Resumo
Prática Baseada em Evidências é uma abordagem que tem apresentado notoriedade para melhorar a efetividade clínica e apoiar o profissional de saúde nas suas condutas, utilizando três elementos: evidências científicas, a experiência clínica e as preferências do paciente. O objetivo do estudo é conhecer como se desenvolve a Prática Baseada em Evidências na Atenção Primária à Saúde, especificamente, na Estratégia Saúde da Família, bem como propor a inclusão do elemento “análise sociocultural” para a tomada de decisão. Estudo qualitativo, precedido da realização de dois grupos focais, com a participação de 14 profissionais de saúde. A técnica de análise de conteúdo temática foi utilizada para avaliação, tratamento e interpretação das informações. Os profissionais da Estratégia Saúde da Família têm dificuldade para desenvolver uma prática em saúde voltada a evidências científicas, apontando carência de conhecimentos e habilidades para a pesquisa e elevada carga de trabalho. Ademais, os resultados indicam que a Prática Baseada em Evidências deve ser diferenciada segundo a realidade dos territórios de atuação das equipes. Cabe aos profissionais de saúde identificar e valorar as características socioculturais da comunidade para uma Prática Baseada em Evidências mais sensível às necessidades de saúde de sua população adscrita.
Palavras-chave:
Prática Baseada em Evidências; Atenção Primária à Saúde; Estratégia de Saúde da Família; características culturais
Abstract
Evidence-Based Practice is an approach that has been renowned for improving clinical effectiveness and supporting health professional in their attitudes, by using three elements: scientific evidence, clinical experience and patients’ preferences. This study aimed at understanding how Evidence-Based Practice in Primary Health Care is developed, specifically, referring to Family Health Strategy, as well as proposing the inclusion of the "socio-cultural analysis" element for decision making. It was a qualitative study, preceded by two focus groups, having the participation of 14 health professionals. The thematic content analysis technique was used to evaluate, handle and understand information. Family Health Strategy professionals have difficulties in developing health practice focused on scientific evidence, showing their lack of knowledge and skills for research and also heavy workload. Moreover, results showed that Evidence-Based Practice should be differentiated according to the reality of the places where health professional teams work. It is the responsibility of health professionals to identify and to evaluate the sociocultural characteristics of the community for an Evidence-Based Practice that is more sensitive to the health needs of the population involved.
Keywords:
Evidence-Based Practice; Primary Health Care; Family Health Strategy; cultural characteristics
Introdução
A Prática Baseada em Evidências (PBE) tem sido considerada uma importante mudança de paradigma na educação e no âmbito da saúde moderna (EBELL et al., 2017EBELL, M. H. et al. How good is the evidence to support primary care practice? BMJ Evidence-Based Medicine. v. 22, p. 88-92, 2017.). Ela é definida como uma abordagem que associa a melhor evidência científica disponível, com a experiência clínica e a escolha do paciente para auxiliar na tomada de decisão (SACKETT et al., 2003______. Medicina baseada em evidências: prática e ensino. 2 ed. Porto Alegre: Artmed, 2003.). O termo "baseado em evidências" foi originado nos anos 1990 proveniente da medicina, embora hoje seus princípios se estendam por disciplinas tão variadas quanto enfermagem, odontologia, educação, serviço social e políticas públicas. Seu uso, pelos profissionais da saúde, configura-se como uma forma coerente, segura e sistematizada para prover maior qualidade na assistência e a otimização dos recursos, alcançando a eficácia e a relação custo-benefício da prestação de cuidados em saúde (SAUNDERS; VEHVILAINEN-JULKUNEN, 2017SAUNDERS, H.; VEHVILAINEN-JULKUNEN, K. Nurses’ Evidence-Based Practice Beliefs and the Role of Evidence-Based Practice Mentors at University Hospitals in Finland. Worldviews on Evidence-Based Nursing. v. 14, n. 1, p. 35-45, 2017.; PEREIRA; CARDOSO; MARTINS, 2012PEREIRA, R. P. G.; CARDOSO, M. J. S.; MARTINS, M. A. C. Atitudes e barreiras à prática de enfermagem baseada na evidência em contexto comunitário. Rev. Enf. Ref., Coimbra. v. serIII, n. 7, p. 55-62, jul. 2012.; SACKETT et al., 2003).
Ainda assim, várias têm sido as barreiras que dificultam a implementação desta abordagem, dentre as quais se destacam: ausência de conhecimento sobre PBE e habilidades para sua aplicação, falta de crença que a PBE possibilite resultados mais positivos comparados ao cuidado tradicional, quantidade volumosa de informações nos periódicos, falta de tempo e recursos para buscar e avaliar as evidências disponíveis, carência de apoio administrativo ou incentivo das instituições e resistência para mudanças (SHAFIEI et al., 2014SHAFIEI, E. et al. Nurses’ perceptions of evidence-based practice: a quantitative study at a teaching hospital in Iran. Med J Islam Repub Iran, v. 28, nov. 2014; AMMOURI et al., 2014AMMOURI, A. et al. Evidence-Based Practice Knowledge, attitudes, practice and perceived barriers among nurses in Oman. Sultan Qaboos Univ Med. J., v. 14, n. 4, p. 537-45, 2014.; PEREIRA, 2016PEREIRA, R. P. G. Enfermagem Baseada na Evidência: atitudes, barreiras e práticas. Tese (Doutorado) - Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto. Programa de Pós-Graduação em Ciências da Enfermagem, Porto, 2016.; ZHOU et al., 2016ZHOU, F. et al. Attitude, knowledge, and practice on Evidence-Based Nursing among registered nurses in traditional Chinese medicine hospitals: a multiple center cross-sectional survey in China. Evid Based Complement Alternat Med., ID 5478086, jun. 2016.; SHIN; LEE, 2017SHIN, J.; LEE, E. The Influence of Social Capital on Nurse-Perceived Evidence-Based Practice Implementation in South Korea. J Nurs Scholarsh., v. 49, n. 3, p. 267-276, maio 2017.).
A utilização da PBE permite diminuir as distâncias entre a pesquisa e a prática assistencial, pois sua implementação ocorre por meio da avaliação dos resultados obtidos das pesquisas, a partir da busca e avaliação crítica das evidências. Contudo, há críticas de suas limitações como um padrão único para a prática, baseado em que a produção de evidências não ocorre em igualdade de condições. Por mais bem intencionadas que sejam, se as evidências estão construídas a partir de uma epidemiologia convencional, que segundo Breilh (2015BREILH, J. Epidemiologia crítica ciência emancipadora e interculturalidade. 1 ed. 1 reimpr. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2015., p. 535) “[...] não integra processos nas múltiplas dimensões e não relaciona as questões com a estrutura socioeconômica, política, e com os condicionamentos culturais, elas serão obviamente focalizantes, e, evidentemente, as ações serão igualmente reducionistas”.
