Through the construction of public policy agendas and further analysis, this text highlights historical aspects which developed into a huge popular movement in the 1990s against child sexual violence, giving birth to the National Child Sexual Violence Combat Plan as an intersector public policy and the decade of 2000 devoted to its implementation.

Keywords:
child sexual abuse; public policy network; child and teenager human sexual rights.

Introdução

A violência sexual é reconhecida como problema de saúde pública e como responsável por inúmeros agravos à saúde individual (MINAYO, 2005MINAYO, M. C. Violência: um problema para a saúde dos brasileiros. In: BRASIL. Impacto da violência na saúde dos brasileiros. Brasília: Ministério da Saúde, 2005.). O presente artigo analisa a emergência da questão social da violência sexual infanto-juvenil como problema público, sua inclusão e permanência na agenda formal das políticas nacionais nas décadas de 1990 e 2000. Conferimos especial atenção à modalidade da exploração sexual comercial, em face de sua histórica invisibilidade no campo das políticas públicas; assim como ressaltamos os processos participativos de construção dessa agenda política temática, na perspectiva do ordenamento legal vigente a partir do marco do Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 2012______. Lei n. 8.069/1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Versão atualizada. Brasília: CONANDA, 2012.).

À luz de estudos sobre processos de formulação, implementação e avaliação de políticas públicas, principalmente os que enfatizam a construção de agendas (agenda setting), partimos do reconhecido pressuposto de que para uma questão social vir a ser considerada um problema público, e como tal inserido na agenda formal de governo, faz-se necessário o convencimento dos agentes envolvidos nos processos decisórios de que a situação deve ser priorizada e possui alternativas de intervenção pública. Tal processo está diretamente associado à capacidade do tema em mobilizar a opinião pública, incorrendo em bônus ou ônus políticos a ação ou a omissão do Estado. Por sua vez, a permanência do tema na agenda pública depende da renovação periódica de sua importância política.

Adotamos como referência a abordagem de Múltiplos Fluxos (multiple streams) formulada por Jonh Kingdon (1984 apud SOUZA, 2012SOUZA, C. Estado da arte da pesquisa em políticas públicas. In: HOCHMAN, G.; ARRETCHE, M.; MARQUES, E. (Orgs). Políticas Públicas no Brasil . Rio de Janeiro: Fiocruz , 2012.). Para este autor, a determinação da agenda formal é resultado da confluência entre três fluxos: (1) dos problemas, processo que alça determinada questão política ao estatuto de problema público; (2) da formulação do conjunto de soluções ou alternativas ao problema, das quais serão escolhidas algumas, seja pela via do consenso, pressão ou persuasão e (3) político, influenciado pela sensibilidade social e comoção pública e mediado por forças políticas organizadas que podem exercer pressão. Quando esses três fluxos convergem, abre-se uma “janela de oportunidade”, que, com a interveniência dos chamados “empreendedores políticos”, o problema pode vir, ou não, a ser inserido na agenda governamental (KINGDON, 2011KINGDON, J. W. Agendas, alternatives and public policies. Boston: Longman, 2011.).

Klaus Frey propõe como fases do ciclo: percepção e definição de problemas, agenda setting, elaboração de programas e decisão, implementação de políticas e, finalmente, a avaliação de políticas e a eventual correção da ação (FREY, 2000FREY, K. Políticas Públicas: um debate conceitual e reflexões referentes à prática da análise de políticas públicas. Planejamento e Políticas Públicas, v. 21. Brasília, jun. 2000.).

A análise documental foi a metodologia utilizada para este ensaio. Foram tomados como fontes documentos oficiais: leis, portarias, resoluções referentes às políticas de enfrentamento da violência sexual infanto-juvenil - expressos em políticas, planos, programas, projetos e ações; bem como publicações dos principais interlocutores governamentais e da sociedade civil sobre o tema, das últimas duas décadas, levantadas no segundo semestre de 2013. Utilizamos também a representação de ciclo de políticas públicas como ferramenta de análise das políticas de enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes (EVSCA).

Sem desconsiderar as críticas à perspectiva do ciclo de políticas públicas, apontadas como racionais e lineares demais, e mesmo simplificadoras e reducionistas de realidades complexas, compartilhamos a ideia de alguns autores contemporâneos (MARQUES, 2013MARQUES, E.; FARIA, C. (Orgs.). A política como campo multidisciplinar. São Paulo: Unesp; Rio de Janeiro: Fiocruz , 2013., p. 32) de que a noção de ciclo de políticas públicas serve-nos como uma ferramenta heurística capaz de fornecer um primeiro mapeamento e problematização da configuração da política de EVSCA como política temática.

Década de 1990: sobre a emergência da questão da violência sexual de crianças e adolescentes como problema de política pública

O uso sexual de crianças e adolescentes, seja no âmbito das relações familiares, seja no mercado do sexo, remete-nos a tempos imemoráveis, mas nas últimas duas décadas essa questão social emergiu como um problema público internacional, conclamando o Estado brasileiro à ação.

Podemos inferir que a violência sexual de crianças e adolescentes (VSCA) no Brasil, em especial a exploração sexual de crianças e adolescentes (ESCA), passou a ser alvo de atenção da comunidade política quando a questão passou a ser percebida como capaz de causar ônus ou bônus políticos perante a comunidade nacional e internacional, seja pela omissão ou pela ação do Estado. Essa passagem nos remete a um período de institucionalização dos direitos fundamentais da criança e do adolescente nos cenários nacional e internacional, refletido na consolidação legal das lutas travadas na década de 1980. Referimos-nos principalmente à Constituição Federal (CF) de 1988, à Convenção da Organização das Nações Unidas pelos Direitos da Criança (CDC) de 1989 e ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) de 1990, entre outras normativas menos expressivas.

