O reconhecer e o lidar dos agentes comunitários de saúde diante da bioética: entre a ética do cuidado e os poderes disciplinares

The recognition and dealing of community health agents in light of bioethics: between care ethics and disciplinary powers

ANA PAULA GONÇALVES CHUENGUE TULIO BATISTA FRANCO Sobre os autores

Resumo

Este artigo discute o trabalho do agente comunitário de saúde (ACS) com foco nos problemas éticos enfrentados no cotidiano do trabalho e cuidado, espaço de cuidado e as diretrizes disciplinares sobre sua atividade. A metodologia é de origem qualitativa com utilização da cartografia associada a instrumentos da etnografia (observação participante, caderno de campo e entrevista semiestruturada). O ACS tem sido considerado um trabalhador diferenciado por pertencer à comunidade e à instituição de saúde. Tal característica pode trazer um potencial para a produção de projetos terapêuticos singulares e apontam também para a existência de conflitos na relação trabalhador-usuário e para o exercício de poder e de novas formas de controle. Trabalho e espaços de convivência comunitária não encontram limites precisos. As narrativas dos ACS mostram sua visão a respeito dos usuários, o sentido de vínculo, demonstrando sentimento de solidariedade e compaixão, o que corrobora a proposta da ética do cuidar baseada na responsabilidade pela conexão humana. Há fragilidades na formação do ACS para lidar com as questões de cuidado em saúde. Ser da comunidade interfere na sua própria privacidade e na intervenção excessiva na vida das pessoas, reproduzindo atitude de controle dos corpos.

Palavras-chave:
atenção primária à saúde; agentes comunitários de saúde; bioética; ética do cuidar; poderes disciplinares

Abstract

This article discusses the work of community health agents (ACS) focusing on the ethical problems in their daily work and care, the space of care and the disciplinary guidelines in their activities. In the scenario of changing care model, ACS have increasingly been considered differentiated workers as they belong to the community and to the health institution. These characteristics can bring a differential and potential for the production of unique therapeutic projects at the same time, which point to the existence of conflicts in the worker-user relationship and to the exercise of power and new forms of control in the primary care setting. Work and community spaces do not find precise limits. The ACS narratives show their viewpoint about users, the weaknesses in their formation, still based on actions that make them the sanitary police. There is professional hierarchy in the health team, the interviewees' statements showed the idea they have about the bond with users, which shows the feeling of solidarity and compassion, corroborating with the proposal of the ethics of caring based on responsibility for the human connection. Being from the community interferes with one’s privacy and excessive intervention in people's lives, reproducing biopower attitudes in the control of bodies.

Keywords:
Primary Health Care; community health agents; bioethics; caring ethics; disciplinary powers

Introdução

Este artigo discute o trabalho do ACS com foco nos problemas éticos enfrentados no cotidiano da atividade e do cuidado. Pretende-se verificar o seu trabalho, e também as relações que se estabelecem dentro da própria equipe, assim como no plano da comunidade. Especialmente, lançamos questões quanto ao exercício do controle, ou, poderes disciplinares que perpassam o plano do trabalho. Dentro da equipe pretende-se dar visibilidade ao poder entre as profissões e à localização do ACS nesta relação, ou seja, há neste espaço diretrizes disciplinares sobre seu trabalho. Da mesma forma, pretende-se jogar luz nas relações com os usuários na comunidade, onde novas formas de disciplina podem tomar corpo, como por exemplo, o limite entre o “trabalhador de saúde” e “morador da comunidade” não fica claro para os usuários que são assistidos. Como estes reagem a tal situação? Novas formas de controle podem comparecer ao cenário, quando os próprios usuários, no seu ativismo pela busca do cuidado, demandam o ACS, independentemente do espaço e da situação em que este se encontra. Trabalho e espaços de convivência comunitária não encontram limites precisos. Enfim, buscam-se nas narrativas dos ACS respostas a essas indagações.

Na unidade de atenção básica, os problemas bioéticos muitas vezes não são identificados como problemas de ordem ética, passando até despercebidos pelos profissionais. A pesquisa de Zoboli e Fortes (2004ZOBOLI, E. L.; FORTES, P. A. Bioética e atenção básica: um perfil dos problemas éticos vividos por enfermeiros e médicos do Programa Saúde da Família, São Paulo, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, v. 20, p. 1690-1699, 2004.) destaca três categorias de problemas éticos: nas relações com usuários e família; nas relações da equipe; nas relações com a organização e o sistema de saúde. Outros estudos (VIDAL et al., 2014VIDAL, S. V. et al. Problemas bioéticos na Estratégia Saúde da Família: reflexões necessárias. Revista Bioética, v. 22, p. 347-357, 2014.; JUNGES et al., 2014JUNGES, J. R. Et al. Construção e validação do instrumento "Inventário de problemas éticos na atenção primária em saúde". Revista Bioética, v. 22, p. 309-317, 2014. ) referem-se aos problemas éticos separando-os em características como: no âmbito da gestão da atenção primária, questões oriundas do caráter de longitudinalidade, na prática das equipes, com relação ao perfil dos profissionais e questões referentes à privacidade e ao sigilo profissional.

Fica clara a amplitude dos problemas éticos deste nível de assistência. Há a necessidade de estudos que explorem mais especificamente este tema e tragam possibilidades de reflexão e resolução destas questões com o fim de contribuir para a consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS), de forma que as práticas dos serviços sejam consideradas nas suas ações cotidianas; cada trabalhador é um agente moral que toma decisões e tem responsabilidade sobre a vida do outro no cuidado (ZOBOLI; FORTES, 2004ZOBOLI, E. L.; FORTES, P. A. Bioética e atenção básica: um perfil dos problemas éticos vividos por enfermeiros e médicos do Programa Saúde da Família, São Paulo, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, v. 20, p. 1690-1699, 2004.; VIDAL et al., 2014VIDAL, S. V. et al. Problemas bioéticos na Estratégia Saúde da Família: reflexões necessárias. Revista Bioética, v. 22, p. 347-357, 2014.; JUNGES et al., 2014JUNGES, J. R. Et al. Construção e validação do instrumento "Inventário de problemas éticos na atenção primária em saúde". Revista Bioética, v. 22, p. 309-317, 2014. ).

