Resumo
O artigo objetiva compreender aspectos da formação de um estilo de pensamento que convergem para a ideia da cirurgia como uma forma de parto simples e de poucos riscos, a partir da análise de relatos de obstetras do Rio de Janeiro sobre a utilização da cesariana. Guiados pelo método de relatos orais, discutimos a construção de uma prática obstétrica que vê a cesariana como indicação adequada para qualquer situação de parto; a agregação de diferentes valores à cesariana, a partir de seu desenvolvimento técnico, e a representação dos obstetras sobre a normatização de seu trabalho. Concluímos que o processo de normalização da cesárea como forma de nascer se relaciona ao desenvolvimento de um estilo de pensamento da comunidade de práticas dos obstetras, que opera um deslizamento do conceito de cesariana de um procedimento cirúrgico para uma forma de parto normal.
Palavras-chave:
parto; cesárea; médicos; obstetrícia; Brasil; estilo de pensamento; normalização
Abstract
This work analyzes the descriptions of obstetricians from the city of Rio de Janeiro regarding the use of the caesarian section. We aimed to understand the aspects related to the formation of a thinking style that coalesces in the idea of the surgery as a simple and low-risk form of delivery. By using the method of oral narratives, we discuss the construction of an obstetric practice that sees the caesarian section as a suitable option for any kind of labor situation; the association of different values with the caesarian section based on its technical development; and the representations of obstetricians regarding the regulation of their work. We conclude that the normalization of the caesarian section as a form of giving birth is related to the development of a thinking style by the community practice of obstetricians. This community shifts the very concept of the caesarian section from a surgical procedure to a form of regular birth.
Keywords:
birth; labor; cesarean section; physicians; obstetrics; Brazil; thinking style; normalization
Introdução
A cesariana é um procedimento cirúrgico que atende a diferentes necessidades e engendra significados que vão além do ato terapêutico. A ampla utilização desta cirurgia é preocupação mundial. No Brasil, em 2013, a cesárea representou 55% dos nascimentos - 86% no setor privado e 46% no público (MS/SVS/DASIS, 2013). Pela proporção que adquiriu, essa cirurgia tem sido objeto de controvérsias nos meios profissionais, políticos, acadêmicos e na sociedade civil (FAÚNDES; CECATTI, 1991FAÚNDES, A.E.; CECATTI, J.G. Operação cesárea no Brasil: incidência, tendência, causas, conseqüência e propostas da ação. Cad. Saúde Pública, v. 7, n. 2, p. 150-173, 1991.; BELIZÁN et al., 1999BELIZÁN, J.; ALTABHE, F.; BARROS, F.; ALEXANDER, S. Rates and implications of caesarean sections in Latin America: ecological study. BMJ, v. 319, n. 7.222, p. 1397-1402, 1999.; LEÃO et al., 2013LEÃO, M.R.C.; RIESCO, M.L.G.; SCHENK, C.A.; ANGELO, M. Reflexões sobre o excesso de cesarianas no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, v. 18, n. 8, p. 2395-2400, 2013.; FERRARI, 2014FERRARI, J.O. Autonomia da gestante e o direito à cesariana a pedido: a escolha da via de parto deve ser um direito das mulheres e não uma imposição autoritária da burocracia estatal, cientificamente inconsistente. Curitiba, PR: Editora CRV, 2014. ; RAMIRES DE JESUS et al., 2015RAMIRES DE JESUS, N.; PEIXOTO-FILHO, F.M.; LOBATO, G. Caesarean rates in Brazil: what is involved? BJOG, v. 22, n. 5, p. 606-609, 2015.).
Os obstetras são os profissionais que, predominantemente, realizam a assistência ao parto no Brasil.11A cesariana pode ser realizada por médicos não obstetras, mas é nos meandros da especialidade que aspectos técnicos do procedimento se consolidam. Alguns estudos exploram como as práticas, atitudes e preferências desses profissionais participam das estatísticas de cesariana (FAÚNDES; CECATTI, 1991FAÚNDES, A.E.; CECATTI, J.G. Operação cesárea no Brasil: incidência, tendência, causas, conseqüência e propostas da ação. Cad. Saúde Pública, v. 7, n. 2, p. 150-173, 1991.; DE MELLO E SOUZA, 1994DE MELLO E SOUZA, C. C-Sections as ideal birth: the cultural construction of beneficience and patients rights in Brazil. Cambridge Quarterly of Healthcare Ethics, n. 3, p. 358-66, 1994.; FAÚNDES et al., 2004; FERRARI; LIMA, 2010FERRARI, J.; LIMA, N.M. Atitudes dos profissionais de obstetrícia em relação à escolha da via de parto em Porto Velho. Revista Bioética, v. 18, n. 3, p. 645-658, 2010. ; HADDAD et al., 2011HADDAD, S.E.; MAERRAWI, T.; CECATTI, J.G. Estratégias dirigidas aos profissionais para a redução das cesáreas desnecessárias no Brasil. Rev. Bras. Ginecol. Obstet, v. 33, n. 5, p. 252-262, 2011.; CHACHAM, 2012CHACHAM, A.S. Médicos, mulheres e cesáreas: a construção do parto normal com “um risco” e a medicalização do parto no Brasil. In: JACÓ-VILELA, A.M.; SATO, L. (Orgs.). Diálogos em psicologia social. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2012, p. 420-451.). Figuram como questões a formação médica que privilegia a cirurgia, as ideias de menor risco associado à cesárea e a imputação a uma escolha da mulher. Obstetras entrevistados por Chacham (2012CHACHAM, A.S. Médicos, mulheres e cesáreas: a construção do parto normal com “um risco” e a medicalização do parto no Brasil. In: JACÓ-VILELA, A.M.; SATO, L. (Orgs.). Diálogos em psicologia social. