Vínculo longitudinal na Saúde da Família: construção fundamentada no modelo de atenção, práticas interpessoais e organização dos serviços

Longitudinality in Family Health: construction based on the care model, interpersonal practices and service organization

Renata Oliveira Maciel dos Santos Valéria Ferreira Romano Elyne Montenegro Engstrom Sobre os autores

Resumo

O vínculo longitudinal (VL) é um atributo essencial da Atenção Primária à Saúde (APS), com um papel fundamental no processo de trabalho em saúde da família e no cuidado. Apresenta-se a descrição dos sentidos sobre o VL para profissionais de saúde e como são desenvolvidas tais práticas no modelo da Saúde da Família. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, exploratória, utilizando o método de análise de conteúdo de Bardin. Como resultado, foi encontrada a valorização da relação sistêmica do vínculo em um Modelo da APS que abarca a porta de entrada, integralidade e coordenação, materializando a responsabilização da equipe pelo cuidado de indivíduos, famílias e comunidades; o vínculo como prática organizacional, sendo utilizado o trabalho em equipe, práticas de educação em saúde e visita domiciliar como estratégias para o cuidado e a afinidade interpessoal como fortalecedor da empatia e da relação de confiança entre o profissional de saúde e o usuário, auxiliando na construção de autonomia dos doentes crônicos. O VL é um dispositivo presente e relevante no processo de trabalho em saúde da família, porém ameaçado pelo excesso de trabalho e burocracia e pela falta de tempo para o desenvolvimento das atividades.

Palavras-chave:
Atenção Primária à Saúde; Saúde da Família; continuidade da assistência ao paciente

Abstract

Longitudinality is an essential attribute of Primary Health Care (PHC), with a fundamental role in the work process in family health and care. We present a description of the meanings about the longitudinality for health professionals and how this practice is developed in the Family Health model. This is a qualitative, exploratory research, using the Bardin content analysis method. As a result, it was found the valorization of the systemic relationship of longitudinality in an PHC Model that covers the door of entry, integrality and coordination, materializing the responsibility of the team for the care of individuals, families and communities; longitudinality as organizational practice, using teamwork, health education practices and home visits as strategies for care; and the interpersonal relationship reinforcing the empathy and the trust in the relationship between the health professional and the patient, assisting in the construction of autonomy of the chronic patients. Longitudinality is a present and relevant device in the family health work process, but it is threatened by overwork, bureaucracy and lack of time for the development of activities.

Keywords:
Primary Health Care; family health; continuity of patient care

Introdução

O vínculo longitudinal é um dispositivo potente para o cuidado na Atenção Primária à Saúde (APS), reconhecido internacionalmente como atributo essencial para modelos de atenção abrangentes e efetivos, que deve estar presente e integrado aos atributos de primeiro contato, integralidade e coordenação do cuidado (STARFIELD, 2002STARFIELD, B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: UNESCO; Ministério da Saúde, 2002.).

Reafirmando tal modelo, as políticas públicas de saúde no Brasil consideram que a APS, baseada preferencialmente na Estratégia de Saúde da Família (ESF), deva ser a porta de entrada preferencial do sistema e orientadora da Rede de Atenção à Saúde, cujas práticas devem estar em consonâncias às diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS) (STARFIELD, 2002STARFIELD, B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: UNESCO; Ministério da Saúde, 2002.; BRASIL, 2012).

A respeito das denominações “continuidade do cuidado, longitudinalidade ou vínculo longitudinal”, embora sejam termos diferentes, estas possuem sentidos semelhantes, tendo sido utilizados muitas vezes como sinônimos (BRASIL, 2012; GIOVANELLA, L.; MENDONÇA, 2012GIOVANELLA, L.; MENDONÇA, M. H. M. Atenção Primária à Saúde. In: GIOVANELLA, L. et al. Políticas e sistemas de saúde no Brasil. 2. ed. rev. e amp. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2012.). Saultz caracteriza a continuidade do cuidado como a relação entre profissional de saúde e o usuário, na interação interpessoal desenvolvida entre ambos, o que a destaca como uma abordagem relacional (SAULTZ, 2003SAULTZ, J. W. Defining and Measuring Interpersonal Continuity of Care. Ann Fam Med, v. 1, n. 3, 2003.).

Tal perspectiva é valorizada também por Haggety et al., que consideram a continuidade do cuidado a afiliação do usuário a um profissional de saúde, envolvendo um contrato implícito, um sentido de lealdade e responsabilidade clínica (HAGGERTY et al., 2003HAGGERTY, J. L. et al. Continuity of care: a multidisciplinary review. BMJ, v. 327, n. 7425, p. 1219-21, Nov 2003. ). Starfeld utiliza o termo longitudinalidade como sendo o acompanhamento do usuário ao longo do tempo por um médico de família, para episódios de doença e cuidados preventivos, e como atributo essencial de uma APS integral (STARFIELD, 2002STARFIELD, B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: UNESCO; Ministério da Saúde, 2002.). Nessa linha, na literatura brasileira, Cunha e Giovanela propõem a utilização do termo vínculo longitudinal, considerando-o a relação estabelecida de forma terapêutica entre usuário e equipe, reconhecendo a APS como fonte regular de cuidado ao longo do tempo (CUNHA; GIOVANELLA, 2011CUNHA, E. M.; GIOVANELLA, L. Longitudinalidade/continuidade do cuidado: identificando dimensões e variáveis para a avaliação da Atenção Primária no contexto do sistema público de saúde brasileiro. Ciência & Saúde Coletiva, v. 16, supl. 1, p. 1.029-1.042, 2011.).

Dessa forma, pode-se apreender que há na concepção do vínculo longitudinal duas abordagens: uma temporal e outra interpessoal. A primeira se refere ao acompanhamento que o usuário realiza em uma unidade de saúde ao longo de sua vida, reconhecendo tal espaço como fonte regular para seus cuidados de saúde. A abordagem interpessoal diz respeito à relação entre profissional e usuário, valorizando o componente relacional entre esses (HAGGERTY et al., 2003HAGGERTY, J. L. et al. Continuity of care: a multidisciplinary review. BMJ, v. 327, n. 7425, p. 1219-21, Nov 2003. ).

