Prevenção e riscos na saúde auditiva: um desafio para a Saúde Coletiva

Luciana Dias Bernardo Sobre o autor
2010

O livro Saúde auditiva: avaliação de riscos e prevenção traz como protagonista um dos maiores causadores da poluição ambiental presentes em nossa rotina: o ruído. Comumente conhecido por causar danos à saúde auditiva nos ambientes de trabalho, o ruído tem sido, também, “um nocivo parceiro do lazer” (p. 62). As autoras apontam um déficit na ação das pessoas mais atingidas por esta ameaça: a “população urbana dos grandes centros” (p. 11) que, apesar de consciente quanto aos prejuízos do ruído ambiental à saúde, de um modo geral, não reage e o aceita como “parceiro” habitual. O “ambiente exterior”, não ocupacional, tem “demandado crescente atenção por parte da comunidade internacional” (p. 61).

As organizadoras, Thais Catalani Morata e Fernanda Zucki, são brasileiras com formação em Fonoaudiologia, e juntas somam influentes publicações de temas em saúde auditiva. Ambas organizaram, pela segunda vez, uma rica publicação na área, composta por 173 páginas que entrelaçam conhecimentos numa abordagem multidisciplinar, contando com a participação de autoras da área de Enfermagem, Engenharia Civil e de Segurança do Trabalho, além de outras fonoaudiólogas responsáveis pela criação dessa importante obra. Com a publicação do livro, Morata comemora o encerramento de uma década de dedicação à frente da linha de pesquisa na área da Saúde Auditiva, Ambiental e Ocupacional no Programa de Mestrado em Distúrbios da Comunicação da Universidade de Tuiuti do Paraná.

A obra é composta por quatro partes que guiaram a organização dos nove capítulos e que, secundariamente, refletiram uma escassez de publicações em determinadas áreas. Cada capítulo foi concebido com base em uma revisão bibliográfica, propiciando acesso a importantes publicações da época, realizadas nacional e internacionalmente, acerca de cada assunto organizado.

Na parte 1, onde o tema central é a relação do ruído urbano em atividades de lazer e seus riscos auditivos, contamos com um capítulo que compila dados de estudos realizados com a população exposta ao ruído não ocupacional, em sua maioria: os adolescentes. A discussão das autoras, que elaboraram o capítulo primeiro, se fez com estudos de diferentes países que mostraram uma conformidade entre os pesquisadores de que o hábito mais comum nesta população é o de “ouvir músicas com aparelhos eletrônicos compactos e portáteis” (p. 28). Há consenso nesses estudos de que o sintoma principal, após longas exposições, é o zumbido. Explicam, ainda, que a tolerância ao ruído por essa população jovem se dá devido ao “ambiente sonoro ser excitante e conduzir a comportamentos cheios de animação” (p. 16). No estudo citado, realizado na Suécia, Olsen-Widén e Erlandsson encontraram uma porcentagem elevada (61%) de jovens que fazem uso da proteção auditiva em shows, indo de encontro ao estudo de Zocoli, realizado no Brasil, que apontam que 94% não fazem uso desta proteção e alegam o absurdo de assistir ao show com ouvidos tapados. Constatou-se que os indivíduos só mudavam suas atitudes e comportamentos frente à saúde auditiva após passarem por alguma experiência de sintoma auditivo pós-exposição ao barulho, ou por relatarem histórico de zumbido e sensibilidade ao ruído.

Os textos que compõem a parte 2 identificam e avaliam os riscos da interação do ruído em diferentes profissões, em cinco capítulos que traçam a inter-relação ruído e saúde auditiva, na exposição ocupacional de profissionais expostos à música, educadores físicos, pescadores, odontólogos e os trabalhadores expostos concomitantemente ao risco químico. Nas atividades ocupacionais, encontra-se uma gama mais extensa de produções na literatura, porém, os profissionais especificamente abordados no livro são pouco estudados e carentes em legislações que os amparem quanto aos efeitos deletérios dos níveis elevados de pressão sonora.

No capítulo 2, o destaque dos estudos são as bandas de rock, músicos clássicos, trios elétricos, carnavalescos e as orquestras sinfônicas, e no capítulo 3 a atenção está nos profissionais de Educação Física. Ambos os conteúdos tratam de profissionais que possuem em comum a exposição profissional a músicas em níveis sonoros elevados e abordam os picos de intensidade atingidos nesses ambientes de exposição musical. Esses trabalhadores estão expostos acima do limite de tolerância permitidos pela legislação vigente do Ministério do Trabalho e Emprego, a Norma Regulamentadora no 15 (NR15), produzida para os ambientes industriais, que preconiza exposição máxima de 85 dB (A) para uma exposição de oito horas diárias.