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2012, p. 420-451.) atribuem a realização da cesariana à preferência e à solicitação das mulheres; essa preferência tem sido contestada em estudos com usuárias do setor público e do privado (POTTER et al., 2001POTTER, J.; BERQUÓ, E.; PERPÉTUO, I.G.H.O.; LEAL, O.F.; HOPKINS, K.; SOUZA, M.R. et al. Unwanted cesarean sections among public and private patients in Brazil: prospective study. BMJ, v. 323, n. 7.322, p. 1155-8, 2001.; DIAS et al., 2008DIAS, M.A.B.; DOMINGUES, R.M.S.M.; PEREIRA, A.E.; FONSECA, S.C.; GAMA, S.G.N.; THEME-FILHA, M.M. et al. Trajetória das mulheres na definição pelo parto cesáreo: estudo de caso em duas unidades do sistema de saúde suplementar do estado do Rio de Janeiro. Ciênc. Saúde Coletiva, v. 13, n. 5, p. 1521-1564, 2008. ), os quais discutem como os obstetras promovem uma cultura intervencionista, em que são reforçados os medos das mulheres em relação ao parto e superestimada a segurança da cesariana (HOPKINS, 2000HOPKINS, K. Are brazilian women really choosing to delivery by cesarean? Soc. Sci. Med, v. 51, n. 5, p. 725-740, 2000. ). No estudo de Dias e Deslandes (2004DIAS, M.A.B.; DESLANDES, S.F. Cesarianas: percepção de risco e sua indicação pelo obstetra em uma maternidade pública no Município do Rio de Janeiro. Cad. Saúde Pública, v. 20, n. 1, p. 109-116, 2004. ), obstetras são de opinião que o procedimento cirúrgico é mais seguro e permite maior domínio do profissional sobre o parto (CHACHAM, 2012; DIAS; DESLANDES, 2004). Tesser et al. (2011TESSER, C.D.; KNOBEL, R.; RIGON. T.; BAVARESCO, G.Z. Os médicos e o excesso de cesárias no Brasil. Sau. &Transf. Soc, v. 2, n. 1, p. 4-12, 2011. ) propõem que se analise a relação médicos-excesso de cesarianas desde uma perspectiva diferenciada, que explore como se constituem a comunidade de práticas e o estilo de pensamento que promovem a hegemonia de um paradigma tecnocrático na assistência ao parto. Seguindo esta pista promissora e inspirados nos estudos de Fleck (2010FLECK, L. Gênese e desenvolvimento de um fato científico. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010. ) sobre a organização do mundo científico e da natureza de suas atividades, voltamos nosso olhar para a cesárea entre aqueles que a executam, e mais, entre aqueles que participam do sistema de referência do estilo de pensamento.
Para Fleck, grupos de especialistas em processo de interação sociocultural desenvolvem estilos de pensamento específicos em relação à forma de trabalho e seus objetos de pesquisa. O grupo que partilha os mesmos estilos de pensamento - por ele caracterizado de coletivo de pensamento - produz, utiliza e ajuda a consolidar conhecimentos e práticas específicas sobre um determinado problema. Estilos de pensamento e práticas se constroem e se consolidam no mesmo processo em que atores alcançam posições de destaque nas comunidades científicas, angariando reconhecimento e credibilidade, que são buscados a partir de investimentos acadêmicos e extra-acadêmicos. Instituir e consolidar técnicas e práticas reforça as posições no campo científico e produz ganhos econômicos, sociais e culturais mais amplos. Por sua vez, a valoração social dos atores relacionados a uma prática determinada amplia e estabiliza essa mesma prática (FLECK, 2010FLECK, L. Gênese e desenvolvimento de um fato científico. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010. ).
Em relação aos especialistas em obstetrícia, o investimento no desenvolvimento da técnica e da prática da cesárea acabou por favorecer a ampliação de seu uso; o aperfeiçoamento e a difusão da prática da cesariana promoveram a acumulação do capital sociocientífico, mobilizado por esses obstetras para o reconhecimento de si e de sua técnica (NAKANO et al., 2016NAKANO, A.R.; BONAN, C.; TEIXEIRA, L.A. Cesárea, aperfeiçoando a técnica e normatizando a prática: uma análise do livro Obstetrícia, de Jorge de Rezende. História, Ciências, Saúde. Manguinhos, v. 23, n. 1, p. 155-172, 2016.). Os obstetras são, portanto, participantes privilegiados da rede de difusão da cesariana, atuam de modo expressivo na produção da técnica e dos valores a ela associados, ao mesmo tempo que são produtos das mesmas técnicas e valores. Eles compartilham e reiteram o estilo de pensamento da sua comunidade de práticas (FLECK, 2010FLECK, L. Gênese e desenvolvimento de um fato científico. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010. ; CAMARGO JR., 2002CAMARGO JR., K. The Thought Style of Physicians: Strategies for Keeping Up with Medical Knowledge. Social Studies of Science, v. 32, n. 5-6, p. 827-855, 2002. ).
Associadas a essa importante ferramenta para a análise da difusão social da operação cesariana, as proposições teórico-analíticas que enfocam trajetórias, usos e efeitos sociais dos objetos científicos podem ser de utilidade para uma interpelação das técnicas e tecnologias implicadas na operação cesariana como atores em uma rede complexa de relações que envolve humanos e não humanos, que se influenciam, modificam-se e se coconstituem (APPADURAI, 2008APPADURAI, A. A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural. Niterói: EDUFF; 2008. ; OUDSHOORN; PINCH, 2005OUDSHOORN, N.; PINCH, T. (Orgs.). How users matter: the co-construction of users and technology. Massachusetts: MIT Press, 2005, p. 1-25. ).