A PBE estrutura a conduta, mas não substitui o julgamento clínico e a experiência pessoal. Considera-se que sem a experiência prática, a evidência, mesmo sendo considerada de excelência, poderá ser inadequada em determinada situação individual. Por outro lado, sem recorrer à melhor evidência disponível, há o risco de manter práticas desatualizadas, com os inerentes prejuízos para as pessoas (SACKETT et al., 1996SACKETT, D. L. et al. Evidence based medicine: what it is and what it isn't. British Medical Journal, v.312, p. 71-72, jan. 1996.). Isso significa que os profissionais de saúde deveriam utilizar tanto suas vivências profissionais, quanto as melhores evidências disponíveis na sua tomada de decisão clínica, pois uma evidência científica de qualidade pode não se aplicar a determinado paciente.
No campo da Atenção Primária à Saúde (APS), especificadamente, na Estratégia Saúde da Família (ESF) há uma lacuna de estudos sobre a incorporação da PBE. Este é considerado um cenário de atuação complexo devido ao amplo leque de atividades e competências dos profissionais e o papel da equipe como organizadores da demanda local e das ações de saúde do seu território. Ressalta-se que esses territórios não são homogêneos e configuram-se num espaço social, com determinada realidade de saúde da população que nele vive e que está em constante movimento, com suas dimensões políticas, econômicas, epidemiológicas e culturais (TAKEDA, 2013TAKEDA, S. A organização dos serviços de Atenção Primária à Saúde. In: DUNCAN, B. et al. (Orgs.). Medicina ambulatorial: condutas de atenção primária baseadas em evidências. 4. ed. Porto Alegre: Artmed, 2013. p. 19-32.).
Considerando a complexidade do trabalho da ESF, entende-se que no campo da APS a PBE precisa avançar. Portanto, diante dessa realidade, o presente estudo objetivou conhecer como os profissionais da equipe da ESF desenvolvem a Prática Baseada em Evidências em um município do Sul do Brasil e propor a inclusão do elemento “análise sociocultural” para a tomada de decisão, dos profissionais de saúde, frente às demandas da comunidade.
Metodologia
Trata-se de pesquisa descritiva, de abordagem qualitativa, realizada no município de Chapecó, situado na região oeste do estado de Santa Catarina, Brasil, com população de aproximadamente 210 mil habitantes (IBGE, 2010). O cenário de estudo contemplou dois Centros de Saúde da Família com equipes de Estratégia Saúde da Família, selecionados, intencionalmente, pelos pesquisadores, que comportavam, no mínimo, profissionais médicos, enfermeiros e cirurgiões-dentistas.
As informações foram coletadas por meio da realização de dois grupos focais, um em cada centro de saúde. Para tanto, foi realizado um contato telefônico, para as coordenadoras dos dois Centros de Saúde da Família, no intuito de explicar o objetivo da pesquisa e agendar a data e o horário de acordo com disponibilidade de cada equipe. Os grupos foram realizados no local de trabalho dos envolvidos. No primeiro grupo participaram dois médicos, dois enfermeiros e um cirurgião-dentista. No segundo participaram três médicos, quatro enfermeiros e dois dentistas, totalizando 14 trabalhadores ao final dos dois grupos focais. Cada profissional, a fim de preservar sua identidade, escolheu um codinome (espécie de flor) e utilizou no formato de um crachá. O roteiro norteador apresentado ao grupo continha a seguinte questão de partida para o debate: o que vocês entendem por PBE? Depois emergiram outras, a saber: quais as dificuldades/entraves para desenvolverem PBE? Como a PBE é realizada/percebida no serviço de saúde?
Essa técnica possibilitou extrair mais facilmente a expressão dos participantes, visto que, no processo de interação, os comentários estimularam que todos os participantes se expressassem e, ao final, consensuaram suas opiniões. Todo diálogo foi gravado em dois gravadores digitais para garantir a totalidade das falas e o tempo de realização dos grupos variou de 40 minutos até uma hora.
Para a análise, as informações foram transcritas e organizadas com auxílio dos softwares Excel e Word, permitindo uma leitura panorâmica do conteúdo. Posteriormente, foram analisadas empregando a técnica de análise de conteúdo temática, que consistiu na identificação dos núcleos de sentido a partir da presença ou da frequência do tema que compõe o texto, desde que houvesse relação com os objetivos da pesquisa. A análise de conteúdo temática teve como base a sequência de etapas proposta por Bardin (2016BARDIN, L. Análise de conteúdo. Ed. rev. e ampl. São Paulo: Edições 70, 2016. 279 p.): pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados obtidos e interpretação. Da análise emergiram duas categorias que foram predefinidas de acordo com os objetivos do estudo: 1) A Prática Baseada em Evidência na Atenção Primária à Saúde; e 2) A proposta de um novo elemento da Prática Baseada em Evidências na Atenção Primária à Saúde: análise sociocultural. Nessa investigação foram seguidos os procedimentos éticos recomendados, obtendo-se a aprovação de Comitê de Ética em Pesquisa sob o parecer de número 1.573.371.
Resultados e Discussão
As categorias identificadas trouxeram à tona os elementos que interferem no desenvolvimento pleno da PBE na APS. Ademais, os resultados indicam que a PBE deveria ser diferenciada para todos os territórios que a equipe atua, reconhecendo a realidade, suas necessidades e diferenças.
A PBE na APS
Os profissionais de saúde que atuam na APS valoram a experiência clínica em suas práticas em saúde. Observou-se, ainda, que essa experiência clínica não é apenas a pessoal, mas também aquela que o profissional adquire com o colega, quando socializa suas dúvidas, ou seja, quando busca e compartilha a base do conhecimento empírico entre a equipe de saúde. A experiência pessoal foi obtida como o suporte inicial para os trabalhadores, assim como estes se sentiriam mais confiantes se houvesse uma pessoa com conhecimento em investigação para ajudar e sintetizar os resultados das pesquisas (PEREIRA, 2016PEREIRA, R. P. G. Enfermagem Baseada na Evidência: atitudes, barreiras e práticas. Tese (Doutorado) - Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto. Programa de Pós-Graduação em Ciências da Enfermagem, Porto, 2016., YODER et al., 2014YODER, L. et al. Staff nurses’ use of research to facilitate Evidence-Based Practice. Am J Nurs., v. 114, n. 9, Sept. 2014.).
Vivência profissional, do conhecimento que a gente vai adquirindo (Girassol).
Baseada em experiência em que outros profissionais tiveram (Amor perfeito).
Eu nunca tive acesso ao UpToDate [base de informações médicas baseadas em evidências] você busca um colega, junto com esse colega você busca a experiência que a equipe tem, e as vezes, quando não se resolve ainda, ligamos para algum outro profissional (Onze horas).
