Resumo
O artigo sintetiza um estudo que visou demonstrar as bases legais e socioeconômicas do surgimento do direito universal à saúde na URSS. Utilizando pesquisa bibliográfica, são analisados três trabalhos que apresentam cenários sobre a criação e implantação do sistema de saúde soviético, escritos entre 1933 e 1937. Para a análise dos trabalhos, utilizou-se materialismo histórico dialético, baseado em Marx e Engels, utilizando as categorias de forças produtivas, relações de produção, revolução social e política, mercadorias e salários. Identificaram-se, na análise dos trabalhos, evidências materiais que apontam o surgimento do direito universal à saúde no contexto revolucionário, concluindo que a saúde livre e universal, como nova qualidade de serviço voltado ao atendimento das necessidades de reprodução social foi consequência da transição entre modos de produção, observada na revolução russa.
Palavras-chave:
direito universal à saúde; sistema de saúde; saúde pública; URSS; revolução
Abstract
This article summarizes a study aimed at demonstrating the legal and socioeconomic basis of the emergence of the universal right to health in the USSR. Using a bibliographic research, three works are presented that show scenarios about the creation and implantation of the Soviet health system, written between 1933 and 1937. For the analysis, it was used dialectical historical materialism, based on Marx and Engels, using the categories of productive forces, relations of production, social and political revolution, commodities and wages. It was identified, in the analysis, material evidence that point to the emergence of the universal right to health in the revolutionary context, concluding that free and universal health, as a new quality of service aimed at meeting the needs of social reproduction, was a consequence of the transition between modes of production observed in the Russian revolution.
Keywords:
revolution; health system; USSR; universal health right; public health
Introdução
Este artigo sintetiza o resultado de uma pesquisa que teve por objetivo investigar a origem do Direito Universal à Saúde, partindo da hipótese de que este direito é decorrência do processo revolucionário russo no ano de 1917. A análise do surgimento do direito à saúde na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) parte do estudo das mudanças que se processam no âmbito das relações sociais de produção, pois se as relações de produção mudam, aí está um sinal de que as forças produtivas - elemento determinante no processo de evolução social (GERMER, 2009______. Marx e o papel determinante das forças produtivas na evolução social. Crítica Marxista, IFCH, Unicamp, Campinas, n. 29, 2009, p. 75-95. Disponível em: <https://www.ifch.unicamp.br/criticamarxista/arquivos_biblioteca/artigo172artigo2.pdf>. Acesso em: 9 maio 2018.
https://www.ifch.unicamp.br/criticamarxi... ) - também estão mudando.
A escolha do termo “processo” para explicar o surgimento do direito à saúde universal na URSS advém do prefácio da “Contribuição à crítica da Economia Política”, que destaca o seguinte excerto:
A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual (MARX, 2008MARX, K. Contribuição à crítica da economia política. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2008., p. 47-48, grifo nosso).
Desse trecho consideram-se dois pontos que guiam a análise que se fará: 1) a estrutura econômica da sociedade capitalista em geral, implicada aí a economia de mercado global a que corresponde a saúde na Rússia, é a base sobre a qual se eleva determinada forma de consciência a partir da qual se constrói uma ideia da posição da saúde no ordenamento da sociedade; 2) o modo de produção da vida material condiciona a forma como os indivíduos se relacionam, como estabelecem leis que regulam seus relacionamentos, como escolhem seus representantes, como participam da gestão social e como pensam o ser e sua relação com o meio, tudo isso funcionando processualmente, ou seja - apelando aqui para a etimologia da palavra “processo” - em direção ao que está adiante, visando a um objetivo.
O objetivo da sociedade soviética tende a diferir qualitativamente do objetivo da sociedade capitalista. Em termos absolutos, à sociedade capitalista corresponde o objetivo do lucro, o que não ocorre, pelo menos no âmbito da concepção sociopolítica,11 Tem-se aqui clareza de que a sociedade soviética, enquanto sociedade em transição, constitui um híbrido que, apesar de estar vivenciando a experiência de construir as bases de uma sociedade comunista, ainda apresenta diversas características de uma sociedade capitalista. em relação à sociedade soviética que, já em transição ao comunismo, estabelece o plano como a meta suprema de seu processo de construção de uma nova ordem social, estando aí implicada a saúde.
Proceder-se-á, então, à análise a partir das mudanças que se operam na superestrutura jurídica da sociedade soviética, ou seja, a partir da sua aparência, considerando-as enquanto sinais de alterações maiores, que necessariamente já se processaram na base econômica da sociedade. A apresentação da percepção de alguns autores sobre os processos de mudanças na organização da saúde, na transição proposta a partir da Revolução de Outubro na Rússia, servirá aqui como coletânea de evidências materiais, ou, em outros termos, como suporte à análise teórica que objetiva descobrir, no processo de transição da sociedade capitalista à comunista, o surgimento de uma organização política da saúde qualitativamente diferente, revolucionária em relação ao que havia até então no processo de evolução social.
Os autores analisados, que vivenciaram presencialmente a evolução do sistema de saúde soviético, são o primeiro comissário popular de saúde soviético, Nikolai Semashko, o médico inglês Arthur Newsholme e o filantropo americano John Kingsbury - que escrevem em dupla, financiados por uma fundação europeia que tinha interesses em avaliar as experiências de saúde pública no continente - e o importante historiador da saúde Henry Sigerist. Os quatro autores supracitados foram escolhidos por conta de dois critérios que se complementam: em primeiro lugar relevância, e depois acessibilidade. A relevância advém do fato de todos os autores terem presenciado e trazido relatos de primeira mão acerca do que viram na União Soviética, ilustrando seus relatos com dados sobre a evolução da saúde nessa nação. Já o critério da acessibilidade se deve ao fato de que outros autores também visitaram e escreveram sobre a URSS, mas os pesquisadores não tiveram acesso a suas obras, seja por não estarem mais disponíveis, seja por constarem em acervos físicos de bibliotecas às quais não se pôde acessar durante o tempo da pesquisa. Segundo Serenko e Ermakov (1984), até 1937 foram sete os autores estrangeiros que publicaram impressões sobre a saúde soviética e desses são apresentados três neste artigo.