Em estudos precedentes, observamos que há um estilo de pensamento médico-obstetra materializado em um conjunto de práticas, técnicas, tecnologias e saberes que cria disposições para o entendimento da cesariana como um modo normal de nascer. Em oposição ao sentido do rotineiro ou típico, usamos a expressão normal com a acepção atribuída por Canguilhem (2009CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. 6. ed. 2. reimp. Trad. Mana Thereza Redig de Carvalho Barrocas. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2009. 154 p.), que postula que o termo é ao mesmo tempo descritivo e prescritivo, e simultaneamente define um fenômeno e lhe atribui um juízo de valor. Discutimos como esse processo se construiu no tempo, com a difusão e os efeitos que o estilo de pensamento médico-obstétrico brasileiro produziu em múltiplas arenas sociais, em destaque, nas práticas assistenciais nas maternidades e na formação dos profissionais médicos nas escolas de obstetrícia (NAKANO et al., 2015_____. A normalização da cesárea como modo de nascer: cultura material do parto em maternidades privadas no Sudeste do Brasil. Physis, v. 25, n. 3, p. 885-904, 2015. ; NAKANO et al., 2016).
Neste artigo, analisamos relatos de médicos obstetras formadores de opinião em sua especialidade sobre a utilização da cesariana. O objetivo foi contribuir para a compreensão de como se forma uma comunidade de práticas e um estilo de pensamento que concorrem para a ideia da cirurgia cesariana como um “parto” e a normalização da cesárea como forma de nascer.
Método
Realizamos estudo com método de relatos orais (QUEIROZ, 1987QUEIROZ, M.I.P. Relatos Orais: Do “indizível” ao “Dizível”. São Paulo: Centro de Estudos Rurais e Urbanos. Departamento de Ciências Sociais-U.S.P, 1987.) cujos sujeitos da pesquisa foram médicos obstetras do Rio de Janeiro formadores de opinião na comunidade profissional. Formadores de opinião são aqueles que, dentro de uma especialidade, atuam como professores, palestrantes, editores de revistas especializadas e autores de artigos e livros utilizados pelos profissionais. Kravitz et al. (2003KRAVITZ, R.L.; KRACKHARDT, D.; MELNIKOW, J.; FRANZ, C.E.; GILBERT, W.M.; ZACH, A. et al. Network for change? Identifying obstetric opinion leaders and assessing their opinions on caesarean delivery. Social Science & Medicine, v. 57, n. 12, p. 2423-2434, 2003.) os identificam como aqueles profissionais que estão aptos a falar sobre algo e exercer influência em outros de sua classe de especialistas. Levantamos nomes de obstetras em sites de escolas médicas e de eventos científicos da especialidade e buscamos indicações e contatos desses profissionais na associação de classe. Foram incluídos obstetras que são docentes em escolas médicas, representantes de associações de classe e/ou atuam na gestão de serviços públicos ou privados. Trinta obstetras foram convidados a participar da pesquisa através de contato telefônico, e-mail ou pessoalmente. Quatorze não responderam ao contato, três se recusaram a participar e dois não tiveram disponibilidade de tempo. Finalmente, entrevistamos 11 especialistas, que se dividiraam em três grupos, segundo a época de formação em medicina: três concluíram seus estudos na década de 1960; quatro, na década de 1980; e quatro, a partir de 1999.
As entrevistas, realizadas em seus locais de trabalho no ano de 2014, foram guiadas por pauta temática que tinha como eixos: história de sua formação e atuação como profissional obstetra; experiências e percepções às diversas práticas de parto; e questões sobre a formação dos obstetras e a regulação da profissão hoje. As entrevistas foram gravadas e transcritas e, posteriormente, submetidas à análise de conteúdo temática (GOMES, 2007GOMES, R. Análise e interpretação de dados de pesquisa qualitativa. In: MINAYO, M.C.S. (Org.). Pesquisa Social: teoria, método e criatividade. 25. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.). Na apresentação dos resultados, os participantes são identificados com código da pesquisa seguido pelo período de conclusão da graduação em medicina, e as expressões entre aspas ou recuadas no texto se referem a excertos das falas dos entrevistados. A pesquisa foi aprovada por Comitê de Ética em Pesquisa, sob CAAE nº 18768813.0.0000.5269.
Resultados
Em maioria, os obstetras são provenientes de faculdades públicas (9). As idades variaram entre 33 e 77 anos. Dois obstetras estão aposentados da prática clínica, entretanto, todos atuam em atividades de formação na especialidade. Atualmente, um obstetra trabalha exclusivamente no setor público; dois, somente no setor privado; e seis, nos dois setores. Entre os do setor privado, apenas três têm convênios com planos de saúde.
Oito entrevistados são autores de livros ou capítulos de livro e todos têm artigos publicados em periódicos da especialidade. Encontramos currículos de nove deles na Plataforma Lattes. Ao analisá-los, constatamos importante comprometimento com a comunidade de obstetras, envolvimento na organização de eventos científicos e cursos, entrevistas e manifestações públicas em assuntos do interesse dos especialistas, atuação em organismos de representação de classe.
Saber para agir, agir para saber: a construção e o desenvolvimento da práxis obstétrica
Os entrevistados compartilham a ideia que a obstetrícia se aprende na prática. O conhecimento teórico é ponto de partida, mas é na prática da profissão que se desenvolverá o saber que habilita avaliar e criticar, aceitar ou contestar, incorporar ou refutar os postulados do ofício. É também na prática que se consolidam os regimes de verdades que nortearão seu modo de agir. “Colocar a mão na massa”, ainda durante a formação universitária, acompanhar partos e participar de cesarianas fazem parte do processo que torna o profissional pronto para atuar em quaisquer circunstâncias.