Por seus resultados positivos na qualidade da atenção, o vínculo longitudinal está fortemente relacionado a maior efetividade e eficiência das intervenções em saúde, maior adesão às mesmas, aumento da resposta do usuário aos cuidados de saúde e satisfação dos usuários (KRISTJANSSON, 2013KRISTJANSSON, E. Predictors of relational continuity in primary care: patient, provider and practice factors. BMC Family Practice, v. 14, n. 72, 2013.).

Tais afirmações são especialmente importantes levando em conta que os serviços de saúde, especialmente a APS, precisam desenvolver novos arranjos organizacionais e modelos de atenção que deem conta do novo panorama de saúde, fruto da transição demográfica e epidemiológica, com envelhecimento populacional e aumento de doenças crônicas não transmissíveis - condições que exigem o desenvolvimento de autonomia e cuidados integrais ao longo da vida (MENDES, 2012MENDES, E. V. O cuidado das condições crônicas na atenção primária à saúde: o imperativo da consolidação da estratégia de saúde da família. Brasília: OPAS/OMS, 2012.). Considerando a autonomia a capacidade do indivíduo em lidar com sua rede de dependências, compreendendo e agindo sobre si mesmo e sobre o contexto conforme objetivos democratamente estabelecidos (CAMPOS; CAMPOS, 2009CAMPOS, R. T.; CAMPOS, G. W. Co-constução de autonomia: o sujeito em questão. In: CAMPOS, G. W. S. et al (Org.). Tratado de Saúde Coletiva. São Paulo: Editora Hucitec, 2009.)

Diferente de outros países, onde há possibilidade do usuário escolher a unidade básica ou médico generalista para seu cuidado, o modelo brasileiro tem como característica determinar, de forma não opcional, uma “vinculação” de moradores de um domicílio a uma unidade básica de saúde, segundo critério exclusivamente territorial (BRASIL, 2012). Dessa forma, as equipes realizam a adscrição ou cadastro de clientela - processo de “vinculação de pessoas e/ou famílias às equipes na ESF” -, com o objetivo de estabelecer uma referência formal de cuidado, prática esta que se desenvolvida de forma administrativa e burocrática, não avança na construção do vínculo do usuário-serviço de saúde. Sabe-se que o cuidado em saúde transcende o âmbito técnico do atendimento e incorpora a materialidade das relações interpessoais que se estabelecem nesse campo,, assim como princípios teóricos e práticos que iluminam os desafios para a humanização das práticas de saúde (BOSI; UHIMURA, 2007BOSI, M. L. M.; UHIMURA. K. Y. Avaliação da qualidade ou avaliação qualitativa do cuidado em saúde? Rev Saúde Pública, v. 41, n. 1, p. 150-3, 2007.; AYRES, 2004).

Supõe-se que para tal construção, inúmeras práticas são desenvolvidas no ato de cuidar, tendo em conta as dimensões subjetivas, relacionais, singulares. Contudo, pressupomos que para além da interação interpessoal, a construção do vínculo requer a responsabilização coletiva, de uma equipe, uma unidade de saúde, um sistema de saúde, organizações norteadas por políticas estruturantes e convergentes. Com tal suposição teórica, considera-se que o vínculo é um constructo de natureza complexa e sistêmica, relacionado às dimensões relacionais, assim como às coletivas e organizacionais, que se expressam em um modelo de atenção primária, com repercussões no processo de trabalho da equipe, na organização do serviço.

O modelo de APS promotor de vínculo requer, por exemplo, o sinergismo das práticas relacionadas à ampliação de acesso e atenção às necessidades de saúde, integração com outros níveis do sistema. Instigado pela referida teoria, o presente estudo objetivou entender, de forma empírica, os sentidos do vínculo longitudinal para profissionais de saúde e como são desenvolvidas tais práticas no modelo da Saúde da Família.

Metodologia

O artigo é parte de dissertação de Mestrado Profissional em APS, realizado na Escola Nacional de Saúde Pública/FIOCRUZ, cuja concepção e metodologia foram detalhadas em profundidade em publicação prévia (SANTOS et al., 2016SANTOS, R. et al. O vínculo longitudinal como dispositivo do cuidado: doenças crônicas e saúde da família. Saarbrücken: Novas Edições Acadêmicas, 2016.). Traz uma abordagem qualitativa e exploratória do tema, investigação que se assenta no pensamento indutivo, na postura teórica do interacionismo simbólico, com foco na interação social dos participantes com seu contexto - no caso, dos profissionais de saúde em seus processos de trabalho (MAXWELL, 2005MAXWELL, J. A. Qualitative Research Design: An Interactive Approach, 2. ed. New York: Sage Publications, 2005.). A pesquisa procura captar o significado de fenômenos de saúde/doença por meio de descrições e do desenvolvimento de conceitos que ajudam a compreender a realidade, dando-se especial ênfase ao significado, às experiências e às perspectivas dos participantes (FLICK, 2009FLICK, U. Introdução à pesquisa qualitative/Uwe Flick. Trad. Joice Elias Costa. 3. Ed. Porto Alegre: Artmed, 2009.). Como tipo de estudo, optou-se pela abordagem da produção de teorias empiricamente construídas ou teoria de base empírica (grounded theory), e o termo “teoria” aqui significa pressupostos acerca do tema, versões do mundo que se modificam e são mais bem elaboradas, em um modelo circular ao longo do processo da pesquisa (MAXWELL, 2005). Dessa maneira, pretendeu-se explorar como as equipes de saúde da família atuaram para a construção de vínculo no cotidiano de suas práticas, de forma a captar as dimensões relacionais e aquelas coletivas, ligadas às características das organizações de saúde, como modelo de atenção.

