Resumo
A presente pesquisa teve como objetivo compreender qual é o conceito de saúde dentro da Saúde Coletiva. Nossa análise parte do marxismo como referencial teórico, tanto para definir o que é um “conceito” quanto para compreender o pensamento crítico da Saúde Coletiva. Como pesquisa empírica, usou-se a produção bibliográfica dos principais periódicos que reúnem publicações da Saúde Coletiva enquanto área de conhecimento, o que resultou em 34 artigos que tratavam, de alguma forma, do conceito de saúde, mesmo que não fosse o objeto principal do trabalho. Dessa análise identificamos ao menos três distintas modalidades de definições, que variaram tanto na base referencial usada para apreender e analisar realidades empíricas concernentes à saúde quanto na conceituação de social que poderia estar nessa análise - também se identificando que os artigos mais oscilaram entre uma produção estritamente descritiva dessas realidades empíricas e ensaios estritamente teóricos do que produziram um particular concreto (empírico) pensado com base na definição de social eleita. Concluiu-se que dentro da Saúde Coletiva o conceito de saúde tem sido tomado, em grande parte, ou como noção (uma aproximação parcial do objeto) ou como um lema, a partir de um engajamento ético-político que acaba relegando a contribuição teórico-conceitual a segundo plano.
Palavras-chave:
Saúde Coletiva; formação de conceito; saúde; conhecimento, trabalho
Introdução
A Segunda Guerra Mundial foi um conflito que envolveu direta ou indiretamente todos os países do mundo, com perdas tanto materiais quanto em número de vidas (“porque os civis e a vida civil se tornaram os alvos estratégicos certos”) incalculáveis (HOBSBAWM, 2011HOBSBAWM, E. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 2011., p. 56). Após seu término, foi fundada, em 1948, a Organização Mundial da Saúde (OMS), organismo internacional iria criar uma definição de saúde que, ao tomá-la não só como ausência de doença, mas um completo bem-estar físico, psíquico e social, buscava superar a concepção biomédica utilizada até então. Com o passar dos anos, novas definições foram criadas, buscando-se alternativas tanto à concepção biomédica quanto à própria definição da OMS.
Nos anos 1970-80, surgiu no Brasil o movimento chamado Saúde Coletiva, que, segundo Schraiber (2015SCHRAIBER, L. B. Engajamento ético-político e construção teórica na produção científica do conhecimento em saúde coletiva. In: BAPTISTA, T. W. F.; AZEVEDO, C. S.; MACHADO, C. V. (Orgs.). Políticas, planejamento e gestão em saúde: abordagens e métodos de pesquisa. Rio de Janeiro: Editora da Fiocruz, 2015, p. 33-57.), seria uma construção que pode ser caracterizada como brasileira, por sua peculiaridade em entrelaçar o campo científico com a política pela redemocratização do Estado durante a ditadura militar, culminando na integração entre a Reforma Sanitária e a Reforma da Medicina, com base no princípio da integralidade em saúde, incorporado pela característica da utilização em sua construção de diversas disciplinas, mas em especial das Ciências Sociais e Humanas e da Filosofia. Tal aspecto é reiterado tanto em Osmo e Schraiber (2015OSMO, A.; SCHRAIBER, L. B. O campo da saúde coletiva no Brasil: definições e debates em sua constituição. Saúde e Sociedade. São Paulo, v. 24, supl.1, p. 205-218, 2015.) quanto em Paim e Almeida Filho (1998PAIM, J. S.; ALMEIDA FILHO, N. Saúde coletiva: uma “nova saúde pública” ou campo aberto a novos paradigmas? Rev. Saúde Pública. São Paulo, v. 32, n. 4, p. 299-316, 1998., p. 310), quando apontam para a necessária “superação do biologismo dominante, da naturalização da vida social, da sua submissão à clínica e da sua dependência do modelo médico hegemônico”.
Dessa forma, consideramos que a Saúde Coletiva é, hoje em dia, o espaço social em que se concentram as abordagens e pesquisas críticas sobre a questão. Julgamos, portanto, que se trata do espaço mais desenvolvido na discussão, contendo o mais elaborado até então sobre o assunto. É o espaço que abarca as análises críticas em relação à construção biomédica da Medicina e busca tecer outras relações entre saúde e sociedade. Interessados em compreender como essa construção conceitual relativa à saúde tem se dado na produção científica da Saúde Coletiva, partimos do referencial teórico marxista. Isso tanto para definir o que é um “conceito” quanto para realizar uma análise crítica de como tem sido tomado o objeto saúde em termos de sua conceituação na Saúde Coletiva, buscando, assim, enriquecer o debate na área.
