Resumo
O estudo teve como objetivo investigar o custo humano físico, cognitivo e social no trabalho do agente comunitário de saúde (ACS) e sua relação com possíveis danos à sua saúde. Estudo transversal, descritivo, quantitativo-qualitativo, com 251 ACS de municípios da 13ª Coordenadoria Regional de Saúde-RS. Os dados foram coletados em entrevistas, questionário sociodemográfico e “Inventário de Trabalho e Riscos de Adoecimento” (ITRA). Utilizaram-se para a análise dos dados a média dos escores fatoriais e a Análise de Conteúdo. Todos os fatores relativos aos custos humanos apresentaram avaliação moderada/crítica. Quanto aos danos à saúde, os danos físicos receberam avaliação moderada/crítica, sendo os demais avaliados como positivos/suportáveis. Apesar disso, foi relatada a presença de transtornos psíquicos, em um discurso de banalização do sofrimento advindo do trabalho.
Palavras-chave:
agentes comunitários de saúde; atenção básica; saúde ocupacional
Abstract
This study aimed to investigate the physical, cognitive and social human costs in the work of the community health worker (CHW) and its relation with possible damages to their health. Descriptive, cross-sectional, quantitative and qualitative study, conducted with 251 CHW’s in municipalities from the 13th Regional Coordination of Health Rio Grande do Sul state, Brazil. Data were collected through interviews, sociodemographic questionnaire and “Inventory of Work and Illness Risks” (ITRA). The average factor scores and Content Analysis were used for the analysis of data. All factors relating to human costs had moderate / critical evaluation. As for health damage, physical damage received moderate / critical evaluation, and the others were evaluated as positive / supportable. However, the presence of mental disorders was reported, in a discourse that trivialized suffering from work.
Keywords:
community health workers; primary health care; occupational health
Introdução
Visando à reorganização dos serviços de atenção à saúde do Sistema Único de Saúde (SUS), a implantação da Estratégia Saúde da Família (ESF), divulgada oficialmente em 1994 como Programa de Saúde da Família (PSF), trouxe à tona um potente modelo de assistência responsável por desenvolver ações, no nível da atenção primária à saúde, voltadas ao indivíduo, à família e à comunidade (RODRIGUES, 2011RODRIGUES, C. R. F. Do Programa de Saúde da Família à Estratégia Saúde da Família. In: AGUIAR, Zenaide Neto. SUS: Sistema Único de Saúde - antecedentes, percurso, perspectivas e desafios. São Paulo: Martinari, 2011.; BRASIL, 2012). Esse movimento na história da saúde brasileira ocorre com o propósito de substituir as práticas convencionais de assistência antes existentes, através da territorialização do cuidado com o apoio de uma equipe multiprofissional responsável por uma unidade local de saúde (RODRIGUES, 2011).
Juntamente com esse cenário, surge um novo ator na equipe de saúde, o agente comunitário de saúde (ACS), que se insere na ESF como membro da comunidade e que, por meio de ações de vigilância em saúde em visitas domiciliares, possibilita a articulação do serviço com os moradores daquela localidade (BRASIL, 2012).
Essa profissão apresenta inúmeras particularidades em seu cotidiano de trabalho. Destaca-se, entre tantos fatores, a sobrecarga emocional que os ACSs estão expostos, relacionada tanto à pressão exercida pela comunidade e pela equipe de saúde sobre seu trabalho, como pelo forte poder de impotência, em algumas ocasiões, diante da baixa resolutividade das demandas encontradas na região onde residem e trabalham (BARALHAS, PEREIRA, 2013BARALHAS, M.; PEREIRA, M. A. O. Prática diária dos agentes comunitários de saúde: dificuldades e limitações da assistência. Rev. Bras. Enferm., Brasília, v. 66, n. 3, p. 358-365, 2013.; SOUZA, FREITAS, 2011SOUZA, L. J. R.; FREITAS, M. C. S. O Agente Comunitário de Saúde: violência e sofrimento no trabalho a céu aberto. Revista Baiana de Saúde Pública. Salvador, v. 35, n. 1, p. 69-109, jan.-mar., 2011.). Além desses fatores, cabe salientar a demanda física presente no processo de trabalho dos ACSs, principalmente os que integram ESFs localizadas em áreas rurais, decorrente de extensos trajetos percorridos em visitas domiciliares, ataques de animais e intempéries climáticas (BAPTISTINI; FIGUEIREDO, 2014BAPTISTINI, R. A.; FIGUEIREDO, T. A. M. Agente comunitário de saúde: desafios do trabalho na zona rural. Ambient. Soc. São Paulo, v. 17, n. 2, p. 53-70, 2014. ).
Nesse sentido, Mendes (1995MENDES, A. M. B. Aspectos psicodinâmicos da relação homem-trabalho: as contribuições de C. Dejours. Psicol. Cienc. Prof. Brasília, v. 15, n. 1-3, p.34-38, 1995.) diz que cada indivíduo se posiciona de maneira diferente perante as dificuldades em seu trabalho, tendo em vista que a necessidade de prazer difere entre as pessoas. Portanto, considera que o sofrimento é oriundo da não satisfação das necessidades individuais relacionada à forma como seu trabalho é organizado. Sobre isso, atualmente, percebe-se que a organização do trabalho se apresenta cada vez mais automatizada e os custos existentes sobre o trabalhador são altos, o que acaba resultando, muitas vezes, no sofrimento desse indivíduo (MENDES, 1995MENDES, A. M. B. Aspectos psicodinâmicos da relação homem-trabalho: as contribuições de C. Dejours. Psicol. Cienc. Prof. Brasília, v. 15, n. 1-3, p.34-38, 1995.; CAMELO; GALON; MARZIALE, 2012CAMELO, S. H. H.; GALON, T.; MARZIALE, M. H. P. Formas de Adoecimento pelo trabalho dos agentes comunitários de saúde e estratégias de gerenciamento. Revista de Enfermagem UERJ. Rio de Janeiro, v. 20, n. esp1, p. 661-667, 2012.). No trabalho do ACS, essas características são reflexos do desenvolvimento de atividades que levariam à perda da especificidade da profissão e até mesmo de questões insalubres nas condições e relações de trabalho (MENDES, 1995; ROSA; BONFANTI; CARVALHO, 2012ROSA, A. J.; BONFANTI, A. L.; CARVALHO, C. S. O sofrimento psíquico de Agentes Comunitários de Saúde e suas relações com o trabalho. Saúde Soc.São Paulo, v. 21, n. 1, p. 141-152, 2012.; LOPES et al., 2012LOPES, D. M. Q. et al. Agentes Comunitários de Saúde e as vivências de prazer - sofrimento no trabalho: estudo qualitativo. Rev. Esc. Enferm. USP, São Paulo, v. 46, n. 3, p. 633-640, jun. 2012.).