Consonante com o paradigma da proteção integral estabelecido pela nova legislação, crianças e adolescentes passaram a ser reconhecidos como sujeitos de direitos e deveres, sendo-lhes conferidos status de cidadãos perante a lei. Ao instituir os direitos fundamentais, pôr esse segmento a salvo de qualquer forma de negligência, violência ou opressão passou a ser exigência legal (CF, Art. 227 e ECA, Art. 5º) (BRASIL, 1988BRASIL. Constituição Federal da República do Brasil. Brasília: Congresso Nacional, 1988., 2012______. Lei n. 8.069/1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Versão atualizada. Brasília: CONANDA, 2012.). Nesse contexto histórico-legal, situações até então ocultadas, banalizadas ou toleradas, que envolviam crianças e adolescentes, passaram gradativamente a ser percebidas como violações de direitos humanos e repudiadas pela opinião pública, despertando a atenção da mídia e dos agentes políticos.

A passagem de questão social para problema de política pública, conforme diferenciação formulada por Kingdon, dá-se pela influência de três mecanismos básicos: [1] eventos, crises e símbolos; [2] Indicadores; e [3] feedback das ações governamentais (KINGDON, 2011KINGDON, J. W. Agendas, alternatives and public policies. Boston: Longman, 2011.). A seguir, Ilustraremos ao longo do texto como esses mecanismos operaram com o tema VSCA-ESCA.

Eventos ocorridos na década de 1990 promoveram visibilidade do tema da VSCA no cenário nacional e internacional. No Brasil, marco pioneiro dessa produção político-midiática de visibilidade social do fenômeno nessa década foi o trabalho da Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara de Deputados, em 1993, a “CPI da Prostituição infantil”, como ficou conhecida, que inseminou o debate em diversas esferas ao provocar a mobilização de importantes setores do Executivo, Legislativo, Judiciário, sociedade civil, mídia e organismos internacionais.

Atribui-se como motivação para criação dessa CPI, a divulgação por organizações civis do Pará do dossiê “Criança e Adolescente no Interior Amazônico: Injustiça e Descaso” (Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua - MNMMR, 1992 apud BRASIL, 2011b), que revelava a exploração sexual de meninas nos garimpos da região Norte, o que levou o jornalista Gilberto Dimenstein (1992DIMENSTEIN, G. Meninas da noite: a prostituição de meninas-escravas no Brasil. 13. ed. São Paulo: Ática, 1992.) a publicar uma série de reportagens no jornal Folha de São Paulo e o livro Meninas da Noite (DIMENSTEIN, 1992DIMENSTEIN, G. Meninas da noite: a prostituição de meninas-escravas no Brasil. 13. ed. São Paulo: Ática, 1992.. Percebemos, nesse exemplo, a produção por organizações civis de um estudo de caso como denúncia, de matérias jornalísticas e de uma obra literária como eventos associados que eclodem num ambiente político capaz de interferir na agenda pública. Nesse caso, destacamos a mídia no papel de produtora de sentidos e na ocupação de um lugar estratégico de visibilidade das questões sociais e na sua definição como problemas públicos.

Desdobramento importante dessa CPI foram as campanhas de opinião pública, que emergiram em torno da mobilização dos diversos segmentos sociais em razão das denúncias. Destaque para a campanha promovida no Estado da Bahia (1995), encampada pelo governo federal no mesmo ano, que se tornou a Campanha Nacional pelo Fim da Exploração, Violência e Turismo Sexual contra Crianças e Adolescentes (BRASIL, 2004______. Relatório Final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre violência e redes de exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil. Brasília: Congresso Nacional, 2004.). As organizações civis e governamentais mobilizadas por essa campanha se associaram à End Child Prostitution, Child Pornography and Trafficking of Children for Sexual Purposes - ECPAT (Campanha pelo Fim da Prostituição, da Pornografia Infantil e do Tráfico de Crianças para Fins Sexuais), que surge como campanha contra o turismo sexual nos países asiáticos e, a partir de 1995, torna-se referência mundial, articulando-se com movimentos e organizações de vários países (BRASIL, 2004______. Relatório Final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre violência e redes de exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil. Brasília: Congresso Nacional, 2004.). Atentamos para essa confluência dos movimentos nos âmbitos nacional e internacional, que se retroalimentam na mobilização por visibilidade pública e por atenção dos empreendedores políticos.

Esse período foi também rico em encontros, seminários e conferências. Alguns desses eventos serviram de etapa preparatória para o I Congresso Mundial Contra a Exploração Sexual Comercial de Crianças, realizado em Estocolmo/Suécia, em agosto de 1996. As conclusões do Seminário sobre Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes nas Américas, nesse mesmo ano, ficaram conhecidas como a Carta de Brasília e marcou o compromisso brasileiro junto à comunidade mundial presente no Congresso Mundial.

No cenário internacional, o I Congresso Mundial foi o marco da mobilização dessa década, tendo o governo Brasileiro ratificado a “Declaração e Agenda para Ação de Estocolmo”, que sinalizaram para os estados a estratégia de formulação de planos nacionais para enfrentar a violência sexual. Marco ainda da definição do termo exploração sexual comercial, compreendido nos documentos oficiais do evento como “todo tipo de atividade em que as redes e/ou os aliciadores e/ou os clientes usam o corpo de um menino ou menina para tirar vantagem ou proveito de caráter sexual com base numa relação de exploração comercial e poder” (SUÉCIA, 1996).

Toda comoção pública produzida, principalmente pela mídia nesse período, foi determinante para a inclusão do tema na agenda política, contudo, a falta de dados concretos sobre a magnitude do problema era, e ainda é, algo inquietante para a militância política da área e um grande problema para os gestores públicos voltados para a formulação de soluções e alternativas de enfrentamento. O que justificou a criação de um canal de denúncia, associada à Campanha Nacional contra o Turismo Sexual (1997), como uma das primeiras iniciativas de política pública; além de ser um dispositivo de fácil operacionalização e de forte apelo midiático.

O financiamento pelo governo federal de um disque-denúncia nacional coordenado pela ONG ABRAPIA (Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e Adolescência), a partir de 1997, motivou a criação de um Sistema Nacional de Notificação em Violência Sexual Contra a Criança e ao Adolescente, no ano 2000. Desde então, passou-se a produzir dados sistematizados com base nas denúncias (BRASIL, 2004______. Relatório Final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre violência e redes de exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil. Brasília: Congresso Nacional, 2004.). A partir de 2003, com a tomada da coordenação do serviço pelo governo federal, houve a mudança do número de telefone para o Disque 100.