Como método de coleta de dados, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com profissionais de saúde (n=11) que atuavam, à época (2014), em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) do Município do Rio de Janeiro (MRJ)/RJ, Brasil. Justifica-se tal seleção por esta UBS ter vivenciado, no ano de 2010, uma transição de modelo assistencial - da atenção básica tradicional - para a ESF, mudanças induzidas pela gestão municipal, acompanhadas de melhorias na estrutura física, ampliação do escopo de serviços ofertados, com equipe multiprofissional, enfim, uma proposta de reorganização dos processos de trabalho segundo atributos da APS e das diretrizes nacionais (STARFIELD, 2002STARFIELD, B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: UNESCO; Ministério da Saúde, 2002.). Destaca-se que tais mudanças aconteceram de modo mais amplo em todo o MRJ, em um movimento denominado Reforma da Atenção Primária, marcado pela mudança do modelo de gestão e ampliação de cobertura de 3% para cerca de 70%, respectivamente, no período de 2009 a 2016 (BRASIL, 2014; HARZHEIM, 2013HARZHEIM, E. Pesquisa avaliativa sobre aspectos de implantação, estrutura, processo e resultados das clínicas da família na cidade do Rio de Janeiro. Porto Alegre: Pós-graduação em Epidemiologia, UFRGS, 2013. ). Como critério de elegibilidade, do universo de sete equipes/ESF existentes na UBS, selecionaram-se duas que estavam completas e cujos profissionais atuavam há mais de um ano na área, considerando um tempo plausível para o desenvolvimento de estratégias de construção de vínculos com os usuários. O roteiro da entrevista era composto por questões abertas acerca da compreensão do vínculo no cuidado, condições que dificultavam e favoreciam o mesmo, assim como estratégias desenvolvidas pelas equipes em seu trabalho (SANTOS et al., 2016SANTOS, R. et al. O vínculo longitudinal como dispositivo do cuidado: doenças crônicas e saúde da família. Saarbrücken: Novas Edições Acadêmicas, 2016.).

As entrevistas, previamente agendadas e realizadas na UBS em espaço preservado, foram gravadas e transcritas na íntegra. Na análise, realizou-se leitura flutuante do texto e uma codificação teórica, inicialmente aberta para identificação de famílias temáticas ou subcategorias, confluindo para seletiva, agrupadas segundo análise temática do conteúdo (CRESWELL, 2009CRESWELL, J. W. Research Design: Qualitative, Quantitative and Mixed Methods Approaches. 3. ed. New York: Sage Publications, 2009.). As falas dos entrevistados foram valorizadas como norteadoras do pensamento dos mesmos, no sentido de captar seus significados, pontos convergentes e divergentes no que se refere às práticas dos profissionais relacionadas ao vínculo com os usuários. Foram contempladas todas as exigências da resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde no que concerne à ética em pesquisa que envolve seres humanos, sendo o estudo submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da ENSP/Fiocruz, CAAE: 30362014000005240.

Resultados

Foram entrevistados onze profissionais, sendo quatro Agentes Comunitários de Saúde (dois por equipe); médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem (n=2 de cada categoria) e um dentista. A idade desses variou entre 23 e 63 anos, com média de idade de 40 anos, sendo a maioria (n=10) do sexo feminino.

As categorias empíricas emergentes foram: a relação entre vínculo e o modelo de atenção e seus atributos; as atividades de organização do processo de trabalho e do serviço (o trabalho em equipe; a variação do escopo de ações, com destaque para as ações de educação em saúde e visitas domiciliares, dimensionamento da agenda e do tempo da equipe) e as práticas relacionais.

Relação sistêmica do Vínculo em um Modelo da APS

Os participantes valorizaram a estreita interdependência entre vínculo e os demais atributos essenciais da APS - porta de entrada ou acesso de primeiro contato, integralidade, coordenação -, de forma a dar concretude à responsabilização da equipe pelo cuidado de indivíduos, famílias e comunidades. De maneira convergente nas narrativas, o vínculo foi considerado característica marcante deste novo modelo, em comparação às práticas tradicionais da APS, ou seja, ao falar de vínculo, os entrevistados relacionavam o mesmo aos demais atributos.

Se não fosse isso [o vínculo], não seria clínica da família, seria um posto que você atende dez, doze pessoas, e vai marcando consulta (Profissional de nível superior A).

Acho que é importante não só para o diabético e o hipertenso, mas de maneira geral, é importante em todas as etapas (Técnico de enfermagem B).

Cabe reiterar que a implantação da ESF era recente na UBS, cerca de quatro anos, e talvez por isso, foram destacados, especialmente, os atributos de primeiro contato e integralidade como imprescindíveis para a construção do vínculo longitudinal.

Os profissionais ressaltaram ainda que a possibilidade de o serviço atuar de forma efetiva e real como primeiro contato ou porta de entrada principal dos usuários ao sistema de saúde foi primordial para a aproximação usuário-equipe. Um serviço de portas abertas e sensível às necessidades foi considerado promotor de adesão a um novo modelo onde o primeiro contato não era necessariamente o médico, onde o atendimento não se dava por ordem de chegada, filas, senhas.

Pelo menos nessa clínica, o usuário tem acesso muito fácil a qualquer profissional, qualquer problema que ele tenha ele pode vir aqui... (Profissional de nível superior D).

O acesso aos serviços de saúde, além de ser uma garantia constitucional, constitui-se como um dos elementos fundamentais dos direitos de cidadania e tem potencial de produzir resultados concretos, tendo em vista as reais possibilidades de mudança e melhoria no atendimento aos problemas de saúde da população, por meio da oferta de ações e serviços mais adequados, contribuindo para a satisfação do usuário (GIOVANELLA; FLEURY, 1996GIOVANELLA, L.; FLEURY, S. Universalidade da Atenção à Saúde: acesso como categoria de análise. In: EIBENSCHUTZ, C. (Org.). Política de Saúde: o público e o privado. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1996, p. 177-198. ; SCHWARTZ et al., 2010SCHWARTZ, T. D. et al. Estratégia Saúde da Família: avaliando o acesso ao SUS a partir da percepção dos usuários da Unidade de Saúde de Resistência, na região de São Pedro, no município de Vitória (ES). Ciência & Saúde Coletiva, v. 15, n. 4, p. 2.145-2.154, 2010.).

A discussão em torno da ampliação do olhar sobre o indivíduo de forma integral abre portas aos conceitos relacionados à clínica ampliada e à abordagem multidisciplinar na assistência. A clínica ampliada busca integrar várias abordagens para possibilitar um manejo eficaz da complexidade do trabalho em saúde, que é necessariamente transdisciplinar. Coloca em discussão a fragmentação do processo de trabalho, defendendo a criação de um contexto favorável para que se possa falar desses sentimentos em relação aos temas e às atividades não restritas à doença ou ao núcleo profissional (BRASIL, 2009).