Cada um tem o seu saber. Então a gente tem que somar (Girassol).
A gente chama o colega. O colega vem, avalia e troca informações com um terceiro colega, às vezes (Rosa).
Os resultados também permitiram compreender que os profissionais apresentam dificuldades para operacionalizar as etapas da PBE, como converter a necessidade de cuidado identificada em uma pergunta, realizar a busca na literatura, interpretar e aplicar as evidências científicas disponíveis (SADEGHI-BAZARGAN; TABRIZI; AZAMI-AGHDASH, 2014SADEGHI-BAZARGAN, H.; TABRIZI, J.; AZAMI-AGHDASH, S. Barriers to evidence-based medicine: a systematic review. J Eval Clin Pract., v. 20, n. 6, p. 793-802, dez. 2014., MALLION; BROOKE, 2016MALLION, J.; BROOKE, J. Community- and hospital-based nurses’ implementation of evidence-based practice: are there any differences? British Journal of Community Nursing. v. 21, n. 3, p. 148-54, mar. 2016., SHIN; LEE, 2017SHIN, J.; LEE, E. The Influence of Social Capital on Nurse-Perceived Evidence-Based Practice Implementation in South Korea. J Nurs Scholarsh., v. 49, n. 3, p. 267-276, maio 2017.). Os obstáculos para a busca de evidências podem ser identificados nas seguintes falas:
Eu tenho essa dificuldade [de acessar bancos de dados] a gente tem que se virar na internet, eu perco muito tempo procurando informação (Onze horas).
Na área enfermagem a gente tem dificuldade com a questão das evidências [..] (Margarida).
São várias as razões pelas quais os profissionais, em muitas áreas da prática, não consultam evidências científicas. Atitudes individuais desfavoráveis e normas sociais adotadas por seus pares muitas vezes desencorajam os praticantes de adotarem práticas baseadas em evidências científicas. As restrições individuais do profissional também tendem a limitar o uso da PBE devido às barreiras percebidas em seus ambientes de trabalho (BARENDS et al., 2017BARENDS, E et al. Managerial attitudes and perceived barriers regarding evidence-based practice: An international survey. PlosOne, v. 12, n. 10, p. e0184594, 2017. Doi: https://doi. org/10.1371/journal.pone.0184594.
https://doi. org/10.1371/journal.pone.01... ).
A carência de conhecimentos e habilidades, que muitas vezes não é solucionada durante a formação do profissional, pode impactar nos resultados positivos de saúde da população. Estudo realizado com o objetivo de determinar até que ponto as recomendações, para a prática de cuidados primários, são informadas por evidências baseadas em pesquisas científicas demostrou que apenas 18% são alicerçadas em evidências orientadas para o paciente a partir de estudos de alta qualidade (EBELL et al., 2017EBELL, M. H. et al. How good is the evidence to support primary care practice? BMJ Evidence-Based Medicine. v. 22, p. 88-92, 2017.). Entende-se que realizar uma prática baseada em evidências, de forma integral, requer dos profissionais da saúde uma capacitação para o desenvolvimento de estratégias que auxiliem a utilização de pesquisas no cotidiano, a fim de transpor a dicotomia entre teoria e prática (CAMARGO et al., 2016CAMARGO, F. C. et al. Avaliação de intervenção para difusão da enfermagem baseada em evidências em hospital de ensino. Rev Gaúcha Enferm., v. 37, n. esp., p. e68962, 2016.).
Ademais, percebeu-se que essa carência de conhecimentos e habilidades em fazer busca de artigos, manusear os bancos de dados, selecionar as informações muitas vezes advém de sua formação. Segundo os profissionais, isso não foi exercitado durante o curso na área da saúde, revelando uma deficiência na graduação quanto à abordagem da PBE. Estudo realizado na Bahia revelou que a maioria dos formandos do curso de graduação em Enfermagem considera haver déficit de metodologias de ensino voltadas para o incentivo à iniciação científica e a produção de pesquisas (SANTOS; ANJOS; ALMEIDA, 2013SANTOS, V. C.; ANJOS, K. F.; ALMEIDA, O. S. A percepção de formandos sobre a pesquisa em enfermagem no curso de graduação. Rev Enferm UFSM., v. 3, n. 1, p. 144-154, jan-abr. 2013.).
Existe uma grande dificuldade, acho que a universidade tem muito para fazer ainda. Falta muito na formação [Prática Baseada em Evidência] (Amor-perfeito).
Eu fiz apenas uma aula de pesquisa e medicina baseada em evidência, e foi bem legal, pela primeira vez na minha vida assistir uma aula técnica assim, mas daí, não fiz mais nada (Amor-perfeito).
Outrossim, alguns participantes se formaram há muito tempo, quando essa prática não era comumente conhecida e referidas nas disciplinas. O conceito da PBE é relativamente moderno e originou-se a partir da Medicina Baseada em Evidências, organizada no início dos anos 80, na Universidade McMaster, no Canadá (SACKETT et al., 1996SACKETT, D. L. et al. Evidence based medicine: what it is and what it isn't. British Medical Journal, v.312, p. 71-72, jan. 1996.).
A minha formação é bem antiga. Não se falava, não se discutia na graduação [a busca por evidências científicas] (Hortência).
A falta de formação e, consequentemente, o déficit de conhecimentos e habilidades, para a busca de evidências científicas, faz com que os profissionais demandem muito tempo para se atualizem. Contudo, relataram que outro aspecto que limita a realização da PBE é a elevada carga de trabalho e que falta uma estrutura organizacional que favoreça o desenvolvimento dessa abordagem.
A gente tem que fazer mais pelo paciente, mas não dá tempo, porque é muito coisa, muito paciente, muita demanda (Amor perfeito).
A agenda está sempre cheia (Lírio).
A internet é meio lenta, tem inclusive os filtros que eles colocam lá na prefeitura, pro pessoal não acessar, e as vezes fica um pouco difícil [fazer buscas de evidências] (Onze-horas).