Ainda na segunda metade da década de 1990, encontramos iniciativas no setor saúde de regulamentação da notificação compulsória da violência infanto-juvenil. A Ficha de Notificação Compulsória para esses casos teve origem na Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, no ano de 1996. Em 1999, a Secretaria de Estado de Saúde (RJ) também adotou a estratégia (BRASIL, 2002_____. Notificação de maus-tratos contra crianças e adolescentes pelos profissionais de saúde: um passo a mais na cidadania em saúde. Brasília: MS, 2002.). E, na virada da década, o Ministério da Saúde adotou a ficha compulsória de notificação e regulamentou (BRASIL, 2002) um sistema de notificação e informação visando subsidiar a formulação de políticas públicas de enfretamento da violência.

Sem desconsiderar as iniciativas estatais voltadas para a visibilidade do tema, afirmamos que essas ainda eram pontuais, isoladas e desprovidas de institucionalidade no âmbito da agenda governamental. Nesse sentido, como indicava a Carta de Estocolmo (SUÉCIA,1996), o movimento pelo enfrentamento da violência infanto-juvenil se direcionou para a construção de um plano nacional, valendo-se do capital social produzido no processo de mobilização de segmentos sociais estratégicos ao longo da década de 1990.

A culminância desse processo teve como marco a realização do Encontro Nacional, na cidade de Natal (RN), em junho do ano 2000, quando cerca de 160 organizações aprovaram a “Carta de Natal” e o texto do então denominado, “Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-juvenil” (PNEVIJ), que foi ratificado na Assembleia Ordinária do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) um mês depois. O Plano passou então a ter a legitimidade de ser a agenda formal do movimento pelos direitos da criança e do adolescente no tocante ao tema (BRASIL, 2011).

A deliberação do Plano Nacional pelo CONANDA se deu num momento de grande efervescência em torno da comemoração dos dez anos do ECA, quando em Brasília estavam reunidas cerca de duas mil pessoas para o Encontro Nacional de Entidades, realizado por um conjunto de organizações não governamentais da área. É notória a influência da passagem por essa data comemorativa para a reunião de esforços interorganizacionais que tornaram possível a aprovação do texto do plano em tão curto espaço de tempo.

O amplo movimento de articulação em torno da construção do Plano Nacional alicerçou as bases da sua implementação na década que se iniciava. Tanto para a elaboração do Plano, quanto para sua execução, foram envolvidos os diferentes órgãos do Executivo, Legislativo e Judiciário das três esferas da federação, bem como a sociedade civil, agências internacionais e universidades. O PNEVSIJ passou então a ser legitimado como referência para a implementação de ações, programas e projetos governamentais e da sociedade civil e para a captação de recursos, como preconizava a Carta de Natal, que também indicou a criação do “Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual Infanto-juvenil”, instituído pela Lei Federal nº 9.970, de janeiro do ano 2000; desde então o 18 de maio é data oficial de mobilização nacional (BRASIL, 2011).

No tocante à consideração do Plano Nacional como política pública, suscita-nos algumas inquietações. A primeira diz respeito à forma como ele foi estruturado, em tese, um plano se referencia a uma política anteriormente definida, constituída por um conjunto de diretrizes gerais, que, por sua vez, referencia-se a um conjunto de leis, normatizações e saberes instituídos. No caso do PNEVSIJ, essas diretrizes políticas de referência são os próprios princípios da Lei Federal 8.069/90 - Estatuto da Criança e do Adolescente. Essa imiscuidade entre lei, política e plano nos parece produzir alguns efeitos, entre os quais, o tratamento do plano como se ele fosse a própria política norteadora.

A segunda inquietação diz respeito à provisoriedade do Plano Nacional. Em geral, um plano tem um prazo determinado de existência previamente definido em relação aos objetivos e metas propostos, a serem executados num determinado período. O PNEVSIJ, em sua primeira versão, previu ações para serem implementadas entre os anos 2000 e 2003. Somente dez anos depois do prazo estipulado tivemos a sua segunda versão aprovada pelo CONANDA, em maio de 2013. Contudo, nessa década que corresponde ao período entre o término do prazo da primeira versão e a aprovação da segunda versão do PNEVIJ, a versão inicial continuou sendo “a referência” para as políticas federais, estaduais e municipais.

Tomamos como hipótese explicativa desse fenômeno o fato de o Plano ter sido resultado de um movimento marcado pelo ativismo, pelo clamor por ações concretas e de impacto direto e imediato na realidade. E, na ausência de uma política específica de referência, observamos a utilização dos princípios do ECA como diretrizes gerais invocadas no texto do Plano. Também podemos atribuir o extenso número de metas (107), que buscaram contemplar todos os segmentos envolvidos na sua construção, como efeito desse ativismo que lhe deu origem. A falta de implementação de grande parte das muitas ações preconizadas no Plano no prazo estipulado (3 anos) e a pertinência das ações propostas manteve atual sua necessidade, mesmo depois da expiração do período estipulado.

Ainda que não seja objetivo do trabalho tecer uma análise das dificuldades de implantação do Plano, nem das razões de sua não atualização por uma década, podemos pontuar alguns fatores desse contexto: precariedade do orçamento e da política de financiamento e execução de programas e projetos estatais; barreiras da descentralização por meio dos planos estaduais e municipais; inadequação da previsão do tempo necessário para implementação das numerosas ações; dificuldade de estabelecimento de indicadores de avaliação e monitoramento; concorrência com os temas por prioridade na agenda pública; falta de institucionalidade e precariedade dos mecanismos do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente, assim como a desarticulação dos órgãos que lhe constituem; diversidade de canais de denúncias e fragmentação dos dados; descontinuidade política dos programas e ações públicas; precariedade dos processos de avaliação e monitoramento; entre outros (CNEVSCA, 2006CNEVSCA. Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil: uma política em Movimento. Relatório de Monitoramento 2003-2004. Brasília: CNEVSCA, 2006.).