Esse olhar ampliado e transdisciplinar foi fortemente valorizado pelos profissionais no cotidiano de sua atuação e em ações ofertadas pela equipe, em um escopo ampliado de práticas, que apontam para o modelo integral como forma de vinculação do usuário.

Eu não me atento só a medir, pesar e medir pressão. Eu acho que isso é importante para estabelecer o vínculo. Não ficar só na doença, mas saber o que está acontecendo com a pessoa... (Profissional de nível superior C).

(...) Nós sempre tivemos médico na equipe, porém com a última médica os pacientes vinham uma vez na consulta depois não voltavam mais e agora com a outra, melhorou o vínculo, eles se sentem mais bem atendidos e aderem mais as consultas. Então o vínculo está muito mais forte agora, e isso se dá por causa do tipo da qualidade da assistência... (Profissional de nível superior A).

O vínculo longitudinal favorece a procura do usuário ao serviço de saúde, viabilizando que este o reconheça como fonte satisfatória e habitual de atenção às suas necessidades de saúde, à medida que os serviços sejam resolutivos (CAMPOS; AMARAL, 2007CAMPOS, G. W.; AMARAL, M. A. A clínica ampliada e compartilhada, a gestão democrática e redes de atenção como referenciais teórico-operacionais para a reforma do hospital. Ciênc. Saúde coletiva, v. 12, n. 4, p. 849-859, 2007.). Corroborando tal concepção, o vínculo foi percebido pelos profissionais como potente facilitador nas relações terapêuticas, essencial para o cuidado integral e o modelo da saúde da família, em consonância à Política Nacional de Atenção Básica (BRASIL, 2012).

Vínculo como Prática Organizacional

A organização do trabalho em equipe, de modo a valorizar a atuação de todos os profissionais, foi considerada uma importante estratégia para formação do vínculo longitudinal, e quando desempenhado de forma colaborativa e sinérgica, contribuiu positivamente para o vínculo.

A equipe toda trabalha nesse em prol de organizar o trabalho e atender quem está precisando (Técnico de enfermagem A).

O trabalho em equipe multiprofissional é citado como um arranjo organizacional fundamental que possibilita a obtenção de efeitos ou resultados sobre os diferentes fatores que interferem diretamente no processo de cuidar em saúde. Permite a articulação de diversos saberes e a construção de uma prática interdisciplinar, na qual o diálogo concede a aproximação entre as partes, a partir da premissa que todo conhecimento parcial só ganha significado quando referido no conjunto (VASCONCELOS, 2001VASCONCELOS, E. M. Redefinindo as práticas de saúde a partir de experiências de Educação Popular nos serviços de saúde. Interface, p. 8.121-26, 2001.; MARQUES; LIMA, 2004MARQUES, G. Q.; LIMA M. A. D. As tecnologias leves como orientadoras dos processos de trabalho. Rev Gaúcha Enferm, v. 25, n. 1, p. 17-25, 2004.). Ao aproximar-se da abordagem integral do usuário mediante uma ação articulada da equipe, a prática interdisciplinar possibilita o reconhecimento do trabalho de um membro da equipe dentro da prática do outro e ambos são transformados por meio da articulação de saberes. Este é um dos grandes desafios para os profissionais que integram a saúde da família (BORGES; DOHN, 2006BORGES, R.; DOHN, M. O trabalho de Equipe Interdisciplinar. In: CUTOLO, L. R. A. (Org.). Manual Terapêutica Assistência a Família. Florianópolis: Associação Catarinense de Medicina, 2006.).

No presente estudo, percebeu-se ainda a contribuição do trabalho em equipe para aumentar a diversidade do cardápio de ofertas de serviços na UBS, fortalecendo, com isso, a integralidade e o vínculo, essenciais ao modelo da saúde da família. Segundo os entrevistados, os usuários podiam acessar o serviço em espaços diferentes às consultas médicas, como nos atendimentos coletivos e individuais, junto à equipe multiprofissional, com destaque para os grupos educativos. Em relação às ações de Educação e Saúde, estas foram valorizadas para a promoção da saúde, embora com compreensões divergentes quanto a seu propósito e método.

No grupo, há troca de experiência, quando um e o outro fala está trocando (Profissional de nível superior B).

Eu acho que o mais importante é você promover a saúde do paciente, é educação. Eu acho o básico, em qualquer nível de tratamento (Profissional de nível superior D).

(Eu ajo) ...igual àquela professora que é rígida, todos alunos vão obedecer porque ela é rígida… Eu sei separar, sei brincar e sei chamar atenção. Quando eu chamo atenção, chamo mesmo! (Agente comunitário A).

A literatura aponta a potência da Educação em Saúde para Promoção da Saúde, o empoderamento dos sujeitos, o fomento do autocuidado, assim como da autonomia. É ferramenta de comunicação que permeia a relação entre o saber técnico e o popular, proporcionando a troca de saberes, permitindo a conexão entre os saberes das áreas de educação e saúde, apoiados nas diversas compreensões de mundo (BRASIL, 2006; CAMPOS; CAMPOS, 2009CAMPOS, R. T.; CAMPOS, G. W. Co-constução de autonomia: o sujeito em questão. In: CAMPOS, G. W. S. et al (Org.). Tratado de Saúde Coletiva. São Paulo: Editora Hucitec, 2009.). Nessa perspectiva, a educação em saúde pode ser emancipatória, democrática, com corresponsabilização usuário-equipe no cuidado.

Em contraponto, a educação em saúde pode ser compreendida em uma visão reducionista por parte dos profissionais - percebida na alusão da rigidez da “professora” do entrevistado - cujas práticas são impositivas, prescritivas de comportamentos ideais, desvinculadas da realidade e distantes dos sujeitos sociais. Na maioria das vezes, expressam-se de forma preconceituosa, coercitiva e punitiva, revelando um predomínio do modelo hegemônico de educação sanitária, voltado para a domesticação dos sujeitos (VASCONCELOS, 2001VASCONCELOS, E. M. Redefinindo as práticas de saúde a partir de experiências de Educação Popular nos serviços de saúde. Interface, p. 8.121-26, 2001.; FREIRE, 1979FREIRE, P. (Org.). Educação e mudança. 12. ed. Paz e terra, 1979. ).