O conceito como concreto pensado
Entendemos o conceito enquanto produto de uma formulação reflexiva, um método que consiste em partir do particular-concreto, do fenômeno que é parte do social, para se chegar às categorias mais universais, mais gerais, mas que captem a complexidade desse particular-concreto por meio das determinações que levam o fenômeno a fazer parte daquele todo. Tais determinações são as conexões entre a realidade particular examinada e o todo social do qual foi destacada para ser um objeto de estudo (MARX; ENGELS, 2009MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). São Paulo: Boitempo, 2009.; KOSIK, 2011KOSIK, K. A dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.; VIGOTSKI, 2009VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.; ILYENKOV, 2008ILYENKOV, E. V. The dialectics of the abstract and the concrete in Marx’s Capital. Delhi: Aakar Books, 2008.). Assim, a dimensão do concreto é o ponto de chegada e também de partida. Entretanto, não serão os mesmos esses concretos mencionados, pois a chegada é um novo concreto: aquele que é explicado e pode ser compreendido com todas aquelas determinações que o ligam ao social; um ponto de chegada, pois, que agora está em um nível superior de elaboração, não sendo mais aquele concreto aparentemente simples, e que, enquanto compreensão, é ainda limitado e caótico como no início da sua análise reflexiva. Ademais, o conhecimento dessas conexões, que respondem pela configuração concreta da própria parte, se dá por movimentos da formulação reflexiva entre a realidade empírica e a referência de social que adotamos, a compreensão do que é esse social no qual a parte eleita para estudo se insere. Esses movimentos nos permitem progressivamente alcançar as determinações sociais daquela configuração concreta da parte; a cada novo movimento (prática-teoria-prática), chega-se à compreensão do fenômeno, o particular, com uma reflexão cada vez mais rica, mais complexa, com um entendimento maior das determinações existentes.
Sendo, além disso, a realidade histórica, esse movimento não cessa com a própria abstração construída, mas confronta-se continuamente com a realidade empírica, ao longo do tempo. Como disse Lefèbvre (1983LEFÈBVRE, H. Lógica formal. Lógica dialética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983., p. 98, grifos no original): “O relativismo dialético admite a relatividade de nossos conhecimentos, não no sentido de uma negação da verdade objetiva, mas no sentido de uma perpétua superação dos limites de nosso conhecimento”.
Tal forma de elaborar o conceito constitui um método que assume a existência de uma realidade concreta não interpretada; além de uma atividade objetiva prática do ser humano social se desenvolvendo independentemente do pensamento; e de uma forma sensorial imediata de reflexo dessa realidade concreta objetiva na consciência. Isso significa que o pensamento teórico se dá sobre o mundo objetivo. Este é “o único método pelo qual o pensamento pode reproduzir no conceito, no movimento dos conceitos, a concreticidade historicamente estabelecida existindo fora e independentemente dele, um mundo existindo e se desenvolvendo fora e independentemente do pensamento” (ILYENKOV, 2008ILYENKOV, E. V. The dialectics of the abstract and the concrete in Marx’s Capital. Delhi: Aakar Books, 2008., p. 158, tradução nossa).
Apreendemos, assim, a realidade objetiva por meio de conceitos, por meio de abstrações, já que em nossa análise “não podemos nos servir de microscópio nem de reagentes químicos” (MARX, 2013MARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 78). O conceito é engendrado após se abstraírem todas as características concreto-factuais (as características casuais), permitindo chegar à essência do objeto (a célula mais simples e, ao mesmo tempo, mais geral), para, a partir dessa essência, entender todos os casos particulares, independentemente das diferentes aparências que possam ter. Isso permite ao sujeito, a partir desse fundamento, compreender o fenômeno em sua concretude, como realidade concreta, síntese de múltiplas determinações (MARX, 2008).
O conceito de saúde na Saúde Coletiva
Nossa pesquisa empírica foi documental, contendo a produção bibliográfica que foi selecionada a partir da base de dados SciELO, por concentrar os principais periódicos que reúnem publicações da Saúde Coletiva enquanto área de conhecimento. Para as buscas, foram utilizados de forma isolada os seguintes descritores: “conceito de saúde”, “determinação social do processo saúde-doença” e “saúde global”. E, a seguir, outros descritores afins do tema foram utilizados de forma cruzada, sendo eles: “processo saúde-doença”, “promoção da saúde” e “qualidade de vida”, cruzados com “conhecimento”, “produção científica”, “práticas de saúde” e “serviços de saúde”. Não houve restrição quanto ao ano de publicação, sendo incluídos todos os artigos encontrados com os descritores apresentados, de 1978 a 2016. Essa busca resultou em um total de 864 artigos.
A seguir, foram realizadas a limpeza das repetições e a manutenção das revistas apenas da Saúde Coletiva como a fonte da produção a ser examinada. A definição de quais seriam essas revistas foi baseada na publicação de um volume especial da revista Ciência & Saúde Coletiva, dedicado à história das principais revistas da Saúde Coletiva (C&SC, 2015). São elas: Cadernos de Saúde Pública (CSP); Ciência & Saúde Coletiva (CSC); Revista de Saúde Pública (RSP); Interface - Saúde, Educação, Comunicação (Interface); Revista Brasileira de Epidemiologia (RBE); Saúde e Sociedade (SS); Physis - Revista de Saúde Coletiva (Physis); Revista Brasileira de Saúde Materno-Infantil (RBSMI); Revista Brasileira de Saúde Ocupacional (RBSO); Trabalho, Educação e Saúde (TES); Saúde em Debate (SD); e Revista do Sistema Único de Saúde (RSUS).
Assim, daquele total inicial de 864, foram selecionados 294 artigos para serem examinados, com base em seus resumos, a fim de constituírem casos do presente estudo: aqueles que declaradamente afirmavam que trabalhariam com alguma definição de saúde, assim como aqueles que usavam e discutiam ou comentavam sobre uma definição de saúde preexistente e que a adotaram em seus estudos e aqueles que faziam uso de uma dada definição de saúde, mesmo sem discuti-la, resultando em 65 artigos para leitura integral.