Os referidos autores apontam, em suas obras, avanços políticos e legais na organização do sistema de atendimento às necessidades de saúde da população soviética. Tais mudanças, que se operam na superestrutura jurídica da sociedade russa, evidenciam um movimento maior e por isso buscar-se-ão elementos que atestem a determinação econômica que condicionou o novo processo de construção social que se operou na URSS.
Trata-se de uma pesquisa bibliográfica, portanto, que buscará apresentar, neste artigo, em primeiro lugar evidências históricas anteriores ao período revolucionário, que demonstram já existir na Rússia as bases para a implantação de um sistema universal. Em seguida, parte-se a uma análise da saúde em transição, quando esta deixa de estar vinculada à lógica exclusiva da mercadoria - embora de forma ainda nascente - e passa a integrar, de forma gradual, a lógica do planejamento estatal, sendo responsabilidade deste, sua oferta.
Evidências sob análise
Ao longo da investigação sobre a saúde na URSS, percebeu-se que, para se proceder à análise das mudanças ocorridas no âmbito jurídico-político na transição do regime czarista russo para o regime socialista soviético, é necessário notar pelo menos dois períodos claramente distintos com relação à organização da saúde e da sociedade como um todo: os períodos pré e pós-revolucionário.
A primeira questão a se notar no que diz respeito ao período pré-revolucionário diz respeito à forma de governo da Rússia e sua relação com a saúde. Nesse sentido, Newsholme & Kingsbury (1933NEWSHOLME, A.; KINGSBURY, J. A. Red Medicine: Socialized Health in Soviet Russia. New York: Country Life Press, 1933.) e Sigerist (1937SIGERIST, H. E. Socialized Medicine in Soviet Union. New York: W. W. Norton, 1937.) falam do caráter “europeizante” do governo do Czar Pedro I (1682-1721). Nesse período, a Rússia estava procurando diminuir seu atraso em relação ao estágio que se encontrava o modo de produção feudal na Europa. Essa vinculação da economia russa ao mercado europeu acaba por se tornar determinante a todo o posterior desenvolvimento da Rússia czarista. Afinal de contas, quando a estrutura econômica da sociedade russa passa a atuar em consonância com a do restante da Europa, é de se considerar que toda sua superestrutura jurídica, tendencialmente, também passe por essa transição. No que diz respeito à saúde Sigerist afirma que esta era ineficiente e Newsholme & Kingsbury, de forma mais contundente, definem as condições russas como miseravelmente inadequadas.
Uma possível tentativa de se dirimir este atraso foi levada a cabo no governo de Alexandre II (1855-1894), que dentre diversas reformas promoveu a criação dos Zemstvos, instâncias de governo estabelecidas três anos após a abolição da servidão, em 1864, que funcionavam como assembleias distritais e tinham a função de administrar as atividades de bem-estar da população incluindo-se sua saúde. Até então, conforme elucidam Newsholme & Kingsbury e Sigerist, de forma geral, a saúde estava nas mãos de pessoas não habilitadas e a população não tinha condições de pagar por tratamentos. Aqui nota-se que, mesmo não estando o modelo sociopolítico russo completamente alinhado ao que havia de mais moderno à sua época - a saber, as repúblicas constitucionais -, sua economia geral já correspondia à principal característica do modo de produção capitalista: a conversão das relações sociais em mercadorias. Nessa época, a Rússia passava por um processo de mercantilização das relações sociais já que foi em 1861 - como relembram os autores supracitados ao longo de suas obras -, três anos antes da implantação dos Zemstvos, que foi abolida a servidão e que, portanto, a força de trabalho processualmente se converte, legalmente agora, em mercadoria na economia Russa.
Estando estabelecida a força de trabalho como mercadoria, consequentemente tudo o que dizia respeito à reprodução desta força de trabalho, a saúde por exemplo, passaria a ter de ser adquirido pelo trabalhador. O grande problema é que não havia, da parte do recém-criado proletariado russo, disposição econômica e cultural para isso. Newsholme & Kingsbury indicam que era estranho ao médico cobrar pelo seu atendimento, pelo menos no que se refere à população que não tinha como pagar por ele. Na entrevista que os autores fizeram com o comissário popular de saúde, Dr. Vladimirsky, constatam que “mesmo antes da revolução era usual que os tratamentos médicos dados aos camponeses e trabalhadores fossem gratuitos, a ponto de os pacientes atendidos ficarem impressionados se houvesse alguma cobrança” (1933, p. 220, tradução nossa). É justamente nesse ponto que acaba se encaixando o sistema Zemstvo.