Concepções e práticas divergentes também estiveram presentes em relação à visita domiciliar (VD). Em algumas concepções, a VD foi percebida como espaço de interação, no qual se estabelecem relações de confiança e vínculo. Já em outras, não há valorização do “entrar na casa de uma pessoa”, sem percebê-la como oportunidade singular de contato e vínculo. Assim, visitar pode ser uma atividade burocrática da ESF, que pode ser mais bem realizada no espaço protegido de um consultório.

A confiança que eles depositam na gente, faz total diferença... porque a questão, às vezes, não é só a visita em si, muitas vezes eles só querem conversar... (Agente comunitário C).

[Faço VD] Muito pouco. Os pacientes são tão sem estrutura dentro da casa, que eu prefiro aqui, com conforto (Profissional de nível superior D).

A visita domiciliar pode ser considerada um conjunto de ações que abrange aspectos educativos e assistenciais e possibilita novas oportunidades de cuidado, sendo traduzida como um instrumento de construção coletiva de toda a equipe de saúde, sendo esta fundamental para a garantia de boa qualidade na assistência em saúde (CRUZ; BOURGET, 2010CRUZ, M. M.; BOURGET, M. M. A Visita Domiciliária na Estratégia de Saúde da Família: conhecendo as percepções das famílias. Saúde Soc. São Paulo, v. 19, n. 3, p. 605-613, 2010.; LOPES et al., 2008LOPES W.; SAUPE, R.; MASSAROLI, A. Visita domiciliar: tecnologia para o cuidado, o ensino e a pesquisa. Cienc. Cuid Saúde, v. 7, n. 2, p. 241-7, 2008.). Esse espaço é capaz de potencializar a formação do vínculo, estreitando a relação interpessoal entre usuário e equipe ao aproximar o profissional ao contexto social em que está inserido o indivíduo.

Historicamente, a visita domiciliar era referida no Programa de Agentes Comunitários de Saúde como uma das principais atividades preconizadas para o agente comunitário, e por intermédio da mesma, seria possível conhecer melhor as necessidades das famílias e promover a educação em saúde (BRASIL, 2001b).

Pode-se contrapor que ao longo do tempo, na ampliação das ações da ESF, a visita domiciliar perdeu suas potencialidades, sendo tratada de forma administrativa. Em nosso estudo, os profissionais referem disputa entre diferentes atividades previstas em uma semana-padrão da ESF e consequente falta de tempo para as VDs, além de sobrecarga de trabalho, fatores que interferiram negativamente na construção de vínculo.

Antes, a gente tinha mais tempo para fazer as visitas. Dava para dar um pouco de atenção e se dedicar mais. Hoje, é uma coisa corrida, não dá tempo de conversar, saber como a pessoa está. Fica meio automático (Agente comunitário D). Aliado a isso, o excesso de burocratização, onde os profissionais, especialmente os agentes comunitários de saúde, estão cada vez mais incorporando novas funções administrativas à sua rotina de trabalho.

A dificuldade maior é o tempo. Hoje em dia não têm mais tempo de trabalhar com a família, trabalha-se com números, com quantitativo. Isso está dificultando muito nosso trabalho (Agente comunitário A).

Corroborando nossos achados, Sossai e Pinto destacam que os principais fatores que influenciam negativamente a realização da VD são a infraestrutura (ausência de recursos), o excesso de burocratização do trabalho e a falta de tempo para realizar as visitas (SOSSAI; PINTO, 2010SOSSAI, L. C. F.; PINTO, I. C. A visita domiciliária do enfermeiro: fragilidades x potencialidades. Cienc Cuid Saude, v.9, n. 3, p. 569-576, 2010.). Ferro et al. observaram a escassez do tempo reservado para as atividades intersetoriais e interdisciplinares das equipes de saúde da família, traduzida em excesso de demanda de serviço e falta de tempo para realizar reuniões de equipe, discussão de casos e atividades de planejamento (FERRO et al., 2014FERRO, L. F. et al. Interdisciplinaridade e intersetorialidade na Estratégia Saúde da Família e no Núcleo de Apoio à Saúde da Família: potencialidades e desafios. O Mundo da Saúde, v. 38, n. 2, p. 129-138, 2014.).

A burocratização do acesso e a pulverização de outras tarefas agregadas ao trabalho impedem o usuário, os trabalhadores e os gerentes do sistema de saúde de visualizarem potencialidades assistenciais instaladas dentro do ambiente de cuidado. No entanto, alguns relatos referem a organização do processo de trabalho como forma de fortalecer o vínculo, fortalecendo a autonomia e a relação longitudinal (MARQUES; LIMA, 2004MARQUES, G. Q.; LIMA M. A. D. As tecnologias leves como orientadoras dos processos de trabalho. Rev Gaúcha Enferm, v. 25, n. 1, p. 17-25, 2004.).

Os cinco a dez primeiros minutos da consulta eu deixo só o paciente falar de qualquer coisa. Aí nos outros dez minutos eu examino e os dez minutos finais eu passo o plano de cada paciente e vou explicando para ele por que eu estou pedindo (Profissional de nível superior C).

Vínculo como Práticas Relacionais

A utilização de tecnologias relacionais no processo de trabalho demonstrou fortalecer a relação interpessoal nos espaços terapêuticos, práticas executadas por meio do acolhimento, comunicação aberta e no desenvolvimento de empatia entre profissionais e usuários.

Assim como identificado na literatura, este estudo demonstrou que a relação interpessoal é um potente produtor de vínculo e confiança na produção de cuidado.

E o que pode influenciar para o bem: uma boa conversa, ser honesto em tudo, e dar atenção a eles (Técnico de enfermagem A).

Essas tecnologias possuem suas origens nas formas das organizações humanas, sendo identificadas como questões originadas a partir das relações estabelecidas pelos seres humanos com os seus semelhantes. Esses elementos atuam estreitando a relação interpessoal entre profissionais e usuários.

[...] O paciente gosta de ser ouvido, de ser cuidado, de ver que alguém está ali preocupado com ele (Agente Comunitário C).

Acolher representa uma prática de receber e ouvir aqueles que procuram por atendimento. Essa prática é permeada por ações comunicacionais, buscando fornecer respostas às demandas de saúde de acordo com a necessidade dos usuários, seja na recepção da unidade de saúde ou nos diversos espaços de interação clínica (MORAES, 2001).

