Resumo
A discussão sobre as práticas profissionais no modelo obstétrico brasileiro torna-se potente quando é possível destacar a atuação de cada ator neste cenário. Objetivou-se neste estudo analisar os fatores motivacionais para mulheres buscarem a formação de doula e desenvolverem suas atividades profissionais. Trata-se de pesquisa qualitativa exploratório-descritiva, realizada com 13 doulas, participantes de formação específica, através de entrevistas individuais por telefone. Após a análise dos depoimentos, emergiram duas categorias: O motivo para a formação no curso de doula; Os grupos de referência como perspectiva para o trabalho das doulas. Evidenciou-se que experiências individuais com o próprio parto motivaram mulheres na busca desta formação e que o fortalecimento da profissionalização por meio da constituição de grupos é uma forma buscada pelas doulas para qualificar sua atuação na obstetrícia.
Palavras-chave:
doulas; atividade profissional; saúde da mulher.
Abstract
The discussion about professional practices in the Brazilian obstetric model becomes potent when it is possible to highlight the performance of each actor in this scenario. This study aimed to analyze the motivational factors for women seeking the formation of doula and to develop their professional activities. It is an exploratory-descriptive qualitative research, carried out with 13 doulas, specific training participants, through individual telephone interviews. After the analysis of the testimonies, two categories emerged: The reason for the formation in the doula course; and Reference groups as a perspective for the work of doulas. It was evidenced that individual experiences with the birth itself motivated women in the search for this formation and that the strengthening of professionalization through the constitution of groups is a form sought by the doulas to qualify their work in obstetrics.
Keywords:
doulas; professional role; women's health.
Introdução
A atenção ao parto no Brasil passa por um processo de modificação que exige discussão acerca da atuação dos profissionais da obstetrícia, bem como a participação da mulher neste cenário (AQUINO, 2014AQUINO, E. M. L. Para reinventar o parto e o nascimento no Brasil: de volta ao futuro.Cadernos de Saúde Pública. Rio de Janeiro, v. 30, Sup, p. S8-S10, 2014.; PATAH; MALIK, 2011PATAH, L. E. M.; MALIK, A. M. Modelos de assistência ao parto e taxa de cesárea em diferentes países.Revista de Saúde Pública. São Paulo, v. 45, n. 1, p. 185-94, 2011.). Ressalta-se que médicos, enfermeiros e obstetrizes são os profissionais legalmente habilitados para acompanhamento dos partos brasileiros (ANDRADE; LIMA, 2014ANDRADE, M. A. C.; LIMA, J. B. M. C. O modelo obstétrico e neonatal que defendemos e com o qual trabalhamos. In: BRASIL. Ministério da Saúde. Cadernos HumanizaSUS: humanização do parto e nascimento. Brasília: Ministério da Saúde: Universidade Estadual do Ceará, 2014, p. 19-46. ), reconhecidos pelos conselhos profissionais e Ministério da Saúde.
Nesse âmbito, a humanização do parto aparece como movimento que visa devolver à mulher seu papel de protagonista durante o período gestacional e parto, com menor intervenção profissional. Com isso, o parto no país passa a ser campo de disputa política entre médicos e enfermeiros, visto que o modelo tecnocrático é centrado no primeiro e as políticas de humanização buscam legitimar o segundo, na condução de ações durante o parto normal sem complicações. De tal modo, a obstetrícia como campo de atuação de profissionais diversos amplia sua relevância, principalmente pelo apoio normativo e político do Ministério da Saúde (MAIA, 2010MAIA, M. B. Humanização do parto: política pública, comportamento organizacional e ethos profissional. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2010.).
