O sentido de vivenciar a tuberculose: um estudo sobre representações sociais das pessoas em tratamento

Perceptions of living with tuberculosis: a study on social representations of people in treatment

Érika Andrade e Silva Girlene Alves da Silva Sobre os autores

Resumo

Este estudo, de abordagem qualitativa, ancorado nos pressupostos teóricos da Teoria das Representações Sociais, teve como objetivo analisar as representações sociais dos indivíduos portadores de tuberculose no que se refere à doença e seu tratamento. Foram entrevistadas 12 pessoas em tratamento da doença na Atenção Primária em uma região administrativa do município de Juiz de Fora - MG. Os depoimentos foram organizados por meio da análise de conteúdo temático, proposta por Bardin. Os achados revelam três representações sociais significativas que evocam o sentido de vivenciar a tuberculose: a doença que pressupõe a condenação da vida; a doença que impõe a limitação da vida; e a doença que propõe um (re)começo da vida. Considera-se então a exacerbação da representação da tuberculose como uma doença difícil de ser tratada, com limitação física e social imposta por ela e por seu tratamento. Contudo, ela acolhe mudanças positivas para as pessoas, que a assumem como um recomeço de vida. Essas representações permitiram a reflexão sobre sentido de vivenciar o adoecer de tuberculose, permitindo reflexões que podem contribuir para elaboração de estratégias efetivas para o tratamento da doença, ao se considerar sua vivência sofrida e limitante.

Palavras-chave:
tuberculose; atenção primária à saúde; pesquisa qualitativa; percepção social.

Abstract

This study of qualitative approach, anchored in the theoretical assumptions of the Social Representation Theory, aimed to analyze the social representations of individuals with tuberculosis in relation to the disease and its treatment. We used the interview to the 12 people who were in TB treatment in primary care in an administrative region of Juiz de Fora city - MG. The reports were organized through thematic content analysis proposed by Bardin. The findings reveal three significant social representations that evoke the sense of experiencing tuberculosis, which are: The disease that presupposes the conviction of life, the disease imposes a limitation of life and illness that proposes a (re)start of life. then considered the exacerbation of the representation of tuberculosis as a disease difficult to treat, with physical and social limitations imposed by the disease and its treatment. However, the disease receives positive changes for people, assume that as a new beginning of life. These representations allow reflection on the sense of experiencing the sick from TB, allowing reflections that may contribute to development of effective strategies for the treatment of the disease, when considering the suffering and limiting experience of it.

Keywords:
tuberculosis; primary health care; treatment; qualitative research.

Introdução

A tuberculose (TB) é uma doença infecciosa e contagiosa, transmitida por um tipo especial de bactéria, conhecida como Bacilo de Koch, cientificamente denominada Mycobacterium tuberculosis. É uma doença grave, porém curável em praticamente 100% dos casos novos, desde que os princípios da quimioterapia sejam seguidos. Trata-se de uma das doenças infecciosas mais antigas e que, apesar de prevenível e curável desde meados da década de 1950, ainda, na atualidade, continua sendo um dos grandes problemas de saúde pública, em especial nos países em desenvolvimento (BRASIL, 2009______. Guia de vigilância epidemiológica. Brasília: Ministério da Saúde, 2009 (Série A. Normas e Manuais Técnicos).).

A transmissão normalmente ocorre por meio da fala, do espirro e, principalmente, da tosse de um doente de TB pulmonar bacilífera, o qual lança no ar gotículas contendo o agente etiológico. O diagnóstico pode ser realizado pela baciloscopia direta, cultura de escarro ou de outras secreções. O tratamento tem a duração mínima de seis meses. Condições socioeconômicas desfavoráveis (por exemplo: desnutrição, etilismo, utilização de drogas ilegais ou outros) e clínicas (diabetes mellitus, silicose, uso prolongado de corticosteroide ou outros imunossupressores, neoplasias e infecção pelo HIV) estão associadas ao risco de desenvolver a doença (BRASIL, 2005BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Guia de vigilância epidemiológica. Brasília: Ministério da Saúde, 2005 (Série A. Normas e Manuais Técnicos).; 2009______. Guia de vigilância epidemiológica. Brasília: Ministério da Saúde, 2009 (Série A. Normas e Manuais Técnicos).).