Nessa leitura integral, buscaram-se maior delimitação e precisão quanto à definição de saúde, considerando-se que os textos deveriam conter alguma afirmativa sobre o que é saúde. Desse segundo exame, resultaram 34 artigos que afirmavam um conceito de saúde, mesmo que essa afirmação não fosse o objeto principal do trabalho. O período de publicação desse grupo de artigos ficou entre os anos de 1991 e 2015, sendo que, dos selecionados, não permaneceram quaisquer trabalhos dos periódicos: Revista Brasileira de Saúde Ocupacional; Trabalho, Educação e Saúde; Revista Brasileira de Epidemiologia; e Revista do Sistema Único de Saúde.
Dos 34 artigos examinados, dez se propuseram como objeto a análise de saúde, enquanto outros 24 tratavam de temas diversos. Entretanto, apenas sete buscaram discutir um conceito de saúde, ficando os outros 27 artigos imersos em um debate mais restrito e mesmo parcial do que é saúde, em sua maioria aderindo a concepções preexistentes enquanto uma definição apriorística, mas sem discuti-las. Duas situações polarizadas chamam a atenção: apenas dois artigos buscaram realizar uma elaboração conceitual mais fundamentada sobre saúde, e outros dois concluem pela negação dessa conceituação.
Assim, da análise do material empírico, observamos que na Saúde Coletiva existem duas polarizações sobre o conceito de saúde: por um lado, ocorre majoritariamente uma defesa por se construir tal conceito, existindo no interior de grupo de estudos uma polissemia do termo, pois surgem diversas definições sobre o que seria saúde; por outro, encontramos o argumento da dificuldade de se conceituar saúde, com estudos que negam qualquer elaboração nesse sentido.
O conceito de saúde na Saúde Coletiva: a não possibilidade de um conceito
Dos documentos analisados, conforme mencionado, dois argumentam a extrema dificuldade de se elaborar um conceito de saúde. Czeresnia (1999CZERESNIA, D. The concept of health and the difference between prevention and promotion. Cad. Saúde Pública. Rio de Janeiro, v. 15, n. 4, p. 701-709, 1999. , p. 702, tradução nossa) afirma que “a palavra, embora uma forma elaborada de expressão e comunicação, é insuficiente para apreender a realidade em sua totalidade”. Segundo a autora (1999, p. 703, tradução nossa), “saúde e adoecimento são formas pelas quais a vida se manifesta. São experiências únicas, subjetivas; palavras não podem reconhecer e significa-las completamente”, pois, segundo ela, “saúde não é um objeto que pode ser restringido dentro do campo do conhecimento objetivo. A saúde não se traduz em um conceito científico”.
Costa e Bernardes (2012COSTA, M. L.; BERNARDES, A. G. Produção de Saúde como Afirmação de Vida. Saúde e Sociedade. São Paulo, v. 21, n. 4, p. 822-835, 2012.) argumentam que a episteme moderna reduz o objeto-conceito a puro objeto, fazendo com que a doença seja o objeto ontologicamente estudado, e a saúde passe a ser a não doença. Segundo os autores, a partir da hermenêutica, entende-se a saúde como ontologia mínima, como um murmúrio em uma superfície, que vai inscrevendo os modos com que a mesma vai se tornando, fazendo com que exista a saúde, podendo ser nomeada, mas não conceituada. Para os autores, utilizando o simulacro de Gilles Deleuze, a saúde é um nome próprio, da ordem do “é” e não do “que é”, fazendo com que a produção de saúde se torne diretamente produção da própria vida e das subjetividades. Parece-nos que, para estes autores, o abstrato seria um sinônimo de uma forma pura de pensamento, que está em oposição à realidade objetiva, que é concreta. O concreto e o abstrato estariam, dessa forma, em oposição excludente um em relação ao outro, parecendo que o conceito constituiria uma “destruição da concretude sensorialmente dada, como eliminação de um grande número de propriedades percebidas sensorialmente para o benefício de uma delas” (ILYENKOV, 2008ILYENKOV, E. V. The dialectics of the abstract and the concrete in Marx’s Capital. Delhi: Aakar Books, 2008., p. 46, tradução nossa).
No entanto, da nossa perspectiva, mesmo se enfrentando dificuldades e limitações de cunho histórico, cabe a busca por formular o conceito de saúde; a complexidade da vida humana pode ser apreendida conceitualmente tendo-se sempre em consideração que seja uma formulação relativa historicamente. E o maior benefício de se buscar a conceituação é exatamente ultrapassar a cada momento histórico o imediato dado, o que se captura apenas pela percepção primeira, na qual nem a socialidade nem a historicidade da realidade particular sob exame serão reconhecidas e inscritas como tal. Afirmamos assim não só a importância de se buscar conceituar saúde, mas a possibilidade da existência de uma tal formulação, e pois, de existência desse conceito (de saúde).
O conceito de saúde na Saúde Coletiva: a saúde como noção
Dos documentos selecionados, quase metade foram estudos que definiram a saúde a partir da percepção das pessoas sobre esse objeto, na maioria pesquisas que utilizaram entrevistas. Incluídos nesse grupo também estão os estudos que argumentam que a saúde é uma questão subjetiva. Assim, menos do que buscar elaborar e defender um conceito específico, acatam as representações dos indivíduos entrevistados, remetendo tais representações como identificadas, majoritariamente, com as definições prévias da Organização Mundial da Saúde. Podemos perceber, então, que existe uma grande ênfase dentro da Saúde Coletiva em analisar a saúde a partir da percepção individual (mesmo que tomada coletivamente como representação social de um grupo), talvez expressando a valorização da dimensão pessoal nos estudos e também como reflexo da forma como se tem pesquisado outros objetos que não especificamente a saúde dentro do movimento da Saúde Coletiva. Isto porque, não obstante trabalharem esses estudos com as representações sociais, elas mesmas não são alvo de reflexão acerca do que representam enquanto social, como se as representações não constituíssem parte de uma dada socialidade - parte também das contradições em seu interior, que demarcam situações materiais e universos culturais distintos nos estratos sociais, o que certamente influenciaria as representações acerca da saúde. Nesses estudos, as distintas representações acabam sendo validadas diretamente como explicação final do que é saúde.