A ausência de legislação específica para os trabalhadores dos ambientes de lazer pode ser explicada por estes serem expostos a elevadas intensidades musicais (consideradas como agradáveis e prazerosas) ao contrário do ruído, que é conhecido por ser um som desagradável e indesejado, gerado industrialmente. Porém, ambos são prejudiciais se apresentados em níveis elevados, diferindo-se apenas pela sensação de prazer, e não por sua periculosidade. Destaca-se, na abordagem com os educadores físicos, a preocupante interferência que sua profissão de instrução, aliada ao ambiente ruidoso, traz na geração de hábitos nocivos, podendo comprometer a saúde vocal.

As organizadoras trazem à luz de nosso conhecimento, no capítulo 4, a atividade pesqueira, e apontam a escassez de trabalhos na área da saúde auditiva desses profissionais. Um capítulo baseado em revisão predominantemente internacional mostra que esses trabalhadores devem se tornar alvo de mais estudos para que se ampliem publicações que embasem a formulação de legislações nacionais que os amparem em relação aos perigos expostos, pois estão “desprovidos de assistência à saúde, informação e/ou conhecimento a respeito de condutas preventivas com relação aos riscos” (p. 85). Na compilação dos estudos dessa população, destaca-se a necessidade do olhar atento a esses profissionais que “trabalham vários dias seguidos, com exposição continuada ao ruído associado a agentes otoagressores, estando expostos até durante o sono” (p. 79), em virtude dos motores das embarcações que produzem ruído, monóxido de carbono e vibração sem intervalos de repouso.

O capítulo 5 nos encaminha à ilustração dos efeitos nocivos do ruído inerentes ao profissional de Odontologia. Estudos apontaram que nos consultórios odontológicos são ultrapassados os limites de conforto acústico preconizado na legislação brasileira NR 17 e em alguns, o limite máximo de tolerância (NR15), caracterizando sua insalubridade. Notou-se que essa é uma população conhecedora dos riscos na qual sua saúde auditiva está exposta e da maneira de se protegerem, porém apenas 2,5% utilizam proteção, mostrando que o conhecimento do risco é insuficiente para mudanças de comportamento frente a atitudes de prevenção.

Fechando a segunda parte do livro, o capítulo 6 nos transporta a um assunto difundido e desafiante para a Audiologia, que são os trabalhadores que se expõem simultaneamente ao ruído e agentes químicos ototóxicos. A grande dificuldade nessa interação é estabelecer o diagnóstico diferencial e atribuir a origem das desordens auditivas. O instrumento de rastreio é o mesmo dos outros profissionais expostos apenas ao ruído, e comumente ocorre de maneira errônea a atribuição da causa somente ao ruído. Podem-se assim inserir ineficazmente ações de prevenção e subestimar a potencialidade de seus efeitos na saúde auditiva, que podem ocorrer tanto no nível periférico, quanto implicações centrais. A latência para surgimento dos efeitos auditivos dependerá dos agentes ototóxicos a que estão expostos. Esse capítulo vem especialmente enriquecido de estratégias de prevenção e convida pesquisadores e clínicos a olharem com atenção a necessidade de priorizarem pesquisas nessa área, e seu envolvimento para melhor avaliar e prevenir os riscos auditivos causados pela combinação desses agentes.

No que concerne aos instrumentos utilizados para vigilância epidemiológica das perdas auditivas, o único instrumento é a audiometria tonal. Na maior parte da leitura, é possível observar o incentivo ao uso de outros instrumentos que possam ser mais sensíveis para o monitoramento das audições: por exemplo, a audiometria de altas frequências e as emissões otoacústicas, por sua sensibilidade na busca por indícios de danos auditivos, ainda que a audiometria tonal esteja dentro dos padrões de normalidade. Cita-se, ainda, a necessidade de aplicação de questionários que abordem atividades extraocupacionais nas populações estudadas, com a intenção de descartar possíveis variáveis interferentes na intenção de não atribuir causa errônea aos problemas auditivos apresentados.

No decorrer da obra, podemos nos deparar com a definição de perda auditiva induzida por ruído e dos variáveis efeitos auditivos que possam surgir a partir dessa exposição. As configurações da deficiência auditiva, independentemente do profissional exposto e de agentes otoagressores em sua combinação, terão características semelhantes, resumindo-se num mesmo modelo irreversível de perda auditiva ocupacional, variando sua incidência e grau, e o mais importante: passíveis de prevenção.

Falando em prevenção, a parte 3 foi organizada em dois capítulos que trazem diferentes conhecimentos nas práticas de prevenção das perdas auditivas e suas consequências, vistos pela lente do trabalhador, e apontam o Programa de Conservação Auditiva (PCA) como programa-chave que atende às normas exigidas pela NR7 e NR9, para reconhecimento dos riscos no ambiente de trabalho, na educação e treinamento do empregado e empregador para cumprir os objetivos do programa.