A bioética e a Estratégia de Saúde da Família (ESF) podem ser compreendidas como domínios teórico-práticos capazes de unir a clínica e a saúde pública, criando uma espécie de ponte entre estes campos. Sobre a relação profissional-usuário de saúde da família, outros autores afirmam que a prática educativa é indissociável da ação laboral do trabalhador. A educação tem como objetivo promover mudanças tanto para os usuários quanto para o profissional e para o processo de trabalho em saúde (VIDAL et al., 2014VIDAL, S. V. et al. Problemas bioéticos na Estratégia Saúde da Família: reflexões necessárias. Revista Bioética, v. 22, p. 347-357, 2014.).

O exercício profissional do sigilo, da confidencialidade e da privacidade como direito do usuário são condições inerentes ao exercício profissional na área de saúde. Discrição, lealdade e fidelidade são elementos para além de uma abordagem que focalize o dever profissional, deontológico. A privacidade na atenção primária à saúde (APS) traz aspectos próprios neste tema ético onde os domicílios e a comunidade se tornam extensões do consultório. O sigilo profissional diz respeito a informações sobre a saúde dos usuários e o compartilhamento destas entre os profissionais, usuários e familiares. A tecnologia das relações é complexa e inclui conhecimentos, habilidades e comportamentos, implicando ação intencionalmente dirigida, orientada para a escuta ao outro. Na relação profissional-usuário compreende-se ainda a questão do perfil profissional, onde pode haver um prejulgamento de usuários e familiares, falta de respeito e prescrições inadequadas. Estes problemas da relação profissional-usuário na APS abrangem uma questão de atitude do profissional (SEOANE; FORTES, 2009SEOANE, A. F.; FORTES, P. A. A percepção do usuário do Programa Saúde da Família sobre a privacidade e a confidencialidade de suas informações. Saúde e Sociedade, v. 18, p. 42-49, 2009.; URSINE et al., 2010URSINE, B. L.; TRELHA, C. S.; NUNES, E.D. O Agente Comunitário de Saúde na Estratégia de Saúde da Família: uma investigação das condições de trabalho e da qualidade de vida. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, v. 35, p. 327-339, 2010.; VIDAL et al., 2014VIDAL, S. V. et al. Problemas bioéticos na Estratégia Saúde da Família: reflexões necessárias. Revista Bioética, v. 22, p. 347-357, 2014.; VIDAL et al., 2015; ZOBOLI et al., 2004ZOBOLI, E. L.; FORTES, P. A. Bioética e atenção básica: um perfil dos problemas éticos vividos por enfermeiros e médicos do Programa Saúde da Família, São Paulo, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, v. 20, p. 1690-1699, 2004.).

Materiais e Métodos

Este artigo é resultado da pesquisa de dissertação de mestrado apresentada no Programa de Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva (PPGBIOS) da Universidade Federal Fluminense, no ano de 2017. Não houve financiamento para a pesquisa, e não há conflito de interesse na mesma.

O caminho metodológico percorrido neste estudo é de origem qualitativa, com utilização da cartografia associada a três instrumentos da etnografia (observação participante, caderno de campo e entrevista semiestruturada). O procedimento de cartografar, de acordo com MARTINES et al. (2013MARTINES, W. R. V.; MACHADO, A. L.; COLVEIRO, L. A. A cartografia como inovação metodológica na saúde. Pesquisa em saúde. Rev Tempus Actas Saúde Col. Brasília, v. 7, n. 2, p. 203-211, 2013. ), possibilita o mapeamento de paisagens psicossociais, podendo ser entendido como um mergulho na geografia dos afetos, dos movimentos e das intensidades existentes em um contexto. Na cartografia, a atenção sensível é utilizada como instrumento para servir a esta construção processual.

O método etnográfico é proveniente da disciplina antropológica e formado por algumas técnicas e procedimentos de coletas de dados associados a uma prática do trabalho de campo. A observação direta é uma técnica distinta para investigar os saberes e as práticas na vida social e reconhecer as ações e as representações coletivas na dimensão da sociabilidade. Significa envolver-se com profundidade no experimento de percepção de contrastes sociais, culturais e históricos. A observação participante é fundamental para o trabalho de campo na pesquisa qualitativa, permitindo ao pesquisador ficar mais livre de prejulgamentos. O principal instrumento de trabalho de observação é o diário de campo. As informações escritas no diário de campo devem ser utilizadas pelo pesquisador quando vai fazer análise qualitativa. A entrevista semiestruturada é realizada com base na combinação de perguntas fechadas e abertas, onde o entrevistado pode discorrer sobre o tema em questão sem que se prenda à indagação formulada (ROCHA; ECKERT, 2008ROCHA, A. L. C. ECKERT, C. Etnografia: saberes e práticas. In: PINTO, C. R.; GUAZZELLI, C. A. (Orgs.). Ciências Humanas: pesquisa e método. Porto Alegre: Editora da Universidade, 2008. p. 9-24.; LÉVI-STRAUSS, 1974LÉVI-STRAUSS, C. Introdução à Obra de Marcel Mauss. In: LIMA, C.; OLVEIRA, B. (Orgs.). Sociologia e Antropologia. São Paulo: EPU/EDUSP, 1974, p. 1-36.).