Ao declarar a doença uma emergência mundial no ano de 1993, a OMS passou a recomendar a estratégia DOTS (Directly Observed Treatment Short-Course) como resposta global ao seu controle, por considerá-la um conjunto de boas práticas para esse fim (WHO, 2009______. Guia de vigilância epidemiológica. Brasília: Ministério da Saúde, 2009 (Série A. Normas e Manuais Técnicos).). Somada a essa iniciativa, a OMS divulgou, em 2006, a Estratégia Stop TB elaborando as principais metas globais e indicadores para o controle da doença, comprometendo-se a reduzir em 50%, até 2015, os coeficientes de prevalência e de mortalidade em relação a 1990 e, consequentemente, fortalecendo a estratégia DOTS.

De fato, a partir das estratégias DOTS e Stop TB, o panorama mundial da TB melhorou. O diagnóstico eficaz e o tratamento da doença deram condições de cura à população mundial, estimando-se que 43 milhões de vidas foram salvas entre 2000 a 2014. Em 2015, a prevalência estimada de TB foi 42% menor do que em 1990 (WHO, 2015______. Global tuberculosis report 2015. Geneva: WHO, 2015. 192p.). No entanto, apesar de todos esses avanços no controle da doença, ela ainda se configura como uma emergência global: estima-se que, em 2014, 9,6 milhões de pessoas adoeceram com TB, das quais 12% eram HIV-positivo. Houve ainda a morte de 1,5 milhão de pessoas, sendo que 1,1 milhão eram HIV-negativo (BRASIL, 2016______. Perspectivas brasileiras para o fim da tuberculose como problema de saúde pública. Boletim epidemiológico. Brasília, v. 47, n. 13, p. 1-15, 2016.).

É certo que o Brasil vem se organizando para estabelecer a TB como problema de saúde pública. A partir desses esforços e estratégias traçados, hoje, nosso país ocupa a 18ª posição em carga de TB, representando 0,9% dos casos estimados no mundo e 33% dos estimados para as Américas (WHO, 2015______. Global tuberculosis report 2015. Geneva: WHO, 2015. 192p.). Os coeficientes de mortalidade e de incidência foram reduzidos em 38,9% (3,6 para 2,2/100 mil hab.) e 34,1% (51,8 para 34,1/100 mil hab.), respectivamente, de 1990 até 2014, cumprindo as metas internacionais. Contudo, ainda foram registrados, entre 2005 e 2014, uma média de 70 mil casos novos e 4.400 mortes por pela doença, por ano, e, entre 2012 e 2015, 840 casos novos de TB drogarresistente, aqueles que apresentam qualquer tipo de resistência aos fármacos utilizados no tratamento (BRASIL, 2016______. Perspectivas brasileiras para o fim da tuberculose como problema de saúde pública. Boletim epidemiológico. Brasília, v. 47, n. 13, p. 1-15, 2016.). Dessa forma, entende-se que muito ainda precisa ser feito para conter o avanço da TB, e que os esforços não podem cessar diante dos resultados positivos já alcançados.

O presente estudo é um recorte de uma dissertação de Mestrado, na qual se considera preocupante a realidade epidemiológica em relação à patologia e factível a mudança no histórico de dificuldade no tratamento da mesma. Desse modo, objetivou revelar as representações sociais das pessoas com TB em relação à doença e seu tratamento.

Assim sendo, baseado no perfil epidemiológico da doença no Brasil e no município de estudo, que se contrapõe à considerável possibilidade de cura, justifica-se conhecer estratégias que agreguem recursos capazes de promover diagnósticos cada vez mais precoces, interrupção de cadeia de transmissão e alternativas de favorecimento à adesão ao tratamento. Assim, destacam-se neste estudo as representações sociais de pessoas com TB sobre a doença e seu tratamento. Através do conhecimento do fenômeno, é possível compreender a relação dessas representações sociais com as práticas adotadas no diagnóstico e tratamento, uma vez que a forma como esses indivíduos compreendem sua doença, elaborando seus significados, faz direta relação com a experiência do tratamento, orientando suas práticas sociais.

Trajetória teórica e metodológica do estudo

Trata-se de uma pesquisa de natureza qualitativa, pois pretende compreender o universo de significados, motivos, crenças, valores e atitudes dos sujeitos diante de uma determinada experiência vivida (MINAYO, 2010MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec, 2010.). Utilizaram-se os pressupostos da Teoria da Representação Social para fundamentar a análise das questões que a TB envolve.

A escolha desse referencial baseia-se no fato dessa doença milenar estar envolta em mitos que engendram uma série dúvidas, incertezas e conflitos. Dessa forma, é importante para o campo da saúde a compreensão de um conhecimento que se revela nas representações sociais, pois essas acolhem no processo de elaboração valores, concepções e crenças dos sujeitos inseridos em determinado cenário social.