Dentro das tecnologias relacionais, a empatia parece exercer papel importante na relação entre profissional de saúde e paciente. No contexto clínico, empatia é definida como o ato do profissional de saúde de se apropriar dos significados e experiências dos usuários como se fossem seus. Quando o mundo do usuário se torna claro para o profissional e este adentra o mundo do outro livremente, buscando entender seus sentimentos, a comunicação entre eles é favorecida (ROGERS, 1992ROGERS, C. R. The necessary and sufficient conditions for therapeutic personality change. J Consult Clin Psychol., v. 60, n. 6, p. 827-832, 1992.).

A relação interpessoal é codependente da comunicação, podendo ser desenvolvida por meio da linguagem verbal e não verbal, que atuam em conjunto e permeiam todo o processo de interação entre os indivíduos (COSTA; AZEVEDO, 2010COSTA, F. D.; AZEVEDO, R. C. Empatia, relação médico-paciente e formação em medicina: um olhar qualitativo. Revista Brasileira de Educação Médica, v. 34, n. 2, p. 261-269, 2010.). Para se promover uma relação terapêutica, é preciso estimular a comunicação de forma a valorizar as solicitações e necessidades dos envolvidos, buscando novos elementos norteadores das práticas de saúde em prol do cuidado compartilhado, valorizando a singularidade de cada usuário (MARQUES; LIMA, 2004MARQUES, G. Q.; LIMA M. A. D. As tecnologias leves como orientadoras dos processos de trabalho. Rev Gaúcha Enferm, v. 25, n. 1, p. 17-25, 2004.; KELL; SHIMIZU, 2010KELL, M. C.; SHIMIZU, H. E. Existe trabalho em equipe no Programa Saúde da Família? Ciênc. Saúde Coletiva, v. 15, supl. 1, 2010.).

Mas a relação boa, sincera, facilita muito, é um diferencial (Profissional de nível superior C).

Entende-se que a dimensão longitudinal do vínculo, a continuidade do cuidado, é fortalecida pelos mecanismos de interação que os profissionais dispõem em seu processo de cuidar com os usuários, na qualidade das relações interpessoais, na conversa com o usuário dentro de um ambiente terapêutico ou até mesmo em interações ocasionais, em que o usuário expressa seus sentimentos, suas dúvidas e suas preocupações (MOREIRA, 2010MOREIRA, J. B. Comunicação: tecnologia leve para a interação dos saberes e práticas do cuidado - enfermeiros e usuário. (Monografia) - Especialização em Atenção Básica em Saúde da Família, Faculdade de Medicina, Belo Horizonte, 2010.; COSTA; AZEVEDO, 2010COSTA, F. D.; AZEVEDO, R. C. Empatia, relação médico-paciente e formação em medicina: um olhar qualitativo. Revista Brasileira de Educação Médica, v. 34, n. 2, p. 261-269, 2010.).

Considerações finais

O presente estudo, ao aprofundar a compreensão de como as equipes de saúde da família de uma unidade do Rio de Janeiro percebem o vínculo no cotidiano de seu trabalho, revelou concepções e práticas singulares da construção do vínculo longitudinal no ato de cuidar. Com base no campo empírico, os autores discutem evidências que reiteram os pressupostos teóricos de que o vínculo é um constructo complexo, relacionado a múltiplas condições interdependentes e de certa forma sinérgicas, que se potencializam umas às outras. Referimo-nos tanto às dimensões sistêmicas e organizacionais, que se expressaram no modelo de atenção primária adotado e na forma de organização dos serviços, como às dimensões relacional e interpessoal, desenvolvidas pelos profissionais de saúde.

De tal construção, emerge uma relação terapêutica usuário-profissional que, para além de contribuir para o acompanhamento longitudinal do indivíduo em seu contexto familiar e comunitário, também deve produzir autonomia no cuidado à saúde e à doença. Dessa forma, construir vínculo é um processo dialético de corresponsabilização, de empoderamento do usuário para seu autocuidado, com garantia de que os serviços estejam de portas abertas, garantindo atendimento efetivo às necessidades de saúde da população.

Para além de uma prática gerencial, de manter portas abertas e atuar com agendas flexíveis às demandas dos usuários, a construção do vínculo exige uma negociação, um consenso acerca das necessidades e responsabilidades do cuidado, impossibilitando que o ato terapêutico esteja centrado apenas no trabalhador de saúde ou apenas no desejo do usuário, mas que se situe na interação entre ambos, na busca da melhor conduta cuidadora, permitindo a construção de sujeitos autônomos e aprimorando as relações interpessoais (CAMPOS; AMARAL, 2007CAMPOS, G. W.; AMARAL, M. A. A clínica ampliada e compartilhada, a gestão democrática e redes de atenção como referenciais teórico-operacionais para a reforma do hospital. Ciênc. Saúde coletiva, v. 12, n. 4, p. 849-859, 2007.; SANTOS et al., 2008SANTOS, A. M. et al. Vínculo e autonomia na prática de saúde bucal no programa saúde da família. Rev Saúde Pública, v. 42, n. 3, 2008.).

A relação produtora de vínculo gera um melhor ambiente de cuidado e isso se dá especialmente pelo modo como os profissionais se relacionam com os usuários, na abertura que se estabelece para conversas dentro e fora dos espaços de consulta (SCHWARTZ et al., 2010SCHWARTZ, T. D. et al. Estratégia Saúde da Família: avaliando o acesso ao SUS a partir da percepção dos usuários da Unidade de Saúde de Resistência, na região de São Pedro, no município de Vitória (ES). Ciência & Saúde Coletiva, v. 15, n. 4, p. 2.145-2.154, 2010.).

Evidenciou-se que houve uma forte inter-relação entre o vínculo e demais atributos, como porta de entrada principal, integralidade e coordenação do cuidado, atributos que expressam um modelo de APS abrangente, universal, efetivo. Para além do modelo, as práticas promotoras de vínculo revelam-se confluentes, interdependentes, sinérgicas, com destaque para o desenvolvimento de tecnologias relacionais, o trabalho multiprofissional, a ampliação do cardápio de ofertas, com a melhor utilização de espaços, como a visita domiciliar e ações educativas.