Esta discussão sobre humanização nos serviços de saúde brasileiros tem fomentado mudanças nas práticas profissionais, aliadas aos princípios do Sistema Único de Saúde - SUS, que visam à integralidade da assistência, equidade no acesso e participação social do usuário, possibilitando a criação de modificações no ambiente de trabalho que valorizem as relações entre usuários e trabalhadores (DINIZ, 2010DINIZ, C. S. G. Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos sentidos de um movimento. In: KALCKMANN, S. et al. (Orgs.). Nascer com equidade: humanização do parto e nascimento: questões raciais/ cor e de gênero. São Paulo: Instituto de Saúde, 2010, p. 53-71. ). Na área obstétrica é essencial a atuação profissional norteada pela humanização, com o intuito de desfazer a relação assimétrica de poder entre a parturiente e os cuidadores, o que potencializa o protagonismo da mulher no processo gravídico-puerperal e permite o cumprimento de direitos da usuária (NAGAHAMA; SANTIAGO, 2008NAGAHAMA, E. E. I.; SANTIAGO, S. M. Práticas de atenção ao parto e os desafios para humanização do cuidado em dois hospitais vinculados ao Sistema Único de Saúde em município da Região Sul do Brasil. Cadernos de Saúde Pública . Rio de Janeiro, v. 24, n. 8, p. 1859-1868, 2008.).
Também protagonistas neste processo de discussão, os movimentos sociais da área obstétrica ganharam visibilidade e espaço na construção das políticas públicas. Com isso, direitos de usuários foram inseridos nas normatizações oficiais e paulatinamente o diálogo entre profissionais, gestores e usuários tem sido propiciado (RATTNER et al., 2014RATTNER, D. et al. Os movimentos sociais na humanização do parto e do nascimento no Brasil. In: BRASIL. Ministério da Saúde. Cadernos HumanizaSUS: humanização do parto e nascimento . Brasília: Ministério da Saúde: Universidade Estadual do Ceará , 2014, p. 109-32.). Neste intuito, o Ministério da Saúde implementa a Rede Cegonha com estímulos para adoção de novas práticas pelas equipes de saúde obstétricas, enfocando a usuária do serviço como sujeito que tem poder de decisão acerca dos encaminhamentos terapêuticos delineados (FERREIRA JUNIOR et al., 2014FERREIRA JUNIOR, A. R. et al. A doula na assistência ao parto e nascimento. In: BRASIL. Ministério da Saúde. Cadernos HumanizaSUS: humanização do parto e nascimento . Brasília: Ministério da Saúde: Universidade Estadual do Ceará , 2014, p. 201-214. ).
Corroborando a tentativa de construir uma equipe obstétrica com qualificação do cuidado, a doula se apresenta como novo membro, mesmo sendo reconhecida na Classificação Brasileira de Ocupações apenas em 2013 (BRASIL, 2014_____. Ministério do Trabalho e Emprego. Classificação Brasileira de Ocupações. Disponível em: <http://www.mtecbo.gov.br/cbosite/pages/pesquisas/BuscaPorTitulo Resultado.jsf>. Acesso em: 23 jun. 2014.
http://www.mtecbo.gov.br/cbosite/pages/... ). Ela pode desempenhar funções importantes no pré-natal, parto e puerpério, desenvolvendo atividades de acompanhamento e preparação, que visem tornar o processo de parto e nascimento melhor vivenciado pela mulher e sua família (SILVA et al 2012SILVA, R. M. et al. Evidências qualitativas sobre o acompanhamento por doulas . no trabalho de parto e no parto.Ciência & saúde coletiva. Rio de Janeiro, v. 17, n. 10, p. 2783-2794, 2012.; MARQUES; PEREIRA NETO, 2010MARQUES, A. M. P.; PEREIRA NETO, M. R. Das medicinas tradicionais às práticas integrativas de saúde: caracterização dos recursos humanos nas práticas alternativas de saúde adotadas no Distrito Federal. Brasília: UnB/ObservaRH/NESP, 2010. ; LEÃO; OLIVEIRA, 2006LEÃO, V. M.; OLIVEIRA, S. M. J. V. O papel da doula na assistência à parturiente. REME - Revista Mineira de Enfermagem, v. 10, n. 1, p. 24-29, 2006.).