Quem tem mais prática resolve muito mais. Tem que ir vivendo isso para aprender. Você pode ler muito, pode ser um doutor em tudo, mas pode não saber fazer um parto. Porque você aprende ali [na prática]. Se você está no ambulatório vai aprender com o colega resolutivo que está no ambulatório, mas você tem que fazer. Outra parte muito boa é você ver. Então quando você está de plantão, tem um colega que tem mais experiência, se você o vê fazer o parto, ou a cesariana, você vai guardando muita coisa. Se eu tenho uma cirurgia e entro de instrumentador, quando o principal sai, eu já vou passar para o segundo auxiliar, entendeu? Quando eu estou no 2º auxiliar, o 1º já deixa eu dar uns pontinhos. E aí começa todo o cerco de aprendizado a longo e médio prazo (E07-1960).
Não se nasce obstetra a partir dos bancos da faculdade; torna-se obstetra nos hospitais e maternidades, desenvolvendo a disposição para agir. Na classificação nativa, há dois modos de ação para o obstetra, um “clássico” ou “antigo” e outro “moderno”, identificado como a “nova obstetrícia” - em ambos os casos, estar assistindo a partos é estar pronto para fazer algo. No primeiro, prevalece o obstare, o “estar junto”, observando e acompanhando a evolução do trabalho de parto. Nesse modo de agir, no curso da assistência, o obstetra decide o momento e o tipo de intervenção necessária, embasado em uma lógica de “corrigir” o processo de nascimento quando ele foge dos parâmetros médicos. São diversas as intervenções possíveis: ruptura de membranas, episiotomia, aplicação de fórceps. Na nova obstetrícia, prevalece a lógica de agir antecipadamente, de modo a promover um nascimento “na melhor condição possível”; com isso, aquelas intervenções acabam substituídas pela solução cirúrgica para o parto. A cesariana é o emblema da “nova obstetrícia”, enquanto a “operatória vaginal” é típica da obstetrícia clássica. Esta última perde sentido diante daquela primeira: na lógica biomédica, a cirurgia é mais segura, proporciona maior controle sobre o nascimento e protege dos riscos que outras intervenções podem oferecer.
Quando eu me formei eu já sabia operar, eu já sabia fazer parto pélvico, passar fórceps, fazer isso tudo. A faculdade te dá, vamos dizer assim, o cabedal científico, teórico, mas aonde eu aprendi mesmo foi nas emergências obstétricas (E05-1980).
A UERJ sempre foi uma escola muito vaginalista. Era conhecida por professores que eram todos grandes aplicadores de fórceps, faziam manobras, então eram obstetras de uma escola antiga. Tinham uma noção muito grande naquele serviço, que acho que marcou a minha geração que passou lá, de como é importante você ser hábil na operatória obstétrica. Nesse caso, operatória não de fazer cesariana, mas operatória de você saber fazer o fórceps, de você saber as manobras (E01-1980).
Os obstetras mais velhos têm a memória do tempo que o obstare era o modo prevalente de atuação do profissional e percebem o declínio da obstetrícia clássica. Para formar um profissional, contam, era necessário grande investimento de tempo, com acompanhamento de muitos partos, contato com diversos tipos de complicações, aprendizado de várias técnicas e intervenções de rotina e emergenciais, até que sua ação se tornasse “medular”. As gerações mais jovens, dizem, têm menor disposição e possibilidade de acompanhar partos vaginais e vai longe o tempo em que se desenvolvia aquela “veia obstétrica”, em prontidão para agir segundo as necessidades, a cada momento. Nesse modelo antigo, o momento fazia o obstetra; no modelo da nova obstetrícia, o obstetra faz o momento: a solução cirúrgica está disponível para todos os partos, é o agir cirúrgico que se torna “medular”. Essas narrativas sobre práticas “ultrapassadas” e “modernas” perpassam todos entrevistados e imprimem uma visão evolutiva da obstetrícia médica, cujo progresso ambicionam acompanhar. O agir, embora em momentos diferentes, é parte inerente da obstetrícia: o obstetra antigo tinha conhecimento para agir quando fosse a hora, ao longo do trabalho de parto; o novo obstetra age para saber de antemão - dirigir e controlar - o curso dos acontecimentos, impedindo o surgimento de contratempos.
Você tem obstetra que sabe lidar muito bem com diabéticas grávidas, hipertensas grávidas, cardiopatas grávidas, mas não sabe acompanhar um parto, não sabe fazer um fórceps de alívio, porque nunca viram. Então eu vejo que a obstetrícia como ciência cresceu, mas como arte não. Quando eu digo arte eu digo é a parte do parto em si, o manuseio. Não aquela arte obsoleta, de poder fazer fórceps altos, grandes extrações... (E03-1960).
Evolução da técnica da cesariana, agregação de valores e alistamentos
A crescente utilização de técnicas e tecnologias para intervir no parto é entendida como evolução inerente e desejada da ciência obstétrica. Incorporar ativamente tecnologias em sua prática é questão de compromisso da obstetrícia, visando melhorar as condições de parto. Críticas à ampliação de uso da cesárea provocam reações.
Eu ficava muito incomodado em deixar de lado todos os avanços, tudo que foi sendo incorporado. Então, agora tem que nascer como nascia 100 anos atrás?!! Porque que em cardiologia não é assim, em cirurgia não é assim... [Ninguém diz] ‘não vamos operar mais ninguém por laparoscopia, por robô, porque nunca foi assim’. [Mas dizem] ‘agora o natural é um parto sem intervenção, não pode ter episio, não pode ter mais nada, porque tudo faz mal.’ Por que tudo faz mal? Não pode monitorar o feto... não pode nada? (E09-1980).
A cesárea é apresentada como emblema da evolução da obstetrícia. Recursos como anestesia, antibióticos, analgésicos, técnicas e materiais de sutura contribuíram para melhorar resultados da cesárea e mitigaram riscos associados ao procedimento. Entretanto, para que a cirurgia tivesse “boa aceitação”, se tornasse “trivial” e, assim, uma “prática preferencial”, foram cruciais os melhoramentos da técnica cirúrgica em si, como o tipo de incisão e a forma de cortar e suturar os planos cirúrgicos, visando reduzir o seu tempo e o sangramento.