A pesquisa foi desenvolvida em uma unidade de saúde da família da cidade do Rio de Janeiro, onde houve interesse e disponibilidade em recebê-la. A unidade de saúde escolhida possui o total de oito equipes mínimas de saúde, cada uma com a presença de no mínimo um médico, um enfermeiro e entre quatro e seis agentes comunitários de saúde. Esta unidade começou com o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (Pacs), liderados por uma enfermeira para atuação no território. Após a entrada da ESF, a unidade foi reorganizada com aumento do número de equipes, ocasião em que os ACS’s antigos advindos do programa foram realocados nas novas equipes. Os sujeitos desta pesquisa são os ACS. Durante a fase de inserção no campo, a pesquisadora acompanhou ao longo de seis meses o processo de trabalho de duas equipes. O perfil dos entrevistados seguiu o esperado na profissão, que tem presença majoritária de pessoas do sexo feminino. Participaram da entrevista oito ACS do sexo feminino e um ACS do sexo masculino. A idade dos entrevistados variou entre 23 e 51 anos. Com relação ao nível de escolaridade, quatro dos entrevistados possuem o ensino superior incompleto (áreas de Enfermagem, Psicologia, Fisioterapia e Recursos Humanos) e cinco possuem ensino médio completo. O tempo de trabalho na profissão dentro do grupo dos entrevistados apresentou média de sete anos e três meses. O ACS de menor tempo na função possui cinco meses e o de maior tempo, 13 anos. Inicialmente, a inserção da pesquisadora na unidade aconteceu através da observação direta das práticas dos ACS, das relações na equipe e com os usuários. Isto no contexto de um acompanhamento longitudinal, ao longo de seis meses, com imersão em campo, de forma que se objetivou capturar o cotidiano e suas práticas. Esta forma de produzir os dados habilita a pesquisa a perceber o inusitado no campo, enriquecendo seu arsenal de informações que compõem as práticas e o processo de trabalho do ACS, e todo o seu contexto.

Para análise do material, foram considerados os conceitos de processo de trabalho em saúde, tecnologias de cuidado (leves, leves-duras e duras) descritas por Merhy (1997), a corrente bioética Ética do Cuidado formulada por Carol Gilligan (1982GILLIGAN, C. Uma voz diferente: psicologia da diferença entre homens e mulheres da infância à idade adulta. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1982.). Destacam-se as principais funções da bioética, as quais se caracterizam por: função descritiva ̶ serve para analisar e compreender de maneira racional e imparcial os conflitos e questões morais; função normativa ̶ que deve ponderar os conflitos e propor soluções razoáveis e aceitáveis; e função protetora ̶ que deve proteger os indivíduos e as populações em seus respectivos contextos (SHRAMM; KOTTOW apud MOTTA et al., 2012MOTTA, L. C. Z.; VIDAL, S. V.; BATISCA, R. S. Bioética: afinal, o que é isto? Rev Bras Clin Med. São Paulo, v. 10, n. 5, p. 431-9, set-out. 2012.).

Em um momento inicial de leitura e captura dos principais temas, foi possível criar oito categorias de análise a partir das ideias mais marcantes contidas nas falas dos entrevistados. Formaram-se as seguintes categorias de análise a partir das entrevistas: 1) Motivações para ser ACS; 2) Atribuições do trabalho de ACS; 3) A identidade do ACS; 4) A equipe de saúde e a gestão; da unidade; 5) O cuidar e o vínculo com os usuários; 6) A visita domiciliar; 7) Implicações sobre ser da comunidade; e 8) Quem é o usuário na percepção do ACS.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da Faculdade de Medicina da Universidade Federal Fluminense FM/UFF/HU (em 07/10/2016, com CAAE Nº 60161016.5.0000.5243) e pelo Comitê de Ética da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro - SMS/RJ (em 12/12/2016, com CAAE Nº 60161016.5.3001.5279), de acordo com a Resolução n° 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, que institui diretrizes e normas regulamentando pesquisas envolvendo seres humanos.

Resultados e Discussão

Para esta pesquisa, a seguinte questão norteadora foi lançada: qual é a ética presente nas ações dos ACS inseridos no modelo ESF e quais os princípios ou moralidades que guiam seu agir frente aos dilemas e situações que vivenciam no cotidiano de produção do cuidado? As oito categorias analíticas foram criadas a partir dos dados encontrados no conteúdo das entrevistas:

Motivações para ser agente comunitário de saúde:

Ao analisar essa categoria, considera-se que o trabalho na área de saúde, o cuidado, requer em sua essência uma atitude para com o próximo baseada na interação entre dois ou mais sujeitos, visando ao alívio de um sofrimento ou alcance de um bem-estar. Deve estar presente no ato de cuidado a atitude de acolher ou de assistir, que se caracteriza por uma proposta ética. Esta consiste em uma atividade de relacionamento e no trabalho pautado por uma postura ético-política em acordo com os pilares de sistema de saúde brasileiro (FRANCO; GALAVOTE, 2010FRANCO, T. B.; GALAVOTE, H. S. Em busca da clínica dos afetos. In: FRANCO, T.B.; RAMOS, V. C. (Orgs.). Semiótica, afecção e cuidado em saúde. São Paulo: Editora Hucitec, 2010. p. 176-200.; AYRES, 2004AYRES, J. R. C. M. Cuidado e reconstrução das práticas de Saúde. Interface - Comunic., Saúde, Educ. Botucatu, v. 8, n. 14, p. 73-92, fev. 2004.; VIEIRA; SILVEIRA; FRANCO, 2011VIEIRA, A. N.; SILVEIRA, L. C.; FRANCO, T. B. A formação clínica e a produção do cuidado em saúde e na enfermagem. Trab. Educ. Saúde, Rio de Janeiro, v. 9, n. 1, p. 9-22,mar-jun, 2011.).

As falas dos ACS nas entrevistas apontaram para algumas das motivações iniciais que os levaram a ser agente comunitário. Algumas das respostas apontam, em uma primeira análise, para a hipótese de busca e interesse pela oportunidade de emprego e inserção no mercado de trabalho:

ACS 5: “Na época que nós fizemos, imaginamos que seria um concurso público, aí o que me interessou foram as vantagens, a gente imaginou ser um serviço público. Mas também pela proximidade de casa, pela facilidade de não ter o transporte, o engarrafamento”.

ACS 6: “Eu era pensionista e tava há muito tempo fora do mercado de trabalho, vi uma oportunidade de tá inserida novamente no mercado”.

Embora o perfil para cuidador seja o desejável e o esperado para atuação na área de saúde, não só para o profissional ACS, mas para todos os profissionais de saúde, a realidade em distintas profissões pode apresentar-se diferente. Ressalta-se também neste ponto a preocupação de alguns autores ao apontarem que o significado de ser ACS pode ter apenas a representação de uma oportunidade de emprego. Existe uma necessidade de uma reflexão acerca do perfil profissional desejado para o ACS (GOMES et al., 2009GOMES, K. O. et al. A práxis do agente comunitário de saúde no contexto do programa saúde da família: reflexões estratégicas. Saúde Soc. V. 18, n. 4, p. 744-55, 2009.).