Sigerist nota que, de forma pioneira, estas instâncias administrativas locais, os Zemstvos, inauguram uma espécie de sistema de seguro social não só na Rússia, mas na Europa como um todo, estabelecendo-se, inclusive, como pavimento sociopolítico da saúde soviética. Parece aqui que a materialidade das necessidades sociais advindas da abolição da servidão impõe ao governo russo, então encabeçado por Alexandre II, a tarefa de se organizar a assistência à nova classe proletária.22 É importante mencionar que há um processo histórico em andamento que a frase em questão não apresenta de forma detalhada. O ano de 1861 marca a legalidade do processo de abolição da servidão, mas obviamente esse processo teve início antes desse ano - pois a base material para uma mudança desse tipo só poderia vir de um anseio social já relativamente tensionado - e a transição do trabalhador servil para o trabalhador assalariado deu-se ao longo do fim do século XIX e início do século XX. Uma evidência que justifica essa colocação é o fato de que Lênin, quando analisando o que chama de revolução burguesa de 1905, menciona os diversos tipos de proletários em transição, ou semiproletários (camponeses), que ainda estavam transitando ao sistema de assalariamento. Sendo assim, quando no texto se menciona “a nova classe proletária”, não se está fazendo menção a toda população russa, que ainda, em sua grande maioria, estava vinculada ao trabalho no campo, mas a uma população de quantidade não definida que processualmente está em transição da forma de trabalho servil para a forma de trabalho assalariado. A fim de não impor aos capitalistas do campo e da cidade o ônus de lidar com os custos de reprodução da força de trabalho - antes de responsabilidade do sistema feudal - o governo cria um modelo de gestão que, através da coleta de impostos, repõe aos próprios trabalhadores o custo por sua proteção social. Nesse momento, de forma paradoxal, se estabelece uma inflexão na medicina russa: em partes ela deixa de ser um negócio e passa a constituir função pública. É isso que leva Sigerist a afirmar que “a ideia do sistema Zemstvo soa muito interessante, não só do ponto de vista da Rússia, mas da medicina mundial em geral pois foi a primeira tentativa de se organizar a medicina como um serviço público em larga escala” (1937, p. 73, tradução nossa).
O atraso da medicina russa, então, definida pelos autores como “insuficiente” ou “miseravelmente inadequada”, parecia quantitativo e não qualitativo. Além de render elogios ao ineditismo do sistema Zemstvo, pensado por Alexandre II, Sigerist aponta que havia uma tradição científica na medicina deste país, que formava bons médicos - o autor faz um apanhado retrospectivo em sua obra - e que 13 anos antes da revolução, note-se, já havia rendido um prêmio Nobel, com Pavlov. Para Sigerist, então, ficava evidente que a medicina soviética não houvera sido “criada do ar”, ou seja, já havia certa organização da prestação do cuidado apoiada por centros formadores que produziam tecnologia compatível com o que se conhecia sobre saúde à época. Além disso, deve-se observar que o capitalismo em geral, seja ele analisado na Europa dos países centrais ou nos países menos desenvolvidos, como é o caso da Rússia, é um modo de produção em processo de transição, tal qual qualquer dos outros modos de produção anteriores e que isso implica que elementos do próximo modo de produção já possam existir dentro do modo de produção vigente, caso contrário a transição não seria possível. Partindo, então, em direção à hipótese desta pesquisa, parece que, qualitativamente, a Rússia pré-revolucionária já possuía os elementos materiais que, no campo da saúde, à época da Revolução de Outubro, seriam necessários para garantir, quantitativamente, um projeto de saúde universal, oferecida ao proletariado enquanto direito social. Cabe citar aqui - de forma integral - mais uma afirmação de Sigerist:
O sistema Zemstvo pavimentou o caminho para a saúde soviética em muitos aspectos. Ele criou a organização médica, criou uma rede de estações médicas em todo o país que poderia melhorar e crescer em número. E, acima de tudo, acostumou a população à ideia de que a medicina não era negócio, mas serviço público. As falhas no sistema Zemstvo não são resultado de um plano mal construído, mas do sistema econômico e social sobre o qual ele trabalhava. Quando esse sistema foi substituído o caminho estava livre para uma rápida expansão (1937, p. 74-75, tradução nossa).
Essa constatação fornece uma das evidências necessárias à confirmação da hipótese deste trabalho, mas a ela é necessário acrescer ainda alguns elementos. Apesar de parecer, segundo estas evidências, que na saúde já havia o necessário para se garantir o direito dos trabalhadores, outras áreas acabavam influenciando e fazendo com que esse projeto ainda fosse um desafio. Um exemplo é a área político-social.
Após a desastrosa participação russa na guerra contra o Japão, entre 1904 e 1905, e o episódio conhecido como o “Domingo Sangrento”, em que o Czar Nicolau II (1894-1917) promoveu uma agressão aos trabalhadores que pretendiam lhe entregar uma petição solicitando melhores condições de trabalho, Newsholme & Kingsbury notam a ascensão de movimentos populares, de influência socialista, na organização da insatisfação das massas de trabalhadores. No estudo dos aspectos aparentes do processo revolucionário na Rússia, aqui a análise se aproxima da lógica que permeia a categoria analítica luta de classes. Em um primeiro momento, apontam os autores que a participação russa na guerra contra o Japão mobiliza uma monta considerável de recursos destinados à manutenção da guerra; com as derrotas, nem a população, primeira a sofrer os impactos de uma economia em crise, prejudicada ainda mais pela guerra, nem a classe capitalista, que também era prejudicada com a conjuntura político-econômica, estavam satisfeitas com a forma como se conduzia a sociedade na Rússia. Visando à alteração da ordem jurídica e, consequentemente, à correlação de forças que pressionavam o governo, o Czar cede espaço à pressão popular, assina a paz com o Japão, convoca a formação de um parlamento (Duma) e garante a legalização de sindicatos e partidos políticos. Esta foi a primeira vez na história russa que o governo absolutista cedeu espaço a uma composição política em busca do equilíbrio de poder, ao que Sigerist faz menção quando nota que
[...] enquanto nos grandes países industrializados europeus era aplicado um sistema representativo democrático, nos quais parlamentos constituíam-se enquanto espaços de expressão, discussão e deliberação de pontos de vista, na Rússia o poder permanecia nas mãos do monarca, que governava com pouco ou nenhum espaço para discussões (1937, p. 41, tradução nossa).