Dos artigos analisados, Bezerra et al (2005BEZERRA, A. F. B.; ESPÍRITO SANTO, A. C. G.; BATISTA FILHO, M. Concepções e práticas do agente comunitário na atenção à saúde do idoso. Revista de Saúde Pública. São Paulo, v. 39, n. 5, p. 809-815, 2005.), Freire Júnior e Tavares (2005), Oliveira e Pinto (2007OLIVEIRA, M. M.; PINTO, I. C. Percepção das usuárias sobre as ações de Prevenção do Câncer do Colo do Útero na Estratégia Saúde da Família em uma Distrital de Saúde do município de Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil. Rev. Bras. Saúde Matern. Infant. Recife, v. 7, n. 1, p. 31-38, 2007.), Figueira et al (2009FIGUEIRA, T. R. et al. Percepções e ações de mulheres em relação à prevenção e promoção da saúde na atenção básica. Revista de Saúde Pública. São Paulo, v. 43, n. 6, p. 937-943, 2009.), Martins (2010MARTINS, M. F. S. V. Imagens construídas em torno da gravidez. Ciência & Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 15, p. 1369-1375, 2010.), Torres et al (2011TORRES, M. F. M.; CARVALHO, F. R.; MARTINS, M. D. Estudo comparativo da concepção de saúde e doença entre estudantes de odontologia e ciências sociais de uma universidade pública no Estado do Rio de Janeiro. Ciência & Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 16, p. 1409-1415, 2011.), Silva e Ramos (2014SILVA, S. M.; RAMOS, M. Z. Profissionais de saúde de um serviço de emergência hospitalar: discursividades em torno do cuidado. Physis: Revista de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 24, n. 3, p. 693-714, 2014.) classificam a percepção das pessoas como pertencentes à definição de saúde da OMS. Pereira et al (1991PEREIRA, I. M. T. B.; WESTPHAL, M. F.; STEWIEN, G. T. M. Percepções do médico-chefe a respeito de atividades educativas em Postos de Assistência Médica. Revista de Saúde Pública. São Paulo, v. 25, n. 4, p. 306-314, 1991.) e Stanga e Rezer (2015STANGA, A. C.; REZER, R. Concepções de saúde, trabalho docente e o Pró-Saúde: nos caminhos da hermenêutica... Physis: Revista de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 25, n. 2, p. 593-614, 2015.) descrevem mais de uma percepção, mas dentre elas a da OMS como majoritária. Augusto et al (2011AUGUSTO, V. G. et al. Promoção de saúde em unidades básicas: análise das representações sociais dos usuários sobre a atuação da fisioterapia. Ciência & Saúde Coletiva, v. 16, supl. 1, p. 957-963, 2011.), Prates et al (2014PRATES, J. G. et al. A concepção dos enfermeiros de serviços de urgência e emergência sobre o processo saúde-doença na assistência aos usuários de substâncias psicoativas. Saúde em Debate. Rio de Janeiro, v. 38, n. 101, p. 318-327, 2014.) e Oliveira et al. (2015) descrevem que a definição de saúde das pessoas é a ausência de doença; e Santos et al (2015SANTOS, W. J.; GIACOMIN, K. C.; FIRMO, J. O. A. Alteridade da dor nas práticas de Saúde Coletiva: implicações para a atenção à saúde de pessoas idosas. Ciência & Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 20, n. 12, p. 3713-3721, 2015.), a ausência de dor. Para Shimizu et al (2015SHIMIZU, H. E. et al. A estrutura das representações sociais sobre saúde e doença entre membros de movimentos sociais. Ciência & Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 20, n. 9, p. 2899-2910, 2015., p. 2907), as percepções têm a qualidade de vida como elemento central; e Segre e Ferraz (1997SEGRE, M.; FERRAZ, F. C. O conceito de saúde. Revista de Saúde Pública. São Paulo, v. 31, n. 5, p. 538-542, 1997., p. 542) e Delfino et al (2004DELFINO, M. R. R. et al. O processo de cuidar participante com um grupo de gestantes: repercussões na saúde integral individual-coletiva. Ciência & Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 9, n. 4, p. 1057-1066, 2004.) argumentam que a saúde é uma questão subjetiva, sem deixar claro como a dimensão subjetiva se articula à materialidade da vida social, ou se simplesmente adotam o subjetivismo (e não a subjetividade) como o critério maior de construir esse conceito.