Década de 2000: Da implantação de ações governamentais à manutenção da agenda

O PNEVSIJ é um importante referente para a análise de todo esse movimento de institucionalização da agenda de enfrentamento da violência sexual infanto-juvenil. De fato, o Plano Nacional se tornou a agenda oficial do poder público (coordenado pela Secretaria de Direitos Humanos) e dos diversos foros da sociedade civil organizada (sob a gestão do Comitê Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-juvenil).

Na perspectiva do ciclo das políticas públicas, o momento de deliberação da primeira versão do Plano Nacional (2000) pode ser considerado o auge da fase de tomada de decisões, culminância de um período rico em formulação e escolhas de soluções para os problemas reconhecidos. Contudo, processos decisórios determinantes também se dão quando as ações do plano ganham materialidade, pois nesse momento se evidencia uma ordenação de prioridades, a definição das ações que serão de fato implementadas, em detrimento de outras, e que posteriormente poderão ser avaliadas.

Estudos contemporâneos têm chamado a atenção para a centralidade dos problemas de implementação, contrapondo-se à visão clássica da administração pública como mera executora das políticas formuladas e, consequentemente, responsável pelo sucesso ou fracasso das mesmas, desconsiderando os possíveis problemas de formulação. Ao considerar os efeitos retroalimentadores da implementação sobre a própria formulação, reconhecemos a interação entre formulação, implementação e avaliação (MENICUCCI, 2012MENICUCCI, T. M. G. A implementação da Reforma Sanitária: a formação de uma política. In: HOCHMAN, G.; ARRETCHE, M.; MARQUES, E. (Orgs). Políticas Públicas no Brasil . Rio de Janeiro: Fiocruz , 2012.).

A política de EVSCA, em face da dinâmica da qual originaram as suas diversas fases, envolta em grande efervescência política, em que se verifica a interferência dos atores que estão na gestão direta dos programas públicos e das autoridades políticas nos diversos momentos de tomada de decisões, evidencia um processo peculiar de participação democrática dos diferentes atores nas diversas fases do ciclo dessa política pública, distanciando-se de um modelo hierárquico, piramidal, para um modelo em rede e distributivo de poder. Em consonância com uma tendência contemporânea de tomada de decisões políticas, não mais em instâncias claramente centralizadas, mas num contexto de policy networks (HECLO, 1978HECLO, H. Issue Networks and the Executive Establishment. In: KING, A. The New American Political System. Washington: American Institute for Public Policy Research, 1978.), em que se formam policy communities, que integram um conjunto de empreendedores políticos que compartilham visões e propósitos comuns para uma determinada política (CÔRTES, 2012CÔRTES, S. V. Viabilizando a participação em Conselhos de Política Pública Municipais: arcabouço institucional, organização do movimento popular e policy communities. In: HOCHMAN, G.; ARRETCHE, M.; MARQUES, E. (Orgs.). Políticas Públicas no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2012.).

A seguir, nos exemplos de estratégias federais voltadas ao EVSCA poderemos observar como o processo de formulação e implementação se deu na interação entre diferentes atores envolvidos, diminuindo uma distância histórica entre aquele que decide e o que executa. Novamente tomamos como marco o PNEVSIJ como a agenda formal que orientou a implementação das ações governamentais na área ao longo de toda a década de 2000.

Uma das primeiras ações do governo federal, após a aprovação da primeira versão do PNEVSIJ, foi a formulação do Programa Sentinela, ao final do ano 2000. Consonante com o Eixo do Atendimento do Plano Nacional, o programa, lançado em dezembro de 2002, propunha a estruturação de serviços municipais de atendimento especializado, multiprofissional e interdisciplinar numa perspectiva de atuação em rede. Implementado como suporte técnico à intervenção dos Conselhos Tutelares nos casos de violência doméstica e exploração sexual, o Sentinela passou a ser considerado um marco metodológico de atendimento.

Em 2006, com a implantação do Sistema Único de Assistência Social - SUAS, o programa foi incorporado pelo mesmo, chegando a atingir 1.104 municípios brasileiros (CNEVSCA, 2006CNEVSCA. Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil: uma política em Movimento. Relatório de Monitoramento 2003-2004. Brasília: CNEVSCA, 2006.). Foi extinto pelo MDS (Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome) num momento de implantação nos municípios dos Centros de Referência Especializados de Assistência Social - CREAS. Na perspectiva de expansão do SUAS, os profissionais especializados que compunham as unidades do Programa Sentinela, em muitos municípios, passaram a constituir as equipes dos CREAS, que, por sua vez, passaram a atender não somente casos de violência doméstica e sexual de crianças e adolescentes, mas todas as formas de violação de direitos de grupos vulneráveis, o segmento de infância e adolescência, mas também de mulher, idoso, pessoas com deficiência, entre outros - na perspectiva da matricialidade da família. Temos aqui um caso de mudança de direção de uma política, em que se extingue um serviço e transfere suas atribuições para um equipamento.

Essa redefinição, que se deu a partir da Política Nacional de Assistência Social - PNAS, pode ser analisada à luz do que Giuliani (2005, apud SECCHI, 2010SECCHI, L. Políticas públicas: conceitos, esquemas de análise, casos práticos. São Paulo: Cengage Learning, 2010., p. 53) atribui como sendo as três causas básicas de extinção de uma política pública: “1. O problema que originou a política é percebido como resolvido; 2. Os programas, as leis ou as ações que ativaram a política pública são percebidos como ineficazes; 3. O problema, embora não resolvido, perdeu progressivamente importância e saiu das agendas políticas e formais.”