Para Jodelet (2001JODELET, D. As representações sociais. Rio de Janeiro: UERJ, 2001.), uma característica marcante da representação social é a forma de conhecimento, resultante do senso comum, compartilhado e elaborado socialmente, isto é, que permite a construção de uma realidade comum aos indivíduos pertencentes a certo grupo social, como, no caso deste estudo, as pessoas em tratamento de TB.

Na mesma perspectiva, Moscovici (2003MOSCOVICI, S. Representações sociais: investigação em psicologia social. Petrópolis: Vozes, 2003.) enfatiza que o comportamento do indivíduo inserido em um grupo é significativamente influenciado pelas representações criadas pela sua coletividade. Essas representações são entendidas quase como objetos materiais, por serem provenientes de ações e comunicações e revelarem vivências e práticas desenvolvidas e partilhadas, constituindo, então, uma afirmativa simbólica de pertencimento e identidade.

Utilizou-se neste estudo, assim, o método qualitativo de investigação junto às pessoas em tratamento de TB e acompanhadas pelas Unidades de Atenção Primária à Saúde (UAPS), localizadas na região administrativa sudeste do município de Juiz de Fora.

Dentre as nove UAPS dessa região administrativa, em quatro delas foram identificadas pessoas em tratamento de TB e que atendiam aos critérios para participação no estudo. Inicialmente, foi realizado um levantamento junto a equipe das pessoas com TB, residentes na área de abrangência da UAPS e acompanhadas pelo serviço. Elegeram-se como critérios de seleção dos participantes: ser maior de 18 anos; ter o diagnóstico de TB pulmonar confirmado e notificado (caso novo ou não), estar em tratamento farmacológico da TB independentemente da fase; ser residente na área de abrangência das UAPS em questão; aceitar, voluntariamente, participar do estudo; e assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido após explicação dos objetivos da pesquisa.

Diante desses critérios, foram selecionadas para este estudo 12 pessoas que receberam o diagnóstico de TB pulmonar no ano de 2012 e que ainda estavam submetidas ao tratamento. Quando possível, o primeiro contato com os participantes se deu por meio de ligação telefônica, ocasião em que a pesquisadora explicitou os objetivos do estudo e indagou sobre o interesse dos mesmos em participar da investigação. Quando o contato não foi possível por telefone, realizou-se visita domiciliar.

A coleta de dados se deu nos meses de outubro de 2012 e janeiro de 2013. Os questionamentos que nos permitiram o acesso às representações elaboradas pelos sujeitos foram: Como você descobriu que estava com TB? O que você sabe sobre a TB? O que ela significa na sua vida? Como tem sido sua rotina de vida desde que você começou o tratamento anti-TB? O que representa para você este tratamento que está realizando?

Foi solicitada aos entrevistados a permissão do uso do gravador, a fim de possibilitar o registro na íntegra de seus depoimentos, sua transcrição e posterior análise. Para fins de caracterização dos participantes, procedeu-se à coleta das seguintes informações: idade, sexo, escolaridade, renda familiar, número de pessoas residentes no domicílio e condição da doença.

Para preservação do anonimato, os participantes foram identificados com a letra inicial E, de entrevistado, seguida do número correspondente à ordem de realização das entrevistas (E1... E9). Os dados foram organizados em categorias e subcategorias temáticas, a partir das ideias principais contidas nos depoimentos dos entrevistados, e analisados conforme a técnica de Análise de Conteúdo de Laurence Bardin (2011BARDIN L. Análise de Conteúdo. 6. ed. Lisboa: Edições 70, 2011.).

A operacionalização da análise foi pautada nas etapas descritas pelo referencial adotado: pré-análise, exploração do material, tratamento dos resultados obtidos e interpretação. Tais etapas se iniciaram por meio de uma leitura repetida e atenta das transcrições das entrevistas realizadas. De acordo com os objetivos do estudo, foram definidos os trechos significativos para a posterior elaboração das categorias temáticas (BARDIN, 2011BARDIN L. Análise de Conteúdo. 6. ed. Lisboa: Edições 70, 2011.). A interpretação do material foi realizada a partir da interlocução dos resultados com as evidências científicas referentes à temática, tendo como referencial teórico a perspectiva da representação social.

O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Juiz de Fora sob o número 100.277.