Dessa forma, o custo humano no trabalho refere-se à carga ou dispêndio existentes nas atividades vivenciadas no cotidiano de trabalho, proveniente de fatores objetivos e subjetivos que podem interferir na saúde do trabalhador quando ultrapassam as capacidades do indivíduo (MENDES; FERREIRA, 2007MENDES, A. M. B. (Org.). Psicodinâmica do trabalho: teoria, método e pesquisa. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007.). Os custos estão associados às demandas e exigências físicas, cognitivas e afetivas. O custo físico refere-se ao custo fisiológico e biomecânico sofrido pelo trabalhador no desempenho de sua profissão, o cognitivo é relativo ao gasto intelectual no trabalho, relacionado à tomada de decisões e à aprendizagem, e o afetivo refere-se ao dispêndio emocional existente nos sentimentos, reações afetivas e estados de humor do indivíduo (MENDES; FERREIRA, 2007).
Partindo dessas considerações, objetivou-se investigar os custos humano físico, cognitivo e social no trabalho do ACS e a relação destes com possíveis danos a sua saúde.
Caminho metodológico
Este estudo transversal, descritivo, do tipo quantitativo-qualitativo, trata-se de um recorte da pesquisa “Sofrimento no trabalho de Agentes Comunitários de Saúde: um estudo nos municípios da 13ª Coordenadoria Regional de Saúde - RS” desenvolvida pelo Grupo de Estudos e Pesquisa em Saúde (GEPS) da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC) nos anos de 2014 e 2015. A amostra foi constituída por 251 ACSs de 34 equipes de Estratégias de Saúde da Família (ESF) e de cinco equipes de Estratégias de Agentes Comunitários de Saúde (EACS) dos 13 municípios de abrangência da 13ª Coordenadoria Regional de Saúde (CRS) - 28ª Região de Saúde do Rio Grande do Sul.
A 28ª Região de Saúde, localizada na região dos Vales, contempla 13 municípios da região central do estado, abrangendo uma população de 343.858 habitantes (IBGE, 2014). Esses municípios são, majoritariamente, compostos por descendentes de alemães e açorianos e formados por extensas áreas rurais, com atividades voltadas para a agricultura e pecuária. Nas regiões urbanas, destacam-se as indústrias e o comércio, em que a expressiva produtividade desses segmentos confere à região importante crescimento econômico. No que se refere à Atenção Básica, os 13 municípios totalizam, atualmente, 46 Unidades Básicas de Saúde (UBS) e 44 Estratégias de Saúde da Família (ESF).
A coleta dos dados foi realizada com base em três instrumentos: um questionário socioeconômico, o formulário “Inventário de Trabalho e Risco de Adoecimento” (ITRA), validado em estudos de Mendes e Ferreira (2007MENDES, A. M. B. (Org.). Psicodinâmica do trabalho: teoria, método e pesquisa. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007.), e um roteiro de entrevista semiestruturada. Os dois primeiros instrumentos foram respondidos pelos 251 sujeitos na primeira etapa do estudo, e para a entrevista, na segunda etapa do estudo, em uma amostragem intencional, por município e tipo de estratégia, 15 sujeitos participaram.
O ITRA é um inventário composto por quatro escalas (dimensões) que avaliam a inter-relação entre trabalho e adoecimento e objetiva investigar os fatores presentes na atividade laboral que podem contribuir para o processo de adoecimento no trabalho e seus efeitos sob o trabalhador. Para este estudo, consideraram-se duas escalas: Escala de Custo Humano no Trabalho (ECHT) e Escala de Avaliação dos Danos Relacionados ao Trabalho (EADRT).
A Escala de Custo Humano no Trabalho (ECHT), composta por 32 questões, tem por objetivo avaliar a percepção do sujeito quanto às exigências decorrentes de seu contexto de trabalho. Compreende três fatores: custo físico, definido como dispêndio fisiológico e biomecânico imposto ao trabalhador pelas características do contexto de produção; custo cognitivo, que significa dispêndio intelectual para aprendizagem, resolução de problemas e tomada de decisão no trabalho; e custo afetivo, definido como dispêndio emocional, sob a forma de relações afetivas, sentimentos e de estados de humor. Trata-se de uma escala do tipo Likert de 5 pontos, constituída por itens com variação de 1 a 5. Os resultados são classificados em: grave (escores acima de 3,7), moderado, crítico (escores entre 2,3 e 3,69) e avaliação positiva, satisfatória (escores abaixo de 2,29) (MENDES, 2007MENDES, A. M. B. (Org.). Psicodinâmica do trabalho: teoria, método e pesquisa. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007.).
A Escala de Avaliação dos Danos Relacionados ao Trabalho (EADRT) tem por objetivo apresentar descrições relativas às consequências em termos de danos físicos e psicossociais. É composta por três fatores: danos físicos, definidos como dores no corpo e distúrbios biológicos; danos psicológicos, definidos como a presença de sentimentos negativos em relação a si mesmo e à vida em geral; danos sociais, caracterizados como isolamento e dificuldade nas relações familiares e sociais. É uma escala de 7 pontos, com variação de 0 a 6, formada por 29 questões. Esta escala envolve os níveis: negativa, presença de doenças ocupacionais (escores acima de 4,1); moderado para frequente, grave (escores entre 3,1 e 4,0); moderado, crítico (escores entre 2,0 e 3,0); e positivo, suportável (escores abaixo de 1,9) (MENDES, 2007MENDES, A. M. B. (Org.). Psicodinâmica do trabalho: teoria, método e pesquisa. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007.).