Parece-nos que a terceira causa é a que mais se aproxima da explicação de extinção do programa Sentinela, uma vez que o problema está longe de ser resolvido e a pertinência do programa era constatada. Assim, resta-nos concluir que o processo de redefinição da política de assistência social a partir do SUAS não conferiu o mesmo destaque à especificidade do problema, frente aos tantos outros que pressionavam para entrar nessa agenda setorial, assim, portanto, seus recursos foram redirecionados para outro desenho de política pública. Sem desconsiderar a importância dos CREAS, fato é que desde a extinção do Programa Sentinela o “atendimento especializado, e em rede, às crianças e adolescentes em situação de violência sexual e às suas famílias, por profissionais especializados e capacitados”, tal como previsto no Plano, não mais teve tanta evidência nas políticas setoriais.

Outro exemplo de estratégia federal de implementação de ações do Plano Nacional de EVSCA teve início em 2002, quando uma parceria estabelecida entre o governo federal e a USAID, por meio da organização Partners of the Américas, permitiu a elaboração das bases teórico-metodológicas do Programa de Ações Integradas Referenciais de Enfretamento da Violência Sexual Infanto-juvenil no Território Brasileiro, o PAIR. Esse programa foi implementado em caráter experimental em seis municípios no ano de 2003 (BRASIL, 2011c), adotando como eixo norteador a formação e o fortalecimento de redes de proteção voltadas para a pactuação e o desenvolvimento de políticas de enfrentamento da violência sexual infanto-juvenil nos municípios, por meio de capacitação e assessoria aos gestores e profissionais e do estabelecimento de sistemas de notificação e a mobilização da opinião pública por meio de campanhas. Ao longo de dez anos (2003-2013), atingiu com sua metodologia cerca de 540 municípios do país, constituindo-se como a principal estratégia de descentralização da gestão desta política nacional (BRASIL, 2011c).

No tocante ao Eixo Defesa e Responsabilização do Plano Nacional, que incluem as propostas de reformas legislativas, o início da década de 2000 foi de intensa mobilização em torno da Frente Parlamentar em Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (DCA). Como efeito, ressaltamos a aprovação da Lei Federal nº 9.975/2000, que cria o tipo penal “exploração sexual”, acrescentando o artigo 244A ao Estatuto da Criança e do Adolescente. Essa lei é considerada um avanço no modo de tipificação do crime, até então a exploração sexual somente era possível de se enquadrar como “crime contra os costumes” (Título VI, da Parte Especial do Código Penal, Decreto-Lei 2.848/1940).

Ainda no âmbito do Parlamento Federal, a Frente Parlamentar DCA, como movimento suprapartidário, ganhou força, no ano de 2003, com a instalação da CPMI - Comissão Parlamentar Mista de Inquérito do Congresso Nacional (parlamentares da Câmara de Deputados e do Senado Federal). O relatório final aprovado em 2004 foi resultado da análise de um grande número de documentos, entrevistas e denúncias, que teve como efeito 543 notícias-crime, a proposição de políticas e programas governamentais, além de projetos de leis (BRASIL, 2004). A exemplo do ocorrido na década anterior, as CPIs sobre o tema têm servido de dispositivo de visibilidade midiática e política do problema, projetando os interlocutores que se postulam como porta-vozes deste tema, e, com isso, colaborando para que a temática se atualize como pauta na agenda pública (LOWENKRON, 2013LOWENKRON, L. Estratégias tutelares para a “garantia de direitos”: uma análise da construção da “pedofilia” como problema político. In: VIANNA, A. (Org.). O fazer e o desfazer dos direitos: experiências etnográficas sobre política, administração e moralidades. Rio de Janeiro: E-papers, 2013.).

Como efeito do resultado da CPMI, tivemos outra reforma legislativa em novembro de 2003, quando foi sancionada a Lei nº 10.764, que alterou os artigos 240 e 241 do ECA, ao estabelecer como crimes a produção e a distribuição de material de pornografia infantil. Dois anos depois ocorreu outra alteração legislativa com a Lei Federal nº 11.106/2005, que modifica a tipificação penal de crime de tráfico humano, o que era antes circunscrito ao “tráfico internacional de mulheres” passou a ser denominado “tráfico de pessoas”.

A prioridade atribuída pela Presidência da República, em 2003, para o tema fez com que diversos ministérios se implicassem com a problemática, desencadeando uma série de ações setoriais promovidas pelos órgãos federais. Segundo Kingdon, “Nenhum outro ator no sistema político tem a capacidade do presidente de estabelecer agendas em uma dada área de políticas para aqueles que lidam com elas” (KINGDON, 2011KINGDON, J. W. Agendas, alternatives and public policies. Boston: Longman, 2011., p. 23).

Observamos que a partir do ano de 2003 diversos ministérios assumiram a responsabilidade de elaboração e execução de políticas que respondessem a essa diretriz presidencial. Com isso, o tema foi assumido por setores governamentais que até então não se implicavam com a problemática, tais como o turismo, que propôs o Programa Turismo Sustentável e Infância, o setor da justiça e segurança, que lançou o Plano e a Política de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (BRASIL, 2008______. Declaração do Rio de Janeiro e Chamada Para Ação Para prevenir e Eliminar a Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. Brasília: SEDH-PR, 2008.), e o setor educação, com o Projeto Escola que Protege (BRASIL, 2008______. Declaração do Rio de Janeiro e Chamada Para Ação Para prevenir e Eliminar a Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. Brasília: SEDH-PR, 2008.).

Nessa esteira, os setores mais diretamente envolvidos com a temática, como o de Direitos Humanos, Saúde e Assistência Social, avançaram também em amplitude de suas políticas de EVSCA. Entre essas iniciativas, destacamos a iniciativa da Polícia Rodoviária Federal, no próprio ano de 2003, de mapear os pontos de vulnerabilidade à ESCA nas rodovias federais do país. Essa informação passou a ser fonte de planejamento de ações por diversos atores civis e governamentais e o estudo bienal já apresenta o sexto mapeamento desde o ano de 2003 (BRASIL, 2014).