Resultados e discussão

No universo de participantes do estudo, dez eram homens e duas, mulheres, e encontravam-se na faixa etária compreendida entre 24 e 57 anos. A idade média dos entrevistados era de 36 anos. Em conformidade com esses dados, estudo realizado no Brasil (PILLER, 2012PILLER, R. V. B. Epidemiologia da tuberculose. Pulmão, Rio de Janeiro, v. 21, n. 1, p. 4-9, 2012.) revela que o grupo na faixa etária que vai dos 20 a 49 anos é o mais atingido pela TB, contemplando cerca de 63% dos casos novos da doença registrados em 2009, e que a TB tem o dobro de incidência nos homens (49,16/100.000 habitantes) em relação às mulheres (24,6/100.000 habitantes).

Do total dos participantes, dois eram apenas alfabetizados, três com segundo grau completo, um com o primeiro grau completo, e os seis restantes não chegaram a concluir o 1º grau. Entre os mesmos, 11 informaram que a renda individual/familiar não ultrapassava o salário mínimo (R$622,00 na ocasião da entrevista), sendo que um não quis informar sua renda. Já no que diz respeito ao número de pessoas residentes no mesmo domicílio, especulando a possibilidade de contatos respiratórios, 11 participantes relataram morar com até cinco pessoas.

A literatura reitera a relação de variáveis socioeconômicas (como anos de instrução/ analfabetismo, renda por responsáveis pelo domicílio e moradores por domicílio) com a evidência da TB. Nesse sentido, associa a ocorrência da doença principalmente à população que vive em condição de pobreza e baixa escolaridade (SANTOS et al., 2007SANTOS, M. L. S. G. et al. Pobreza: caracterização socioeconômica da tuberculose. Revista latino-americana de enfermagem. Ribeirão Preto, v. 15, n. esp., p. 762-767, set./out. 2007.).

As dificuldades que influenciam a não adesão e o abandono do tratamento de TB em pessoas vivendo com HIV/Aids incluem o baixo nível educacional e socioeconômico, os hábitos de vida prejudiciais à saúde, a falta de recursos para alimentação e locomoção, o uso de álcool e outras drogas, a história de não adesão anterior, os efeitos adversos da medicação, a não aceitação do diagnóstico, a melhora dos sintomas e a ausência de conhecimento sobre a evolução clínica e importância do tratamento (MELCHIOR et al., 2007MELCHIOR, R. et al. Desafios da adesão ao tratamento de pessoas vivendo com HIV/Aids no Brasil. Revista de saúde pública, São Paulo, v. 41, supl. 2, p. 87-93, dez. 2007. ).

Para caracterizar condição de doença dos entrevistados, destaca-se que sete deles se enquadravam na classificação de “caso novo” e cinco compunham o grupo de “retratamento ou tratamento anterior”, sendo que nenhum se enquadrou na categoria “falência”. Ressalta-se ainda que sete deles estavam na fase intensiva de tratamento e cinco na fase de manutenção.

O conteúdo a seguir revela as representações sociais da TB pelos participantes que trazem o sentido de vivenciar o adoecimento e o tratamento.

A doença que pressupõe a condenação da vida

Habitualmente, é difícil o tratamento da TB. A própria sintomatologia da doença já coloca o paciente em condições debilitadas e os fármacos utilizados no tratamento acarretam sérios efeitos colaterais, afetando diretamente o equilíbrio biopsicossocial dos pacientes, que se incomodam pela longevidade do tratamento.

Os depoimentos dos sujeitos do estudo nos revelam a dificuldade da gestão do tratamento na vida cotidiana, trazendo uma representação de que tratar a TB inviabiliza a sequência de uma vida digna concomitantemente:

Eu tomo três remédios de manhã. Os outros remédios me dava muito enjoo, nem saía de casa e esse não me dá, não... Aquele da capa vermelha me dava mal demais, ele mesmo fazia eu até vomitar. [...] não faço mais nada dessa vida, só por conta do remédio isso já quase seis meses. Eu prefiro ficar internado com todo mundo lá porque em casa preciso de ficar pedindo ajuda pra tudo. (E1)

[...] não é qualquer pessoa que aguentaria o que eu passo não, eu lembro de quando internei, tem colega meu que desistiu e não sei se era pior ter a doença ou tratar a doença, porque é tudo ruim... Os remédios são bem forte, deixa o organismo baqueado, se for uma pessoa fraca, e se bobear vai embora, morre mesmo, é cansativo, mas tem que fazer, é isso ou morrer. Os remédios são muito fortes, dói muito o estômago, você perde muito peso, tô 9 kg abaixo, o efeito colateral do remédio era febre. (E2)

A dificuldade que eu vejo é o tempo do tratamento, né... Desanima, dá pra desistir. (E3.)