Na entrevista que teve como intenção aprofundar os dados obtidos nos instrumentos quantitativos aplicados anteriormente, utilizou-se uma questão norteadora: “Na sua percepção, há relação do seu trabalho com algum tipo de sofrimento/adoecimento? Qual?”. Esses dados foram coletados em registros eletrônicos, para os quais os sujeitos responderam expressando-se livremente. Como garantia de anonimato, os nomes dos entrevistados foram mantidos em sigilo, sendo usadas apenas as referências indicativas ACS 1, ACS 2, ACS 3, e assim sucessivamente até o último sujeito.
Os dados quantitativos foram organizados com o auxílio do Software Statistical Package for Social Sciences 20.0 (SPSS). Na análise dos fatores de cada dimensão, obteve-se o escore fatorial com o cálculo da média entre os itens, considerando-se o ponto médio e o desvio padrão. Já os dados qualitativos, obtidos por meio das entrevistas, foram transcritos, organizados e analisados na perspectiva da Análise de Conteúdo, segundo Bardin (2010BARDIN, L. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2010.). A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC sob o protocolo 713.475.
Análise e discussão dos dados
Os participantes da primeira etapa do estudo eram predominantemente do sexo feminino (92,8%), com idade entre 31 a 40 anos (37,5%), casados (48,6%), com 1 a 2 filhos (64,9%). No que se refere à escolaridade, 54,2% tinham ensino médio completo e 13,2% cursavam o ensino superior. Desses, grande parte está vinculada a ESFs (59,8%) e, em menor expressão, a EACS (40,2%), com predomínio de atuação em área urbana (50,2%), seguido de área rural (43,8%) e em ambas as áreas (5,25%).
Esse perfil de ACS composto, majoritariamente, por mulheres vai ao encontro de resultados semelhantes em outros estudos, evidenciando que as equipes de saúde, em sua grande maioria, têm como principal característica o predomínio de ACS do sexo feminino (BARALHAS; PEREIRA, 2013BARALHAS, M.; PEREIRA, M. A. O. Prática diária dos agentes comunitários de saúde: dificuldades e limitações da assistência. Rev. Bras. Enferm., Brasília, v. 66, n. 3, p. 358-365, 2013.; LOPES et al., 2012LOPES, D. M. Q. et al. Agentes Comunitários de Saúde e as vivências de prazer - sofrimento no trabalho: estudo qualitativo. Rev. Esc. Enferm. USP, São Paulo, v. 46, n. 3, p. 633-640, jun. 2012.; ROCHA, BARLETTO BEVILACQUA, 2013ROCHA, N. H. N.; BARLETTO, M.; BEVILACQUA, P. D. Identidade da agente comunitária de saúde: tecendo racionalidades emergentes. Interface. Botucatu, v. 17, n. 47, p. 847-57, out.-dez. 2013.). Essa tendência à presença feminina indica que, além de não ser exclusividade da região estudada, ela pode estar relacionada a aspectos culturais ligados à profissão e às funções específicas do ACS. Tal predominância pode ser em parte explicada pela divisão social e sexual do trabalho, que relaciona a imagem do feminino ao papel de cuidadora e a uma ideia de vocação ao cuidado do outro. Por ser uma atividade ligada ao exercício do cuidado, o trabalho de ACS é uma modalidade culturalmente ligada ao trabalho doméstico feminino (BARBOSA et al., 2012BARBOSA, R. E.; ASSUNÇÃO, A. A.; ARAÚJO, T. M. Musculoskeletal disorders among healthcare workers in Belo Horizonte, Minas Gerais State, Brazil. Cad. Saúde Pública. Rio de Janeiro, v. 28, n. 8, p. 1.569-1.580, 2012.). Isso decorre da imagem histórica criada acerca das profissões associadas ao cuidar, dado que elas sempre foram vistas como cargos a serem ocupados, predominantemente, por mulheres, justamente pela característica de “zelo social” a que são associadas (ROCHA; BARLETTO; BEVILACQUA, 2013).
Sendo suas ações muito ligadas à formação de vínculo e ao cuidado, podem ser muitas vezes encaradas como uma atividade vocacional, sendo socialmente desvalorizadas (COSTA et al., 2012COSTA, M. C. et al. Processo de trabalho dos agentes comunitários de saúde: possibilidades e limites. Revista Gaúcha de Enfermagem [on-line], Porto Alegre, v. 33, n. 3, p. 134-40, 2012. ). Há, nesse sentido, uma representação histórica do papel feminino do cuidado que ocasiona intensa exploração da trabalhadora. No caso das entrevistadas, além da jornada de trabalho nos serviços de saúde, pode haver ainda uma dupla ou tripla jornada de trabalho, visto que essas trabalhadoras provavelmente conciliam o trabalho assalariado com o cuidado dos filhos e do lar. Dessa forma, reforçam-se as questões de gênero relacionadas à profissão de ACS, visto que, principalmente nas cidades do interior, as atividades domésticas estão incutidas no cotidiano feminino, demandando mais tempo, esforço físico e envolvimento dessas trabalhadoras (VOGT et al., 2012VOGT, M. S. et al. Cargas físicas e psíquicas no trabalho do Agente Comunitário de Saúde. Cogitare Enferm. Curitiba, v. 17, n. 2, p. 297-303, 2012.).