Outro dispositivo importante de fomento do tema na agenda pública, principalmente no âmbito das relações internacionais, tem sido o acontecimento dos congressos mundiais. Em 2008, o Brasil foi o país-sede do III Congresso Mundial de Enfrentamento da Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescente e registrou participação recorde de mais de 3.500 pessoas de 160 países. O resultado foi traduzido na “Declaração do Rio de Janeiro e Chamada para Ação para Prevenir e Eliminar a Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes”, que recomenda que todas as nações adotem normas legais, políticas públicas, regulação e serviços de qualidade nas áreas de saúde, educação, assistência social, segurança e justiça, a fim de mudar o atual cenário marcado por diferentes formas de exploração sexual de crianças e adolescentes. O uso da expressão “exploração sexual de crianças e adolescentes” na Declaração do Rio de Janeiro serviu para designar todas as formas de abuso e exploração sexual desse segmento etário (BRASIL, 2008______. Declaração do Rio de Janeiro e Chamada Para Ação Para prevenir e Eliminar a Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. Brasília: SEDH-PR, 2008.).

Para ressaltar os efeitos que um grande evento técnico-científico pode produzir na construção, fortalecimento e manutenção do tema na agenda pública, no bojo da mobilização para o III Congresso Mundial, inúmeras iniciativas foram anunciadas no país, entre elas a Federal nº 11.829, que aumenta as penas para os crimes de abuso sexual e de pornografia infantil, inclusive o praticado via internet, sancionada pelo Presidente da República durante a abertura do congresso, em 25 de novembro de 2008. Proposta pela “CPI da Pedofilia”, essa lei modifica o ECA nos seus artigos 240 e 241 - aumentando as penas previstas e cria os artigos 241-A a 241-E -, qualificando como crime a posse, a venda e a divulgação de pornografia infantil; mesmo quando se tratar de simulação (montagem); e ainda as situações de aliciamento, assédio ou constrangimento por qualquer meio de comunicação; mesmo quando se tratar apenas de facilitação ou indução. Ainda na esteira das mudanças legislativas do ECA, também podemos citar a Lei nº 12.015, de 2009, que inclui o artigo 244-B, que vai dispor sobre a corrupção ou facilitação da corrupção de menores; mesmo quando se tratar de crimes cometidos por meio da internet.

Avaliação: fase ainda incipiente do ciclo de políticas em EVSCA

Ainda que verifiquemos avanços na implementação de uma política nacional de EVSCA na década de 2000, a avaliação do Plano demonstrou ser uma tarefa de difícil execução. Temos como registro o Relatório de Monitoramento 2003-2004, realizado por iniciativa do Comitê Nacional de EVSCA (2006), que apresenta um esforço de sistematização, mas ainda longe de representar a avaliação como uma prática institucionalizada. Cabe destacar que avaliação e monitoramento não foram incluídos como eixos estratégicos do Plano Nacional.

A Carta de Natal (BRASIL, 2011c) propôs a criação de um “Fórum Nacional” para acompanhar e avaliar a gestão do Plano Nacional EVSIJ, mas somente em julho de 2002 foi criado para esse fim o Comitê Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescente - CNEVSCA. Nesse contexto, no âmbito do governo federal, foi instituída, em fevereiro de 2003, a Comissão Intersetorial de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, como uma estratégia de integração de programas e ações de âmbito federal, bem como a proposição de políticas públicas para a erradicação da violência, abuso e exploração sexual comercial de crianças e adolescentes.

Como sabemos, a avaliação é geralmente tomada como uma das últimas etapas do ciclo das políticas públicas. Momento em que todo o processo de planejamento e implantação são examinados, almejando conhecer melhor o estado da política e o nível de redução do problema que a gerou (SECCHI, 2010SECCHI, L. Políticas públicas: conceitos, esquemas de análise, casos práticos. São Paulo: Cengage Learning, 2010.). Considerando o PNEVIJ, esforços no sentido de se promover mecanismos de acompanhamento são percebidos desde a sua formulação, quando se apresenta um Quadro Operativo de “Indicadores de Efetividade”. A partir desses indicadores, o Comitê Nacional buscou, em 2004, uma consultoria do IBGE para a construção de “Indicadores de Monitoramento do Plano” e foi realizada uma oficina que apontou para a necessidade de construção de dois grupos de indicadores, um para o diagnóstico da situação de VSCA e outro para o monitoramento das ações realizadas de EVSCA e seus impactos (CNEVSCA, 2006CNEVSCA. Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil: uma política em Movimento. Relatório de Monitoramento 2003-2004. Brasília: CNEVSCA, 2006.). Contudo, ao que consta, essa não foi uma tarefa levada adiante.

Apesar do reconhecimento da importância da avaliação para o gestor de política pública, avaliações consistentes e sistemáticas são de difícil operacionalização, demandam por recursos, tempo e organização. Na falta de condições apropriadas, acabam sendo reduzidas à verificação de alguns aspectos básicos ou elementares, que em geral não permitem a visualização de aspectos qualitativos referentes aos processos e resultados gerados pela política pública.

Parece-nos que o Plano Nacional, como marco regulatório e estratégico das políticas de enfrentamento da violência sexual infanto-juvenil, por sua característica intersetorial e multifocada, requer perspectivas próprias para sua avaliação. Destaque para a perspectiva de rede, estruturante do plano. A rede como dispositivo de operacionalização da política de atendimento possui dinâmica própria de difícil apreensão pelos instrumentos de avaliação de políticas públicas, em geral, circunscrita a setores específicos e reduzida a programas com atores, estratégias, objetivos e metas definidos a priori. Os avanços são de difícil quantificação e a produção de subjetividades é processo inerente que deve ser abarcado pela avaliação, mas escapa aos métodos tradicionais pautados na mensuração.