O Guia de Vigilância Epidemiológica do Ministério da Saúde (BRASIL, 2014______. Guia de Vigilância em Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2014.) classifica os efeitos adversos em maiores e menores, sendo atribuídos como efeitos adversos menores: irritação gástrica (náuseas, vômitos, epigastralgia), dor abdominal, artralgia ou artrite, neuropatia periférica, prurido cutâneo, cefaleia e mudança de comportamento (insônia, ansiedade, diminuição da libido e euforia).

Vieira e Gomes (2008VIEIRA, D. E. O.; GOMES, M. Efeitos adversos no tratamento da tuberculose: experiência em serviço ambulatorial de um hospital-escola na cidade de São Paulo. Jornal brasileiro de pneumologia, Brasília, v. 34, n. 12, p. 1049-1055, dez. 2008.) afirmam que, embora as drogas antituberculose combatam eficazmente o micro-organismo causador da doença, elas podem ocasionar efeitos colaterais indesejáveis, seja pelo próprio princípio ativo ou pelos seus metabólitos. Entretanto, esses efeitos adversos leves podem ser controlados sintomaticamente, enquanto as reações graves obrigam a uma interrupção, temporária ou permanente, de uma ou mais drogas, além do uso de outros agentes.

Os participantes da presente pesquisa mostraram-se influenciados pela coletividade, percebendo nos colegas em tratamento a construção subjetiva da representação de uma doença que os põe em decadência por conta do tratamento, e não pela condição patológica, reafirmando o senso comum de que somente os mais fortes conseguem concluir o tratamento, sendo de certa forma esperado ou aceitável seu abandono.

Nas falas dos depoentes, não se evidenciaram práticas condizentes com medidas paliativas para alívio dos efeitos colaterais, o que sugere que até mesmo os profissionais de saúde que os acompanham não investigam e não intervêm nesta queixa, também condicionados pelo senso comum da incapacitação do sujeito durante o tratamento da doença. Cabe assim ao usuário a representação de que tratar a doença é um sofrimento pelo qual ele tem que passar, restando-lhe somente esperar o fim do tratamento, sem a sensibilidade para intervenção no alívio dos efeitos adversos oriundo dos fármacos.

Todavia, para Sá (2007SÁ, A. M. M. O sentido do tratamento para tuberculose no cotidiano de doentes e de profissionais de saúde. 2007. 161 f. Tese (Doutorado em Enfermagem) - Escola de Enfermagem Anna Nery, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.), efeitos adversos, maiores e menores em termos de severidade, são conhecidos dos profissionais de saúde que atuam no Programa de Controle da Tuberculose, bem como as medidas para sua correção. O que se evidencia no serviço são pessoas mal informadas sobre sua doença e tratamento, o que as leva a elaborar representações de que o tratamento da TB limita tanto o aspecto físico, decorrente das alterações orgânicas sentidas, quanto o social, uma vez que os sintomas gerados pela doença os impedem de manter uma vida social saudável, conforme abordaremos a seguir.

A doença que impõe a limitação da vida

A limitação física

As representações elaboradas pelos usuários que veem sua rotina de vida se modificar por conta das transformações em suas funções orgânicas trazem repercussões às suas atividades laborais:

Às vezes eu pegava um quintal pra capinar, fazia uma coisa pros outro ali perto mesmo. Hoje em dia não dá mais pra eu fazer, eu fico muito cansado, entendeu? Aí eu fico chateado, e feio, aí eu fico passando dificuldade, piorou muito. [...] Pra trabalhar é horrível, cansa muito, dá falta de ar, cansa muito, entendeu... Atrapalhou muito a minha vida, tudo de pior. (E1.)

Só não tava aguentando mais trabalhar que tava muito cansado, dá muito cansaço, fiquei em casa um tempinho bom, acabei com minha vida. (E4.)

A doença que limita o trabalho traz para o indivíduo a representação de ser incapacitante, tirá-lo do convívio e o impedir de realizar uma das atividades mais importantes para a configuração da dignidade humana.

De acordo com Sá (2007SÁ, A. M. M. O sentido do tratamento para tuberculose no cotidiano de doentes e de profissionais de saúde. 2007. 161 f. Tese (Doutorado em Enfermagem) - Escola de Enfermagem Anna Nery, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.), a TB altera em muito o dia a dia dos doentes. A doença é debilitante, retira a disposição para o trabalho e, às vezes, provoca dor e cansaço aos pequenos esforços, evidenciando a impotência da pessoa frente à doença. O sentimento de inutilidade aflora. O doente não está em condições físicas de assumir o que antes lhe era rotineiro.