Quando o descompasso entre o grupo dominante se sobrepõe ao grupo dos produtores diretos, uma tensão se instala no âmago da sociedade, expressando-se como luta entre a classe proprietária vigente e a nova classe em processo de constituição. Disso, podem-se notar dois fatos com relação à história russa. O primeiro está apontado por Sigerist quando fala que sistemas representativos democráticos não faziam parte da realidade política dessa nação. Isso quer dizer que nem a burguesia, do campo ou da cidade, nem o proletariado, em todos seus matizes sociais, pareciam ter direito a voz no governo czarista. O segundo ponto é que parecia não haver uma classe burguesa fortemente estabelecida, tal qual nos demais países centrais europeus, quando do processo de contestação à antiga ordem vigente. Este fato deu abertura para que novas classes postulantes pudessem impor com igual ou superior ênfase sua participação na gestão dos anseios sociais daquela nação. Abre-se nesse momento, então, o que Germer (2011GERMER, C. M. As tendências de longo prazo da economia capitalista e a transição para o socialismo. In: BRAGA, S. et. al. Marxismo & Ciências Humanas: leituras sobre o capitalismo num contexto de crise; ensaios em comemoração aos 15 anos de crítica marxista. Curitiba: UFPR; Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, 2011, p. 117-138.) denominou como período de revolução política. Num processo que vai de 1905 até 1917, então, vai se determinando na sociedade Russa a classe que assumirá a propriedade dos meios de produção, a saber, a classe proletária.
É no fim do século XIX que começa a se desenhar o projeto social que sairá vencedor no contexto a que se está fazendo menção. Sigerist lembra que em 1898 foi criado o Partido Social Democrata Trabalhista que, mais tarde, daria luz aos grupos Menchevique e Bolchevique, ativos participantes do processo revolucionário russo. Esses grupos passam a construir um projeto social, político e econômico oposto ao do modo de produção então vigente. A proposta do partido bolchevique, resumida no lema “paz, terra e pão”, aliada à promessa de oferecer todo o poder aos sovietes, que encontrou apoio na massa trabalhadora, é uma evidência de que este partido havia construído um projeto condizente ao anseio da população. Em outubro de 1917, então, os bolcheviques chegam ao poder e Sigerist afirma que “pela primeira vez o proletariado estava no poder e estava enfrentando a tarefa de construir uma sociedade socialista” (1937, p. 45, tradução nossa).
Retornando ao tema da saúde, se por um lado, como já se comentou, o sistema Zemstvo foi uma primeira tentativa de se organizar a saúde russa, por outro não tinha o alcance necessário e nem estava sendo operado sob o regime político em que pudesse garantir o cumprimento daquilo que prometia. Mais que isso, como se viu acima, havia um contexto político-social bastante avesso a qualquer medida que pudesse promover benefício à classe trabalhadora e, por isso, esta foi encontrando no partido bolchevique o projeto político que a representava. Se o sistema Zemstvo foi o pavimento para a construção da saúde soviética, conforme afirma Sigerist, ainda lhe faltavam alguns elementos determinantes de modo a não se poder afirmar que nele se encontrava a base da saúde soviética. Como se verá a seguir, a base da saúde soviética seria construída sobre alguns elementos, apresentados por Semashko e notados pelos demais autores, que a distinguiriam qualitativamente do que se havia produzido até então na área da saúde: orientação profilática, participação dos trabalhadores e organização centralizada. Tais elementos, aliados ao que já havia de base na saúde russa, resultaram num produto qualitativamente novo, dotado de elementos que respondiam a um novo ordenamento jurídico da propriedade.
Aqui, com base nos elementos expostos pelos autores em questão, se passa, então, da análise pré-revolucionária à análise pós-revolucionária, ou da análise da saúde no plano capitalista, pautada pela lógica da mercadoria, para a saúde no plano socialista, uma saúde em transição que apesar de ainda estar vinculada a elementos capitalistas, já apresenta características que apontam o próximo modo de produção.
A saúde em transição: o surgimento do direito universal à saúde
As primeiras observações dos autores que comentam a passagem ao sistema soviético de saúde dão conta de perceber que há uma grande mudança em curso na Rússia. Newsholme & Kingsbury falam que a saúde é um dos aspectos da vida comunitária que mais impactam a sociedade e Sigerist afirma que para entender esse fato é necessário entender também os fundamentos filosóficos que dão base a toda estrutura social que se construiu com a revolução.
Sigerist parte da ideia que já desde 1905 os fundamentos metodológicos marxistas estão dando norte à liderança do partido bolchevique, sendo que tanto Lênin, na preparação da revolução, quanto Stálin, na condução da URSS, governavam não sob uma doutrina, mas a partir de um método de interpretação, ou um princípio de ação que foi dando força, solidez e foco aos líderes soviéticos: esse é o método materialista histórico dialético. A revolução soviética, acompanhando a lógica dialética materialista, cria uma ponte entre o comunismo e o capitalismo, na qual coexistem - em franca luta de classes - elementos dos dois modos de produção. No caso da saúde, por exemplo, Semashko aponta que houve intensa reação por parte da classe médica quanto às mudanças propostas pelo novo regime. A organização da saúde universal e gratuita se estabelece, apontando ao modo de produção comunista, mas como se sabe, o bloco soviético retro-transita (GERMER, 2017) ao capitalismo, mostrando que a “ponte”, ou o processo de transição é marcado pela luta de classes enquanto processo determinante dentro do movimento de revolução social.