Doula é uma palavra de origem grega que significa mulher que serve. Historicamente, foi usada para descrever aquela que assiste a mulher em casa após o parto, apoiando no cuidado com o bebê e os afazeres domésticos, porém sua atuação está adquirindo vertente mais técnica, ancorada em saberes biomédicos, embora orientada pela humanização obstétrica (DONA, 2014DONA - Doulas of North América. Disponível em: <http://www.dona.org>. Acesso em: 23 jun. 2014.
http://www.dona.org... ). Resultados positivos para a área obstétrica podem ser associadas à atuação das doulas, especialmente na melhora da percepção do parto como evento natural por estas mulheres e na sensação de segurança delas e de seus familiares em relação ao processo gravídico (SILVA et al 2012SILVA, R. M. et al. Evidências qualitativas sobre o acompanhamento por doulas . no trabalho de parto e no parto.Ciência & saúde coletiva. Rio de Janeiro, v. 17, n. 10, p. 2783-2794, 2012.; PUGIN et al., 2008PUGIN, P. et al. Una experiencia de acompañamiento con doula a adolescentes en trabajo de parto. Rev Chil Obstet Ginecol, v. 73, n. 4, p. 250-256, 2008.; LOW; MOFFAT; BRENNAN, 2006LOW, L. K.; MOFFAT, A.; BRENNAN, P. Doulas as Community Health Workers: Lessons Learned from a Volunteer Program. Journal of Perinatal Education ,v. 15, n. 3, p. 25-33, 2006.; KOUMOUITZES-DOUVIA, 2006KOUMOUITZES-DOUVIA, J.; CARR, C. A. Women’s perceptions of their doula support. Journal of Perinatal Education, v. 15, n. 4, p. 34-40, 2006.).
Nesse contexto, percebe-se que a atenção ao parto e nascimento no Brasil é atributo profissional de médicos, enfermeiros e obstetrizes, no entanto, há alguns anos vem crescendo a presença profissional de doulas na cena obstétrica. Emerge o questionamento: o que ancora a procura de mulheres pela formação de doulas? Cientes da incipiência de estudos sobre doulas no Brasil, a presente pesquisa analisou os fatores motivacionais para mulheres buscarem a formação de doula e desenvolverem suas atividades profissionais.
Métodos
Estudo com abordagem qualitativa, do tipo exploratório descritivo (MINAYO, 2010MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 12. ed. São Paulo: Hucitec, 2010.), com a participação de 13 doulas que realizaram um curso de formação de 40 horas/aula no principal centro formador de doulas do Estado de São Paulo. Este foi escolhido por ser reconhecido pelos profissionais da área como um dos mais importantes do Brasil. O curso, realizado durante quatro dias, apresenta metodologia teórico-prático vivencial, por meio de aulas dialogadas e dramatizações relacionadas à gravidez e ao parto. Os assuntos abordados englobam: Resgate na confiança da mulher em parir; Anatomia e fisiologia básicas relacionadas ao parto; Assistência ao parto no mundo; Importância e papel da doula; Profissionalização da doula.
A coleta de dados ocorreu em 2013, inicialmente, por meio de pesquisa de todas as fichas de inscrição dos cursos realizados na instituição, compreendidos entre os anos de 2003 a 2012, totalizando 196 fichas. Posteriormente, foram sorteadas aleatoriamente 30 fichas, sendo realizado contato por telefone e mensagem eletrônica com essas doulas para a realização de entrevistas não estruturadas individuais via telefone. O primeiro telefonema buscava explicitar o objetivo da pesquisa e marcar horário e data mais conveniente para a doula participar da entrevista em outro momento. O número final de 13 sujeitos ocorreu após tentativas fracassadas de contato com as outras participantes sorteadas.