Devemos ressaltar que o estudo das percepções das pessoas sobre a saúde pode fornecer um material importante para descrever as condições de vida das mesmas, dando voz aos sujeitos. Entretanto, como disse Kosik (2011KOSIK, K. A dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.), muitas vezes essa percepção, essa aparência do que é um dado fenômeno (saúde, em nosso caso), é contraditória ou até mesmo oposta à sua essência. Dessa forma, a permanência da análise nessa dimensão é restar na aparência da realidade objetiva, nas descrições das características concreto-factuais, sendo que a aceitação naturalizada desse senso comum da percepção das pessoas acaba limitando o entendimento do que é a saúde na e para a sociedade em que essas mesmas pessoas estão inseridas. Sem alcançar um concreto pensado, relativamente à socialidade da qual as representações são parte, esse modo de definição se torna um discurso descritivo sobre características de um objeto. Permanece, portanto, como uma noção de saúde, elaboração que, segundo Vigotski (2009VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.) e Ilyenkov (2008ILYENKOV, E. V. The dialectics of the abstract and the concrete in Marx’s Capital. Delhi: Aakar Books, 2008.), constitui uma primeira esfera de reflexão (as representações sociais), mas que não completa seu movimento para chegar ao concreto pensado (as representações como parte do social).
Há ainda nesse agrupamento os estudos que buscam interpretar as representações sociais examinadas pela referência da definição de saúde, tal como cunhada pela OMS. Esses estudos, além de também serem caracterizados como valendo-se de uma noção de saúde, podem ser compreendidos, ao apelarem para o “bem-estar” da definição da OMS, como aderindo a um lema, um mote para a coesão em torno de uma visão mais crítica que a mera contraposição às doenças. Mas esse lema, se de um lado, busca oferecer uma alternativa à definição biomédica de ausência de doenças no corpo individual, de outro, carece de construção mais precisa do significado de bem-estar em seu caráter histórico-social, quer para compreender o bem-estar físico como parte da vida social, o psíquico como igualmente parte do social e o propriamente social (sempre relativizado por referência às distintas situações de classe) relativamente ao todo da vida em sociedade.
Ainda devemos salientar que essa adesão, se agregada ao segmento de estudo que consideraremos a seguir e que de modo distinto, como explicitaremos, também adere à definição da OMS, teremos como resultado de nossa pesquisa o dado de que a maioria dos estudos acerca do conceito saúde encontra-se fundamentada em, ou apela para, essa formulação da OMS.
Por fim, Almeida e Trevisan (2011ALMEIDA, D. T.; TREVISAN, E. R. Estratégias de intervenção da Terapia Ocupacional em consonância com as transformações da assistência em saúde mental no Brasil. Interface. Botucatu, v. 15, n. 36, p. 299-308, 2011., p. 301) argumentam que saúde são “projetos de vida que aumentam as possibilidades de trocas de recursos e afetos em uma rede de relações articuladas e flexíveis, aumentando a participação real dos sujeitos na sociedade”. Há proposição de algo que poderia vir a ser uma noção; os autores do estudo, entretanto, não seguiram adiante nesse caminho, não obtendo até mesmo uma noção, ficando em uma ideia primária de saúde. Além disso, essa concepção de saúde como projetos de vida sem considerar sua socialidade acaba naturalizando a sociedade (no caso, a sociedade capitalista) e, se não esclarecer como esse projeto se articula à maior participação dos sujeitos sociais na vida societária, pode-se correr o risco de deixar a participação como questão mais individual do que como parte do social.
O conceito de saúde na Saúde Coletiva: a saúde como lema
Outro grupo de estudos (BYDLOWSKI; WESTPHAL; PEREIRA, 2004BYDLOWSKI, C. R.; WESTPHAL, M. F.; PEREIRA, I. M. T. B. Promoção da saúde. Porque sim e porque ainda não! Saúde e Sociedade. São Paulo, v. 13, n. 1, p. 14-24, 2004.; MARCONDES, 2004MARCONDES, W. B. A convergência de referências na promoção da saúde. Saúde e Sociedade. São Paulo, v. 13, n. 1, p. 5-13, 2004.; SCLIAR, 2007SCLIAR, M. História do conceito de saúde. Physis: Revista de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, p. 29-41, 2007.; DALLARI, 2010DALLARI, S. G. Controle judicial da política de assistência farmacêutica: direito, ciência e técnica. Physis: Revista de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, p. 57-75, 2010.; FEIO; OLIVEIRA, 2015OLIVEIRA, S. K. M. et al. Autopercepção de saúde em quilombolas do norte de Minas Gerais, Brasil. Ciência & Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 20, n. 9, p. 2879-2890, 2015.) tomou mais explicitamente que o anterior a definição de saúde da OMS como base para suas análises. Brugnerotto e Simões (2009BRUGNEROTTO, F.; SIMÕES, R. Caracterização dos currículos de formação profissional em Educação Física: um enfoque sobre saúde. Physis: Revista de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 19, n. 1, p. 149-172, 2009.), ao analisarem os currículos de Educação Física, encontraram três definições: biomédico; ampliado ou promoção da saúde; e promoção da saúde biológica. Concluem, no entanto, que o ideal é utilizar a definição da OMS. Esses estudos não possuem o intuito de levantar argumentos em defesa dessa definição, ou seja, ela é tomada como verdadeira a priori. Tampouco constituem, tal qual no agrupamento anterior, um ou mais referentes para explicar os dados empíricos.