Os trechos das falas a seguir demonstram um perfil para o cuidado e um desejo de ajudar as pessoas e a localidade onde vivem:

ACS 9: “O meu interesse é porque eu já gosto da área de saúde mesmo. A área de saúde pra mim é uma área que é gratificante você poder ajudar as pessoas, da forma da orientação da saúde. [...] Eu achava que eu tinha o perfil para ser agente de saúde. Foi uma coisa que eu sempre quis ser”.

ACS 1: “Eu sempre via o pessoal atuando, eu gosto de cuidar, porque desde nova eu já cuido né. Porque a minha mãe teve dez filhos. Os maiores cuidavam dos menores”. [...] “Porque trabalhar na área da saúde a gente tem que realmente gostar do próximo, então eu me identifiquei”.

Pode-se observar, pelas narrativas acima, que a motivação para ingresso na função de ACS se deu tanto pela necessidade de um trabalho remunerado quanto pelo interesse em cuidar. Um misto de fatores que, combinados, vai definir o trabalhador ACS.

Atribuições do trabalho de agente comunitário de saúde

Nesta categoria alguns dos entrevistados realizaram durante suas falas uma diferenciação entre dois períodos distintos: um “antes” e um “depois” da entrada do modelo estratégia de saúde da família, revelando algumas mudanças após a entrada da lógica gerencialista:

ACS 1: “Olha, antes... É pra ser sincera, né? Antes a gente conseguia articular o nosso trabalho melhor. A nossa visita domiciliar a gente conseguia sentar, conversar... Hoje em dia a gente tá tendo muito mais dificuldade, porque na área a gente tá fazendo mais burocracia, mais administração do que o trabalho de saúde em si, que é a promoção e a prevenção”.

ACS 6: “Difícil é a burocracia, que virou uma constante. Você tem que ter números, não interessa a qualidade. Entendeu. Números. Não interessa se você foi, visitou e falou, e fez o teu trabalho realmente. Se você chegou lá, vou botar esse aqui mais ou menos. [...] O importante agora para a secretaria é números. E isso é muito triste”.

Relevante observar a expressão utilizada pelo ACS 7 que compara a unidade de saúde da família com uma espécie de atendimento de emergências, uma “míni-UPA”, expressão que aponta para uma distorção do foco da atenção primária (promoção e prevenção da saúde), com presença de grande procura por atendimentos em casos de emergência e urgência por motivos de necessidade e demanda da população.

ACS 7: “Ah, hoje é horrível. Porque hoje a gente não faz mais o que era a nossa proposta da gente fazer. [...] A gente fazia muita promoção da saúde. Ensinava, educava antes que as coisas acontecessem. Hoje você já atende as pessoas doentes. A gente trabalha hoje que nem uma míni-UPA mesmo. A pessoa chega aqui já com todos os problemas que poderiam ter sido evitados. Então hoje o nosso trabalho tá bem ruim”.

A atividade de monitoramento do programa Bolsa Família, que antes era realizada unicamente por assistentes sociais, hoje é uma atribuição do ACS. Considerada algo positivo do ponto de vista do cuidado, esta atribuição de acompanhar o cumprimento de requisitos do programa é vista como uma sobrecarga de trabalho pelo próprio ACS.

ACS 2: “Hoje em dia, a burocratização tá crescendo e cada dia, cada vez mais, o agente comunitário tem mais e mais atribuições. Agora, nós somos responsáveis pelo Bolsa Família, somos agora responsáveis pelo aluno presente... [...] ele não consegue dar conta de tudo e se torna uma coisa cansativa porque cansa a mente, cansa o corpo... parece que não, mas cansa sim”.

Uma das principais tarefas dos ACS na unidade é o acolhimento, caracterizado como uma atividade em que o profissional passa boa parte de seu tempo envolvido e acontece nas “baias” ou “guichês”. No caso da unidade pesquisada, esta atribuição vem sendo realizada total e unicamente pelos ACS e, durante a observação participante, verificou-se ser um local de encontro entre profissional/usuário que, na realidade, gera grande parte dos conflitos descritos e observados nesta pesquisa.

ACS 1: “O médico não consegue absorver tudo, a enfermeira não consegue absorver e tem a agenda superlotada. E o pessoal quer a marcação para cima da hora, quer a marcação no mesmo instante que a consulta, no mesmo dia. E o ACS fica ali na ponta servindo de escudo. Então, às vezes a gente fica entre a cruz e a espada. Porque a agenda do médico tá lotada e o cadastrado tá necessitando, a gente vê que precisa realmente, e a gente fica sem saber”.

Observa-se um grave problema de acesso para os usuários, e uma desorientação quando não conseguem o atendimento esperado. Certamente, a ideia de acolhimento implantado na entrada da unidade não alterou o processo de trabalho da equipe, permanecendo a assistência centrada no médico e enfermeiro, com poucos dispositivos de cuidado, o que dificulta o atendimento à demanda.

A identidade do ACS

Algumas das falas durante as entrevistas demonstraram uma visão otimista e um sentimento positivo em atuar na função, em estar com as pessoas e poder ajudar. Outras falas trazem ideias sobre o papel do agente de saúde que, para alguns dos entrevistados, deve se caracterizar por uma ação voltada para a comunidade e para a construção de vínculo com os usuários:

ACS 1: “Olha, o agente de saúde acho que muito mais do que um profissional de saúde, a gente acaba sendo das famílias das pessoas. [...] Sendo aquele elo de ligação entre a clínica, entre o profissional de saúde, entre o atendimento, entre uma melhoria, né... A gente que faz isso... Acho que a gente é o elo entre o paciente e a saúde. É a gente que faz a ligação”.

ACS 9: “Ah ser ACS pra mim... Pra mim ser ACS é levar ao cadastrado. A gente fala que a gente tem que levar a informação, a orientação de saúde. Mas pra mim é um todo, é um acolhimento. [...], além de ser ACS você se torna psicólogo, você se torna um amigo, entendeu. Um amigo fiel, confidencial daquela casa, daquela família”.