No que se refere à área de atuação dos ACSs, em virtude da heterogenia das características geográficas dos municípios que compõem a região estudada, percebe-se que a atuação de alguns ACSs não se limita à área urbana ou rural, estendendo-se a ambas. Nesse contexto, somam-se ao contato com situações de pobreza e vulnerabilidade social e à exposição a situações de violência, características das áreas urbanas (SOUZA E FREITAS, 2011SOUZA, L. J. R.; FREITAS, M. C. S. O Agente Comunitário de Saúde: violência e sofrimento no trabalho a céu aberto. Revista Baiana de Saúde Pública. Salvador, v. 35, n. 1, p. 69-109, jan.-mar., 2011.), as dificuldades decorrentes do trabalho em zona rural. Recorremos à colocação de Baptistini e Figueiredo (2014BAPTISTINI, R. A.; FIGUEIREDO, T. A. M. Agente comunitário de saúde: desafios do trabalho na zona rural. Ambient. Soc. São Paulo, v. 17, n. 2, p. 53-70, 2014. , p. 58) acerca do trabalho na zona rural. Segundo eles, os profissionais que atuam nessa área “convivem com algumas situações que são singulares de seu labor”, o que ocasiona, principalmente, custos físicos mais elevados durante suas atividades, pelas distâncias percorridas, peculiaridades geográficas distintas, entre outros fatores.
O custo humano no trabalho
Os dados relativos à análise da “Escala de Custo Humano no Trabalho”, conforme a tabela 1, apresentaram uma avaliação moderada, crítica para a dimensão, bem como para os três fatores: custo afetivo, custo cognitivo e custo físico.
A avaliação moderada, crítica dos três fatores e também da dimensão demonstra que a atividade laboral dos entrevistados demanda grande dispêndio emocional, físico e de aprendizado. Porém, apesar dessa análise, os dispêndios físicos e cognitivos no trabalho não foram citados nos relatos dos ACSs. Isto sugere que, apesar de presentes, como aponta a avaliação moderada a crítica dos fatores, estes custos não são percebidos pelos trabalhadores como aspectos que impliquem demandas significativas do trabalho sobre sua saúde.
Altas prevalências de distúrbios físicos, entre eles, os musculoesqueléticos, foram encontradas em outros estudos com ACS, associando custos físicos, próprios das condições ambientais do trabalho, como a grande exposição a cargas biomecânicas, longas caminhadas e a posturas inadequadas durante visitas domiciliares, à presença de dores nas costas e nas pernas (BARBOSA, ASSUNÇÃO, ARAÚJO, 2012BARBOSA, R. E.; ASSUNÇÃO, A. A.; ARAÚJO, T. M. Musculoskeletal disorders among healthcare workers in Belo Horizonte, Minas Gerais State, Brazil. Cad. Saúde Pública. Rio de Janeiro, v. 28, n. 8, p. 1.569-1.580, 2012.; SANTOS et al., 2016SANTOS, F. A. A. S. et al. Fatores que influenciam na qualidade de vida dos agentes comunitários de saúde. Acta Paul. Enferm. São Paulo, v. 29, n. 2, p. 191-197, 2016. ). Nesse sentido, percebe-se que o contexto de trabalho do ACS pode ser um fator de custo físico significativo, ainda que, no presente estudo, o ITRA não tenha identificado sua presença.
Estudos de Oliveira et al. (2010OLIVEIRA, A. R. et al. Satisfação e limitação no cotidiano de trabalho do agente comunitário de saúde. Rev. Eletr. Enf. Goiânia, v. 12, n. 1, p. 28-36, abr. 2010.) e Gomes et al. (2015GOMES, M. F. et al. Riscos e agravos ocupacionais: percepções dos agentes comunitários de saúde. J. Res.: Fundam. Care., Rio de Janeiro, v. 7, n. 4, p. 3574-3586, out.-dez., 2015.) evidenciam que o custo físico no trabalho do ACS relaciona-se às condições precárias de trabalho, como a falta de materiais para desempenhar suas atividades, dificuldade no acesso nas visitas domiciliares, bem como falta de transporte para realizar as mesmas, principalmente às famílias localizadas na zona rural. Ainda, somam-se as caminhadas em ruas esburacadas e o uso de mochilas com o peso de balança para pesagem e outros materiais necessários para sua jornada de trabalho (MASCARENHAS, PRADO, FERNANDES, 2013MASCARENHAS, C. H. M.; PRADO, F. O.; FERNANDES, M. H. Fatores associados à qualidade de vida de Agentes Comunitários de Saúde. Ciência & Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 18, n. 5, p. 1375-1386, maio. 2013.; GOMES et al, 2015GOMES, M. F. et al. Riscos e agravos ocupacionais: percepções dos agentes comunitários de saúde. J. Res.: Fundam. Care., Rio de Janeiro, v. 7, n. 4, p. 3574-3586, out.-dez., 2015.). Já o dispêndio cognitivo no cenário da Atenção Básica à Saúde apresenta-se, principalmente, através do processo de resolução dos problemas, advindos tanto do conteúdo do trabalho como também das demandas encontradas na comunidade, que exigem do profissional habilidades e competências intelectuais, por vezes, complexas para a superação dessas dificuldades (SHIMIZU; CARVALHO JUNIOR, 2012SHIMIZU, H. E.; CARVALHO JUNIOR, D. A. O processo de trabalho na Estratégia Saúde da Família e suas repercussões no processo saúde-doença. Ciênc. Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 17, n. 9, p. 2405-2414, set. 2012.).
As exigências afetivas, diferentemente dos custos afetivos e cognitivos, foram abordadas nas falas dos ACSs. Em sua maioria impostas pela organização do trabalho, essas demandas afetivas referem-se à proximidade e convivência constante com o usuário, à falta de reconhecimento pelo trabalho desenvolvido e à falta de resolutividade das demandas da população, como peculiaridades do trabalho que geram uma sobrecarga no aspecto emocional:
É que exige muito no nosso emocional, porque tu lida com muita gente diferente, e tu tem que saber lidar, então muitas vezes realmente tu acaba adoecendo por causa disso (ACS 1).