A definição de saúde da OMS é criticada praticamente desde que foi criada, pelos mais diferentes matizes teóricos; entretanto, ainda é bastante hegemônica no senso comum e, como vemos, também dentro da Saúde Coletiva. Diferentemente dos autores anteriores, ainda que a nosso ver pertencentes ao mesmo agrupamento (a saúde como um lema, e não necessariamente um conceito), Matumoto et al (2001MATUMOTO, S.; MISHIMA, S. M.; PINTO, I. C. Saúde Coletiva: um desafio para a enfermagem. Cadernos de Saúde Pública. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, p. 233-241, 2001., p. 235, grifos nossos) argumentam que “demarca-se o conceito saúde-doença da saúde coletiva com base na determinação social do processo saúde-doença, diferentemente daquele da saúde pública, da causalidade”, e Silva e Ramminger (2014SILVA, S. M.; RAMOS, M. Z. Profissionais de saúde de um serviço de emergência hospitalar: discursividades em torno do cuidado. Physis: Revista de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 24, n. 3, p. 693-714, 2014.) utilizam a concepção de saúde de Canguilhem. Nos dois casos, embora estejam apontando, respectivamente, as determinações sociais e a normatividade social como possíveis referentes explicativos da saúde, os autores apenas mencionam essas referências, sem trabalharem de que modo as articulam com seus objetos de estudo. Daí nossa tipificação quanto à adoção de referências como um a priori, um lema que se estende à própria saúde que se quis conceituar.
Outra forma de definir o que é saúde encontrada nos documentos foi a relação realizada pelos estudos entre saúde e as condições de vida das pessoas. Para Siqueira e Moraes (2009SIQUEIRA, M. M.; MORAES, M. S. Saúde coletiva, resíduos sólidos urbanos e os catadores de lixo. Ciência & Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 14, n. 6, p. 2115-2122, 2009., p. 2.116), a saúde define-se “no contexto histórico da sociedade e em seu processo de desenvolvimento, englobando as condições de alimentação, habitação, educação, renda, ambiente, trabalho, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde”. E para Lopes (2005LOPES, F. Para além da barreira dos números: desigualdades raciais e saúde. Cadernos de Saúde Pública. Rio de Janeiro, v. 21, n. 5, p. 1595-1601, 2005., p. 1.595), saúde é “o conjunto de condições integrais e coletivas de existência, influenciado pelo contexto político, socioeconômico, cultural e ambiental”.
Associar a saúde a condições sociais e/ou ambientais é importante elemento reflexivo. Entretanto, novamente neste caso a articulação de condições particulares e concretas ao todo social não está bem explicitada, recaindo novamente na qualificação do lema mais do que do conceito, pois adere a uma perspectiva renovadora de saúde - como aderindo a um movimento de pensar mais crítico, porém, faltando o apontamento público da tradução dessa vontade política em pensamento articulador da dimensão empírica com a teórica. Recaem, assim, nos mesmos problemas dos demais textos aqui examinados: são elencadas características gerais (concreto-factuais) do ser humano, mas com certa visão do social que o fragmenta em dimensões mais empíricas, práticas, o que dificulta a articulação com o social explicando esses mesmos fragmentos que compõem a vida.
Esses estudos têm em comum a utilização a priori de uma definição de saúde existente ou a tomada de referenciais pouco explicados em sua relação com o que seria saúde, muitas vezes também mantendo uma reflexão abstrata sem a preocupação de verificar a correspondência com a realidade empírica. Por outro lado, coincidem com a adoção de uma postura crítica frente à forma como é tratada a saúde pela biomedicina. Isso faz com que, na busca de um distanciamento desta, acabem adotando uma posição crítica enquanto um movimento social a ser seguido, mas que não chega a ser um conceito. Schraiber (2015SCHRAIBER, L. B. Engajamento ético-político e construção teórica na produção científica do conhecimento em saúde coletiva. In: BAPTISTA, T. W. F.; AZEVEDO, C. S.; MACHADO, C. V. (Orgs.). Políticas, planejamento e gestão em saúde: abordagens e métodos de pesquisa. Rio de Janeiro: Editora da Fiocruz, 2015, p. 33-57., p. 35) vai chamar esse movimento de engajamento ético-político, “em que o sujeito pesquisador delimita seu objeto em razão da importância social, política e histórica que a ele se atribui”, mas que esse mesmo movimento por vezes acaba partindo do princípio de que “o politicamente engajado não requeresse a contribuição teórico-conceitual e esta não potencializasse o politicamente engajado”. Por isso, podemos considerar que essas definições de saúde não sejam um conceito, mas um ideário, um lema.
O conceito de saúde na Saúde Coletiva: a saúde como construções conceituais em curso
Os estudos restantes discutiram o conceito de saúde a partir de definições já existentes, buscando verificar pontos positivos e negativos com vistas a uma elaboração mais qualificada do objeto saúde, enquanto outros buscaram criar uma nova concepção a partir de seus referencias teóricos.
Coelho e Almeida Filho (1999COELHO, M. T. Á. D.; ALMEIDA FILHO, N. Normal-patológico, saúde-doença: revisitando Canguilhem. Physis: Revista de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 9, n. 1, p. 13-36, 1999.) e Arreaza (2012ARREAZA, A. L. V. Epidemiologia crítica: por uma práxis teórica do saber agir. Ciência & Saúde Coletiva, v. 17, n. 4, p. 1001-1013, 2012.) fazem uma análise crítica da concepção de saúde de Canguilhem, enquanto Coura (1992COURA, J. R. Endemias e meio ambiente no século XXI. Cadernos de Saúde Pública. Rio de Janeiro, v. 8, n. 3, p. 335-341, 1992., p. 336), apesar de não se basear nesse autor, chega a uma concepção de saúde muito próxima: “adaptação do homem ao meio, preservando a sua integridade física, funcional, mental e social”, definindo adaptação como um ajustamento dinâmico ativo.