A fala a seguir demonstra também como outros profissionais enxergam o trabalho do ACS. De acordo com a fala do ACS 4, os demais profissionais entendem o ACS como um profissional que “proporciona o acesso aos que moram em locais de difícil chegada”. Os outros profissionais parecem referir-se o ACS como aquele que “vai até os lugares mais inacessíveis”:

ACS 4: “Quando a gente ouve a fala de outros que não são ACS, eles dizem que o ACS é a base de tudo, né. Dizem que se você não tem o ACS vai ser difícil chegar, avisar... [...], quer dizer, cabe à gente ir na área, e tá acompanhando eles, justamente ter essa confiabilidade entre o cadastrado e o ACS, é a gente que tá fazendo essa ponte, interligando, levando lá, entendeu”.

Na fala de alguns entrevistados encontramos ideias e sentimentos negativos com relação ao cargo que ocupam ao serem indagados a respeito do significado para si e para outros:

ACS 7: “Aqui na clínica a gente é... Sei lá. Qualquer coisa. Eu já me senti sendo elo. Eu já me senti sendo importante aqui dentro. Hoje não. Hoje eu não faço diferença nenhuma.”

ACS 1: “Aqui na unidade de saúde eu não me sinto valorizada como profissional mesmo sendo atuante e participativa e aberta a todas...a tudo. Mas eu até me sinto desmotivada. Teve uma época que eu tava mais motivada a tá trabalhando, mas agora tô um pouco desmotivada”...

A identidade do profissional ACS, suas identificações e os significados contidos nas subjetividades que a compõem são formados também por movimentos e intensidades de sentimentos positivos e negativos. Outras falas revelaram uma vocação para o cuidado, uma noção preciosa sobre o que é vínculo e uma subjetividade solidária em relação ao local onde trabalham:

ACS 3: “O que eu acho mais difícil é isso. É você ter que virar pro paciente e dizer assim: ‘olha, eu só tenho agenda pra você passar pelo médico em julho do ano que vem’. Que é o caso da minha equipe. Eu vejo o paciente meu que tá com problemas na saúde, que tá doente, que eu quero ajudar, que eu preciso ajudar ele, mas eu não tenho mais como. Porque eu paro numa agenda de um médico”.

A ética do cuidar é baseada em sentimentos de solidariedade, compaixão, afeto. Encontramos nas falas esse potencial que o ACS traz em sua vivência; observaram-se também os sentimentos de solidariedade e o desejo de ajudar a melhorar a vida das pessoas.

A equipe de saúde e a gestão da unidade

As falas durante as entrevistas revelaram conflitos existentes entre profissionais de uma mesma equipe ou entre profissionais de equipes diferentes nas atividades de atendimento. Mostraram também a existência de problemas comunicacionais entre a gerência da unidade e os trabalhadores, conflitos dentro da equipe entre diferentes profissionais na definição de condutas para com os pacientes:

ACS 2: “Ela (médica) acha que não é demanda. Só é demanda quando a criança tá com febre. Mas aí aquela criança vai voltar pra cá. Eu acho um absurdo o que ela falou: ‘ah volta daqui seis horas quando acabar o efeito do remédio e ele tiver com febre aí você volta com ele.’ Não tá acreditando no que a mãe falou? Por que a mãe ia mentir que um filho tá tendo febre? Eu achei isso fora do comum”.

É comum encontrarmos nos estudos esta característica de rotatividade do profissional médico na estratégia saúde da família, que na unidade pesquisada apresentou a mesma situação.

ACS 2: “E essa equipe muda muito de profissional médico. Olha, começou com uma médica, depois veio o outro, veio o terceiro e agora tem esse atual. Eu não sei se ele vai aguentar. Muda muito. Muda muito de profissional”.

As falas a seguir revelam como o exercício de poder entre diferentes profissionais acontece dentro da equipe. O caso em que um ACS se sentiu castigado por não agir de acordo com o que o enfermeiro esperava demonstra um pouco como a relação entre as profissões dentro de uma equipe multiprofissional podem estar demarcadas por uma hierarquia de saberes e por tipo de trabalho:

ACS 9: “Eu já fiquei de castigo na baia por eu ter marcado uma consulta pra uma gestante. A enfermeira que era responsável na época na minha equipe, hoje ela não está mais presente aqui, ela me colocou de castigo por uma semana no acolhimento, na baia. [...]. E eu fiquei uma semana sem poder ir pra rua, uma semana direto de oito as cinco da tarde”.

ACS 2: “Olha, o agente comunitário, ele poderia fazer acolhimento até as oito da noite e tirar folga. Só é permitido aqui tirar folga enfermeiros e médicos. Cortou. Trabalhamos tanto quanto eles e não temos mais folga. Assim, tudo é cortado. Qualquer privilégio nosso... entendeu. Quando tirou isso da gente eu levei um baque e falei: ‘gente, porque tão fazendo isso com a gente?’”.

As relações de poder dentro da equipe, entre as diferentes profissões de saúde, revelam a presença de hierarquia profissional. Verificam-se também dificuldades de diálogo entre gerência (gestão da unidade) e os profissionais da unidade.

Dentro ainda do debate sobre os conflitos internos na equipe, há a presença de um jogo de acusação entre os diferentes profissionais; conflitos atrapalham o trabalho em equipe. A entrevista um dos ACS mostra que houve também da parte de um médico falta de respeito ao atender um dos pacientes, de acordo com a sua visão:

ACS 5: “Mas teve um caso que o médico disse que só atenderia se tivesse morrendo. Não foi comigo não, mas fiquei sabendo. Teve um médico que disse para colocar o paciente na coleira, passear com ele. Disse: ‘leva seu pai pra passear, tem que andar com ele na rua, coloca ele na coleira e leva.’ Foi brincando, causou um constrangimento grande. Mas o paciente ficou ofendido”.

O cuidar e o vínculo com os usuários

A produção de vínculo está relacionada com o desenvolvimento de práticas clínicas para alcançar objetivos de acolhimento e vínculo no tratamento (GARBIN, 1995Garbin W. O Sistema de Saúde no Brasil. In: Vieira RM, organizador. Fonoaudiologia e saúde. Carapicuíba: Pró-Fono; 1995. P. 24-34.).