O protagonismo brasileiro em inovar a técnica da cesárea é reivindicado pelos obstetras. Embora citem novidades na forma de operar nas duas últimas décadas - como a técnica de Misgav Ladah, inventada em Israel -, essas não suplantam as vantagens da “técnica preferente” de Jorge de Rezende, obstetra brasileiro de referência. Rezende propôs a substituição da incisão longitudinal pela incisão segmentar baixa - mudança com impactos clínicos, que colaborou também para minimizar (ao menos visualmente) o sentido de cirurgia desse modo de nascer.
Modéstia à parte, a cesárea feita no Brasil, introduzida pelo Rezende, é a melhor do mundo! Rezende que introduziu a incisão Pfannenstiel, antes era aquela horrível! É a melhor técnica de cesárea do mundo. Com cesárea é muito fácil de fazer o parto (E11-1960).
Eu acho que como formador, como educador cabe tentar passar aos alunos a melhor doutrina, a melhor técnica. Eu acho que nisso a gente está à frente de outros países, equiparados à cirurgia plástica brasileira, que é considerada uma das melhores. Em termos cirúrgicos da cesárea, eu não conheço outro lugar que se faça de forma tão bem como aqui (E05-1980).
A simplificação do procedimento, a trivialidade, a segurança e a familiaridade com a cirurgia de fazer nascer, desde o período de graduação, promovem a disposição de incorporação da cesariana à prática obstétrica. É um procedimento cirúrgico que “deu certo” e teve “boa aceitação”.
A técnica cirúrgica passa a alistar múltiplos regimes de valor - estéticos, sociais, mercantis, jurídicos -, abrindo margem para outros arranjos sociotécnicos, como a cesariana agendada, a proteção contra litígios, o nascimento roteirizado, limpo e ordenado.
Se a cesárea não fosse uma cirurgia de boa aceitação não adiantava a comodidade. Então reúne um monte de coisas, a comodidade e até o aspecto estético. Já programa, chega a família, não vai de viagem uma sexta para o fim de semana, e pronto! Então a cesárea ficou trivial. Eu acho que a técnica da cesárea, ela foi muito simplificada pelos brasileiros (E09-1980).
Os valores estéticos relacionados à cesariana assumem diferentes expressões. O aperfeiçoamento da técnica permite uma “cicatriz bonita”, que “não vai aparecer”, que não marca. A “cicatriz feia, horrível” da episiotomia é eliminada. A “mulher acordadinha, perfeita” durante o nascimento é produto da evolução das técnicas cirúrgicas (rapidez, roteirização, previsão) e anestésicas. A cesariana ordena a cena do parto, elimina o caos dos gritos, descontroles, sangue e secreções do parto vaginal; promove uma nova estética do nascimento que se pretende mais humanizada, socializável e vendável.
Na década de 60 era éter que se usava, dormia a mulher, três dias, e o obstetra até, às vezes, dormia também. Era anestesia geral. Hoje é tudo na raque, a mulher fica acordadinha, perfeita. É uma anestesia ótima, não sente dor nenhuma, está lá participando, com o marido... Quer dizer, a cesárea não tira a humanização do parto (E07-1960).
Dizem que episio dá uma cicatriz feia, às vezes, horrível! Então faz cesárea, que dá uma cicatriz bonitinha. É o país da estética. Quando era aquela cicatriz longitudinal, era um lixo aquilo. Se fosse longitudinal, a cesárea não vingaria mesmo! Que ela é horrível! O grande avanço da escolha da cesárea foi essa cicatriz que fica escondidinha aqui (E11-1960).
Nos anos 60, estava surgindo o biquíni e a cesariana estava com cicatriz vertical, tinha uma incompatibilidade. A mulherada não queria cesárea, porque deixava uma cicatriz que claramente marcava. Uma das coisas para vender a cesariana é que também ela vai deixar você com uma cicatriz bonita, o corte é baixinho, não vai aparecer. É claro que isso faz parte de um pacote de venda! (E09-1980).
A agregação desses valores não clínicos minimiza o sentido de evento cirúrgico, tornando a cesárea condizente e contextualizada aos valores de sua época e propiciando a sua normalização.
Cesárea: o trabalho de parto do obstetra e a especificidade da profissão
O parto vaginal é evento que pode acontecer independente da intervenção de outrem, “uma coisa natural, fisiológica, senão índio não tinha filho”. Porém, à medida que estilos de pensamento da biomedicina se fixam, o parto se desnaturaliza, é capturado pelos dispositivos de cálculo e gestão de riscos e se torna alvo de controle e intervenções médicas.
A gravidez é a maior aventura a que se lança o animal. É uma aventura! Porque a gravidez é uma coisa normal, mas quanto mais você estuda, mais começa a ver: como aquilo pode dar certo? Nasce no táxi, nasce no ônibus, nasce na floresta, mas o obstetra especialista é aquele que domina normalmente o parto. Então tem que acompanhar o tempo todo. Hoje em dia tem a tecnologia, você põe o aparelho, mas também tem que acompanhar... (E07-1960).
Hoje em dia você tem questões de apuramento diagnóstico que já coloca muitas pacientes no rol de alto risco. Porque antes eram pacientes normais porque não tinham diagnóstico. A partir do diagnóstico, elas já viram pacientes de alto risco (E05-1980).