O psicológico da gente é bastante afetado, até porque a gente não é reconhecido, então a gente luta bastante pra dar tudo certo e daí quando a gente consegue a nossa parte e leva isso adiante e isso para. Um exemplo é as nossas visitas... a gente faz as visitas e os pacientes pedem, exigem tudo de nós ACS, só que não depende de nós aquilo dar certo, entende? (ACS 2)
A dimensão emocional do trabalho é o aspecto mais citado pelos entrevistados como fator que gera maior dispêndio e influencia negativamente nas atividades desenvolvidas. A proximidade com a comunidade e a criação do vínculo, apesar de serem características citadas pelo Ministério da Saúde como fundamentais para o bom desempenho das atividades do ACS (BRASIL, 2006; BRASIL, 2011), são evidenciados como aspectos que dificultam suas ações e que demandam capacidade e criatividade para resolver situações adversas que, muitas vezes, ultrapassam seu poder de ação. Os relatos dos ACSs quanto a não conseguirem, em muitas circunstâncias, dar conta das exigências da comunidade pode ser indicativo de duas situações: a diminuição do poder de ação do trabalhador e as enormes exigências impostas sobre ele pela comunidade.
Outro aspecto muito relacionado ao trabalho do ACS e que vai ao encontro da ideia de “trabalho vocacional” é a apropriação de atividades que extrapolam seu trabalho prescrito. Estudos demonstram que este trabalhador nem sempre compreende seu papel profissional e a forte cobrança da população por resultados faz com que ele assuma para si atividades que competem a outros integrantes da equipe, como funções administrativas e agendamento de consultas (OLIVEIRA et al., 2010OLIVEIRA, A. R. et al. Satisfação e limitação no cotidiano de trabalho do agente comunitário de saúde. Rev. Eletr. Enf. Goiânia, v. 12, n. 1, p. 28-36, abr. 2010.; BARALHAS;PEREIRA, 2013BARALHAS, M.; PEREIRA, M. A. O. Prática diária dos agentes comunitários de saúde: dificuldades e limitações da assistência. Rev. Bras. Enferm., Brasília, v. 66, n. 3, p. 358-365, 2013.; COSTA et al., 2012COSTA, M. C. et al. Processo de trabalho dos agentes comunitários de saúde: possibilidades e limites. Revista Gaúcha de Enfermagem [on-line], Porto Alegre, v. 33, n. 3, p. 134-40, 2012. ). A apropriação de funções decorrentes das exigências da comunidade amplia o escopo de atividades do ACS e impossibilita a realização de todas as atividades, o que, por sua vez, gera ainda mais cobrança, contribuindo com a diminuição da potência de agir e a limitação da possibilidade de inventividade no trabalho. A respeito disso, Galavote et. al. (2013GALAVOTE, H. S. et al. Alegrias e tristezas no cotidiano de trabalho do agente comunitário de saúde: cenários de paixões e afetamentos. Interface, Botucatu, v. 17, n. 46, p. 575-586, epub Aug 23, 2013.) citam a limitação da potência de ação do trabalhador como fator que o impossibilita de realizar atividades além daquelas prescritas e evidencia um predomínio do trabalho morto, regrado e instrumentalizado, sobre o trabalho vivo, que possibilita o uso da criatividade, sendo dessa forma um aspecto limitante e que ocasiona a perda da liberdade no trabalho. Desse modo, o trabalho do ACS torna-se regrado e restrito a determinadas atividades que por vezes não dão conta das demandas da população atendida.
A partir dos resultados, evidencia-se uma relação entre o fato de o ACS ser morador da comunidade onde trabalha e as constantes cobranças por resultados por parte da mesma. A obrigatoriedade de residir no bairro em que trabalha, conforme determina a Lei nº 10.057, de 10 de julho de 2002, pressupõe a familiaridade com o local de trabalho e a identificação do ACS com a população como um aspecto positivo para o desempenho das atividades junto à comunidade. Entretanto, o contato diário com o usuário faz com que o ACS esteja sob constante supervisão e avaliação, além de vivenciar mais cruamente situações de sofrimento da população (ROSA, BONFANTI, CARVALHO, 2012ROSA, A. J.; BONFANTI, A. L.; CARVALHO, C. S. O sofrimento psíquico de Agentes Comunitários de Saúde e suas relações com o trabalho. Saúde Soc.São Paulo, v. 21, n. 1, p. 141-152, 2012.). Além disso, essa proximidade dificulta a diferenciação entre o papel de trabalhador e o de vizinho, seja por parte da população ou do próprio profissional. Esse é um assunto amplamente discutido pelos ACSs, visto que trabalhar e residir no mesmo local pode tornar-se uma fonte adicional de sofrimento psíquico por implicar maior demanda de tarefas e perda de privacidade, pela procura da comunidade fora do horário de trabalho, dificultando o “desligamento” do seu mundo laboral e a separação entre o que é trabalho e o que é vida pessoal (CREMONESE, MOTTA, TRAESEL, 2013CREMONESE, G. R.; MOTTA, R. F.; TRAESEL, E. S. Implicações do trabalho na saúde mental dos Agentes Comunitários de Saúde. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho. São Paulo, v. 16, n. 2, p. 279-293, dez. 2013.; VOGT et al., 2012VOGT, M. S. et al. Cargas físicas e psíquicas no trabalho do Agente Comunitário de Saúde. Cogitare Enferm. Curitiba, v. 17, n. 2, p. 297-303, 2012.; LOPES et al., 2012LOPES, D. M. Q. et al. Agentes Comunitários de Saúde e as vivências de prazer - sofrimento no trabalho: estudo qualitativo. Rev. Esc. Enferm. USP, São Paulo, v. 46, n. 3, p. 633-640, jun. 2012.), o que foi identificado nas falas dos trabalhadores:
Às vezes tu escuta tanta coisa que não tem como não se afetar, a gente deveria saber separar as coisas, mas chega um ponto que tu tá tão íntimo das pessoas que tu acaba trazendo isso pra ti também... Tu acaba adoecendo (ACS 1) .