ACS 1: “Mas na comunidade eu me sinto muito abraçada, porque na outra microárea que eu era, fizeram abaixo-assinado para eu voltar, até hoje eles pedem para eu voltar...”.

ACS 7: “Elas me veem mais como um amigo. Têm confiança em mim. Até quando eu vou falar, eu costumo acompanhar, quando a pessoa me conta alguma coisa que eu quero que ela fale pra médica, eu costumo acompanhar a consulta e ficar induzindo a falar, ficar induzindo a confiar na pessoa”.

Laços de confiança, solidariedade, empatia e vínculo podem ser verificados nas falas dos ACS e um senso forte na construção da relação e consideração pelas pessoas da comunidade com quem têm anos de relacionamento:

ACS 4: “Todo dia a gente vê, então cria uma certa confiança, um certo laço e às vezes eles preferem se abrir, desabafar com a gente ao invés do médico, do enfermeiro”.

ACS 6: “Tenho uma facilidade incrível, eu por estar esse tempo todo na mesma área a gente adquiriu vínculo”.

As falas a seguir revelam intimidade, confiança e relação de vínculo construída com o tempo entre os agentes de saúde e os usuários e famílias da unidade:

ACS 9: “Porque os jovens sempre têm problemas sexuais. Acho que eles preferem contar pro agente. Porque eles contando pro agente a nossa fala que vai até o médico pra eles. Entendeu. E aí a confiança é tão grande que a gente vai e conta pro médico e o médico entra em ação”.

A visita domiciliar

Quanto aos relatos colhidos nas entrevistas no que diz respeito à visita domiciliar do ACS, ao serem solicitados a falarem sobre essa tarefa, eles se expressam de uma forma geral sobre como realizam a visita domiciliar:

ACS 3: “Resumindo, hoje já não é mais como antes. Hoje tá mais corrido, a gente tem menos tempo pra tá fazendo a visita, quantidade de família que a gente tem é muito grande, então, fica mais corrido. Não tá mais aquela coisa de entrar, sentar, tomar um café, beber uma água. É muito difícil até de você conseguir entrar. É mais assim: olha eu tenho uma consulta pra você tal dia... É porque na verdade você não tem tempo”.

ACS 7: “Hoje não existe mais visita domiciliar. Hoje eu vou lá e entrego consulta. E aí a coisa tem que ser muito mecânica. Pra mim, o importante é a assinatura no meu caderno que tá aqui pra eles não desconfiarem que eu não trabalhei. [...]”.

Observa-se que a visita se transformou em um ato sumário, burocrático, com objetivo de cumprir uma agenda predeterminada, avisar de consultas e exames, e registrar a produção. Sem dúvida, há um desvio da função de ACS, e uma perda na qualidade do cuidado.

Implicações sobre ser da comunidade

A dupla inserção (institucional e comunitária) deste trabalhador gera interfaces diferentes na relação deste com as pessoas. Aqui, há um emaranhado de questões relacionadas a vizinhança, vínculo, confidencialidade, controle. Além disto, o modelo biomédico dos cursos produz o ACS como uma “polícia sanitária” (GOMES et al., 2009GOMES, K. O. et al. A práxis do agente comunitário de saúde no contexto do programa saúde da família: reflexões estratégicas. Saúde Soc. V. 18, n. 4, p. 744-55, 2009.).

ACS 5: “Então é uma luta diária; você tenta fazer eles entenderem que você ali só é um elo, como eu disse antes, que dá informação, que a disponibilidade de escala não é nossa, a quantidade de atendimento diário não é a gente que determina. Isso é o mais complicado. Ainda mais porque a gente mora aqui. Você não acaba seu dia e vai embora para um outro ambiente. Você tá de encontro com as pessoas que você acabou de dizer que infelizmente o médico não veio hoje”.

ACS 5: “A desvantagem é aquele que eu te falei antes. É o desgaste da relação de tá dizendo um não pra pessoa e daqui a cinco minutos você tá passando do lado dela, às vezes é o seu vizinho, o seu colega, quantos amigos eu disse que não podia fazer determinadas coisas que infelizmente aqui é o meu trabalho”.

Observa-se uma relação paradoxal na relação do ACS e pessoas da sua comunidade. De um lado, isso aumenta o vínculo e o volume de informações a serem disponibilizadas para a equipe, enriquecendo um provável projeto terapêutico aos usuários. De outro, não deixa de haver um controle maior sobre a vida dos usuários, assim como estes passam a controlar a relação do ACS com eles próprios, aproveitando os espaços de convivência na comunidade para “cobrar” agenda, atitudes, enfim, trabalho de cuidado.

Quem é o usuário na percepção do ACS

Os ACS em geral culpam os usuários por conflitos relacionados principalmente ao acesso a serviços da unidade:

ACS 9: “Só que os cadastrados dessa equipe são pessoas muito mal acostumadas. Muito mal doutrinados por a clínica ser perto deles, eles são mal acostumados sim. Se você faz uma visita, chega lá não abre a porta. Vem a hora que quer, chega aqui vai ser tratado, vai ser consultado, faz escândalo, entendeu. [...] Eles sabem da saúde, mas não têm educação”.

ACS 3: “Claro que tem exceções. Claro. Muitas. Mas a maioria é muito grossa, a maioria das pessoas quer as coisas pra ontem, ninguém quer respeitar procedimento. [...] Hoje eu vejo eles assim. Agressivos, acelerados”.

ACS 3: “Eles querem ser atendidos, querem ganhar uma medicação sem receita. Aí conseguem da forma usando o vocabulário baixo, usando agressividade... principalmente, ou somente com as agentes comunitários que estão no acolhimento”.

As opiniões acima demonstram uma má compreensão das questões que definem a relação do usuário com a unidade. Estes certamente vêm de uma história de exclusões e violências contra eles mesmos, e reproduzem isso na relação com a equipe de saúde. A demonstração prática de que eles têm ingresso garantido, são acolhidos, e que os trabalhadores se importam com seus problemas de saúde, pode mudar a imagem que têm do serviço. A culpabilização atual reflete uma análise precária sobre o problema, e forma uma opinião equivocada, deixando a equipe ou refratária aos usuários ou imobilizada para atuar sobre o problema.