Os profissionais, em geral, percebem a importância da PBE e aceitam a necessidade de implementá-la, mas a falta de tempo no trabalho pode desestimular seu uso (ZHOU et al., 2016ZHOU, F. et al. Attitude, knowledge, and practice on Evidence-Based Nursing among registered nurses in traditional Chinese medicine hospitals: a multiple center cross-sectional survey in China. Evid Based Complement Alternat Med., ID 5478086, jun. 2016.). A alta demanda de atividades é um entrave reportado em diversos estudos equivalentes (NAVABI et al., 2014NAVABI, N. et al. Knowledge and Use of Evidence-based Dentistry among Iranian Dentists. Qaboos Univ Med J., v. 14, n. 2, p. 223-230, maio 2014.; PERICAS-BELTRAN et al., 2014PERICAS-BELTRAN, J. et al. Perception of Spanish primary healthcare nurses about evidence based clinical practice: a qualitative study. Int. Nursing Rev, v.61, n. 1, p. 90-8, jan. 2014.; MORALES; SANTACRUZ; VERKOVITCH, 2015MORALES, C. F.; SANTACRUZ, C. J.; VERKOVITCH, I. Integración de la Enseñanza de la práctica de enfermería basada en la evidencia científica. Aquichán, Bogotá, v. 15, n. 4, p. 541-553, dez. 2015.; MALLION; BROOKE, 2016MALLION, J.; BROOKE, J. Community- and hospital-based nurses’ implementation of evidence-based practice: are there any differences? British Journal of Community Nursing. v. 21, n. 3, p. 148-54, mar. 2016.). Por essa razão, em disciplinas onde a PBE está bem estabelecida, evidências pré-avaliadas na forma de revisões sistemáticas, síntese de evidências ou outros tipos de resumos são fornecidos por comunidades globais, a exemplo da Cochrane. Esses resumos permitem que os profissionais consultem rapidamente as melhores evidências científicas disponíveis sobre questões de interesse, verifique a literatura de pesquisa para novas descobertas, e atualizem seus conhecimentos profissionais à medida que surgem novas demandas (COCHRANE BRASIL, 2019).
Embora não seja suficiente para mudar a prática, uma cultura de aceitação e apoio de gestores e colegas pode ser considerada como elemento facilitador para o fortalecimento da PBE nos serviços de saúde (BAIRD; MILLER, 2015BAIRD, L. M. G.; MILLER, T. Factors influencing evidence-based practice for community nurses. British Journal of Community Nursing, v. 20, n. 5, 2015.). Compreende-se que os profissionais tenham maior probabilidade de incorporar evidências de pesquisa em suas práticas quando formarem atitudes positivas em relação à pesquisa científica, estiverem expostos a normas sociais de apoio em relação a seu uso e virem as barreiras para seu uso como superáveis (BARENDS et al., 2017BARENDS, E et al. Managerial attitudes and perceived barriers regarding evidence-based practice: An international survey. PlosOne, v. 12, n. 10, p. e0184594, 2017. Doi: https://doi. org/10.1371/journal.pone.0184594.
https://doi. org/10.1371/journal.pone.01... ).
Diante dessas dificuldades - conhecimentos, habilidades e acesso - o uso de protocolos disponibilizados pelo Ministério da Saúde, do Brasil, são ferramentas, amplamente, utilizadas pelos profissionais na sua rotina de trabalho na APS. Estudo de Pereira, Cardoso e Martins (2012PEREIRA, R. P. G.; CARDOSO, M. J. S.; MARTINS, M. A. C. Atitudes e barreiras à prática de enfermagem baseada na evidência em contexto comunitário. Rev. Enf. Ref., Coimbra. v. serIII, n. 7, p. 55-62, jul. 2012.) com 95 enfermeiros, em Portugal, indicou que os protocolos foram as fontes de informações mais utilizadas para aquele grupo investigado. Os protocolos são considerados ferramentas essenciais na organização do processo de trabalho e na resolubilidade das ações de saúde, mas orienta-se que sejam usados numa lógica de normalização e nunca de uniformização de práticas e/ou cuidados de atenção à saúde (AGREE, 2009; WERNECK; FARIA; CAMPOS, 2009WERNECK, M. A. F.; FARIA, H. P.; CAMPOS, K. F.C. Protocolo de cuidados à saúde e de organização do serviço. Belo Horizonte: Nescon-UFMG; Coopmed, 2009. p. 13-49.).
Eu pelo menos sempre costumo seguir os protocolos estabelecidos pelo Ministério da Saúde, o que está sendo feito na atualidade é procurar seguir protocolos (Tulipa).
Eu utilizo o protocolo do ministério [da saúde], procuro e já deixo baixado no computador (Violeta).
Vou no Ministério da Saúde pra ver o que aparece, quando não encontro as vezes entro no site de Cuba que eu já conheço (Onze horas).
Eu vou mais pra área do ministério da saúde mesmo (Rosa).
Em síntese, as instituições de ensino poderiam se concentrar em melhorar as habilidades de PBE necessárias para entender, pesquisar e aplicar evidências científicas. Por outro lado, é necessário maior esforço por parte dos pesquisadores para resumir/traduzir a pesquisa de forma amigável aos profissionais que atuam na prática (BARENDS et al., 2017BARENDS, E et al. Managerial attitudes and perceived barriers regarding evidence-based practice: An international survey. PlosOne, v. 12, n. 10, p. e0184594, 2017. Doi: https://doi. org/10.1371/journal.pone.0184594.
https://doi. org/10.1371/journal.pone.01... ).
A proposta de um novo elemento da PBE na APS: análise sociocultural
A respeito dessa categoria, não foram identificadas experiências nacionais com caráter similar, o que revela o aspecto inovador desta produção e potencial para contribuir com a implementação da PBE no âmbito da APS.
A aplicação de evidências de pesquisa na prática envolve considerações complementares acerca do contexto. Os precursores da PBE reconhecem a necessidade de aliar, com atenção, as evidências científicas aos valores e os diferentes cenários de vida dos pacientes. A pesquisa científica envolve relações entre teoria, método e problema científico - esse tripé pode entrecruzar outras formas de conhecimento que provém das crenças, do senso comum e da religião. No entanto, o processo de integração de múltiplas formas de conhecimento na prática clínica permanece pouco estudado (KIRMAYER, 2012KIRMAYER, L. Cultural competence and evidence-based practice in mental health: Epistemic communities and the politics of pluralism. Social Science & Medicine, v. 75, p. 249-256, 2012. Doi: 10.1016/j.socscimed.2012.03.018
https://doi.org/10.1016/j.socscimed.2012... ).
A partir dos grupos focais, além da atitude dos profissionais em buscar informações científicas aliando a sua experiência e a preferência do paciente, a análise sociocultural surge como um elemento central para contemplar as informações dos territórios/comunidades onde a equipe atua. O contexto de trabalho dos profissionais da APS é variado. Assim, é relevante adaptar a evidência científica que está disponível, no local de trabalho, visto que cada ambiente apresentará diferentes circunstâncias para que a evidência seja realmente colocada em prática (BANDEIRA et al., 2017BANDEIRA, A. G. et al. A utilização de um referencial metodológico na implementação de evidências como parte da investigação em enfermagem. Texto Contexto Enferm, v. 26, n. 4, p. e2550017, 2017.). Condutas baseadas em dados da maioria da população podem ter uma relevância incerta para grupos culturais específicos. Desta forma, é recomendável desenvolver estratégias especializadas, bem como fornecer os recursos necessários para a implementação de práticas baseadas em evidências devidamente adaptadas ao campo da APS (PERICAS-BELTRAN et al., 2014PERICAS-BELTRAN, J. et al. Perception of Spanish primary healthcare nurses about evidence based clinical practice: a qualitative study. Int. Nursing Rev, v.61, n. 1, p. 90-8, jan. 2014.). Os depoimentos a seguir, exemplificam os resultados:
Tem que ir desenvolvendo as próprias experiências de acordo com a nossa região, de acordo com a nossa cultura, de acordo com a situação que vai se apresentar [...]. A saúde da própria comunidade, da nossa localidade (Onze horas).