Percebo em casa, eu chego e comento com o meu marido: hoje aconteceu tal coisa eu vi aquilo e não consegui resolver, ai ele diz: o que tu vai fazer? Tu não pode fazer isso diferente né. Então é isso, eu me sinto assim, em casa, me sinto pensativa com aquilo que passou o dia... a cabeça até dói, as vezes penso, meu deus hoje eu vou ter que carregar tudo... chega numa coisa é isso e isso e chega na outra mais isso e mais isso, aí tu absorve tudo e fica atacada (ACS 3).
Segundo Barbosa et al. (2012BARBOSA, R. E.; ASSUNÇÃO, A. A.; ARAÚJO, T. M. Musculoskeletal disorders among healthcare workers in Belo Horizonte, Minas Gerais State, Brazil. Cad. Saúde Pública. Rio de Janeiro, v. 28, n. 8, p. 1.569-1.580, 2012., p. 758), esse tipo de atitude está bastante relacionado à questão do gênero, já que “ACS homem é profissional, ACS mulher é amiga”, haja vista que os profissionais do sexo masculino, com mais frequência, conseguem estabelecer limites para sua jornada de trabalho. Nesse sentido, ao reforçar a predominância de ACS mulher nas equipes de saúde, entende-se que essas profissionais traduzem, em seu trabalho, um forte sentimento de solidariedade, ficando disponíveis para a comunidade até mesmo aos finais de semana.
Pupin e Cardoso (2008PUPIN, V. M.; CARDOSO, C. L. Agentes Comunitários de Saúde e os sentidos de “ser agente”. Estudos de Psicologia. Natal, v. 13, n. 2, p. 157-163, ago. 2008.) salientam a tendência do ACS de se apropriar da voz da comunidade, em uma metáfora a um ser superior, capaz de transformar a realidade. Tal situação, ao passo que reitera a visão assistencialista da profissão, percebendo a comunidade como agente passivo, gera cobranças adicionais e pode ocasionar desgaste físico e emocional ao trabalhador, seja pela sobrecarga de responsabilidades ou pela percepção de que não é possível atender a todas as exigências da população, o que é expresso na seguinte fala:
Eu acho que decepção, né... Eu não teria a palavra exata assim, eu acho que seria mais uma tristeza por não ter dado certo, entende. Porque a gente gostaria de resolver as coisas, gostaria de dar um retorno ao paciente e não consegue, por que não depende só de nós (ACS 2).
Ainda, a autocobrança gera um esforço adicional, tanto emocional quanto cognitivo, que muitas vezes não é reconhecido. A narrativa dos profissionais entrevistados reitera a visão dos autores Pupin e Cardoso (2008PUPIN, V. M.; CARDOSO, C. L. Agentes Comunitários de Saúde e os sentidos de “ser agente”. Estudos de Psicologia. Natal, v. 13, n. 2, p. 157-163, ago. 2008.), em que a falta de reconhecimento pelo trabalho executado, aliado a constante cobrança por resultados, traz ao ACS a sensação de incapacidade. A fala a seguir exprime o custo emocional decorrente da falta de reconhecimento:
O secretário aqui deveria dar mais atenção no nosso trabalho que é muito importante e a gente recebe pouco apoio deles assim, geralmente a gente chega aqui é pra ouvir reclamação, ouvir xingão, aumento de metas, nunca elogios pra elevar a tua autoestima... é só reclamação, acho que isso podia mudar né... porque eu gosto do meu trabalho, se tivesse um incentivo seria melhor, né (ACS 4).
Sobre essa falta de reconhecimento no trabalho do ACS, a mesma é explorada em outros estudos (GOMES et al., 2015GOMES, M. F. et al. Riscos e agravos ocupacionais: percepções dos agentes comunitários de saúde. J. Res.: Fundam. Care., Rio de Janeiro, v. 7, n. 4, p. 3574-3586, out.-dez., 2015.; OLIVEIRA et al., 2010OLIVEIRA, A. R. et al. Satisfação e limitação no cotidiano de trabalho do agente comunitário de saúde. Rev. Eletr. Enf. Goiânia, v. 12, n. 1, p. 28-36, abr. 2010.; BARBOSA et al., 2012BARBOSA, R. E.; ASSUNÇÃO, A. A.; ARAÚJO, T. M. Musculoskeletal disorders among healthcare workers in Belo Horizonte, Minas Gerais State, Brazil. Cad. Saúde Pública. Rio de Janeiro, v. 28, n. 8, p. 1.569-1.580, 2012.; LOPES et al., 2012LOPES, D. M. Q. et al. Agentes Comunitários de Saúde e as vivências de prazer - sofrimento no trabalho: estudo qualitativo. Rev. Esc. Enferm. USP, São Paulo, v. 46, n. 3, p. 633-640, jun. 2012.; VOGT et al., 2012VOGT, M. S. et al. Cargas físicas e psíquicas no trabalho do Agente Comunitário de Saúde. Cogitare Enferm. Curitiba, v. 17, n. 2, p. 297-303, 2012.) envolvendo esse trabalhador, nos quais os profissionais expressam descontentamentos referentes à baixa remuneração, falta de apoio da gestão, além de uma significativa sobrecarga de trabalho pelo excesso de atribuições que lhes é imposto.
No entanto, esses mesmos estudos expõem uma dualidade de sentimentos referentes tanto ao não reconhecimento do valor do seu trabalho, quanto a sentimentos positivos, de gratidão, advindos da população que o ACS assiste, trazendo a motivação e um sentido importante para o seu cotidiano profissional. Nesse sentido, alguns ACSs também referiram esse sentimento de prazer pelo seu trabalho no que tange à ajuda ao outro, como na seguinte fala:
Quando eu consigo ajudar a pessoa que mora na minha área, quando tu consegue levar alguma coisa pra eles e ver a satisfação deles, ver que tu conseguiu ajudar a história, a vida... Tu bate na mesma tecla e vai indo e depois com o passar do tempo tu consegue ver que alguma coisa tu conseguiu ajudar, alguma coisa tu mudou, é o que mais te deixa feliz (ACS 5).