Na questão do Bolsa Família, foi possível perceber que alguns ACS têm uma opinião negativa sobre as pessoas que recebem esse benefício do governo. Alguns disseram que a maioria das pessoas que recebem o benefício do programa é “aproveitadora”, que se beneficia do dinheiro para não trabalhar e continuar tendo mais filhos e receber mais dinheiro. Foi bastante forte essa visão dos ACS dentro das duas equipes observadas, de que as pessoas atendidas pelo Bolsa Família se “aproveitam” do benefício para não trabalhar.

Conclusão

A postura e o ato de cuidar são parte de um “dom”? Considerando o ato do cuidado como circunscrito no campo da ética, como experiência estética e política, a postura e o ato de cuidar não podem ser vistos como parte apenas de um “dom” nos indivíduos. O ato de cuidado em saúde não se relaciona com um sentido estático e inato desta palavra. Não acreditamos nesta hipótese, mas sim de que os atos de saúde e de cuidado necessitam ser desenvolvidos cotidianamente através de constante formação, aprimoramento e reflexão a partir das experiências adquiridas. As tecnologias leves e relacionais se conformam no processo ensino-aprendizagem, mesmo que seja no viver, mas o cuidar como conceito de trabalho em saúde não pode ser apenas algo que se baseia no espontaneísmo, apenas no ser boa gente.

Observando este trabalho sob a ótica da sua micropolítica, percebe-se que, de um lado, há intensa atividade relacionada ao cuidado, visto que o ACS, por ser da comunidade e conviver no seu cotidiano, traz para a equipe de saúde informações importantes para o estabelecimento de um projeto terapêutico singular, mais complexo, e capaz de abordar não apenas o problema de saúde específico, mas o conjunto da existência do usuário. Por outro, esta atividade opera também por diretrizes de controle. Este se exerce em todas as direções, entre os membros da equipe, os quais têm a tendência a presidir sua relação pela hierarquia das profissões, o que coloca o ACS sob o jugo dos demais trabalhadores. No entanto, no território, tanto o ACS exerce o controle sobre as informações do usuário, quanto estes tentam controlar as ações do ACS, abordando-o nos espaços de convivência na comunidade, para tratar de questões relacionadas ao acesso e cuidado à saúde. Ou seja, o usuário não encontra limites para o trabalho do ACS, identificando-o como um trabalhador da saúde, dentro da unidade, no espaço do domicílio, ou em atividades comunitárias não relacionadas ao seu trabalho.

Há a necessidade de formação pessoal, experiências cotidianas e didáticas para o aprendizado e constante reflexão. O ACS pode ter total capacidade para ser um cuidador, ou pode atuar com base em uma ética que favorece a alguns e não a outros ou até havendo na sua atuação exercício de poder sobre o morador, sem afeto ou respeito. O ACS acaba ocupando certo lugar de poder na vida das pessoas sem ter o preparo para lidar com certas questões. Em algumas unidades de ESF, encontramos ACS que fazem até uma espécie de cooperação com o poder paralelo do tráfico local para conseguir tirar ou colocar profissionais na equipe que sejam do interesse. Esse exercício de poder do ACS pode estar inscrito em uma ética que ele quer para si e seus pares; não necessariamente é uma ética para o cuidado dos usuários, mas para favorecimento de si e de outros de seu interesse pessoal. O conhecimento que ganham ao entrarem na unidade de saúde e sobre o território pode ajudar nesse exercício de poder e isso vai contra o cuidado em saúde, conformando apenas uma ferramenta de poder o fato de o ACS pertencer à instituição de saúde. O ACS exerce em sua micropolítica e micropoderes uma ética própria que favorece pessoas, por exemplo, quando colocam conhecidos na frente de pessoas na espera para atendimento, quando escolhem quem entra na agenda do médico.

O acolhimento na unidade que foi realizada a pesquisa é feito unicamente por agentes comunitários de saúde, em locais como nas chamadas “baias” de separação, e tem sido realizado de forma inadequada por não seguir a perspectiva. É preciso haver ética, estética e política do acolhimento que é preconizado, a fim de se cumprir o direito de acesso para todos, do direito ao sigilo e à privacidade das informações deste usuário na realização de um ato que deveria realmente ser humanizado, de forma que atenda às demandas iniciais e identifique as principais questões deste usuário.

No lidar com o usuário fora do contexto da clínica, a postura ética de respeito ao sigilo e privacidade, por vezes, tem sido desrespeitada, com a intervenção excessiva na vida das pessoas, com a existência de um ato de tentar controlar ou interferir na autonomia, invadindo a privacidade dos usuários por parte dos ACS. O fato de o ACS ser o vizinho afeta diretamente a questão da ética em manter-se o direito à privacidade e à confidencialidade. Há nesta questão um paradoxo, pois ser vizinho dos usuários da unidade é visto por alguns como algo negativo, pois muitos se sentem como se trabalhassem “24 horas” por dia, pois os pacientes os procuram para falar de questões de saúde a todo tempo no território, e é problemático também pelo fato de outros pacientes se sentirem constrangidos em falar de casos específicos de sua saúde para o ACS, e por isso reclamam e desejam falar somente com o médico. Por outro lado, alguns ACS durante as entrevistas mostraram um senso de solidariedade e compaixão em relação aos usuários com quem conseguiram ter vínculos mais fortes. Alguns, em suas falas, ora se identificam com os moradores da comunidade e demonstram empatia, compreensão e tendência de se colocar mais no lugar do outro, ora querem se distanciar, se diferenciar do morador, dizendo que se trata de pessoas mal educadas e “barraqueiras”, que usam palavras de baixo calão e fazem confusão dentro da unidade de saúde para terem o que precisam (ao serem questionados sobre “quem é o usuário da unidade para você”). A visão que têm do usuário parece ambígua - ora se identificam, ora se distanciam, para se diferenciar do morador local.

O agir e a produção de um cuidado ético podem ser pautados por uma reflexão ética, por encontros que disparem nos agentes do cuidado potenciais para um cuidado mais ético e solidário, empático, para desconstruir atitudes já endurecidas pela rotina e processo de trabalho com base nos procedimentos.11A. P. G. Chuengue realizou levantamento bibliográfico, produção textual, coleta de dados no campo, entrevistas com os sujeitos da pesquisa, produção de dados, redação do artigo, que é resultado da sua pesquisa de mestrado. T. B. Franco orientou a pesquisa de mestrado, participou com orientação, discussão de texto, indicação de leituras, produção textual e redação do artigo.