A definição de saúde de Canguilhem (2012CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.) busca entender como a vida vem sendo vivida, fazendo uma articulação do cotidiano com as regras da sociedade. Parece-nos ser a que mais se aproxima de nossa concepção do que é um conceito. Considera-se a doença como viver impedido no modo de andar a vida da sociedade, isto é, um obstáculo prático (particular concreto) ao modo como histórica e socialmente as relações sociais estão ocorrendo no tempo e espaço delimitado; e a saúde como o viver permitido, isto é, viver concretamente exercido relativamente àquela normatividade do social. Assim sendo, não há uma definição quer de doença, quer de saúde fora da normatividade social, como um abstrato genérico e universal independente da realidade social e histórica. Por isso, e ao mesmo tempo, não é possível definir doença e saúde apenas pela tomada do normal e do patológico com base nas regularidades anatômico-funcionais da biomedicina.
Não obstante, parece-nos faltar ainda nos estudos analisados tanto o exame particular-concreto de alguma realidade social em que o viver esteja impedido, assim permitindo verificar a funcionalidade dessa construção de saúde para tomar situações empíricas e explicá-las, quanto uma análise que veja o social e sua normatividade enquanto um todo tenso e contraditório quanto às distintas posições de classe no modo de andar a vida em sociedade. Desse modo, seria possível não só compreender essa forma do andar da vida, mas também porque essa vida está sendo impedida ou não de ser vivida plenamente, ou ainda, porque, apesar de toda a violência social a que as pessoas estão submetidas, elas ainda necessitam continuar essa caminhada.
Além desses estudos que tomaram a normatividade social como base, Ayres (2007AYRES, J. R. C. M. Uma concepção hermenêutica de saúde. Physis: Revista de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, p. 43-62, 2007., p. 60) argumenta que os conceitos de saúde e doença se referem a interesses práticos e instrumentais, respectivamente, na elaboração racional de experiências vividas de processos de saúde-doença-cuidado, e pertencem a racionalidades distintas. E conclui que saúde significa “a busca contínua e socialmente compartilhada de meios para evitar, manejar ou superar de modo conveniente os processos de adoecimento, na sua condição de indicadores de obstáculos encontrados por indivíduos e coletividades à realização de seus projetos de felicidade”.
Nogueira (2011NOGUEIRA, R. P. Extensão fenomenológica dos conceitos de saúde e enfermidade em Heidegger. Ciência & Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 16, n. 1, p. 259-266, 2011., p. 264) argumenta que a saúde não se encontra na vida, nos órgãos físicos ou até mesmo na mente, pois não é um estado ou condição que se encontra ou se mede a partir dos sinais, sintomas e alterações bioquímicas do corpo. Ele conceitua saúde da seguinte forma: “A essência da saúde se identifica com a própria essência extática do Dasein, sendo o fundamento de todas as potencialidades ‘saudáveis’ do Dasein no mundo”.
O estudo de Ayres (2007AYRES, J. R. C. M. Uma concepção hermenêutica de saúde. Physis: Revista de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, p. 43-62, 2007.), apesar de estar fundamentado na hermenêutica de Heidegger e Gadamer, nos parece muito próximo da definição de saúde de Canguilhem. Ao compreender a saúde não como oposto lógico da doença, pois não pertenceriam a uma mesma racionalidade, traça-se um paralelo com Canguilhem, de que a saúde e a doença não são opostos uma da outra, mas diferentes normas de como andar a vida. Considerando-se que para o último a saúde corresponde a uma forma de viver que não está impedida, podemos relacionar com Ayres (2007), que busca uma interação com o cuidado, a ideia de que a saúde é uma forma de viver a vida na qual existem os meios de evitar, manejar ou superar outra forma de viver a vida impedida - o adoecimento. Da mesma forma nos parece que, assim como em Canguilhem, quem for utilizar essa concepção precisa dar o passo seguinte, buscando não só os meios, mas porque são esses os meios e porque, em grande parte, esses meios não estão disponíveis para a população em geral na sociedade capitalista.
Nogueira (2011NOGUEIRA, R. P. Extensão fenomenológica dos conceitos de saúde e enfermidade em Heidegger. Ciência & Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 16, n. 1, p. 259-266, 2011.), também fundamentado na hermenêutica de Heidegger, tomará um caminho diferente. Segundo o autor (2011, p. 260), “o Dasein não se entende a si mesmo nem pode ser analisado como se fosse a propriedade de um ente dado na efetividade (Wirklichkeit), mas somente pela possibilidade de que ele mesmo é a cada momento”, ou seja, o Dasein não corresponde ao vivido, mas sim ao potencial de viver. E, baseado na explicação do Dasein, coloca a saúde na mesma condição: a essência da saúde é a essência do Dasein, ou seja, do “estar aí”, estar na vida vivida do ser humano. Ressaltando, assim, a saúde mais da perspectiva do humano, é a relação deste com a normatividade social e as tensões internas desta quanto às classes sociais, o que fica menos discutido no artigo examinado.
Todos os artigos enquadrados neste agrupamento, por outro lado, situando-se enquanto ensaios teóricos, parecem-nos uma construção em curso, ou seja, ainda não completada, mas podendo oferecer caminhos importantes para a construção conceitual de saúde.