Os três autores analisados são bastante sensíveis à ideia do planejamento na sociedade soviética. Semashko afirma que o plano era a coisa mais essencial da economia; Newsholme & Kingsbury, em diversas passagens, afirmam a subsunção da saúde ao planejamento geral da sociedade, sendo esta uma função de todos os departamentos de governo e mesmo todos os cidadãos; Sigerist, por sua vez, traça uma comparação entre o mundo capitalista e o socialista dizendo que na URSS tudo era claro, lógico e racional, diferente do que se via no restante do mundo.
Quando a revolução estabeleceu as bases para a construção de uma nova ordem social na Rússia, Newsholme & Kingsbury perceberam alguns pré-requisitos que seriam alicerces dessa construção: a extinção da divisão da sociedade em classes, ao que corresponde o fim da exploração do homem pelo homem e a abolição da propriedade privada dos meios de produção, ao que corresponde o planejamento centralizado da produção. Com relação ao primeiro aspecto, o da divisão da sociedade em classes, trata-se de uma herança de longa permanência, que remonta ao fim do comunismo primitivo, quando do advento do escravismo. Desde então, várias fases do desenvolvimento da produção, do comércio e do consumo vão determinando novas formas de constituição social, todas baseadas na exploração do homem pelo homem. Na Rússia, o que se observava era um sistema de produção, comércio e consumo que estava atrelado à economia do continente europeu de forma passiva - pois fazia parte do segundo escalão - estando, pois, sujeito ao movimento econômico dos países centrais. Assim, no que diz respeito àquilo que está na base da reprodução social da vida do cidadão russo, o trabalho se vê grandemente ameaçado já que a economia interna russa, subsidiária do sistema europeu, não consegue garantir ocupação, renda e proteção à grande parte de sua população. O cidadão russo estava sujeito, portanto, à exploração dentro de um sistema de classes que não conseguia lhe garantir o mínimo necessário à reprodução da vida. Dessa forma, um projeto social que previa o fim da exploração na sociedade de classes foi ganhando terreno até se estabelecer como projeto vitorioso após outubro de 1917.
Com relação ao segundo aspecto, o que trata do fim da propriedade privada dos meios de produção, também está se falando de uma herança de longa permanência, mas que é característica do modo de produção capitalista. A produção e comercialização de mercadorias, tendo em vista a realização do lucro, é a finalidade última nesse modo de produção, no qual até mesmo a força de trabalho acaba se tornando mercadoria, já que, com a concentração dos meios de produção nas mãos de poucos proprietários, a grande maioria das pessoas só possui sua própria força de trabalho para vender. No modo de produção capitalista, o planejamento da economia está subsumido à busca do lucro por parte dos proprietários dos meios de produção, independentemente das necessidades sociais. Justamente por isso, quando se abole a propriedade privada dos meios de produção, após a Revolução de Outubro, é necessário haver o planejamento centralizado da produção.
Com relação a este último fato, tanto Sigerist quanto Newsholme & Kingsbury notam as dificuldades pelas quais passou a URSS até o advento do primeiro plano quinquenal (1928-1932). A I Guerra Mundial e a crise econômica russa, juntamente com uma consequente onda de epidemias e doenças, aliadas à fome, impuseram um drástico e instável cenário para a aplicação dos alicerces comunistas neste contexto. Sigerist vai perceber, no entanto, que é nesse contexto que se destroem os próprios fundamentos do modo de produção capitalista na Rússia.
O capitalismo monopolista destruiu a livre competição e o livre mercado, os fundamentos da propriedade no capitalismo. O imperialismo levou e ainda está conduzindo a uma série de guerras, cada uma mais destrutiva que a outra, onde valores tremendos são aniquilados. O capitalismo destrói seu próprio lucro e cria crises econômicas de magnitude cada vez maior afetando não somente um país, mas todo o mundo capitalista, trazendo miséria a um infinito número de pessoas ameaçando todos os aspectos da civilização ocidental (SIGERIST, 1937SIGERIST, H. E. Socialized Medicine in Soviet Union. New York: W. W. Norton, 1937., p. 34, tradução nossa).
É nesse contexto de destruição dos fundamentos do capitalismo na Rússia, nas palavras do autor, que se impõe, por outro lado, os desafios para a consolidação do projeto socialista na recém-criada URSS. Se, por um lado, os alicerces do comunismo estavam estabelecidos e os fundamentos do capitalismo pareciam estar ruindo, por outro havia imposições conjunturais - epidemias e fome - que exigiam reação por parte do governo soviético. Nesse momento da narrativa, então, os autores apresentam a Nova Política Econômica (NEP).