Dessa forma, os entrevistados percebem um futuro mais indefinido, no qual reside o medo de não dar conta da vida e das pessoas com as quais têm responsabilidade. Esta representação é elaborada em um sentimento frequente nesse contexto de tratamento limitante e compartilhada pelos pacientes, família e comunidade.

Na atualidade, a legislação brasileira garante, especificamente para pessoas com TB ativa, a garantia de benefícios previdenciários, em destaque o auxílio-doença e a aposentadoria por invalidez, desde que observadas as exigências estabelecidas em lei (ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE, 2015ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE. Direitos humanos, cidadania e tuberculose na perspectiva da legislação brasileira. Brasília: OPAS, 2015.). Isso contribui efetivamente para a tranquilidade e prosperidade do tratamento, uma vez que a pessoa tem garantidos seu sustento e o da família.

A limitação social

Embora a doença seja milenar e muito esteja sendo feito para a mudança na cultura das pessoas frente a ela, percebemos que ainda persiste o preconceito em relação aos doentes, o que tende a dificultar ainda mais a experiência do adoecer:

As pessoas querem ficar longe de mim. A pessoa tem medo... Dá a tosse e não para, né, tem medo de pegar nelas, ficam me mandando ir no médico, já fui, uai Quando eu vou trabalhar eles não querem que eu volto mais no outro dia... As pessoas tão afastando de mim, foi essa doença, foi essa tosse. Tô esperando as pessoas me ligar até hoje... (E5)

O preconceito é bastante, por incrível que pareça, e tem pessoas que não falam né, fica de conversinha, “ai meu Deus do céu, e se ele tossir perto de mim”... Eu já escutei isso de muita gente. Por incrível que pareça foi pior o preconceito pelo lado da minha família, meus tios e tias. (E3.)

E têm algumas pessoas, igual meu amigo lá que sempre me cumprimentava e ontem ele foi pegar na minha mão e pegou na ponta dos meus dedos, eu achei estranho... Se incomodam... (E6)

Os indivíduos portadores de TB, buscando amenizar as dificuldades da convivência, estabelecem entre si posturas e atitudes para garantir a não “contaminação” dos seus familiares. Estas reforçam a representação de que a doença é excludente e solitária:

Mas também não fiz questão sobre nada né? Já que eu tô assim deixa eu me afastar, porque vai pegar nos outros e vão falar que sou culpado disso aí, e aqui em casa tem muita criança, você já viu! ”[...] Ela [a namorada] também se afastou, só que eu não esquentei a cabeça com isso não, só que é assim, assim será. (E4)

[...] eu não gosto porque... É igual minha filha, tô evitando contato com ela, porque eu li lá na pesquisa que depois de 15 dias que já passa a transmissão, tô morrendo de saudades dela, vou esperar mais... Mas é só essas coisas assim... (E6)

O preconceito faz parte do cotidiano das pessoas que têm a doença. Em resposta ao distanciamento em relação aos infectados, em um mecanismo de defesa pessoa, estes velam sua condição de doentes a fim de não sofrerem discriminação:

[...] Nunca contei pra ninguém do meu bairro, ninguém sabe... Só lá no meu serviço que eu sai e voltei, uns sabem outros não... Só isso que eu senti, indiferença. Ninguém sabe, minha mãe mora longe, minha irmã não mora perto de mim... Porque... Pra não chatear nem estragar o natal de ninguém. (E6)

A TB continua sendo uma doença temida, por trazer a imagem de algo socialmente digno de censura, visto que traz consigo a representação do estágio último de miséria humana, contribuindo para que persista no imaginário social o processo de estigmatização da TB e do tuberculoso. O doente com “mancha no pulmão” carrega uma marca que altera profundamente sua inserção no meio social (WHO, 2012______. Global tuberculosis report 2012. Geneva: WHO, 2012.).

Em suas reflexões, Sá (2007SÁ, A. M. M. O sentido do tratamento para tuberculose no cotidiano de doentes e de profissionais de saúde. 2007. 161 f. Tese (Doutorado em Enfermagem) - Escola de Enfermagem Anna Nery, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.) considera que as pessoas sadias (que não têm a doença) são naturalmente afastadas, numa tentativa de se preservar do adoecimento. Uma forma de se efetivar o afastamento da doença é separando utensílios e evitando o contato com os doentes. A autora pondera ainda que essa crença também é compartilhada pelo próprio doente, que considera ser esta uma forma eficaz de proteger aos demais e, indiretamente, de “garantir” que não serão responsabilizados por novos casos de TB, pois isso seria um peso a mais a suportar.