O capítulo 7 aponta dois instrumentos aplicáveis aos trabalhadores para avaliar o alcance, efetividade e eficácia do programa, analisa o comportamento dos trabalhadores e oferece subsídios para melhorar as ações de prevenção: os questionários Noise at Work, de Purdy e Williams (2002PURDY, S.; WILLIAMS, W. Development of the Noise at Work Questionnaire to assess perceptions of noise in the workplace. Journal of Occupational Health and Safety. Australia and New Zealand, v. 18, n. 1, p. 77-84, 2002.), e Crenças e atitudes sobre proteção auditiva e perda auditiva, validado por pesquisadores do National Institute for Occupational Safety and Health (NIOSH), este aplicado na maior parte nos estudos descritos (p. 124).

O capítulo 8 aborda importante fator que é apontado como unanimidade nas pesquisas que envolvem saúde auditiva e em qualquer das populações abordadas nessa obra: o sintoma zumbido. Destaca-se a citação das autoras sobre o estudo de Knobel, que aponta a relação entre o zumbido e a perda auditiva, em que “20% dos pacientes com perda auditiva apresentam a queixa de zumbido e 90% dos indivíduos com zumbido intenso apresentam perda auditiva” (p. 141). Sintoma muito relatado e alvo de pesquisas em diversas áreas, ele é considerado o “primeiro sinal de alteração em indivíduos expostos a elevados níveis de pressão sonora” (p. 138), e ainda que não seja obrigatório nas normas regulamentadoras, este capítulo mostra ações que visam minimizar as consequências que tal sofrimento possa trazer ao desempenho ocupacional e na vida pessoal dos acometidos: as formações de grupos de apoio e a investigação da interferência do zumbido na qualidade de vida.

A intenção é intervir, minimizar suas consequências e encaminhá-los ao otorrinolaringologista para determinar tratamento, apoio e aconselhamento necessários. As autoras apresentam nove questionários que podem ser aplicados na investigação do impacto do zumbido na qualidade de vida, dando destaque e profundidade ao THI (Tinnitus Handicap Inventory), que investiga aspecto emocional, funcional e catastrófico.

Finalizando a composição desse exemplar, a quarta parte, composta pelo capítulo 9, traz ao leitor a historicidade de órgãos criados em diversos países para criar normas de saúde e segurança e o conhecimento geral quanto aos aspectos legais existentes, que contemplam o início de uma ação que deve, ou deveria, ser tomada pelos empregadores com a finalidade de conservar a saúde auditiva dos expostos aos riscos ocupacionais.

A norma mais utilizada mundialmente são os limites de tolerância, com destaque para o estudo mencionado de Azevedo (2004AZEVEDO, A.P.M. Efeitos de produtos químicos e ruído na gênese de perda auditiva ocupacional. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) - Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2004. Disponível em: <https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/4903>.
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), que afirma que “os limites de tolerância passaram a ser usados, erroneamente, como marcadores de insalubridade, não como indicadores de gravidade sanitária e necessidade de medidas estruturais de prevenção” (p. 163). As autoras comparam os padrões usados na América do Sul, América do Norte e Europa e apontam, em suas discussões, os países da Europa como possuidores de regulamentações mais promissoras e conservadoras a respeito da ação inicial de implantação das medidas de prevenção. Apontam a dissonante caminhada do Brasil em relação às recomendações internacionais, indo de encontro, inclusive, à sugestão da Fundacentro, publicada em 2001, que busca minimizar o limite do risco potencial para danos auditivos, seguindo, ainda, na prática, a NR15 de 1978.

Finalizando, esse livro traz uma importante contribuição aos profissionais que buscam maior conhecimento sobre os riscos que as exposições insalubres, nos ambientes de trabalho e no lazer, trazem à saúde auditiva. Sua rica visão multidisciplinar nos instiga a apoiar e divulgar a necessidade de pesquisas com populações carentes de medidas protetivas das legislações e nos inspira a olhar atentamente o momento de agir, viabilizando a promoção e prevenção da saúde desses indivíduos.

Referências

  • AZEVEDO, A.P.M. Efeitos de produtos químicos e ruído na gênese de perda auditiva ocupacional. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) - Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2004. Disponível em: <https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/4903>.
    » https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/4903
  • PURDY, S.; WILLIAMS, W. Development of the Noise at Work Questionnaire to assess perceptions of noise in the workplace. Journal of Occupational Health and Safety. Australia and New Zealand, v. 18, n. 1, p. 77-84, 2002.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Abr 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    27 Mar 2018
  • Aceito
    18 Nov 2018
  • Revisado
    17 Fev 2019
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