Newsholme & Kingsbury definem a NEP como uma estratégia temporária de retraimento e Sigerist fala que esta permitiu certa quantia de comércio em algumas áreas estratégicas, das quais a saúde não parece ser uma delas. Nessa época foram desenvolvidas atividades de infraestrutura como o desenvolvimento de um sistema industrial avançado e um sistema de abastecimento elétrico que deram base para o posterior desenvolvimento da economia soviética. Não há evidências nos autores de que a NEP possa ter sido levada a cabo tendo como um de seus objetivos o incremento do sistema de saúde, mesmo porque, segundo Semashko, já em fevereiro de 1918 estavam estabelecidas as bases do sistema universal e gratuito da URSS. Obviamente, como se pode depreender da leitura de Newsholme & Kingsbury e Sigerist, a prática da medicina privada ainda persistia à época da NEP, mas não é possível inferir que ela tenha interferido de modo determinante na saúde da população já que desde a época imperial a população trabalhadora não só não tinha condições de pagar como não tinha o hábito de ser cobrada pelos poucos serviços médicos que lhe eram disponíveis. Além disso, os principais problemas apontados pelos autores - fome e epidemias - encontrariam solução através de ações que não diziam respeito às ações de intervenção médica imediata, já que, com relação à fome, houve o planejamento, investimento e intervenções na área da agricultura e com relação às epidemias, coube a ação do próprio governo, como já era característico desde antes do período revolucionário. Sigerist fala sobre isso quando afirma que a proteção à sociedade contra epidemias e saneamento básico enquanto tarefa administrativa só poderia ser desenvolvida por serviços públicos de saúde (1937, p. 83).
Falando sobre a sociedade em geral, Sigerist nota que, ao ano de 1936, ano da promulgação da segunda constituição soviética, ali estava operando a mais democrática constituição do mundo. Newsholme & Kingsbury debatem sobre o caráter centralizador do governo na URSS, lembrando que o programa de ação das nações que compõe a União difere em tantos aspectos dos sistemas democráticos ocidentais que se levanta a dúvida com relação ao seu caráter democrático. Notam, no entanto, que “os trabalhadores tomam em geral uma parte mais detalhada na discussão de pontos da política local do que os trabalhadores de qualquer outro país” (1933, p. 99, tradução nossa). Isso acontecia, pois em cada fábrica funcionava uma assembleia formada por trabalhadores de diversos níveis hierárquicos que deviam participar da construção do plano sobre como o trabalho e as metas seriam alcançadas, a ponto dos autores afirmarem que “todo item de uma política é exaustivamente discutido antes de se tornar a política do partido; e nessas etapas anteriores um debate público e aberto é bem-vindo” (1933, p. 296, tradução nossa).
O aspecto centralizador verificado pelos autores pode ter relação com as características de uma sociedade que, em transição com relação à economia de mercado, deveria planejar toda a produção a fim de promover a subsistência de seu povo e o desenvolvimento da União. A revolução política abriu caminho para a promoção planejada do desenvolvimento, o que deveria ser feito, obviamente, conforme um plano. Este plano era construído da base para o pico da pirâmide social, com a importante observação de que havia um balizamento teórico metodológico para “julgar” todo o plano que vinha da base. Como já mencionado, a Revolução estava pautada pelos fundamentos metodológicos marxistas, que eram debatidos pela cúpula do sistema social a fim de decidir sobre as prioridades dentro de uma agenda de desenvolvimento. Não à toa, o orçamento da saúde e os investimentos necessários para a ampla generalização do sistema universal são notados pelos autores no início do primeiro plano quinquenal, por volta de 1928. Sobre este assunto, cabe uma citação integral dos autores Newsholme & Kingsbury:
[...] o que foi feito no controle governamental da agricultura e da indústria [da URSS] dificilmente poderia ter sido realizado sob um governo democrático representativo do tipo comum. Foi feito por um governo que não é representativo no sentido usual da palavra ocidental (NEWSHOLME; KINGSBURY, 1933NEWSHOLME, A.; KINGSBURY, J. A. Red Medicine: Socialized Health in Soviet Russia. New York: Country Life Press, 1933., p. 87, tradução nossa).
Fica evidente, desta forma, tanto pelo testemunho dos autores, quanto pela confirmação textual das constituições apresentadas, que a universalidade estava estabelecida não só no que diz respeito à saúde, mas, como notam os autores, em especial Sigerist, também com relação a outras áreas como a educação e o trabalho.
Semashko afirma que cerca de um quarto de todas as doenças epidêmicas do período imediatamente anterior à revolução eram causadas diretamente por más condições de vida e sustento. Tal fato parece marcar os princípios de organização do sistema soviético de saúde ao ponto de Newsholme & Kingsbury afirmarem que há grande influência da forma como se organiza a sociedade sobre a saúde. Esses autores afirmam ainda que a saúde é uma função social, um reflexo de como a sociedade se organiza, em concordância com Sigerist, que atesta que é necessário deixar de negligenciar o lado social da medicina.
Os autores constroem a afirmação de que a medicina tem relação direta com a forma como se organiza a sociedade diante de um fato: Newsholme & Kingsbury afirmam que a URSS estava passando por uma “maravilhosa e extensiva” reforma em seus serviços médicos. Sigerist, ao notar a rápida evolução da medicina no mundo em geral, indica que lhe parecia óbvio que os sistemas de saúde também teriam que mudar qualitativamente, o que se viu na Rússia. Ambas as afirmações podem auxiliar na seguinte perspectiva de análise: uma grande “reforma” na saúde ou uma “medicina revolucionada” - termo usado por Sigerist - encontrou lugar em uma sociedade revolucionada. Alemanha, França ou Inglaterra, eminentes centros formadores que já há anos influenciavam a Europa com suas formas particulares de organização da saúde (FOUCAULT, 1984FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984.) não proporcionaram ao mundo o que a Rússia revolucionada proporcionou. Há aqui um indicativo de que a transformação que se operou na base econômica da sociedade começou a transformar a superestrutura, conforme indica Marx. O processo de constituição de uma nova forma jurídica da propriedade no campo da saúde corresponde então à transição da mistura entre medicina privada, medicina caritativa, medicina securitária e medicina estatal para a medicina integralmente estatal, com organização centralizada. Cabe aqui a citação de Sigerist:
Sobre o capitalismo medicina estatal, medicina securitária, caridade médica e medicina privada existem lado a lado. A luta contra o adoecimento não é tarefa de uma única classe, mas de diversas classes entre as quais há pouquíssima cooperação. Mesmo em países que estabeleceram ministérios da saúde, como a Inglaterra e a França, os ministérios não controlam de forma alguma todas as atividades médicas de sua nação. Fica óbvio que tais sistemas têm necessariamente diferenças de interesses (SIGERIST, 1937SIGERIST, H. E. Socialized Medicine in Soviet Union. New York: W. W. Norton, 1937., p. 83, tradução nossa).