As entrevistas foram gravadas, transcritas na íntegra e tiveram duração média de 30 minutos, partindo das seguintes questões norteadoras: "Por quais motivos você realizou o curso de doula?" e "Você percebe algum tipo de ajuda no desenvolvimento do seu trabalho como doula?". O roteiro contemplou também características sociodemográficas e formação profissional.
Os dados obtidos por meio das entrevistas foram analisados pela técnica de análise de conteúdo na modalidade temática, envolvendo três etapas: (1) pré-análise: leituras realizadas sem descartar nenhuma parte, assegurando a apreensão geral do material; (2) exploração do material: categorização com recortes dos trechos de fala; (3) tratamento das informações (BARDIN, 2009BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2009.). A pesquisa possui sua fundamentação teórica calcada na Sociologia das profissões, que propiciou análise sobre os contínuos processos de mudança atinentes à ocupação das doulas no país (FREIDSON, 1994FREIDSON, E. Renascimento do profissionalismo: teoria, profecia e política. São Paulo: EdUsp, 1994.; ABBOTT, 1998).
Os discursos foram codificados com a letra D, acrescida do número atribuído a cada participante da pesquisa. Os preceitos da Resolução nº 466/12 do Conselho Nacional de Saúde, que dispõe sobre pesquisas com seres humanos (BRASIL, 2012BRASIL. Conselho Nacional de Saúde. Resolução 466/12. Dispõe sobre pesquisas com seres humanos. Brasília: Ministério da Saúde, 2012.), foram respeitados. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Processo nº 1309/2011).
Resultados e discussão
As informações sobre as características das doulas (Tabela 1) denotaram mulheres com média de idade de 30 anos, em união estável, católicas e da raça branca. As pesquisadas residem em sete Estados distintos da Federação, sendo São Paulo o mais frequente com sete sujeitos.
Percebeu-se que todas as doulas possuem formação universitária e renda pessoal mensal média de quatro salários mínimos. Na média de renda familiar mensal recebem sete salários mínimos. Saliente-se que oito delas mantêm atuação exclusiva como doula.
O motivo para a formação no curso de doula
Os discursos denotaram distintos motivos que levaram mulheres a buscar trabalhar em uma ocupação ainda pouco difundida como a doula. O desrespeito de alguns profissionais da área obstétrica aos desejos da parturiente torna o parto um processo mecânico. Esta situação é constante em relatos de doulas que vivenciaram problemas em seus partos e buscaram auxiliar outras mulheres após esta experiência negativa (FERREIRA JUNIOR et al., 2014FERREIRA JUNIOR, A. R. et al. A doula na assistência ao parto e nascimento. In: BRASIL. Ministério da Saúde. Cadernos HumanizaSUS: humanização do parto e nascimento . Brasília: Ministério da Saúde: Universidade Estadual do Ceará , 2014, p. 201-214. ).
Tudo começou na minha primeira gravidez, quando tive um parto o oposto do que eu tinha sonhado. Infelizmente o médico não respeitou meus desejos, os outros profissionais foram coniventes com a situação e minha família, nem eu, estávamos preparados para discutir sobre a situação. Quando soube do trabalho das doulas percebi que ali estava uma saída pra que eu ou outra mulher não sofrêssemos tanto no momento tão maravilhoso que é um parto. (D8)
Meu primeiro parto foi uma experiência difícil demais. Nada foi como planejei. Tudo foi modificado pelos médicos que me atenderam. Na hora não tinha como reclamar, mas depois me deu revolta, pois não me deram oportunidade de opinar sobre o que estava ocorrendo. (D3)
Muitas mulheres se submetem à violência obstétrica porque temem pelo bebê, pelo atendimento, pela condição de desigualdade, pois o profissional é o detentor do conhecimento e da habilidade técnica (WOLFF; WALDOW, 2008WOLFF, L. R.; WALDOW, V. R. Violência consentida: mulheres em trabalho de parto e parto.Saúde e sociedade. São Paulo, v. 17, n. 3, p. 138-151, 2008.). Esta violência pode ser visualizada no uso inadequado de tecnologias, procedimentos e intervenções desnecessários ou que vão de encontro às evidências científicas, bem como exclusão da mulher no processo de decisão sobre os encaminhamentos realizados (AGUIAR; D'OLIVEIRA, 2011AGUIAR, J. M.; D'OLIVEIRA, A. F. P. L. Violência institucional em maternidades públicas sob a ótica das usuárias.Interface. Botucatu, v. 15, n. 36, p. 79-92, 2011.).