Nessa direção, observarmos, em 2007, iniciativa de pesquisa de avaliação nesse campo realizada pela Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) por meio de duas de suas unidades, o Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli (CLAVES) e o Instituto Nacional de Saúde da Criança, do Adolescente e da Mulher Fernandes Figueira (IFF), com o apoio do UNICEF - Escritório do Rio de Janeiro. O projeto chamou-se “Indicadores para Avaliação da Atuação dos Municípios dos Grandes Centros Urbanos no Enfrentamento da Violência Intrafamiliar e Exploração Sexual contra Crianças e Adolescentes” e teve como objetivo a construção de indicadores quantitativos e qualitativos de avaliação e monitoramento das estratégias municipais, utilizando-se de metodologias participativas de consenso. Os indicadores já foram aplicados em cinco capitais brasileiras e os resultados publicados e divulgados desde 2011 (DESLANDES e MENDES, 2011DESLANDES, S.; MENDES, C. Quem avalia, atua melhor. Guia para análise avaliativa dos municípios no enfrentamento da violência intrafamiliar e exploração de crianças e adolescentes. Rio de Janeiro: Fiocruz , 2011.). Essa iniciativa nos aponta caminhos possíveis para a avaliação e o monitoramento como estratégias das políticas de EVSCA.

Considerações finais

A análise de como foi construída a agenda formal encampada pelo poder público indica que o Plano Nacional foi um divisor de águas desse período; este passou a ser a referência da política a ser implementada em todo Brasil por todos os setores e seguimentos sociais. Constitui-se, então, um importante analisador de como a política de EVSCA foi sendo delineada e efetivada nas suas diferentes fases como ciclo de políticas públicas - da definição do problema e agenda, passando pela implementação, até chegar a sua avaliação e redefinição -, o que nos permite reconhecer aí também os entraves e limites para implementação do próprio ECA (BRASIL, 2012______. Lei n. 8.069/1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Versão atualizada. Brasília: CONANDA, 2012.).

Todas essas fases foram marcadas pela influência de grupos organizados da sociedade civil, que forjaram uma gestão compartilhada com o poder público dos processos e canais institucionalizados de decisão. O próprio movimento, que teve culminância na pactuação do Plano Nacional, envolveu os diferentes atores do poder público, da sociedade civil e dos organismos multinacionais nos processos deliberativos e, posteriormente, nos espaços colegiados de gestão, a exemplo do Comitê Nacional de EVSCA e da Comissão Intersetorial de EVSCA.

O mesmo pode ser observado no âmbito internacional com relação ao papel exercido pelas ONGs transnacionais. Destacamos a mútua influência das agendas nacional e internacional, movimentos que se retroalimentaram nesse período e que tiveram os Congressos Mundiais e as campanhas como impulsionadores dessa confluência. No cenário de globalização e da participação do Brasil nos comitês internacionais, percebe-se a busca pela construção de uma imagem do país associada à defesa dos direitos de crianças e adolescentes. Essa conjuntura também foi favorável para a entrada do tema na agenda pública.

Mesmo reconhecendo a importância do Plano Nacional como política pública de grande amplitude e marco histórico no enfrentamento da violência sexual infanto-juvenil, a problemática que lhe deu origem está longe de ser superada. Inúmeros são os fatores limitadores de sua implantação, a ressaltar os aspectos orçamentários e os das estruturas institucionais responsáveis pela sua execução. Não obstante os esforços de coordenação interinstitucional, muito ainda se faz necessário avançar na perspectiva da gestão de redes de políticas públicas voltadas para problemas complexos e de extensa magnitude (FLEURY, 2007FLEURY, S.; OUVERNEY, A. M. Gestão de redes: a estratégia de regionalização da política de saúde. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.).

Sem desconsiderar os avanços advindos com a especialização do tema, a natureza polissêmica e multifatorial da problemática demanda a ampliação da abordagem para o campo dos direitos humanos de crianças e adolescentes. Estudos contemporâneos apontam para a importância de se reconhecer, antes de tudo, a própria sexualidade infanto-juvenil e, portanto, o direito humano ao desenvolvimento da sexualidade saudável e responsável de crianças e adolescentes (UNGARETTI, 2010UNGARETTI, M. A. (Org.). Criança e adolescente: direitos, sexualidade e reprodução. São Paulo: ABMP, 2010.). Nesse contexto, ao final da década de 2000, o CONANDA se voltou à discussão da “Política Nacional de Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes e Plano Decenal”, escolhendo como temáticas das Conferências Nacionais dos Direitos da Criança e do Adolescente, em 2009 e 2012. Pela primeira vez se discutia amplamente uma política nacional unificada de direitos humanos de crianças e adolescentes no Brasil.

Nessa década (2010), apontamos como marco da manutenção do tema na agenda nacional a realização dos maiores eventos esportivos do planeta no Brasil - a Copa, Olimpíadas e Paralímpiadas. Organismos transnacionais de proteção à infância chamam a atenção para o aumento da vulnerabilidade dos casos de VSCA nas cidades-sede dos eventos. Tal momento é aproveitado então pelas organizações nacionais como oportunidade de fortalecimento do SGDCA para o enfrentamento das violações de direitos decorrentes, visto como legado desses megaeventos para o país.

Historicamente, esta política se constituiu na lógica do enfrentamento às diversas modalidades de violação de direitos, em forma de políticas temáticas fragmentadas. Nesse contexto, além da temática da violência sexual, podemos citar outros exemplos de temáticas que constituíram políticas e planos, tais como o trabalho infantil, o sub-registro de nascimento, o uso e abuso de crack e outras drogas, o abandono e institucionalização de crianças e adolescentes, o ato infracional praticado por adolescente, entre outros. Assim, adentramos a década de 2010 nesse movimento de integralidade das políticas temáticas num mesmo plano, o Plano Decenal. Contudo, o avanço nessa perspectiva ainda se mostra incipiente e sem os recursos necessários para a implementação de uma política integrada e intersetorial, que considere a criança e o adolescente como sujeitos de direitos e não somente como vítimas de violações.

Fazemos essa defesa na perspectiva de uma inflexão da política de enfrentamento das diversas formas de vitimização da criança e do adolescente, para uma política de promoção de direitos básicos e fundamentais, passando pelas políticas suplementares e compensatórias quando necessárias. A aposta se faz na construção de ambientes saudáveis e seguros, preventivos das ameaças e situações de violações de direitos.