Como já foi apontado por Sigerist, não era esse o caso na URSS. O sistema centralizado de planejamento da saúde tinha como objetivo eliminar as diferenças de interesses para unificar forças em torno do planejamento. É nesse momento que o autor introduz o que, em sua visão, caracterizava e distinguia o sistema soviético de qualquer outra experiência no campo da saúde até então: o serviço de saúde era gratuito e disponível a todos; a prevenção ao adoecimento estava em primeiro plano sobre todas as atividades relacionadas à saúde; todas as atividades de saúde eram direcionadas por organismos centralizados, as comissarias de saúde popular; e tudo era planejado em larga escala (1937, p. 84). Novamente se faz ilustrativa uma citação de Sigerist:
[...] Nos países capitalistas o trabalho da saúde é necessariamente casual. Os vários departamentos de saúde obviamente têm seus próprios planos e as organizações privadas e estatais de saúde podem decidir começar uma campanha para lutar contra um determinado grupo de doenças. Esses esforços não são coordenados e há tanta diferença entre a saúde capitalista e o programa de saúde soviético quanto há entre a concepção de orçamento público de ambos (SIGERIST, 1937SIGERIST, H. E. Socialized Medicine in Soviet Union. New York: W. W. Norton, 1937., p. 97-98).
Tal fato diz respeito às diferenças que marcam uma sociedade organizada pelo mercado, ou seja, pela livre concorrência entre os diversos produtores, e outra marcada pelo planejamento integrado da produção. Newsholme & Kingsbury falam sobre esse planejamento e apontam o processo produtivo na indústria e no campo como o ponto central a partir do qual se organiza a sociedade; é do engajamento da população no processo produtivo que emana o bem-estar nacional.
Considerações finais
Parece claro, após a apresentação da discussão acima, segundo o testemunho dos autores aqui analisados, que havia algo diferente sendo gestado na sociedade russa. A hipótese central desta pesquisa considera que o direito a saúde universal é consequência direta do processo revolucionário russo que atinge hegemonia no ano de 1917, o que se confirma na visão dos autores. Além disso, o amparo do método materialista dialético de investigação social confirma a interpretação aventada pelos autores e corrobora a afirmação de que o direito universal à saúde surge enquanto uma nova qualidade de suporte à reprodução social da vida, que surge em uma sociedade revolucionada.
Toda a leitura empreendida neste artigo sustentou-se sob a tese de que, no processo de desenvolvimento social, a luta de classes é a materialização de uma contradição que se opera na estrutura econômica da sociedade, opondo forças produtivas e relações sociais de produção, havendo, todavia, a determinação das forças produtivas sobre o processo de evolução social. Em outras palavras, considerou-se que o elemento ativo, em última instância, como colocam Marx e Engels, do binômio forças produtivas/relações de produção, seria o primeiro. Considerando-se, então, que o acirrar da luta de classes denota o movimento da citada contradição, constatou-se que o processo revolucionário em questão continha em si elementos deste conflito maior que se operava nas estruturas da sociedade russa do início do século XX.
A Rússia era um país atrasado em se considerando o capitalismo na Europa como um todo. Foi só nos fins do século XIX que a servidão foi abolida e que a saúde nesse país, apesar de já lhe ter rendido um prêmio Nobel, com Pavlov, estava bastante distante de oferecer um serviço próximo do necessário à sua população. Em se falando do que se praticava em termos de saúde na Europa, tinham-se as medidas de saúde pública (vacinações, saneamento e vigilância sanitária, por exemplo) e os atendimentos individuais, comprados na medida da necessidade, como regra. Ambas as medidas não encontravam escala na sociedade russa, não atendendo de forma satisfatória à massa trabalhadora.
Evidenciou-se que os zemstvos, segundo constata Sigerist, exerceram papel determinante na criação de uma ideia de organização da atenção à saúde. Mas também foi evidenciada a ideia de que a saúde era gratuita, embora encarada como filantropia. Sendo assim, aproveitando-se dessa experiência embrionária de organização do cuidado e considerando-se que a população não tinha condições de pagar pela mercadoria saúde, se constroem as bases de uma saúde que se encaixa dentro do grande plano de desenvolvimento soviético enquanto direito do trabalhador - sabendo-se que o trabalho era também um direito garantido pela constituição - financiado por ele mesmo quando das deduções referentes à manutenção da coletividade, ou seja, através do salário indireto. Assim, as alterações nas relações sociais de produção, realizadas pela Revolução Social na URSS, reconfiguraram o sentido da saúde, transitando de mercadoria/caridade para direito/planejamento estatal, num movimento sem precedentes na história, como notam os autores aqui analisados. A saúde e outros direitos se materializaram em um plano estruturado, conquistado pelos trabalhadores por meio da luta de classes, e isso tornou o discurso político em prática de Estado um salto de qualidade que inaugurou na história humana a saúde como direito universal.