Aproximações parciais da essência do objeto saúde
As definições de saúde, apesar de diversas, são, na grande maioria convergentes e formam, como apontamos, um conjunto de noções. De acordo com Ilyenkov (2008ILYENKOV, E. V. The dialectics of the abstract and the concrete in Marx’s Capital. Delhi: Aakar Books, 2008.), uma noção é, em primeiro lugar, uma forma de memória social representada pelo discurso, pela linguagem. Ainda de acordo com o autor (2008, p. 43, tradução nossa):
Se um indivíduo obteve uma noção de uma coisa de outros indivíduos que a observaram diretamente, a forma adquirida da consciência disso é precisamente aquilo que ele teria retido se tivesse contemplado a coisa com seus próprios olhos. Ter uma noção significa ter uma contemplação compreendida socialmente (isto é, expressa no discurso ou capaz de ser expressa no discurso). Nem eu, nem alguns outros indivíduos, formamos um conceito de alguma coisa se eu, através do discurso, observo esta coisa através dos olhos de outros indivíduos ou este outro indivíduo contempla ela através de meus olhos. Nós nos engajamos em uma troca mútua de noções. Uma noção é precisamente isso - contemplação expressa verbalmente.
Dessa forma, a contemplação do mundo sensorial e a noção são formas de expressar esse mundo, que estão se valendo da forma empírica de conhecimento. A contemplação individual percebida de maneira social sempre está contida na noção, o que torna possível transmitir essa noção através do discurso, significando a transmissão da própria contemplação socialmente individual. Assim, contemplação e noção são apenas o primeiro estágio sensorial do conhecimento. A noção é uma aproximação parcial do conhecimento sobre um objeto.
Mas de forma alguma as noções podem ser consideradas como falsas, totalmente desvinculadas da realidade. Devem ser vistas como explicações ou compreensões parciais e que, para as pessoas, de modo geral, viver conhecendo os objetos da vida a partir de noções ao invés de conceitos não é um problema: a vida é vivida no dia a dia com base em noções das coisas. Entretanto, quanto se estuda um objeto (com vistas a transformá-lo), é necessário realizar aproximações mais profundas que a simples noção.
Porém, como também vimos, a maioria dos estudos situou-se nesse âmbito de elaboração. Seguindo a Marx e Engels (2009MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). São Paulo: Boitempo, 2009., p. 30), o pesquisador “se choca necessariamente com coisas que contradizem sua consciência e seu sentimento, que perturbam a harmonia, por ele pressuposta, de todas as partes do mundo sensível e sobretudo do homem com a natureza”. Para aparentemente superar essa contradição entre seu pensamento e o mundo real, o pesquisador busca refúgio em uma “dupla contemplação: uma contemplação profana, que capta somente o que é ‘palpável’, e uma contemplação mais elevada, filosófica, que capta a ‘verdadeira essência’ das coisas”:
Ele não vê como o mundo sensível que o rodeia não é uma coisa dada imediatamente por toda a eternidade e sempre igual a si mesma, mas o produto da indústria e do estado de coisas da sociedade, e isso precisamente no sentido de que é um produto histórico, o resultado da atividade de toda uma série de gerações, que, cada uma delas sobre os ombros da precedente, desenvolveram sua indústria e seu comércio e modificaram sua ordem social de acordo com as necessidades alteradas. (MARX; ENGELS, 2009MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). São Paulo: Boitempo, 2009., p. 30).
Dessa forma, as noções de saúde colocam uma representação da mesma no lugar da saúde rearticulada ao social-histórico, fazendo com que o pesquisador olhe para a saúde apenas pelas características concreto-factuais da mesma. Sem uma significação clara, acabam em uma noção pragmática e operacional (AROUCA, 2003AROUCA, S. O dilema preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da medicina preventiva. São Paulo: Editora UNESP; Rio de Janeiro: Editora da Fiocruz, 2003.), sendo, na verdade, utilizada para naturalizar as determinações, principalmente as determinações sociais, sobre a saúde humana.
O mesmo vale para alimentação, habitação, educação, ambiente, emprego, lazer, acesso a serviços de saúde, entre outros: são todas características que fazem parte do modo de andar a vida na sociedade; mas não se explicam em si mesmas e não nos dizem qualquer coisa específica do que é saúde, mesmo porque não nos dizem qualquer coisa específica sobre si mesmas.
Já na Saúde Coletiva, vemos que existe uma tentativa de se criarem formulações articuladas ao social e ao histórico. Entretanto, na maioria dos casos não se alcança uma crítica completa. Alguns elementos dessa lógica ligada ao concreto factual - e que se apresentam como uma racionalidade mais formal do que a dialética da compreensão desse concreto factual enquanto socialidade e historicidade de fato ̶ são repensados. Mas observa-se grande dificuldade para ultrapassar a dimensão empírica dos estudos em prol de uma construção mais adensada, tal como entendemos as formulações teórico-conceituais.11 M. J. de Souza e Silva, L. B. Schraiber e A. Mota contribuíram substancialmente na concepção do trabalho, realizando aquisição, análise e interpretação dos dados, preparação e revisão do manuscrito, aprovação da versão final a ser publicada.
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Notas
- 1M. J. de Souza e Silva, L. B. Schraiber e A. Mota contribuíram substancialmente na concepção do trabalho, realizando aquisição, análise e interpretação dos dados, preparação e revisão do manuscrito, aprovação da versão final a ser publicada.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
18 Abr 2019 - Data do Fascículo
2019
Histórico
- Recebido
26 Mar 2017 - Aceito
25 Out 2018 - Revisado
21 Jan 2019