Entretanto, a lógica contemporânea ditada por modelos político-econômicos de vertente neoliberal aponta em outra direção, a da concentração de riqueza numa parcela pequena na sociedade, que tem como efeito a persistência ou aumento das desigualdades sociais e do contingente de pobres e miseráveis, ou seja, da produção de ambientes vulneráveis à violência e privação dos direitos básicos.11 A. F. do Nascimento participou do planejamento do artigo, redação e revisão do texto. S. F. Deslandes realizou o planejamento do artigo, redação e revisão do texto. Os dois autores colaboraram igualmente em todas as fases de elaboração e revisão do artigo.

Referências

  • BRASIL. Constituição Federal da República do Brasil Brasília: Congresso Nacional, 1988.
  • ______. Lei n. 8.069/1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Versão atualizada. Brasília: CONANDA, 2012.
  • ______. Relatório Final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre violência e redes de exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil. Brasília: Congresso Nacional, 2004.
  • ______. Declaração do Rio de Janeiro e Chamada Para Ação Para prevenir e Eliminar a Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes Brasília: SEDH-PR, 2008.
  • ______. Plano Nacional de Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes e Plano Decenal Brasília: CONANDA / SEDH-PR, 2011.
  • ______. Política e Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Brasília: MJ, 2008.
  • ______. Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Adolescente Trabalhador. Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil. Brasília: MTE, 2011.
  • ______. Guia Escolar: métodos para identificação de sinais de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes. 3ª Ed. Brasília: SEDH-PR /MEC, 2011.
  • _____. Notificação de maus-tratos contra crianças e adolescentes pelos profissionais de saúde: um passo a mais na cidadania em saúde. Brasília: MS, 2002.
  • _____. Mapeamento de Pontos Vulneráveis à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes nas Rodovias Federais Brasileiras - 2011-2012 Brasília: Polícia Rodoviária Federal-MJ / SDH-PR / OIT / MPT / Childhood, 2012.
  • _____. Programa Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes. 2 - Metodologia do PAIR - Programa de Ações Integradas e Referenciais de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil em Território Brasileiro. Brasília: SDH-PR, 2011.
  • CNEVSCA. Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil: uma política em Movimento. Relatório de Monitoramento 2003-2004. Brasília: CNEVSCA, 2006.
  • CÔRTES, S. V. Viabilizando a participação em Conselhos de Política Pública Municipais: arcabouço institucional, organização do movimento popular e policy communities In: HOCHMAN, G.; ARRETCHE, M.; MARQUES, E. (Orgs.). Políticas Públicas no Brasil Rio de Janeiro: Fiocruz, 2012.
  • SUÉCIA. I CONGRESSO MUNDIAL CONTRA A EXPLORAÇÃO SEXUAL COMERCIAL DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES. Declaração e Agenda para Ação de Estocolmo Estocolmo, 1996. Disponível em: http://www.mp.ba.gov.br/atuacao/infancia/internacionais/exploracao/declaracao_de_estocolmo.pdf Acesso em: 10 fev. 2013.
    » http://www.mp.ba.gov.br/atuacao/infancia/internacionais/exploracao/declaracao_de_estocolmo.pdf
  • DIMENSTEIN, G. Meninas da noite: a prostituição de meninas-escravas no Brasil. 13. ed. São Paulo: Ática, 1992.
  • DESLANDES, S.; MENDES, C. Quem avalia, atua melhor Guia para análise avaliativa dos municípios no enfrentamento da violência intrafamiliar e exploração de crianças e adolescentes. Rio de Janeiro: Fiocruz , 2011.
  • FALEIROS, V.; FALEIROS, E. Escola que protege: enfrentando a violência contra crianças e adolescentes. 2ª Ed. Brasília: MEC, 2008.
  • FLEURY, S.; OUVERNEY, A. M. Gestão de redes: a estratégia de regionalização da política de saúde. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.
  • FREY, K. Políticas Públicas: um debate conceitual e reflexões referentes à prática da análise de políticas públicas. Planejamento e Políticas Públicas, v. 21. Brasília, jun. 2000.
  • HECLO, H. Issue Networks and the Executive Establishment. In: KING, A. The New American Political System Washington: American Institute for Public Policy Research, 1978.
  • KINGDON, J. W. Agendas, alternatives and public policies Boston: Longman, 2011.
  • LOWENKRON, L. Estratégias tutelares para a “garantia de direitos”: uma análise da construção da “pedofilia” como problema político. In: VIANNA, A. (Org.). O fazer e o desfazer dos direitos: experiências etnográficas sobre política, administração e moralidades. Rio de Janeiro: E-papers, 2013.
  • MARQUES, E.; FARIA, C. (Orgs.). A política como campo multidisciplinar São Paulo: Unesp; Rio de Janeiro: Fiocruz , 2013.
  • MENICUCCI, T. M. G. A implementação da Reforma Sanitária: a formação de uma política. In: HOCHMAN, G.; ARRETCHE, M.; MARQUES, E. (Orgs). Políticas Públicas no Brasil . Rio de Janeiro: Fiocruz , 2012.
  • MINAYO, M. C. Violência: um problema para a saúde dos brasileiros. In: BRASIL. Impacto da violência na saúde dos brasileiros Brasília: Ministério da Saúde, 2005.
  • UNGARETTI, M. A. (Org.). Criança e adolescente: direitos, sexualidade e reprodução. São Paulo: ABMP, 2010.
  • SECCHI, L. Políticas públicas: conceitos, esquemas de análise, casos práticos. São Paulo: Cengage Learning, 2010.
  • SOUZA, C. Estado da arte da pesquisa em políticas públicas. In: HOCHMAN, G.; ARRETCHE, M.; MARQUES, E. (Orgs). Políticas Públicas no Brasil . Rio de Janeiro: Fiocruz , 2012.

  • 1
    A. F. do Nascimento participou do planejamento do artigo, redação e revisão do texto. S. F. Deslandes realizou o planejamento do artigo, redação e revisão do texto. Os dois autores colaboraram igualmente em todas as fases de elaboração e revisão do artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    17 Dez 2015
  • Aceito
    06 Maio 2016
PHYSIS - Revista de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: publicacoes@ims.uerj.br