Danos à saúde relacionados ao trabalho
No que se refere à análise da “Escala de Avaliação dos Danos relacionados ao Trabalho” (tabela 2), essa apresentou avaliação positivo/suportável. Entre os três fatores da dimensão, apenas o fator denominado danos físicos obteve avaliação moderada, crítica, enquanto os fatores danos sociais e danos psicológicos foram avaliados como positivos, suportáveis.
A partir dos resultados, percebe-se que a avaliação dos custos físicos no trabalho vai ao encontro da avaliação dos danos físicos, ambos classificados como moderados, críticos. Isto indica que, no âmbito físico, os custos advindos da atividade laboral podem estar relacionados à agravos físicos:
Às vezes, né... a gente sai, fica molhado né... pega um resfriado, pega uma gripe... as vezes caminha bastante aí as pernas doem de tanto caminhar [...] (ACS 3).
Mordida de cachorro, mais de uma vez... gripe porque a gente anda na chuva né, o sol, a gente queima o rosto quando não tem protetor... agora eles tão entregando, só que quando tá em falta, quando a gente não tem em casa né...o pior de tudo é as mordidas de cachorro (ACS 6).
Só dores normais, dores no corpo, dores nas costas... porque a gente tá sempre carregando balança, essas coisas né... mas de chegar a ir no médico urgente não... (ACS 1).
Nesse sentido, na fala do ACS 1, percebe-se a naturalização da dor decorrente do trabalho, ou seja, em virtude dos custos físicos a que o mesmo está exposto no trabalho, a presença de dor se torna algo banal. Por se tratar de uma atividade, em grande parte, desempenhada fora das dependências dos serviços de saúde, em seu trabalho o ACS tem contato com uma variedade de situações singulares de seu labor. Peculiaridades próprias do território e o contato com situações de pobreza, vulnerabilidade social e a exposição a situações de violência, características das áreas urbanas (SOUZA, FREITAS, 2011SOUZA, L. J. R.; FREITAS, M. C. S. O Agente Comunitário de Saúde: violência e sofrimento no trabalho a céu aberto. Revista Baiana de Saúde Pública. Salvador, v. 35, n. 1, p. 69-109, jan.-mar., 2011.), e as singularidades do trabalho em zona rural resultam, principalmente, em custos físicos mais elevados durante suas atividades, pelas distâncias percorridas, particularidades geográficas distintas, entre outros fatores que, com o tempo, podem ocasionar danos e levar ao adoecimento (BAPTISTINI, FIGUEIREDO, 2014BAPTISTINI, R. A.; FIGUEIREDO, T. A. M. Agente comunitário de saúde: desafios do trabalho na zona rural. Ambient. Soc. São Paulo, v. 17, n. 2, p. 53-70, 2014. ).
Por outro lado, apesar de a avaliação dos fatores relativos ao custo afetivo e cognitivo demonstrar a presença de exigências nesse sentido, os danos sociais e psicológicos apresentaram avaliação positiva/suportável. Já nas falas dos entrevistados, quando questionados sobre possível sofrimento ou dano causado pelo mesmo, os ACSs citaram a presença de doenças “da alma”, como sintomas depressivos:
O adoecimento da alma né... O corpo tá são, fiz exame e tudo, é só o adoecimento da alma (ACS 5).
É claro que a gente tem psicólogo aqui, a gente pode vir, mas às vezes é além disso, quando tu vê já entrou em estado de depressão [...] (ACS 1).
Às vezes a gente fica um pouco assim, dependendo da situação que a gente vê, eu fico meio assim, meio triste, bate aquela coisa de não poder fazer mais por eles né, não tem o que fazer às vezes, não tem o que fazer além de orientar... Causa um pouquinho de sofrimento, mas é normal... (ACS 7).
Fica evidente que há, nesse sentido, banalização do sofrimento, já que situações de desconforto emocional e físico são encaradas como normais, usuais e inerentes à profissão. Ao longo da história, a sociedade pós-industrial intensificou o trabalho exigindo do trabalhador grande dispêndio físico e psicológico. Segundo Dejours (1992), citado por Cremonese, Motta e Traesel (2013CREMONESE, G. R.; MOTTA, R. F.; TRAESEL, E. S. Implicações do trabalho na saúde mental dos Agentes Comunitários de Saúde. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho. São Paulo, v. 16, n. 2, p. 279-293, dez. 2013.), isso incorpora-se como um mecanismo utilizado pelo profissional para enfrentar as particularidades de seu labor, levando a não percepção do sofrimento, o que, por sua vez, impede que o indivíduo construa mudanças na situação do trabalho e que acaba por contribuir para o aparecimento do adoecimento mental. Assim, estar saudável é fator crucial para o desenvolvimento do trabalho e a manifestação do sofrimento torna-se um tabu e é encarada como falta de motivação, desequilíbrio emocional ou fraqueza, sendo o sofrimento tolerado apenas quando se torna doença (BARBOSA et al., 2012BARBOSA, R. E.; ASSUNÇÃO, A. A.; ARAÚJO, T. M. Musculoskeletal disorders among healthcare workers in Belo Horizonte, Minas Gerais State, Brazil. Cad. Saúde Pública. Rio de Janeiro, v. 28, n. 8, p. 1.569-1.580, 2012.; LOPES et al., 2012LOPES, D. M. Q. et al. Agentes Comunitários de Saúde e as vivências de prazer - sofrimento no trabalho: estudo qualitativo. Rev. Esc. Enferm. USP, São Paulo, v. 46, n. 3, p. 633-640, jun. 2012.; BRANDT, MINAYO-GÓMEZ, 2007BRANDT, L. C.; MINAYO-GÓMEZ, C. Dispositivos de transformação do sofrimento em adoecimento numa empresa. Psicologia em Estudo. Maringá, v. 12, n. 3, p. 465-473, 2007.).