O “apuramento diagnóstico” e a previsão daquilo que “pode dar errado” introduzem todas as gestantes no universo dos riscos e sua gestão tecnológica. O parto vaginal é considerado imprevisível; ao contrário, a cesariana é apresentada pelos obstetras como uma técnica cirúrgica segura, que resolve todos os partos. O parto é visto como prerrogativa de quem sabe fazê-lo em “todas as circunstâncias” - isto é, sabe “operar” - e, portanto, especificidade e exclusividade do trabalho médico. Nesse sentido, os obstetras devem fazer aquilo que sabem e lhe é exclusivo não apenas em caráter excepcional. As inovações na técnica e a simplificação do procedimento tornaram a cesárea mais do que uma possibilidade, uma alternativa para todas as mulheres.
Mais humanizado é você estar com um profissional ali do lado que pode resolver qualquer intercorrência. Porque qual vai ser a conversão do parto vaginal [se algo sair errado]? Vai ser fazer uma cesariana, numa situação completamente adversa. Já tudo sangrando, bebê já com a cabeça do lado de fora... (E10-2000).
A cesariana se desenvolveu como medida salvadora, excepcional, recurso extremo para lidar com partos muito difíceis. Entretanto, não é esse o sentido que lhe dão os obstetras contemporâneos: ela é reapresentada como uma forma de parto - diferente, mas também um parto. Enquanto no parto vaginal, o trabalho do parto é da mulher, na cesariana, o trabalho é do médico, o controle é dele, em duplo sentido: ele domina o conhecimento e a técnica de fazer, saber e poder.
A gente vê muito isso, no sistema público ou privado, principalmente para aquelas pacientes que não estão preparadas psicologicamente. Aquela coisa da dor... a cesariana é mais fácil. A gente muitas vezes não tem uma cooperação e, no parto vaginal, eu preciso da ajuda dessa mãe. Quem vai ter o neném é ela, não vai ser eu. Na cesariana quem faz sou eu. [parto vaginal] É trabalhoso, é trabalho de parto. No trabalho de parto vaginal eu preciso dela. A cesariana sou eu que faço (E02-2000).
A cesárea, em sua trajetória e rearranjos, tornou-se parte constituinte da identidade do obstetra. Por isso, críticas às taxas elevadas da cirurgia e sua acusação como um modo de desumanização dos nascimentos incomodam profundamente os obstetras, criando a ideia de que o parto que eles fazem - aquele que lhes é privativo, aquele que é o seu trabalho de parto - não é humano. Em seus argumentos, ideias e valores da “humanização” são incorporados à medida que introduzem modificações no procedimento cirúrgico de fazer nascer: conversam com a mulher durante o procedimento, abaixam o campo cirúrgico para que a saída do bebê possa ser vista e proporcionam contato imediato entre mãe e bebê.
Por que você não pode ter uma cesárea humanizada? Você pode pegar aquele neném que está nascendo, abaixar o campo, ela vai ver o neném nascer, você vai continuar conversando com ela, mostra a criança, faz tudo que tem que fazer. Passa para o pediatra que vai colocar esse neném no colo dela. Você pode fazer isso com o parto cesáreo, então pra que demonizar desse jeito? O que me preocupa nesses movimentos é criar dicotomia. Um é desumano, o outro é humano. Um é violência obstétrica o outro é normal. Não tem nada de violento, não tem nada de desumano. São dois meios de parto e que seja feito o que for melhor para a mãe e o feto. E pode ser perfeitamente humanizado e ser uma experiência muito boa (E02-2000).
Ao agregar o sentido de humanização à cirurgia, os obstetras estão apresentando mais uma inovação na técnica da cesariana, que participa de modo importante no redirecionamento do papel do procedimento: de “last hope” a “prática trivial” (E08-2000).
A cesárea da prática médica e a cesárea da evidência científica: controvérsia, autonomia e contexto
As falas dos formadores de opinião refletem as acirradas controvérsias sobre a utilização da cesárea, que, no Brasil, opõem a corporação médica e as autoridades da saúde pública. As estratégias governamentais para redução da operação cesariana afrontam os obstetras naquilo que é a sua prática privativa. Os argumentos apresentados pelas autoridades de saúde, que têm como fonte a Medicina Baseada em Evidências, vão em rota de colisão com as evidências que os obstetras colecionam em sua prática clínica. Os obstetras criticam aqueles “que nunca colocaram a mão na barriga de uma mulher” e querem ditar práticas aos especialistas.
99% dos pesquisadores da Fiocruz não são obstetras, não colocam mão na barriga. Ficam ditando política sem saber do que se trata, sem nunca ter entrado em maternidade. Isso para mim sinceramente inviabiliza, impossibilita qualquer tipo de credibilidade de opinião ou diretriz, seja lá o que for, por parte da instituição. As diretrizes que os estudos da Fiocruz colocam são todas não factíveis. Na prática, não impacta em nada nos obstetras. [Dizem] ‘vamos diminuir cesárea!’. Não diminui nada, só aumenta. Não muda nada, porque aquilo ali não é factível. É ignorado pelos obstetras. Querem impor na marra [a redução das cesáreas] e vão continuar sem conseguir. Por quê? Porque não há uma coordenação com quem de direito que são os obstetras (E10-2000).
Pode-se entrever um estilo de pensamento no qual um fato científico - as vantagens da cesariana - é moldado na prática: eles sabem agir no momento certo, têm uma técnica trivial com riscos mitigados e são especialistas neste trabalho do parto; estão convencidos de que a cesárea é um modo normal de nascer e que a sua utilização pode ser cada vez mais ampliada. Mudar seu modo de agir obstétrico não está em questão; eles fazem aquilo que, na sua comunidade de práticas, no seu círculo de credibilidade, estabelece-se como o melhor.
Eu nunca me arrependi de uma cesárea que eu tenha feito, mas eu me arrependi de alguns partos que eu fiz (E03-1960).