A comunidade aqui tem muita necessidade, tem outro nível intelectual então obviamente a problemática dos pacientes aqui não é igual em outro bairro (Lírio).
A evidência é por bairro, existe muita diferença entre cada unidade de saúde e muita diferença de áreas dentro da unidade de saúde, [...], as doenças se equiparam, mas o nível sociocultural é diferente, então o próprio bairro, as áreas e micro áreas são diferentes (Jasmim).
Os aspectos socioculturais são compostos pelo ambiente, cultura, economia, dados demográficos, crenças e valores (BREILH, 2015BREILH, J. Epidemiologia crítica ciência emancipadora e interculturalidade. 1 ed. 1 reimpr. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2015.). Deste modo, o contato dos profissionais da APS junto à comunidade resulta não apenas em coordenar o cuidado de pessoas que constroem relações entre si, mas também permite observar os fenômenos humanos e contradições sociais que ocorrem nesse meio (SPERLING, 2017SPERLING, S. Estratégia de Saúde da Família: a melhor aposta para um sistema de saúde orientado para a proteção de pessoas e conquistas civilizatórias. Reciis: Rev Eletron Comun Inf Inov Saúde, v. 11, n. 4, out-dez. 2017.).
Os valores e preferências do paciente incluem as expectativas únicas que cada usuário e membro da família traz para o atendimento com o profissional de saúde. As questões culturais são cruciais para todos os cuidados clínicos, aconselhamento preventivo, diagnóstico, tratamento e tratamento da doença, porque a cultura molda as crenças, os valores e, portanto, os comportamentos relacionados à saúde. O encontro clínico é fundamentado na comunicação, onde os valores e crenças do paciente e do clínico são compartilhados. Quando o foco dos cuidados de saúde está na doença sem um contexto, há uma distorção da realidade clínica (MONTENERY et al., 2013MONTENERY, S., et al. Cultural competence in nursing faculty: a journey, not a destination. Journal of Professional Nursing, v. 29, n. 6, p. 51-57, 2013. doi: dx.doi.org/10.1016/j.profnurs.2013.09.003
https://doi.org/10.1016/j.profnurs.2013.... ).
Muito além de ser simplesmente o espaço operativo do sistema de saúde, é no território onde se verifica a interação dos indivíduos/comunidade com os serviços locais (MONKEN; BARCELLOS, 2005MONKEN, B.; BARCELLOS, C. Vigilância em saúde e território utilizado: possibilidades teóricas e metodológicas. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 21, n. 3. p. 898-906, maio-jun, 2005.). Estar atento aos modos de organização e de sobrevivência das pessoas no seu cotidiano possibilita aos profissionais da saúde uma visão não fragmentada dos diversos processos envolvidos (BRASIL, 2017). De maneira convergente, considerar os dados epidemiológicos do território, bem como as crenças e valores da população, justifica-se pelo fato de que o ambiente exerce influência decisiva nas manifestações das doenças, na busca de tratamento e na relação que os usuários estabelecem com os serviços de saúde, sendo que para melhor intervir sobre os comportamentos individuais e coletivos, é essencial, particularmente pelos profissionais que atuam na APS, conhecer o contexto sociocultural no qual estão inseridos (BREILH, 2015BREILH, J. Epidemiologia crítica ciência emancipadora e interculturalidade. 1 ed. 1 reimpr. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2015.).
Tem havido crescente conscientização da necessidade de incluir os profissionais e a comunidade nos processos de pesquisa. Essa abordagem de pesquisa colaborativa e orientada para a comunidade são vistas como uma forma de desenvolver pesquisas que abordam as lacunas da prática e refletem as necessidades e prioridades das pessoas que são as mais afetadas pelos resultados da pesquisa (BANNER et al., 2019BANNER, D. et al. Patient and Public Engagement in Integrated Knowledge Translation Research: Are we there yet? Research Involvement and Engagement. v. 5, n. 1, 2019. Doi: https://doi.org/10.1186/s40900-019-0139-1
https://doi.org/10.1186/s40900-019-0139-... ). Esse envolvimento e diálogo entre pesquisadores, profissionais e a comunidade é considerada uma estratégia de pesquisa altamente inclusiva, que favorece o aumento da aplicação da pesquisa na realidade local, visto que as evidências coproduzidas são provavelmente mais realistas, aceitáveis e capazes de produzir mudanças mais duradouras (RUSHMER et al., 2019RUSHMER, R. et al. Knowledge translation: key concepts, terms and activities. In: ______. Population Health Monitoring: climbing the information pyramid. Switzerland: Springer International Publishing, 2019. doi: https://doi.org/10.1007/978-3-319-76562-4_7
https://doi.org/10.1007/978-3-319-76562-... ).
Observou-se que os profissionais da APS valoram o processo de territorialização que advém dos mapas, auxiliando no diagnóstico que a equipe faz do território. Os mapas são considerados ferramentas úteis para organizar, interpretar e comunicar os resultados para avaliação dos serviços de saúde. A elaboração e a interpretação de mapas pelas equipes consistem num processo de expressão gráfica, que considera o entendimento dos profissionais de saúde sobre seu território de atuação (GOLDSTEIN et al., 2013GOLDSTEIN, R. et al. A experiência de mapeamento participativo para a construção de uma alternativa cartográfica para a ESF. Ciência & Saúde Coletiva, v. 18, n. 1, p. 45-56, 2013.).
As evidências não são somente as evidências de resultados de pesquisas, coisas por exemplo, tabuladas, estudadas, pode ser um diagnóstico que a equipe faz do território [...] o que as agentes de saúde nos trazem [...]. Os mapas são evidências, os mapas que a gente fez (Rosa).