Sendo assim, percebe-se que, no sistema capitalista, o sofrimento acaba, muitas vezes, silenciado, partindo da premissa de que o indivíduo necessita estar sempre apto para o trabalho, haja vista que trabalhador saudável é sinônimo de produção. Essas ponderações são percebidas também em outros estudos, como no caso dos ACSs de um município, também do Rio Grande do Sul, que expressam a não valorização de seu sofrimento decorrente do trabalho por parte da comunidade e da equipe de saúde, através de falas que demonstram o pensamento popular acerca da depressão como “frescura” e do não direito desse profissional ao adoecimento (VOGT et al., 2012VOGT, M. S. et al. Cargas físicas e psíquicas no trabalho do Agente Comunitário de Saúde. Cogitare Enferm. Curitiba, v. 17, n. 2, p. 297-303, 2012.; LOPES et al., 2012LOPES, D. M. Q. et al. Agentes Comunitários de Saúde e as vivências de prazer - sofrimento no trabalho: estudo qualitativo. Rev. Esc. Enferm. USP, São Paulo, v. 46, n. 3, p. 633-640, jun. 2012.). Portanto, entende-se que, muitas vezes, a banalização do sofrimento pelo próprio ACS é decorrente do medo da não compreensão por parte da população ou da equipe e pelo julgamento de que profissional da área da saúde não pode adoecer:
Também esses dias a gente tava falando no grupo que aqui falta empatia, falta as pessoas se colocarem no lugar do outro e não tem isso (ACS 8).
Eu acho que uma das coisas que seria bem importante ser trabalhado, é mais assim a questão emocional do ACS, porque o emocional da gente, todos os dias ele é testado. Não sei de que forma, mas isso deveria ser mais valorizado e trabalhado (ACS 9).
Esses achados relativos aos danos à saúde induzem a considerar a importância da existência de espaços designados à reflexão das demandas encontradas no cotidiano de trabalho do ACS, de forma a trabalhar os custos psíquicos existentes através da conversa acolhedora e resolutiva de um trabalho construído em equipe a fim de se evitar os agravos ocupacionais (CREMONESE, MOTTA, TRAESEL, 2013CREMONESE, G. R.; MOTTA, R. F.; TRAESEL, E. S. Implicações do trabalho na saúde mental dos Agentes Comunitários de Saúde. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho. São Paulo, v. 16, n. 2, p. 279-293, dez. 2013.).
Considerações finais
A partir dos resultados do estudo, percebe-se que o cotidiano de trabalho dos ACSs da região estudada apresenta realidade semelhante à de outros estudos realizados com esses profissionais em outras regiões do Brasil, no que tange às condições e organização do trabalho.
Um dos aspectos que chamou a atenção na região estudada foi o fato de que os ACSs desempenham suas atividades em regiões compostas por extensas áreas rurais, com características distintas do contexto urbano. Esse panorama diversificado de trabalho compõe um dos aspectos que motivou a realização deste estudo. Além disso, não se identificou estudos com a mesma abordagem a respeito da relação do custo humano e danos à saúde decorrentes do trabalho do ACS, visto que publicações recentes abordam, predominantemente, temas como a satisfação do usuário com o atendimento prestado pelo ACS e as exigências e danos do contexto de trabalho de outros trabalhadores da saúde.
Os custos físicos, afetivos e cognitivos mostraram-se significativos, entretanto, apenas as exigências afetivas foram evidenciadas pelos ACSs nos seus relatos. No que se refere aos danos à saúde, observou-se que os danos físicos foram avaliados como significativos pelos ACSs, diferentemente dos danos sociais e psicológicos, que se apresentaram satisfatórios. Todavia, a partir das falas, os ACSs expressaram acometimentos emocionais decorrentes das significativas demandas de seu trabalho, como, por exemplo, os sintomas depressivos. Nesse contexto, alguns dos entrevistados fazem uso de um discurso que segue em direção à banalização do próprio sofrimento, pois entendem que situações do contexto e da organização do trabalho implicam um dano emocional entendido como “normal”.
Salienta-se que o ACS é um profissional que não tem uma formação específica voltada para o campo da saúde, no entanto, ao integrar equipes de saúde, o mesmo sente-se empoderado perante a sua comunidade. Dessa forma, esse trabalhador assume uma posição social diferenciada dos demais. Apropriando-se de um papel de líder, o ACS toma para si a responsabilidade de resolver os problemas de saúde da população. Diante disso, percebe-se o desgaste físico e psicológico pela realização de esforços adicionais para que as demandas da comunidade sejam cumpridas. Em suma, o ACS é um profissional que está inserido na realidade da população assistida pelas equipes de saúde. Por isso, ressalta-se a necessidade de se pensar estratégias de melhorias da qualidade de vida laboral, uma vez que, através de suas atividades, os ACSs auxiliam na prática de um dos importantes princípios do SUS, a universalidade.
Acredita-se que este estudo pode contribuir para discussões, reflexões e elaboração de novos estudos nessa área, a fim de proporcionar um olhar atento ao trabalho do ACS, buscando ofertar a esses trabalhadores meios para a interpretação das manifestações de seu corpo sobre adoecimento/sofrimento, bem como medidas para a prevenção dos agravos ocupacionais11A. C. dos Santos e A. dos S. Hoppe trabalharam na coleta de dados, interpretação dos resultados, redação e revisão do artigo. S. B. F. Krug concebeu o projeto de pesquisa e trabalhou na coleta de dados, interpretação dos resultados, redação e revisão do artigo. .
Agradecimentos
À Fundação de Amparo à pesquisa do Rio Grande do Sul (FAPERGS) e à Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), pelo auxílio no financiamento da presente pesquisa, e ao Centro Regional de Referência em Saúde do Trabalhador da Região dos Vales (CEREST/VALES) e 13º coordenadoria Regional de Saúde do Rio Grande do Sul, por viabilizarem a realização deste projeto.
Referências
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
25 Fev 2019
Histórico
- Recebido
21 Maio 2017 - Aceito
06 Ago 2018 - Revisado
11 Set 2018