O que parece interessante apontar, e que fica como possibilidade de desenvolvimento, é que a partir do momento em que surge o direito universal à saúde nessa sociedade revolucionada, a nova qualidade de amparo social impõe um novo paradigma à sociedade capitalista: como se organizarão os sistemas de saúde a partir de então? Em outras palavras, qual a influência da experiência soviética aos países do ocidente capitalista?
Newsholme & Kingsbury trabalharam a soldo de uma fundação europeia que no início do século XX propunha uma investigação sobre os avanços nos sistemas de saúde em toda a Europa. Sigerist, por sua vez, mantinha relações com Sidney Webb, que escreve o prefácio da obra que aqui se utilizou para análise. Webb foi um dos fundadores da Sociedade Fabiana, que se dedicava a estudos na área da ciência política, e esteve vinculado diretamente ao governo inglês pelo menos até 1931. Em hipótese, tanto Newsholme quanto Sigerist podem ter facilitado, por meio da difusão de suas impressões sobre a saúde na União Soviética, o processo de lutas de classes em seu país. Se não isso, podem ter contribuído na direção do domínio conceitual dos avanços da universalização da saúde soviética aparelhando, assim, o Estado na contenção da luta por direitos universais globais, na forma de luta pelo socialismo.
Sendo assim, em hipótese, a organização dos sistemas de saúde na Europa, no período posterior à Revolução de 1917, levou em consideração a experiência soviética, em decorrência da luta de classes em cada país, no que resultou, em última instância, a criação do modelo do Welfare State na Inglaterra (PETRAS, 2012), vindo a popularizar - e inclusive se estabelecer como modelo - a constituição dos sistemas gratuitos e universais, que o Brasil, por exemplo, adotou após o fim da ditadura militar. Na mesma toada, pode-se supor que a derrocada da revolução, com a queda do muro, em 1991, pode ter influência no soçobramento do Welfare State, por não ter mais a pauta soviética a lhe confrontar politicamente.
Por fim, espera-se que o levantar da discussão acerca da origem do direito universal à saúde possa trazer luz à consciência da classe trabalhadora acerca da importância tanto de seu esclarecimento quanto de seu engajamento nos processos de luta de classes.33 H. D. da Costa foi responsável pela autoria. C. B. Emerenciano foi responsável pela coautoria e revisão da metodologia de análise do objeto. A. de J. Ramos Junior e G. S. C. de Albuquerque foram responsáveis pela orientação da pesquisa que originou o artigo.
Referências
- FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984.
- GERMER, C. M. As tendências de longo prazo da economia capitalista e a transição para o socialismo. In: BRAGA, S. et. al. Marxismo & Ciências Humanas: leituras sobre o capitalismo num contexto de crise; ensaios em comemoração aos 15 anos de crítica marxista. Curitiba: UFPR; Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, 2011, p. 117-138.
- ______. Marx e o papel determinante das forças produtivas na evolução social. Crítica Marxista, IFCH, Unicamp, Campinas, n. 29, 2009, p. 75-95. Disponível em: <https://www.ifch.unicamp.br/criticamarxista/arquivos_biblioteca/artigo172artigo2.pdf>. Acesso em: 9 maio 2018.
» https://www.ifch.unicamp.br/criticamarxista/arquivos_biblioteca/artigo172artigo2.pdf - LÊNIN, V. Dos tácticas de la socialdemocracia em la revolución democrática (1905). In: ______. Obras Escogidas. Moscú: Progreso, Tomo III, 1976.
- MARX, K. Contribuição à crítica da economia política. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2008.
- NEWSHOLME, A.; KINGSBURY, J. A. Red Medicine: Socialized Health in Soviet Russia. New York: Country Life Press, 1933.
- PETRAS, J. The Western Welfare State: Its Rise and Demise and the Soviet Bloc. Disponível em: <https://www.globalresearch.ca/the-western-welfare-state-its-rise-and-demise-and-the-soviet-bloc/31753> Acesso em: 16 set. 2019.
» https://www.globalresearch.ca/the-western-welfare-state-its-rise-and-demise-and-the-soviet-bloc/31753 - SEMASHKO, N. A. Health protection in the USSR. London: Victor Gollancz Ltd, 1934.
- SIGERIST, H. E. Socialized Medicine in Soviet Union. New York: W. W. Norton, 1937.
- 1Tem-se aqui clareza de que a sociedade soviética, enquanto sociedade em transição, constitui um híbrido que, apesar de estar vivenciando a experiência de construir as bases de uma sociedade comunista, ainda apresenta diversas características de uma sociedade capitalista.
- 2É importante mencionar que há um processo histórico em andamento que a frase em questão não apresenta de forma detalhada. O ano de 1861 marca a legalidade do processo de abolição da servidão, mas obviamente esse processo teve início antes desse ano - pois a base material para uma mudança desse tipo só poderia vir de um anseio social já relativamente tensionado - e a transição do trabalhador servil para o trabalhador assalariado deu-se ao longo do fim do século XIX e início do século XX. Uma evidência que justifica essa colocação é o fato de que Lênin, quando analisando o que chama de revolução burguesa de 1905, menciona os diversos tipos de proletários em transição, ou semiproletários (camponeses), que ainda estavam transitando ao sistema de assalariamento. Sendo assim, quando no texto se menciona “a nova classe proletária”, não se está fazendo menção a toda população russa, que ainda, em sua grande maioria, estava vinculada ao trabalho no campo, mas a uma população de quantidade não definida que processualmente está em transição da forma de trabalho servil para a forma de trabalho assalariado.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
28 Out 2020 - Data do Fascículo
2020
Histórico
- Recebido
09 Out 2019 - Aceito
03 Mar 2020 - Revisado
30 Jun 2020