Entende-se que a identificação das características socioeconômicas, ambientais, bem como as potencialidades e prioridades da comunidade são considerados essenciais para a atuação sobre os determinantes da saúde e a implementação de estratégias de vigilância em saúde (MOYSÉS; FRANCO DE SÁ, 2014MOYSÉS, S.T; FRANCO DE SÁ, R. Planos locais de promoção da saúde: intersetorialidade(s) construída(s) no território. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 19, n. 11, p. 4323-4330, nov. 2014.). Essas informações podem ser captadas dando voz à comunidade, por intermédio das lideranças locais. Dessa maneira, para a operacionalização da evidência sociocultural, uma das ferramentas das equipes de ESF é o processo de territorialização, que resulta de uma pluralidade de informações advindas tanto de dados epidemiológicos, quanto do mapeamento e de informantes chaves (líderes comunitários e conselheiros locais) (LIMA; GALIMBERTTI, 2016LIMA, F. A.; GALIMBERTTI, P. A. Sentidos da participação social na saúde para lideranças comunitárias e profissionais da Estratégia Saúde da Família do território de Vila União, em Sobral-CE. Physis, Rio de Janeiro, v. 26, n. 1, p. 157-175, mar. 2016.; FARIA, 2013FARIA, R.M. A Territorialização da Atenção Primária à Saúde no Sistema Único de Saúde e a construção de uma perspectiva de adequação dos serviços aos perfis do território. Hygeia v, 9, n. 16, p. 131-147, jun 2013.).
Outro dispositivo para o reconhecimento da evidência sociocultural é a visita domiciliar, considerada uma tecnologia leve de trabalho, que permite, de forma privilegiada, conhecer o contexto familiar e social, bem como as relações familiares, e como elas podem contribuir para o cuidado, cura ou recuperação daqueles que ali moram (SAVASSI, 2016SAVASSI, L. C. M. Os atuais desafios da Atenção Domiciliar na Atenção Primária à Saúde: uma análise na perspectiva do Sistema Único de Saúde. Rev Bras Med Fam Comunidade. Rio de Janeiro, v. 11, n. 38, p. 1-12, jan-dez, 2016.; ANDRADE et al., 2014ANDRADE, A. M. et al. Visita domiciliar: validação de um instrumento para registro e acompanhamento dos indivíduos e das famílias. Epidemiol. Serv. Saúde. Brasília, v. 23, n. 1, p. 165-175, jan-mar. 2014.).
Ressalta-se que segundo a Portaria n. 2.436/2017 do Ministério da Saúde, é responsabilidade de todos profissionais das equipes que atuam na APS realizar visitas domiciliares, considerar as características sociais, econômicas, culturais, demográficas e epidemiológicas do território, para o planejamento local e a análise da situação de saúde, bem como implementar atividades de atenção à saúde de acordo com as necessidades da população, obedecendo a critérios de frequência, risco e vulnerabilidade, com base em parâmetros estabelecidos em evidências científicas.
Andermann e colaboradores (2016ANDERMANN, A. et al. Evidence for Health III: Making evidence- informed decisions that integrate values and context. Health Research Policy and Systems. v. 14, n. 16, 2016. Doi: 10.1186/s12961-016-0085-4
https://doi.org/10.1186/s12961-016-0085-... ) asseguram que para ter um bom impacto na saúde em geral é importante, em primeiro lugar, entender quais são as verdadeiras necessidades de saúde para poder abordá-las de maneira informada por evidências. Uma avaliação objetiva das necessidades baseada em dados epidemiológicos, combinada com uma avaliação subjetiva do que a comunidade pode considerar como as prioridades essenciais, é uma boa maneira de começar.
Em pesquisa realizada em Minas Gerais, Brasil, com o objetivo de analisar os atributos da APS, os autores concluíram que há necessidade de orientar as práticas de cuidado de acordo com os dados epidemiológicos e as necessidades da população, por meio da construção do diagnóstico local (GONTIJO et al., 2017GONTIJO, T. L. et al. Avaliação da atenção primária: o ponto de vista de usuários. Saúde debate, Rio de Janeiro, v. 41, n. 114, p. 741-752, jul-set. 2017.).
Essa história de territorialização acho bem importante. Porque, por exemplo, nós tivemos a dengue, então nós tivemos cinco ou seis casos numa travessa [rua], então a gente se alertou de um jeito para aquele lugar que as agentes de saúde iam lá todos os dias, então isso eu acho importante, a localização é um dado, não deixa de ser uma evidência (Girassol).
Entender as preferências individuais e populacionais, bem como o contexto local, é primordial para escolher a melhor opção de qualquer implementação. Primeiramente, não adianta pensar em custos se a opção não for aceitável (ANDERMANN et al., 2016ANDERMANN, A. et al. Evidence for Health III: Making evidence- informed decisions that integrate values and context. Health Research Policy and Systems. v. 14, n. 16, 2016. Doi: 10.1186/s12961-016-0085-4
https://doi.org/10.1186/s12961-016-0085-... ). Outrossim, o relato de um profissional indica que na APS é essencial, em primeiro lugar, conhecer sua população adscrita, no seu âmbito individual e familiar, para depois aplicar uma evidência científica.
Tudo depende muito, vou citar um exemplo: tem uma senhora lá com os seus setenta anos e ela é hipertensa. Na consulta a pressão está “nas alturas”, você vai olhar o tratamento dela tem três drogas otimizadas, mas por trás disso tem outras coisas, que são: problemas familiares, ela não sabe ler, tomar direito os remédios. Então, o que está no teu prontuário é o correto, mas não se sabe se ela tomou o remédio certo, se ela saber ler o receituário para tomar a medicação correta, não se sabe o que aconteceu na vida dela para a pressão estar assim. Então, na ESF é muito isso, é muito mais o teu primeiro feeling para depois você dar o segundo passo acadêmico, é saber a estrutura, o que aconteceu com ela. Se ela tem um filho que é drogado, presidiário, então a pressão vai estar sempre nas alturas, por mais que você otimize as drogas. Sempre a primeira coisa é o teu conhecimento em relação a tua área [território], as tuas famílias e depois você vai pensar clinicamente, depois você vai tratar, mas primeiro você tem que tentar entender (Gérbera).
Em suma, os profissionais da APS necessitam ser capazes de prover uma atenção integral, contínua e organizada à população adscrita, ou seja, devem ver o ser humano na sua complexidade, valorizando as relações e compreendendo as pessoas nos seus contextos sociais (MINAYO, 2012MINAYO, M. C. S. Saúde e Ambiente: uma relação necessária. In CAMPOS, G. W.S. et al. (Org.). Tratado de saúde coletiva. 2ed. rev. aum. São Paulo: Hucitec, 2012. p. 79-109.). Diante disso, entende-se que para realizar um trabalho global, dos profissionais que atuam na APS, especificamente na ESF, é elementar que a PBE considere a evidência científica, a experiência clínica, a escolha do paciente e os aspectos socioculturais das pessoas/comunidades.
Nessa perspectiva, acredita-se que as informações advindas da escuta atenta das necessidades da comunidade, do mapeamento que identifica áreas de risco e o perfil epidemiológico são evidências importantes a serem consideradas na prática dos profissionais (BREILH, 2015BREILH, J. Epidemiologia crítica ciência emancipadora e interculturalidade. 1 ed. 1 reimpr. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2015.). Cabe à equipe da ESF identificar e valorizar as características socioculturais do território para uma PBS mais sensível à realidade e às necessidades da sua população adscrita. De fato, só porque uma intervenção funciona bem em um contexto não significa que ela será aplicável e transferível para outra.