São necessárias mudanças nas atitudes profissionais para evitar a violência institucional obstétrica e modificação na formação destes para que se empenhem em visualizar a humanização como contraponto a esta realidade (GOMES, 2014GOMES, A. M. A. Da violência institucional à rede materna e infantil: desafios e possibilidades para efetivação dos direitos humanos e redução da mortalidade. In: BRASIL. Ministério da Saúde. Cadernos HumanizaSUS: humanização do parto e nascimento . Brasília: Ministério da Saúde: Universidade Estadual do Ceará , 2014, p. 133-154. ). A origem do trabalho profissional está nas necessidades da sociedade ou de grupos que dela fazem parte. A ação profissional é estimulada para solucionar os problemas que provocaram estas necessidades (ABBOTT, 1998). E essa importância emerge no discurso das doulas participantes da pesquisa:
Jurei a mim mesma que faria o máximo para outra mulher não passar o que passei. Tive um parto muito ruim e trabalho para ajudar outras a não passar por isso (D9)
Escolhi seguir esta vida de doula para tentar mudar um pouco esta situação de problemas obstétricos no Brasil. Tanta mulher sofrendo, morrendo, tendo seus direitos retirados. É tão absurdo que percebi que podia da minha forma, pequena, mas com certeza, mudar um pouco esta realidade [...] (D12)
O desejo de ajudar outras mulheres parece ser o principal desencadeador de novas adeptas à ocupação de doula. Há também uma necessidade pessoal de superar situações negativas por elas vivenciadas (FERREIRA JUNIOR et al 2014FERREIRA JUNIOR, A. R. et al. A doula na assistência ao parto e nascimento. In: BRASIL. Ministério da Saúde. Cadernos HumanizaSUS: humanização do parto e nascimento . Brasília: Ministério da Saúde: Universidade Estadual do Ceará , 2014, p. 201-214. ; SILVA et al., 2011SILVA, R. M. et al. Práticas integrativas e complementares utilizadas por doulas no acompanhamento de parturientes. In: SILVA, R. M. et al. (Orgs.). Cuidado em Saúde: desafios e práticas. Fortaleza: EdUECE/ UNIFOR, 2011, p. 218-234.).
Este discurso é corroborado por pesquisas que atentam para as percepções de parturientes e familiares sobre os benefícios do trabalho da doula. Trabalho que envolve subjetividades, porém é essencial para relatos de boas experiências na vivência do parto e nascimento (STEEL et al., 2013STEEL, A. et al. The value of care provided by student doulas: an examination of the perceptions of women in their care. The Journal of Perinatal Education, v. 22, n. 1, p. 39-48, 2013.; STEVENS et al 2011STEVENS, J. et al. Midwives’ and doulas’ perspectives of the role of the doula in Australia: A qualitative study. Midwifery, v. 27, n. 4, p. 509-516, 2011.).
Os grupos de referência como perspectiva para o trabalho das doulas
Percebe-se, por meio das informações dos sujeitos da pesquisa, a importância dada ao grupo de referência a qual pertencem. O fato de um indivíduo pertencer ou não a um grupo pode modificar o modo com que alguns processos o atingem, tal que esse sentimento de pertencimento diferencia este grupo como referência ao participante (MERTON, 1970MERTON, R. K.Sociologia: teoria e estrutura. São Paulo: Mestre Jou, 1970.).