Não adianta querer dizer que [a cesariana] mata duas vezes [mais], não mata mesmo, é mentira! Na vida pessoal, a mulher não conhece ninguém que morreu de cesariana. Ela conhece alguém que teve problema com parto vaginal, alguma criança que ficou sequelada. Está na mídia todo dia. Você já viu na mídia alguém reclamando: ‘Eu queria um parto normal’? Procure um único processo, procure uma única notícia que a mãe fez uma reclamação porque não teve um parto normal e morreu alguém. Você não vai encontrar. Agora, todo dia você vai encontrar uma notícia de alguém que está reclamando que queria muito uma cesariana, pediu muito e não teve. E morreu o feto ou morreu a mãe ou morreu todo mundo (E10-2000).
Além de brandirem suas evidências práticas sobre a segurança da cesariana, os obstetras defendem sua autonomia e refutam tentativas de interferência em sua prática.
A ANS não consegue regular a prática médica; os conselhos regionais de medicina de jeito nenhum permitem isso, porque o plano não pode estabelecer taxa de cesárea. Os conselhos eles são o senso comum da classe médica. O senso comum da classe médica é que cesariana só é problema para quem quer. Na verdade, [a cesariana] não é mais arriscado, é igual e protege a mulher de outras coisas. [O Conselho de Medicina] não entra na discussão técnica a da assistência, ele vai simplesmente validar o que a maioria dos médicos faz, cesariana (E01-1980).
A controvérsia sobre as taxas de cesarianas é desqualificada sob vários aspectos: a questão dos “riscos” da cirurgia aparece como descabida, pois a técnica evoluiu e a competência se difundiu; as mulheres também desejam realizar a cirurgia; as intenções das autoridades de saúde em abaixar esses índices têm motivação econômica; a autonomia do médico é inquestionável.
Eu não sou um contrário ao parto vaginal, só acho que a discussão não leva a lugar nenhum. Porque que tem tanta cesárea no Brasil? As mulheres brasileiras são mais doentes? Não, não são mais doentes. Acho que existe uma questão, primeiro, que a técnica realmente ficou muito trivial, ficou muito fácil. Segundo, a estrutura leva um pouco para esse caminho, pelas dificuldades de local, pela remuneração, culturalmente as mulheres também não querem se aborrecer muito. A taxa de cesárea é um problema porque todas as diretrizes do Ministério e das secretarias estão em prol de baixar as taxas. [No parto vaginal] gasta-se menos, interna-se menos, a assistência é prestada cada vez menos por médicos, e sim por outros profissionais de saúde que são remunerados de outra forma. Então também tem uma questão econômica envolvida. Eu faço uma medicina muito como eu acho que deva ser. Eu não estou sujeito a nenhuma regulamentação. Eu tenho 100% de cesárea se eu achar que assim é melhor (E09-1980).
Os obstetras formadores de opinião seguem ativamente o dinâmico cenário do parto no Brasil. Estão atentos ao porvir da assistência obstétrica e prontos para intervir no debate. Afinal de contas, eles estão convictos de que para falar de cesárea tem que ser obstetra.
Eu acho que a saúde está se repensando, se recriando. O modelo atual é ruim, mas o anterior também. A coisa era medicalizada demais... tem que ter um terceiro modelo. O modelo atual [de privilegiar o parto vaginal] é ruim e em breve vai se esfacelar; porque quando aumentar o volume da assistência humanizada, vão aumentar os desfechos ruins, começar os processos e as pessoas vão começar a sentir que aquilo está incomodando. E aí vai começar o questionamento. Então acho que a gente ainda não chegou ao modelo final da assistência, mas vai chegar (E04-1980).
Conclusão
O protagonismo técnico e tecnológico da escola obstétrica brasileira tem longa história, iniciando-se entre os séculos XIX/XX, com Werneck de Almeida e Fernando Magalhães (BURLÁ, 1987BURLÁ, J. Cesariana: origem do termo e nótula histórica. Med. HUPE-UERJ, v. 6, n. 4, p. 271-275,1987. ; MARTINS, 2004MARTINS, A.P.V. Visões do Feminino: a medicina da mulher nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2004.). O reconhecimento e o orgulho desse protagonismo atravessaram e motivaram gerações de médicos obstetras e ainda colaboram para o compromisso da comunidade de práticas de evoluir e se reinventar, com postura ativa diante das inovações tecnocientíficas (NAKANO et al., 2016NAKANO, A.R.; BONAN, C.; TEIXEIRA, L.A. Cesárea, aperfeiçoando a técnica e normatizando a prática: uma análise do livro Obstetrícia, de Jorge de Rezende. História, Ciências, Saúde. Manguinhos, v. 23, n. 1, p. 155-172, 2016.). Nessa tradição, o estilo de pensamento e práticas dos obstetras brasileiros - e para o qual muito contribuem os formadores de opinião - construiu um fato científico cada vez mais estabilizado entre os especialistas: com seu aperfeiçoamento técnico, nas mãos de médicos treinados, que sabem agir no momento certo, a cesariana é vista como um procedimento seguro para todos os partos. Por ser considerada uma técnica trivial, que oferece riscos mínimos, mesmo em comparação com a via vaginal, a cesárea se tornou um modo normal de nascer e sua utilização pode ser cada vez mais ampliada (NAKANO et al., 2016).