Reconhece-se que integrar as evidências, valores e fatores contextuais para chegar a uma decisão final é, sem dúvidas, um desafio. É fundamental encontrar um equilíbrio, estimulando o diálogo entre as partes interessadas para prover decisões mais sutis, mais transparentes e, em última análise, mais propensas a ter impacto na melhoria da saúde (ANDERMANN et al., 2016ANDERMANN, A. et al. Evidence for Health III: Making evidence- informed decisions that integrate values and context. Health Research Policy and Systems. v. 14, n. 16, 2016. Doi: 10.1186/s12961-016-0085-4
https://doi.org/10.1186/s12961-016-0085-... ). A figura 1 representa a proposta de inclusão do elemento “análise sociocultural” da PBE no âmbito da APS.
Proposta dos Elementos da Prática Baseada em Evidência no Âmbito da Atenção Primária à Saúde.
Considerações finais
Identifica-se que os profissionais da ESF têm dificuldades em desenvolver uma prática em saúde voltada a evidências científicas. De acordo com os depoimentos, há uma deficiência de conhecimentos e habilidades para acessar fontes de informação (bases de periódicos), selecionar, interpretar e aplicar os resultados de pesquisas na prática da APS. Essa inabilidade, segundo os profissionais, advém do não exercício e aprendizagem da pesquisa científica na formação profissional, em nível de graduação e de educação continuada em serviço. Além disso, há um discurso contundente de que a alta demanda de trabalho na ESF limita o tempo para a busca e análise de estudos científicos. Por outro lado, a experiência profissional - individual e coletiva - é um aspecto valorizado pelos profissionais de saúde da ESF.
Verifica-se, também que a PBE ainda está fortemente direcionada à assistência individual de atenção à saúde. Entretanto, o caráter coletivo da APS, por conseguinte, vai exigir que o profissional aplique uma pluralidade metodológica e de ferramentas para tomada de decisões e resolutividade dos problemas de saúde nesse cenário. Nesse sentido, analisar os aspectos socioculturais que se dão nos territórios permite compreender as determinações sociais do processo saúde-doença. Portanto, para um profícuo desenvolvimento da PBE na APS, são oportunos métodos inovadores que considerem outras maneiras de ver e interpretar as situações de saúde-doença. Reconhecer os fenômenos socioculturais e ambientais do território, compreendendo a realidade num dado contexto, é uma forma de considerar as diversidades e o papel das variáveis sociais na vida dos indivíduos e coletividades no cuidado à saúde.
Vale ressaltar que não é propósito da pesquisa qualitativa a generalização dos resultados, mas percebe-se que ficou evidente a força dos aspectos socioculturais para uma abordagem mais realista e capaz de produzir mudanças significativas e duradouras nos serviços de atenção primária.11 L. R. Schneider participou da concepção, planejamento, análise, redação e revisão crítica do artigo. R. P. G. Pereira participou da análise, redação, revisão crítica e aprovação da versão final do artigo. L. Ferraz realizou a concepção, planejamento, análise, redação, revisão crítica e aprovação da versão final do artigo.
Agradecimentos
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pelo apoio financeiro por meio de bolsa de mestrado, e a todos os participantes do estudo.
Referências
- AGREE Next Steps Consortium. The AGREE II Instrument. Canada, 2009. Disponível em: <https://www.agreetrust.org/agree-ii/>
» https://www.agreetrust.org/agree-ii - AMMOURI, A. et al. Evidence-Based Practice Knowledge, attitudes, practice and perceived barriers among nurses in Oman. Sultan Qaboos Univ Med. J., v. 14, n. 4, p. 537-45, 2014.
- ANDERMANN, A. et al. Evidence for Health III: Making evidence- informed decisions that integrate values and context. Health Research Policy and Systems. v. 14, n. 16, 2016. Doi: 10.1186/s12961-016-0085-4
» https://doi.org/10.1186/s12961-016-0085-4 - ANDRADE, A. M. et al. Visita domiciliar: validação de um instrumento para registro e acompanhamento dos indivíduos e das famílias. Epidemiol. Serv. Saúde. Brasília, v. 23, n. 1, p. 165-175, jan-mar. 2014.
- BAIRD, L. M. G.; MILLER, T. Factors influencing evidence-based practice for community nurses. British Journal of Community Nursing, v. 20, n. 5, 2015.
- BANDEIRA, A. G. et al. A utilização de um referencial metodológico na implementação de evidências como parte da investigação em enfermagem. Texto Contexto Enferm, v. 26, n. 4, p. e2550017, 2017.
- BANNER, D. et al. Patient and Public Engagement in Integrated Knowledge Translation Research: Are we there yet? Research Involvement and Engagement. v. 5, n. 1, 2019. Doi: https://doi.org/10.1186/s40900-019-0139-1
» https://doi.org/10.1186/s40900-019-0139-1 - BARENDS, E et al. Managerial attitudes and perceived barriers regarding evidence-based practice: An international survey. PlosOne, v. 12, n. 10, p. e0184594, 2017. Doi: https://doi. org/10.1371/journal.pone.0184594
» https://doi. org/10.1371/journal.pone.0184594 - BARDIN, L. Análise de conteúdo. Ed. rev. e ampl. São Paulo: Edições 70, 2016. 279 p.
- BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2017.
- BREILH, J. Epidemiologia crítica ciência emancipadora e interculturalidade. 1 ed. 1 reimpr. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2015.
- CAMARGO, F. C. et al. Avaliação de intervenção para difusão da enfermagem baseada em evidências em hospital de ensino. Rev Gaúcha Enferm., v. 37, n. esp., p. e68962, 2016.
- COCHRANE BRASIL. Quem é e o que faz a Cochrane. Disponível em: http://brazil.cochrane.org/quem-%C3%A9-e-o-que-faz-cochrane Acesso em: 4 ago. 2019.
» http://brazil.cochrane.org/quem-%C3%A9-e-o-que-faz-cochrane - EBELL, M. H. et al. How good is the evidence to support primary care practice? BMJ Evidence-Based Medicine. v. 22, p. 88-92, 2017.
- FARIA, R.M. A Territorialização da Atenção Primária à Saúde no Sistema Único de Saúde e a construção de uma perspectiva de adequação dos serviços aos perfis do território. Hygeia v, 9, n. 16, p. 131-147, jun 2013.
- GOLDSTEIN, R. et al. A experiência de mapeamento participativo para a construção de uma alternativa cartográfica para a ESF. Ciência & Saúde Coletiva, v. 18, n. 1, p. 45-56, 2013.