Referências

  • AYRES, J. R. C. M. Cuidado e reconstrução das práticas de Saúde. Interface - Comunic., Saúde, Educ. Botucatu, v. 8, n. 14, p. 73-92, fev. 2004.
  • FORTES, P. A. D. C.; SPINETTI, S. R. A informação nas relações entre os Agentes Comunitários de Saúde e os usuários do Programa de Saúde da Família. Saúde e Sociedade, v. 13, p. 70-75, 2004.
  • FRANCO, T. B., MERHY, E. E. PSF: contradições de um programa destinado à mudança do modelo tecnoassistencial. In: MERHY, E. E. et al. (Orgs.). O trabalho em saúde: olhando e experienciando o SUS no cotidiano. São Paulo: Editora Hucitec, 2003. p. 55-124.
  • FRANCO, T. B.; GALAVOTE, H. S. Em busca da clínica dos afetos. In: FRANCO, T.B.; RAMOS, V. C. (Orgs.). Semiótica, afecção e cuidado em saúde. São Paulo: Editora Hucitec, 2010. p. 176-200.
  • Garbin W. O Sistema de Saúde no Brasil. In: Vieira RM, organizador. Fonoaudiologia e saúde. Carapicuíba: Pró-Fono; 1995. P. 24-34.
  • Garbin W. O Sistema de Saúde no Brasil. In: Vieira RM, organizador. Fonoaudiologia e saúde. Carapicuíba: Pró-Fono; 1995. P. 24-34.
  • GILLIGAN, C. Uma voz diferente: psicologia da diferença entre homens e mulheres da infância à idade adulta. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1982.
  • GOMES, K. O. et al. A práxis do agente comunitário de saúde no contexto do programa saúde da família: reflexões estratégicas. Saúde Soc. V. 18, n. 4, p. 744-55, 2009.
  • JUNGES, J. R. Et al. Construção e validação do instrumento "Inventário de problemas éticos na atenção primária em saúde". Revista Bioética, v. 22, p. 309-317, 2014.
  • KUHNEN, T. A. A ética do cuidado como teoria feminista. In: Simpósio Gênero e Políticas Públicas, .3. Anais... Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 27-29 maio 2014.
  • LÉVI-STRAUSS, C. Introdução à Obra de Marcel Mauss. In: LIMA, C.; OLVEIRA, B. (Orgs.). Sociologia e Antropologia. São Paulo: EPU/EDUSP, 1974, p. 1-36.
  • MARTINES, W. R. V.; MACHADO, A. L.; COLVEIRO, L. A. A cartografia como inovação metodológica na saúde. Pesquisa em saúde. Rev Tempus Actas Saúde Col. Brasília, v. 7, n. 2, p. 203-211, 2013.
  • Merhy, Emerson Elias. Em Busca do Tempo Perdido, a Micropolítica do Trabalho Vivo em Saúde. In: Merhy, E.E. e Onocko, R. (Orgs.). Agir em Saúde: um desafio para o Público. Hucite: São Paulo, 2007. P. 71-112.
  • Merhy, Emerson Elias. Em Busca do Tempo Perdido, a Micropolítica do Trabalho Vivo em Saúde. In: Merhy, E.E. e Onocko, R. (Orgs.). Agir em Saúde: um desafio para o Público. Hucite: São Paulo, 2007. P. 71-112.
  • MOTTA, L. C. Z.; VIDAL, S. V.; BATISCA, R. S. Bioética: afinal, o que é isto? Rev Bras Clin Med. São Paulo, v. 10, n. 5, p. 431-9, set-out. 2012.
  • ROCHA, A. L. C. ECKERT, C. Etnografia: saberes e práticas. In: PINTO, C. R.; GUAZZELLI, C. A. (Orgs.). Ciências Humanas: pesquisa e método. Porto Alegre: Editora da Universidade, 2008. p. 9-24.
  • SEOANE, A. F.; FORTES, P. A. A percepção do usuário do Programa Saúde da Família sobre a privacidade e a confidencialidade de suas informações. Saúde e Sociedade, v. 18, p. 42-49, 2009.
  • SILVA, J. A., DALMASO, A. S. W. Agente Comunitário de Saúde: o ser, o saber, o fazer. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2002.
  • URSINE, B. L.; TRELHA, C. S.; NUNES, E.D. O Agente Comunitário de Saúde na Estratégia de Saúde da Família: uma investigação das condições de trabalho e da qualidade de vida. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, v. 35, p. 327-339, 2010.
  • VIDAL, S. V. et al. Problemas bioéticos na Estratégia Saúde da Família: reflexões necessárias. Revista Bioética, v. 22, p. 347-357, 2014.
  • VIDAL, S. V.; MOTTA, L.S.; SIQUEIRA-BATISTA, R. Agentes comunitários de saúde: aspectos bioéticos e legais do trabalho vivo. Saúde e Sociedade, v. 24, p. 129-140, 2015.
  • VIEIRA, A. N.; SILVEIRA, L. C.; FRANCO, T. B. A formação clínica e a produção do cuidado em saúde e na enfermagem. Trab. Educ. Saúde, Rio de Janeiro, v. 9, n. 1, p. 9-22,mar-jun, 2011.
  • ZOBOLI, E. L.; FORTES, P. A. Bioética e atenção básica: um perfil dos problemas éticos vividos por enfermeiros e médicos do Programa Saúde da Família, São Paulo, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, v. 20, p. 1690-1699, 2004.
  • ZOBOLI, E. L.; SOARES, F. A. Capacitação em bioética para profissionais da Saúde da Família do município de Santo André, SP. Revista da Escola de Enfermagem da USP, v. 46, p. 1248-1253, 2012.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Fev 2019

Histórico

  • Recebido
    10 Jan 2018
  • Revisado
    31 Ago 2018
  • Aceito
    08 Out 2018
PHYSIS - Revista de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: publicacoes@ims.uerj.br