O afastamento que o preconceito provoca compromete a naturalidade da convivência, já que o doente não permite manifestações de carinho, contato físico ou qualquer outra forma de afeto que implique em proximidade com os outros (SÁ, 2007SÁ, A. M. M. O sentido do tratamento para tuberculose no cotidiano de doentes e de profissionais de saúde. 2007. 161 f. Tese (Doutorado em Enfermagem) - Escola de Enfermagem Anna Nery, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.).

A doença que propõe um (re)começo da vida

Nesta unidade de análise, evoca-se a representação que emergiu na fala dos sujeitos do estudo e que faz um contraponto na elaboração das demais representações, já que a doença, que ao mesmo tempo se investe do preconceito, de exclusão e abandono, permite também a construção de uma dimensão de reflexão da vida diante desse adoecer. A doença aparece como uma oportunidade de continuar a existir, mesmo que para isso demande várias mudanças no modo de operar a vida cotidiana, especialmente para aqueles já marginalizados antes do adoecer, o que é comum no perfil dessas pessoas:

Ela [a tuberculose] representou uma mudança muito radical, né, porque eu tive que parar com as bagunças né. Eu bebia, fumava, isso tudo ajuda a doença. E isso tudo eu tive que parar, pra me libertar, porque eu fumava até maconha. Creio que sim, porque eu virei muitas noites na rua, na friagem, sereno, noite mal dormida, sem se alimentar corretamente (E7).

A doença possibilita também a representação de libertação, de recomeço, como representado a seguir:

Mas o que de bom essa doença trouxe na minha vida... O melhor... Foi o sossego espiritual, né, é... Hoje, a gente é assim. Aonde que meu dedo apontava eu ia, não queria saber de nada não. Mas uma coisa de vai e vem sem futuro, sem nada. Hoje eu ando menos, mas sei onde quero chegar, tenho objetivos. A sociedade não vai cuidar de mim com bons olhos, agora, se eu me acidentar quando eu tiver trabalhando aí é outro caso, aí é um trabalhador... Outro esquema. (E6.)

Pôrto (2007PÔRTO, A. Representações sociais da tuberculose: estigma e preconceito. Revista de saúde pública . São Paulo, v. 41, p. 43-49, set. 2007. Suplemento 1.) considera que a doença se associa a dois extremos: de um lado, o ínfimo, que abarca a fome, a incapacidade de prover recursos mínimos para sua própria sobrevivência ou da família; de outro, os excessos, especialmente o consumo de bebida e as “farras”, que são os mais mencionados e deixam transparecer o comportamento desregrado, atribuindo, então, a essas causas o sentimento de vergonha por ter a doença.

Assim, não há de ser exagero afirmar que as diversas formas de representação da TB são expressões da vontade coletiva de reorganização da ordem social, colocada em xeque por um tipo de fenômeno que escapa aos instrumentos desenvolvidos pela sociedade com vistas à sua preservação e perpetuação. Por outro lado, é interessante observar como as imagens criadas, a partir da vivência coletiva da doença, se adequam, enquanto metáforas, ao tratamento de situações tidas socialmente como indesejáveis (WHO, 2012______. Global tuberculosis report 2012. Geneva: WHO, 2012.).

O que percebemos diante das representações elaboradas é que muitos pacientes conseguem se fortalecer ao experienciar a doença, reconstruindo sua história de vida. Contudo, refazer-se diante da fragilidade é difícil, e os profissionais de saúde precisam estar atentos e oferecer possibilidades, apoio e oportunidades, para que se concretizem as mudanças que fortaleçam a ação terapêutica. Essas oportunidades não devem ser favorecidas somente pelo setor da saúde, mas também é importante que se busque ajuda intersetorial, a fim de oferecer às pessoas com TB a mudança de vida favorável à sua melhora, especialmente porque, nesse momento da vida, essas pessoas se encontram excluídas e marginalizadas, necessitando de ajuda para retomar a sua autoestima.

É por meio dessa articulação de esforços e recursos dos estados, municípios e da União que conseguiremos fortalecer as políticas sociais em nosso país, organizando a oferta de serviços, programas e projetos especializados, destinados a famílias e indivíduos em situação de risco pessoal e social, como é o caso dos pacientes com TB.

Considerações finais

O presente estudo, ao trazer a perspectiva de elaborações a partir do senso comum ancoradas na teoria da representação social, revela sentidos da TB elaborados a partir de um grupo social que encontra tormentos na doença, mas que, surpreendentemente, também encontra o sentido de beneficiação na mesma, aflorando três representações mais expressivas, que são: a doença que pressupõe a condenação de vida, a doença que impõe a limitação da vida e a doença que propõe um (re)começo da vida.