- GONTIJO, T. L. et al. Avaliação da atenção primária: o ponto de vista de usuários. Saúde debate, Rio de Janeiro, v. 41, n. 114, p. 741-752, jul-set. 2017.
- INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Cidades. Disponível em: http://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?codmun=420420 Acesso em: 4 ago. 2019.
» http://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?codmun=420420 - KIRMAYER, L. Cultural competence and evidence-based practice in mental health: Epistemic communities and the politics of pluralism. Social Science & Medicine, v. 75, p. 249-256, 2012. Doi: 10.1016/j.socscimed.2012.03.018
» https://doi.org/10.1016/j.socscimed.2012.03.018 - LIMA, F. A.; GALIMBERTTI, P. A. Sentidos da participação social na saúde para lideranças comunitárias e profissionais da Estratégia Saúde da Família do território de Vila União, em Sobral-CE. Physis, Rio de Janeiro, v. 26, n. 1, p. 157-175, mar. 2016.
- MALLION, J.; BROOKE, J. Community- and hospital-based nurses’ implementation of evidence-based practice: are there any differences? British Journal of Community Nursing. v. 21, n. 3, p. 148-54, mar. 2016.
- MINAYO, M. C. S. Saúde e Ambiente: uma relação necessária. In CAMPOS, G. W.S. et al. (Org.). Tratado de saúde coletiva. 2ed. rev. aum. São Paulo: Hucitec, 2012. p. 79-109.
- MONKEN, B.; BARCELLOS, C. Vigilância em saúde e território utilizado: possibilidades teóricas e metodológicas. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 21, n. 3. p. 898-906, maio-jun, 2005.
- MONTENERY, S., et al. Cultural competence in nursing faculty: a journey, not a destination. Journal of Professional Nursing, v. 29, n. 6, p. 51-57, 2013. doi: dx.doi.org/10.1016/j.profnurs.2013.09.003
» https://doi.org/10.1016/j.profnurs.2013.09.003 - MORALES, C. F.; SANTACRUZ, C. J.; VERKOVITCH, I. Integración de la Enseñanza de la práctica de enfermería basada en la evidencia científica. Aquichán, Bogotá, v. 15, n. 4, p. 541-553, dez. 2015.
- MOYSÉS, S.T; FRANCO DE SÁ, R. Planos locais de promoção da saúde: intersetorialidade(s) construída(s) no território. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 19, n. 11, p. 4323-4330, nov. 2014.
- NAVABI, N. et al. Knowledge and Use of Evidence-based Dentistry among Iranian Dentists. Qaboos Univ Med J., v. 14, n. 2, p. 223-230, maio 2014.
- PEREIRA, R. P. G. Enfermagem Baseada na Evidência: atitudes, barreiras e práticas. Tese (Doutorado) - Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto. Programa de Pós-Graduação em Ciências da Enfermagem, Porto, 2016.
- PEREIRA, R. P. G.; CARDOSO, M. J. S.; MARTINS, M. A. C. Atitudes e barreiras à prática de enfermagem baseada na evidência em contexto comunitário. Rev. Enf. Ref., Coimbra. v. serIII, n. 7, p. 55-62, jul. 2012.
- PERICAS-BELTRAN, J. et al. Perception of Spanish primary healthcare nurses about evidence based clinical practice: a qualitative study. Int. Nursing Rev, v.61, n. 1, p. 90-8, jan. 2014.
- RUSHMER, R. et al. Knowledge translation: key concepts, terms and activities. In: ______. Population Health Monitoring: climbing the information pyramid. Switzerland: Springer International Publishing, 2019. doi: https://doi.org/10.1007/978-3-319-76562-4_7
» https://doi.org/10.1007/978-3-319-76562-4_7 - SAVASSI, L. C. M. Os atuais desafios da Atenção Domiciliar na Atenção Primária à Saúde: uma análise na perspectiva do Sistema Único de Saúde. Rev Bras Med Fam Comunidade. Rio de Janeiro, v. 11, n. 38, p. 1-12, jan-dez, 2016.
- SACKETT, D. L. et al. Evidence based medicine: what it is and what it isn't. British Medical Journal, v.312, p. 71-72, jan. 1996.
- ______. Medicina baseada em evidências: prática e ensino. 2 ed. Porto Alegre: Artmed, 2003.
- SADEGHI-BAZARGAN, H.; TABRIZI, J.; AZAMI-AGHDASH, S. Barriers to evidence-based medicine: a systematic review. J Eval Clin Pract., v. 20, n. 6, p. 793-802, dez. 2014.
- SANTOS, V. C.; ANJOS, K. F.; ALMEIDA, O. S. A percepção de formandos sobre a pesquisa em enfermagem no curso de graduação. Rev Enferm UFSM., v. 3, n. 1, p. 144-154, jan-abr. 2013.
- SAUNDERS, H.; VEHVILAINEN-JULKUNEN, K. Nurses’ Evidence-Based Practice Beliefs and the Role of Evidence-Based Practice Mentors at University Hospitals in Finland. Worldviews on Evidence-Based Nursing. v. 14, n. 1, p. 35-45, 2017.
- SHAFIEI, E. et al. Nurses’ perceptions of evidence-based practice: a quantitative study at a teaching hospital in Iran. Med J Islam Repub Iran, v. 28, nov. 2014
- SHIN, J.; LEE, E. The Influence of Social Capital on Nurse-Perceived Evidence-Based Practice Implementation in South Korea. J Nurs Scholarsh., v. 49, n. 3, p. 267-276, maio 2017.
- SPERLING, S. Estratégia de Saúde da Família: a melhor aposta para um sistema de saúde orientado para a proteção de pessoas e conquistas civilizatórias. Reciis: Rev Eletron Comun Inf Inov Saúde, v. 11, n. 4, out-dez. 2017.
- TAKEDA, S. A organização dos serviços de Atenção Primária à Saúde. In: DUNCAN, B. et al. (Orgs.). Medicina ambulatorial: condutas de atenção primária baseadas em evidências. 4. ed. Porto Alegre: Artmed, 2013. p. 19-32.
- YODER, L. et al. Staff nurses’ use of research to facilitate Evidence-Based Practice. Am J Nurs., v. 114, n. 9, Sept. 2014.
- WERNECK, M. A. F.; FARIA, H. P.; CAMPOS, K. F.C. Protocolo de cuidados à saúde e de organização do serviço. Belo Horizonte: Nescon-UFMG; Coopmed, 2009. p. 13-49.
- ZHOU, F. et al. Attitude, knowledge, and practice on Evidence-Based Nursing among registered nurses in traditional Chinese medicine hospitals: a multiple center cross-sectional survey in China. Evid Based Complement Alternat Med., ID 5478086, jun. 2016.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
28 Out 2020 - Data do Fascículo
2020
Histórico
- Recebido
04 Ago 2019 - Aceito
03 Mar 2020 - Revisado
30 Jun 2020