As tecnologias relacionais desenvolvidas pelos profissionais no ato de cuidar estão ligadas à produção de comunicação, de acolhimento e de autonomização, sendo consideradas indissociáveis à prática de cuidar (MERHY, 2007MERHY, E. E. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. 3. ed. São Paulo: Editora Hucitec, 2007.; SILVA et al., 2008SILVA, D. C.; ALVIM, N. A.; FIGUEIREDO, P. A. Tecnologias leves em saúde e sua relação com o cuidado. Rev Enfermagem. Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, p. 291-8, jun 2008.; BRONDANI, 2010BRONDANI, J. P. Relacionamento Interpessoal e o trabalho em equipe: uma análise sobre a influência na qualidade de vida no trabalho. (Trabalho de conclusão de Curso) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Escola de Administração, Porto Alegre, 2010.). As relações interpessoais são influenciadas, além das dimensões afetivas e cognitivas, por aspectos que estão presentes nas organizações. As maneiras como as pessoas relacionam-se, os olhares, os gestos, o acolhimento e as formas de tratamento fazem parte das afinidades sociais e contribuem para a formação de empatia, com repercussões na satisfação dos usuários e na confiança nas condutas médicas (COSTA; AZEVEDO, 2010COSTA, F. D.; AZEVEDO, R. C. Empatia, relação médico-paciente e formação em medicina: um olhar qualitativo. Revista Brasileira de Educação Médica, v. 34, n. 2, p. 261-269, 2010.).

O modelo de APS centrado na ESF privilegia a organização do trabalho em equipe multidisciplinar, não ficando restrito apenas às equipes mínimas, mas no fomento ao apoio matricial e institucional, modelo que certamente contribui para a ampliação do escopo de serviços e práticas ofertados pela APS. No conjunto de tais práticas, aquelas relacionadas à educação em saúde assumem papel de destaque ao colaborar para a construção de cenários propícios para compartilhamento de novas temáticas, experiências e desejos, promovendo não somente a mudança de atitudes e comportamentos, mas, principalmente, a constituição de sujeitos/cidadãos portadores de autonomia e direitos sociais (VASCONCELOS, 2001VASCONCELOS, E. M. Redefinindo as práticas de saúde a partir de experiências de Educação Popular nos serviços de saúde. Interface, p. 8.121-26, 2001.; ALVES; AERTES, 2011ALVES, G. G.; AERTES D. As práticas educativas em saúde e a Estratégia Saúde da Família. Ciência & Saúde Coletiva, v. 16, n. 1, p. 319-325, 2011.).

Embora prescrita, as ações realizadas nas visitas domiciliares pelos agentes comunitários ou demais membros da equipe vêm se tornando cada dia mais administrativas e pouco relacionais ou efetivas no cuidado clínico, dificuldades presentes no grupo estudado.

Como limitações, cabe destacar que se trata de um estudo exploratório que levantou questões empíricas que foram sistematizadas e problematizadas e se referem a um dado contexto - uma unidade de saúde de um grande centro urbano, resultados cuja generalização deve ser cautelosa para outros contextos e grupos, concepções inerentes ao desenho da pesquisa qualitativa em saúde.

Nessa direção, projetamos a perspectiva urgente de que gestores e profissionais de saúde repensem a organização de seu trabalho na Saúde da Família, iniciando uma busca por alternativas que contenham como objetivo resgatar e reforçar os espaços construtores de vínculo, estimulando a utilização dessas estratégias pelas equipes.

Reforçamos a necessidade de se realizar uma análise sobre esse cenário, de forma a buscar medidas que estabeleçam o equilíbrio entre o cuidar e as funções burocráticas. Tal qual, atentar para a forma de realização dessas práticas, devendo ser repensadas de modo a sensibilizar os profissionais de saúde para a valorização desses espaços, que contribuem para a continuidade do cuidado e qualidade da assistência.