Os achados revelam significados embasados em sofrimento e condenação que as pessoas com TB projetam em sua vida singular, evocando-se a importância de incluir no tratamento a família e outras pessoas relevantes do meio social do paciente, possibilitando, assim, a compreensão dos mecanismos de transmissão. Isso certamente favorecerá o convívio social e ajudará na promoção da autoconfiança durante o tratamento, especialmente porque alguns indivíduos apresentam reações positivas, uma vez que percebem no seu adoecimento uma grande motivação para a mudança de hábitos de vida como forma única de curar sua doença e alcançar a aceitação social.

Sugere-se, ainda, o investimento na educação permanente dos profissionais que estão na linha de frente do tratamento, que constitui um espaço necessário para que profissionais da APS possam construir uma práxis que os possibilite avançar no tratamento e acompanhamento da pessoa com TB.

Recomenda-se, por fim, a realização de novas pesquisas sob a ótica qualitativa, com vistas a ampliar as possibilidades de reflexões acerca da implicação das representações sociais no tratamento das pessoas com TB.11 E. A. e Silva participou da concepção, planejamento e execução do trabalho científico e escreveu o artigo, que é parte dos resultados da dissertação de sua mestrado. G.A. da Silva orientou a dissertação, participou da construção do artigo, em especial no suporte para análise dos dados e aprovou a versão final submetida para publicação.

Referências

  • BARDIN L. Análise de Conteúdo 6. ed. Lisboa: Edições 70, 2011.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Guia de vigilância epidemiológica Brasília: Ministério da Saúde, 2005 (Série A. Normas e Manuais Técnicos).
  • ______. Guia de vigilância epidemiológica Brasília: Ministério da Saúde, 2009 (Série A. Normas e Manuais Técnicos).
  • ______. Guia de Vigilância em Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2014.
  • ______. Perspectivas brasileiras para o fim da tuberculose como problema de saúde pública. Boletim epidemiológico Brasília, v. 47, n. 13, p. 1-15, 2016.
  • JODELET, D. As representações sociais Rio de Janeiro: UERJ, 2001.
  • MELCHIOR, R. et al. Desafios da adesão ao tratamento de pessoas vivendo com HIV/Aids no Brasil. Revista de saúde pública, São Paulo, v. 41, supl. 2, p. 87-93, dez. 2007.
  • MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec, 2010.
  • MOSCOVICI, S. Representações sociais: investigação em psicologia social. Petrópolis: Vozes, 2003.
  • ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE. Direitos humanos, cidadania e tuberculose na perspectiva da legislação brasileira Brasília: OPAS, 2015.
  • PILLER, R. V. B. Epidemiologia da tuberculose. Pulmão, Rio de Janeiro, v. 21, n. 1, p. 4-9, 2012.
  • PÔRTO, A. Representações sociais da tuberculose: estigma e preconceito. Revista de saúde pública . São Paulo, v. 41, p. 43-49, set. 2007. Suplemento 1.
  • SÁ, A. M. M. O sentido do tratamento para tuberculose no cotidiano de doentes e de profissionais de saúde 2007. 161 f. Tese (Doutorado em Enfermagem) - Escola de Enfermagem Anna Nery, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.
  • SANTOS, M. L. S. G. et al. Pobreza: caracterização socioeconômica da tuberculose. Revista latino-americana de enfermagem Ribeirão Preto, v. 15, n. esp., p. 762-767, set./out. 2007.
  • VIEIRA, D. E. O.; GOMES, M. Efeitos adversos no tratamento da tuberculose: experiência em serviço ambulatorial de um hospital-escola na cidade de São Paulo. Jornal brasileiro de pneumologia, Brasília, v. 34, n. 12, p. 1049-1055, dez. 2008.
  • WORLD HEALTH ORGANIZATION. Global tuberculosis control 2009: epidemiology, strategy, financing. Geneva: WHO, 2009.
  • ______. Global tuberculosis report 2012. Geneva: WHO, 2012.
  • ______. Global tuberculosis report 2015 Geneva: WHO, 2015. 192p.

  • 1
    E. A. e Silva participou da concepção, planejamento e execução do trabalho científico e escreveu o artigo, que é parte dos resultados da dissertação de sua mestrado. G.A. da Silva orientou a dissertação, participou da construção do artigo, em especial no suporte para análise dos dados e aprovou a versão final submetida para publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    17 Maio 2016
  • Aceito
    22 Jun 2016
PHYSIS - Revista de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: publicacoes@ims.uerj.br