A cesariana é a conduta cirúrgica que talvez tenha sofrido maior número de modificações através dos séculos (BURLÁ, 1987BURLÁ, J. Cesariana: origem do termo e nótula histórica. Med. HUPE-UERJ, v. 6, n. 4, p. 271-275,1987. ). A tradição dos obstetras de recorrerem às casuísticas para sustentar de modo empírico suas conclusões (MARTINS, 2004MARTINS, A.P.V. Visões do Feminino: a medicina da mulher nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2004.) colaborou para que a cesárea deixasse de ser usada somente em condições excepcionais para ser realizada nas mais diversas circunstâncias, figurando inclusive como um ideal de parto - seguro, indolor e moderno, entre obstetras e mulheres (DE-MELLO-E-SOUZA, 1994DE MELLO E SOUZA, C. C-Sections as ideal birth: the cultural construction of beneficience and patients rights in Brazil. Cambridge Quarterly of Healthcare Ethics, n. 3, p. 358-66, 1994.; NAKANO et al., 2015_____. A normalização da cesárea como modo de nascer: cultura material do parto em maternidades privadas no Sudeste do Brasil. Physis, v. 25, n. 3, p. 885-904, 2015. ). É tomando a prática como critério de verdade que a cesárea é construída como procedimento especializado e multifuncional, que atende a requisições técnicas e humanas, atribuindo múltiplos sentidos ao papel do obstetra e a sua especialidade cirúrgica de fazer nascer: oferecer procedimentos que superem em segurança os processos fisiológicos; atender a normas de estética e ao imperativo de racionalização do tempo social e produtivo; proporcionar às mulheres opções e, portanto, “escolhas” alternativas ao parto natural (NOMURA; ZUGAIB, 2005NOMURA, R.M.Y.; ZUGAIB, M. A cesárea eletiva como opção ao parto vaginal. Femina, v. 33, n. 7, p. 527-533, 2005.). A cirurgia de fazer nascer é representada pelos profissionais como parto, como qualquer outro, e seu sentido humanizado é reivindicado. A apropriação dos sentidos da “humanização” no universo da cesariana colabora para minimizar a dimensão cirúrgica deste procedimento (DINIZ, 2001DINIZ, C.S.G. Entre a técnica e os direitos humanos: possibilidades e limites da humanização da assistência ao parto. 2001. Tese (Doutorado) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001. ).
O “saber para agir” que guiou a obstetrícia do século XIX (MARTINS, 2004MARTINS, A.P.V. Visões do Feminino: a medicina da mulher nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2004.) é atualizado no contexto contemporâneo da cesariana: os médicos precisam não só saber para agir, mas também agir para saber e para fazer - agindo, sabe-se e se assegura que o resultado será o melhor, e a ação é também produção do fato do nascimento. Na era da biomedicalização e do controle dos riscos (ROSE, 2013ROSE, N. A Política da própria vida: biomedicina, poder e subjetividade no Século XXI. São Paulo: Paulus, 2013.), a ação do obstetra é reprogramada: ele precisa antever riscos e encontrar formas de manejá-lo. A crença nos recursos tecnológicos da biomedicina favorece o entendimento pelos médicos de que eles estão no controle com a cesárea, percebendo-a como segura (CHACHAM, 2012CHACHAM, A.S. Médicos, mulheres e cesáreas: a construção do parto normal com “um risco” e a medicalização do parto no Brasil. In: JACÓ-VILELA, A.M.; SATO, L. (Orgs.). Diálogos em psicologia social. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2012, p. 420-451.). A cesárea ad hoc, em situação de emergência, é representada como desfavorável; para usufruir os bons resultados que a técnica oferece e contornar riscos, ela deve ser eletiva. Segundo o estilo de pensamento da comunidade de práticas, os obstetras não são expectantes: eles “sabem”, “agem” e “fazem”. Prevalece a ideia que a operação cesariana deve ser uma ação “medular” do obstetra; enquanto o obstare, assistir o parto, pode ser feito por outros profissionais, inclusive pela natureza. Com o capital de conhecimentos e técnicas e o acúmulo de estatísticas de sucesso, para o obstetra parece contraditório não fazer aquilo que se tem domínio, que é sua especialidade e sua exclusividade.
A cesárea é o trabalho de parto do obstetra, parte inerente da identidade do especialista e do modo de agir obstétrico, um modo de fazer nascer sobre o qual somente o médico tem autonomia (WAGNER, 2006WAGNER, M. Born in the USA: how a broken maternity system must be fixed to put mothers and infants first. Califórnia: University of California Press, 2006.). Dessa maneira, estratégias para reduzir a prática de cesarianas podem soar como desafio à autoridade do obstetra, que refuta não só as mudanças, mas principalmente a interferência em sua prática.
A pesquisa com médicos obstetras do Rio de Janeiro formadores de opinião descortina questões acerca da utilização da cesárea, ainda pouco discutidas pela literatura nacional, mormente aspectos de um estilo de pensamento que colabora com a ideia da cesariana como um parto, e, consequentemente, participa da normalização da cesárea como forma de nascer. Este estudo pode contribuir com pesquisas futuras que se interessem em explorar em uma perspectiva crítica os modos de produção, reprodução e transformação desse estilo de pensamento e as traduções que ele recebe em outras comunidades de prática. Um exemplo está no campo jurídico, que, apropriando-se de muitas das ideias compartilhadas no coletivo de pensamento dos obstetras, determina que “quando se trata de procedimento inerente aos conhecimentos médicos”, seja, “parto normal ou cesáreo, a responsabilidade de escolha é do médico” (PORTAL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE GOIÁS, 2015).22 A.R. Nakano, C. Bonan e L.A. Teixeira participaram igualmente da concepção do projeto, análise e interpretação dos dados, redação e revisão crítica do conteúdo intelectual do artigo e aprovação da versão a ser publicada.
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Notas
- 1A cesariana pode ser realizada por médicos não obstetras, mas é nos meandros da especialidade que aspectos técnicos do procedimento se consolidam.
- 2A.R. Nakano, C. Bonan e L.A. Teixeira participaram igualmente da concepção do projeto, análise e interpretação dos dados, redação e revisão crítica do conteúdo intelectual do artigo e aprovação da versão a ser publicada.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Jul-Sep 2017
Histórico
- Recebido
01 Jul 2016 - Aceito
30 Maio 2017