Isso as fortalece no âmbito profissional, tornando a ideia de trabalho coletivo mais forte que o individual no desenvolvimento das atividades:
Ser doula pressupõe não estar só, pois sempre contamos com ajuda de outra doula. Eu me sinto apoiada quando falo com uma colega para pedir auxílio, quando vou a um encontro e vejo outras que pensam parecido comigo e lutam pelas mesmas coisas. (D8)
[...] participar de um grupo com outras doulas foi essencial para o desenvolvimento do meu trabalho. Pude ver outras experiências, encontrar menos dificuldades pelas trocas que fazíamos. Troca de conhecimento, trocas de contatos. Tudo que era possível para melhorar nossa atuação. Por isso sempre ajudo no que posso qualquer doula que me procure. (D11)
Participar do curso de doula deu identidade comum a estas mulheres, pois a partir desta experiência elas deixaram de se perceber individualmente e começam a influenciar e ser influenciada por seus pares. A formação e interdependência de grupos ocupacionais reflete o desenvolvimento de tarefas que, quando agregadas, formam uma expertise defendida por aqueles que participam destes grupos. Eles fazem parte da organização social de uma profissão, com ligações variadas entre os membros, porém necessárias para sua manutenção (ABBOTT, 1998).
Quando participei do curso de doula percebi que ali existia um grupo que sonhava as mesmas coisas e que precisava se fortalecer para crescer cada vez mais. Aprendi a ser atuante nas discussões, audiências públicas, fóruns na internet. O importante é utilizar a rede de contatos para garantir que nossa voz seja ouvida e que as pessoas entendam o quanto podemos ajudar. (D4)
A participação em grupos amplia as possibilidades de diálogo entre pares, compartilhamento de experiências e reconhecimento de dificuldades comuns, potencializando nos integrantes segurança para vivenciar as situações obstétricas vindouras (CARNEIRO, 2011CARNEIRO, R. G. Cenas de parto e políticas do corpo: uma etnografia de práticas femininas de parto humanizado. 2011. 341 p. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP.). Houve discurso que denotou a heterogeneidade de ideias nos grupos, porém declaram que este sistema é importante para a manutenção e ampliação dos benefícios galgados por seus participantes.
No começo foi difícil me engajar nos grupos da internet e nos grupos que sempre vemos nos congressos. Mas não tem outro jeito de crescer como profissional, pois é muito importante aprender com outro que passa as mesmas situações que a gente. Aprende com os erros e com os acertos. (D9)
Ressalta-se que a constituição dos grupos sempre segue uma convergência cultural, possibilitando por meio de experiências cotidianas similares a agregação de indivíduos distintos, mas que atuam em lugares comuns (NAGAHAMA; SANTIAGO, 2008NAGAHAMA, E. E. I.; SANTIAGO, S. M. Práticas de atenção ao parto e os desafios para humanização do cuidado em dois hospitais vinculados ao Sistema Único de Saúde em município da Região Sul do Brasil. Cadernos de Saúde Pública . Rio de Janeiro, v. 24, n. 8, p. 1859-1868, 2008.). Mesmo entendendo que é a principal forma de entrada da mulher no grupo de doulas, existem falas que denotam preocupação com os cursos oferecidos para formação na área. O trecho da entrevista abaixo é claro em informar que talvez haja alguns cursos com melhor preparação e organização do processo de ser doula.
[...] quando entrei não tinha os cursos em todo local. Hoje em toda cidade tem curso e qualquer pessoa pode fazer. Até acho que isso é sinal de que estão valorizando o que fazemos, mas ao mesmo tempo me preocupo com a forma como estes cursos estão apresentando o processo de ser doula às pessoas. (D7)
Neste âmbito, as falas dos sujeitos desafiam os responsáveis pelos cursos ofertados para avaliar seu objetivo formativo. Também pressupõe necessidade de acompanhamento para normatização dos mesmos, evitando cursos com propostas muito distintas que impossibilitem convergências entre os mesmos. Outros sujeitos mostram que já existe em curso diferenciação no trabalho das doulas, por meio da construção de espaços profissionais próprios com o intuito de evitar conflito entre elas.