Referências

  • ALVES, G. G.; AERTES D. As práticas educativas em saúde e a Estratégia Saúde da Família. Ciência & Saúde Coletiva, v. 16, n. 1, p. 319-325, 2011.
  • AYRES, J. R. Cuidado e reconstrução das práticas de Saúde. Interface [online]. Botucatu, v. 8, n. 14, 2004, 2001.
  • BORGES, R.; DOHN, M. O trabalho de Equipe Interdisciplinar. In: CUTOLO, L. R. A. (Org.). Manual Terapêutica Assistência a Família. Florianópolis: Associação Catarinense de Medicina, 2006.
  • BOSI, M. L. M.; UHIMURA. K. Y. Avaliação da qualidade ou avaliação qualitativa do cuidado em saúde? Rev Saúde Pública, v. 41, n. 1, p. 150-3, 2007.
  • BRASIL. Política Nacional de Promoção da Saúde. Brasília: Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde, 2006. (Série B. Textos Básicos de Saúde Série Pactos pela Saúde, v. 7.)
  • _____. Política Nacional de Atenção Básica. Brasília: Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica, 2012.
  • _____. Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do SUS. Brasília: Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Clínica ampliada e compartilhada, 2009.
  • _____. Programa Saúde da Família. Departamento de Atenção Básica. Secretaria de Políticas de Saúde, 2014. Disponível em: <http://dab.saude.gov.br/portaldab/>.
    » http://dab.saude.gov.br/portaldab
  • _____. Programa de Agentes Comunitários de Saúde - PACS. Brasília: Secretaria Executiva, Ministério da Saúde, 2001b.
  • BRONDANI, J. P. Relacionamento Interpessoal e o trabalho em equipe: uma análise sobre a influência na qualidade de vida no trabalho. (Trabalho de conclusão de Curso) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Escola de Administração, Porto Alegre, 2010.
  • CAMPOS, G. W.; AMARAL, M. A. A clínica ampliada e compartilhada, a gestão democrática e redes de atenção como referenciais teórico-operacionais para a reforma do hospital. Ciênc. Saúde coletiva, v. 12, n. 4, p. 849-859, 2007.
  • CAMPOS, R. T.; CAMPOS, G. W. Co-constução de autonomia: o sujeito em questão. In: CAMPOS, G. W. S. et al (Org.). Tratado de Saúde Coletiva. São Paulo: Editora Hucitec, 2009.
  • COSTA, F. D.; AZEVEDO, R. C. Empatia, relação médico-paciente e formação em medicina: um olhar qualitativo. Revista Brasileira de Educação Médica, v. 34, n. 2, p. 261-269, 2010.
  • CRESWELL, J. W. Research Design: Qualitative, Quantitative and Mixed Methods Approaches. 3. ed. New York: Sage Publications, 2009.
  • CRUZ, M. M.; BOURGET, M. M. A Visita Domiciliária na Estratégia de Saúde da Família: conhecendo as percepções das famílias. Saúde Soc. São Paulo, v. 19, n. 3, p. 605-613, 2010.
  • CUNHA, E. M.; GIOVANELLA, L. Longitudinalidade/continuidade do cuidado: identificando dimensões e variáveis para a avaliação da Atenção Primária no contexto do sistema público de saúde brasileiro. Ciência & Saúde Coletiva, v. 16, supl. 1, p. 1.029-1.042, 2011.
  • FERRO, L. F. et al. Interdisciplinaridade e intersetorialidade na Estratégia Saúde da Família e no Núcleo de Apoio à Saúde da Família: potencialidades e desafios. O Mundo da Saúde, v. 38, n. 2, p. 129-138, 2014.
  • FLICK, U. Introdução à pesquisa qualitative/Uwe Flick. Trad. Joice Elias Costa. 3. Ed. Porto Alegre: Artmed, 2009.
  • FREIRE, P. (Org.). Educação e mudança. 12. ed. Paz e terra, 1979.
  • GIOVANELLA, L.; FLEURY, S. Universalidade da Atenção à Saúde: acesso como categoria de análise. In: EIBENSCHUTZ, C. (Org.). Política de Saúde: o público e o privado. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1996, p. 177-198.
  • GIOVANELLA, L.; MENDONÇA, M. H. M. Atenção Primária à Saúde. In: GIOVANELLA, L. et al. Políticas e sistemas de saúde no Brasil. 2. ed. rev. e amp. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2012.
  • HAGGERTY, J. L. et al. Continuity of care: a multidisciplinary review. BMJ, v. 327, n. 7425, p. 1219-21, Nov 2003.
  • HARZHEIM, E. Pesquisa avaliativa sobre aspectos de implantação, estrutura, processo e resultados das clínicas da família na cidade do Rio de Janeiro. Porto Alegre: Pós-graduação em Epidemiologia, UFRGS, 2013.
  • KELL, M. C.; SHIMIZU, H. E. Existe trabalho em equipe no Programa Saúde da Família? Ciênc. Saúde Coletiva, v. 15, supl. 1, 2010.
  • KRISTJANSSON, E. Predictors of relational continuity in primary care: patient, provider and practice factors. BMC Family Practice, v. 14, n. 72, 2013.
  • LOPES W.; SAUPE, R.; MASSAROLI, A. Visita domiciliar: tecnologia para o cuidado, o ensino e a pesquisa. Cienc. Cuid Saúde, v. 7, n. 2, p. 241-7, 2008.
  • MARQUES, G. Q.; LIMA M. A. D. As tecnologias leves como orientadoras dos processos de trabalho. Rev Gaúcha Enferm, v. 25, n. 1, p. 17-25, 2004.
  • MAXWELL, J. A. Qualitative Research Design: An Interactive Approach, 2. ed. New York: Sage Publications, 2005.
  • MENDES, E. V. O cuidado das condições crônicas na atenção primária à saúde: o imperativo da consolidação da estratégia de saúde da família. Brasília: OPAS/OMS, 2012.
  • MERHY, E. E. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. 3. ed. São Paulo: Editora Hucitec, 2007.
  • MORAES, E. C. Abordagem relacional: uma estratégia pedagógica para a educação científica na construção de um conhecimento integrado. Laboratório de Pesquisa para um Conhecimento Integrado. Centro de Ciências Biológicas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, p.1-11. 2003.
  • MOREIRA, J. B. Comunicação: tecnologia leve para a interação dos saberes e práticas do cuidado - enfermeiros e usuário. (Monografia) - Especialização em Atenção Básica em Saúde da Família, Faculdade de Medicina, Belo Horizonte, 2010.
  • ROCHA, P. M.; ARAÚJO, M. B. Trabalho em equipe: um desafio para a consolidação da estratégia de saúde da família. Cienc, Saúde Coletiva, v. 12, n. 2, p. 455-464, 2007.
  • ROGERS, C. R. The necessary and sufficient conditions for therapeutic personality change. J Consult Clin Psychol., v. 60, n. 6, p. 827-832, 1992.
  • SANTOS, A. M. et al. Vínculo e autonomia na prática de saúde bucal no programa saúde da família. Rev Saúde Pública, v. 42, n. 3, 2008.
  • SANTOS, R. et al. O vínculo longitudinal como dispositivo do cuidado: doenças crônicas e saúde da família. Saarbrücken: Novas Edições Acadêmicas, 2016.
  • SAULTZ, J. W. Defining and Measuring Interpersonal Continuity of Care. Ann Fam Med, v. 1, n. 3, 2003.
  • SCHWARTZ, T. D. et al. Estratégia Saúde da Família: avaliando o acesso ao SUS a partir da percepção dos usuários da Unidade de Saúde de Resistência, na região de São Pedro, no município de Vitória (ES). Ciência & Saúde Coletiva, v. 15, n. 4, p. 2.145-2.154, 2010.
  • SILVA, D. C.; ALVIM, N. A.; FIGUEIREDO, P. A. Tecnologias leves em saúde e sua relação com o cuidado. Rev Enfermagem. Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, p. 291-8, jun 2008.
  • SOSSAI, L. C. F.; PINTO, I. C. A visita domiciliária do enfermeiro: fragilidades x potencialidades. Cienc Cuid Saude, v.9, n. 3, p. 569-576, 2010.
  • STARFIELD, B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: UNESCO; Ministério da Saúde, 2002.
  • TAKEMOTO, M. L. S.; SILVA, E. M. Acolhimento e transformações no processo de trabalho de enfermagem em unidades básicas de saúde de Campinas. São Paulo, Brasil. Cad Saude Publica, v. 23, n. 2, p. 331-40, 2007.
  • VASCONCELOS, E. M. Redefinindo as práticas de saúde a partir de experiências de Educação Popular nos serviços de saúde. Interface, p. 8.121-26, 2001.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Ago 2018

Histórico

  • Recebido
    20 Nov 2017
  • Aceito
    15 Fev 2018
PHYSIS - Revista de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: publicacoes@ims.uerj.br