Acho que o sol nasceu pra todos, mas tem gente que se dedica mais que outros, por exemplo, eu vivo indo a congresso, fazendo mais cursos. Acho que isso dá um certo diferencial, até pelo motivo da mulher poder escolher qual doula ela quer que a acompanhe. Onde trabalho são três [doulas] e tentamos cada uma se especializar numa área. Uma ficou mais no pré-natal, a outra no parto e a outra no puerpério. Penso que foi inteligente da nossa parte fazer isso, pois não confunde a cabeça das mulheres, nem causa problemas entre nós. Cada uma conhece seu espaço e tenta respeitar. (D13)
[...] logo procurei fazer o curso, pois ninguém sabe do futuro. Vai que daqui uns dias exigem que só quem tenha curso pode atuar como doula. Melhor sempre estar na frente. E olha que pelas discussões que ouvi já tem gente pensando nisso. É só olhar os cursos que estão surgindo, cada um tentando ser diferente do outro. (D1)
Essas falas apontam que o processo como se está constituindo a profissão de doula no Brasil não é diferente das outras categorias profissionais, pois se inicia certa reserva de mercado com direito de controlar a prestação de determinado serviço, a partir dos conflitos jurisdicionais, surgidos entre pares que começam a desempenhar atividades específicas no seu bojo de atuação, na tentativa de diferenciação dos demais (ABBOTT, 1998).
As disputas e os conflitos nas jurisdições constituem o processo de desenvolvimento profissional (ABBOTT, 1998). A expertise é utilizada como ferramenta de diferenciação profissional, dando autoridade àquele que a possui. Isso legitima as diferentes alegações de conhecimento que buscam dar poder a quem a possui, em detrimento dos outros que estão fora desta lógica (FREIDSON, 1994FREIDSON, E. Renascimento do profissionalismo: teoria, profecia e política. São Paulo: EdUsp, 1994.).
Considerações finais
No processo de mudança do modelo obstétrico brasileiro, fomentado nas bases da humanização, os profissionais se deparam com novidades, dentre elas, a presença da doula na cena do parto. Há motivações variadas para uma mulher se tornar doula, denotadas nas falas que remetem a experiências traumáticas no próprio parto, bem como narrativas de benefícios em vivências de parto e nascimento com a participação de doulas.
O fortalecimento da profissionalização das doulas por meio da constituição de grupos foi explicitado em discursos variados e também a tentativa de construção de bases profissionais próprias, diferenciando-as de outras ocupações. Isso melhora a perspectiva profissional como doula, auxiliando-a na inserção como nova integrante da equipe cuidadora obstétrica.
Salienta-se que o estudo possui limitações por discutir a vivência de um grupo específico de doulas, porém esta situação é minorada por se tratar de egressas de um importante centro formador no país, que possibilita novos olhares acerca da atuação deste novo ator no cenário do parto brasileiro.
Outras pesquisas sobre as doulas são necessárias, visto que paulatinamente elas têm alcançado maior importância ao propiciar discussões acerca do modelo obstétrico vigente e as possibilidades de mudanças nas práticas profissionais.11 A. R. Ferreira Junior participou da concepção do estudo, realizou a pesquisa de campo, a análise dos dados e a redação do artigo. N. F. de Barros orientou o estudo, contribuiu com a análise dos dados e a redação final do artigo.
Agradecimentos
À coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, financiadora da bolsa de pós-graduação que possibilitou a realização da pesquisa.
Referências
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- 1A. R. Ferreira Junior participou da concepção do estudo, realizou a pesquisa de campo, a análise dos dados e a redação do artigo. N. F. de Barros orientou o estudo, contribuiu com a análise dos dados e a redação final do artigo.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Oct-Dec 2016
Histórico
- Recebido
07 Dez 2015 - Aceito
29 Jun 2016