Vacinas contra a Covid-19: o fim da pandemia?** O editorial deste número de Physis versa sobre as vacinas contra Covid-19 e é assinado por Rosana Castro, doutora em Antropologia pela Universidade de Brasília e autora do livro Economias políticas da doença e da saúde: uma etnografia da experimentação farmacêutica (2020), publicado em virtude do recebimento do prêmio de melhor tese de doutorado em Ciências Sociais pela Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS) em 2019.

Rosana Castro Sobre o autor

Durante o ano de 2020, acompanhamos com atenção inédita o desenvolvimento das etapas de estudos científicos com candidatas a vacinas contra o novo coronavírus. Quatro destas pesquisas foram realizadas no Brasil, fato que não somente cooperou para nossa familiarização com os bastidores e o cotidiano da ciência, como alavancou as esperanças de que estaríamos realmente próximos da tecnologia que poderia dar fim à pandemia. Ainda em 2020, as primeiras vacinas receberam autorização para uso emergencial em alguns países europeus e nos Estados Unidos e, no dia 17 de janeiro de 2021, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária autorizou o uso emergencial de duas vacinas no Brasil. Minutos depois, Mônica Calazans, mulher negra e enfermeira da UTI do Instituto Emílio Ribas (São Paulo-SP), foi a primeira brasileira vacinada no território nacional. A cada nova injeção, aumentam as expectativas de que, em um futuro breve, falaremos da pandemia como um evento do passado e recuperaremos a vida “normal”. Mas em que medida estamos caminhando nessa direção? E se estamos, será mesmo a volta ao “normal” nossa melhor rota de saída da pandemia?

Até o momento, os resultados das pesquisas mais avançadas indicam potencial imunizante animador - sobretudo na prevenção de quadros clínicos graves, que pressionam fortemente os sistemas de saúde e, muitas vezes, vitimam irremediavelmente os assim acometidos. Por outro lado, temos que lidar, ainda, com algumas questões incontornáveis com relação às vacinas e à vacinação contra a Covid-19. Em nível doméstico, vemos a cada dia um conjunto interminável de problemas causados ou não evitados pelo governo federal: ausência de um planejamento nacional detalhado e coordenado para as vacinações; atrasos na contratação de empresas para produção de seringas e agulhas; inépcia nas negociações com laboratórios fabricantes de vacinas para abastecimento do SUS e incidentes diplomáticos com lideranças de países onde estão sendo produzidos vacinas e insumos são apenas alguns dos percalços que temos enfrentado para a disponibilização de vacinas no Brasil.

Ao encontro desses problemas, temos, ainda, a escalada da rivalidade política entre o presidente Bolsonaro e alguns governadores, mediada pelas vacinas contra Covid-19. Entre farpas e acusações trocadas, o presidente reforçou o discurso conspiracionista de que as vacinas produzidas pelo laboratório Sinovac, em parceria com o Instituto Butantã (SP), deveriam ser vistas com desconfiança pela população por seu desenvolvimento com uma empresa chinesa. Nesse mesmo sentido, vem propagando rumores absurdos de que vacinas de RNA podem alterar o código genético de humanos. Por fim, e não menos importante, o presidente tem enfraquecido e deslocado o debate público sobre acesso às vacinas, afirmando que, em seu governo, as vacinas serão tratadas como uma questão de escolha individual. Se a ausência de políticas de combate ao avanço da pandemia, o negacionismo científico e o reforço de teses conspiratórias marcaram os contornos da pandemia no Brasil, assim também tem ocorrido com relação às vacinas.

Todos esses elementos estão, ainda, associados a um contexto internacional de iniquidade na distribuição e no acesso global às vacinas, denominado por diversos especialistas e pela própria Organização Mundial da Saúde de “nacionalismo vacinal” (FIDLER, 2020FIDLER, D. Vaccine nationalism’s politics. Science, v. 369, n. 6505, p. 749, 2020.; “WHO chief warns…”, 2020). Em resumo, esta expressão lança luz sobre as práticas de certos países, sobretudo do norte global, de celebrarem contratos antecipados com laboratórios farmacêuticos, garantindo assim um estoque de vacinas para suas populações. O caso, entretanto, é que a corrida por contratos bilaterais privilegia aqueles poucos com mais recursos para compra, ao mesmo tempo em que enfraquece iniciativas de garantia de distribuição equitativa para países com possibilidades reduzidas de barganha junto às indústrias farmacêuticas. Em alguns casos, como o do Canadá, os governos garantiram a compra de unidades de vacinas superiores às necessárias para vacinação de toda sua população, enquanto outros países, como o Brasil e tantos mais, não conseguiram garantir sequer o necessário para seus profissionais de saúde. Nesse cenário, segundo relatório recente publicado pelo The Economist Intelligence Unit (2021), enquanto se estima que a vacinação em massa em países mais ricos ocorra ainda neste ano, projeta-se que esta aconteça na maioria dos países africanos apenas a partir de 2023.

Se a pandemia deixou cristalinamente evidente que o descontrole de contágios em um local coloca em risco o sucesso da contenção dos adoecimentos em todo o mundo e, mais, que certos grupos (sobretudo negros, indígenas, pobres e refugiados) estão mais expostos ao vírus por desigualdades sociais e econômicas diversas, como creditar as expectativas sobre o fim desta emergência global de saúde somente às taxas de eficácia das vacinas? O desenvolvimento crescente de alternativas imunizantes não é acompanhado por sua disponibilidade e acesso equânime com a mesma rapidez, o que coloca em evidência tanto os limites de políticas de saúde global focadas em soluções tecnológicas (BIEHL; PETRYNA, 2014BIEHL, J.; PETRYNA, A. Peopling global health. Saúde Soc., v. 23, n. 2, p. 376-389, 2014.), quanto põe em xeque a própria viabilidade das vacinas existentes como alternativa para dar fim à pandemia. Em locais onde há mais pessoas desprotegidas e expostas ao contágio, há maiores chances de emergirem novas variantes do coronavírus para as quais não necessariamente é possível garantir o mesmo grau de eficácia protetiva das vacinas hoje disponíveis.

O alcance do desempenho demonstrado pelas vacinas nos ensaios clínicos está, agora, posto à prova das tensões e disputas políticas balizadas pelo nacionalismo vacinal; da grande concentração da produção de medicamentos em laboratórios privados; do negacionismo viral e dos movimentos antivacina; do avanço do neoliberalismo sobre as políticas de acesso universal à saúde e das históricas desigualdades nacionais e locais no acesso à saúde. Neste teste, evidentemente, as vacinas tomadas isoladamente têm uma performance aquém da necessária para dar fim à pandemia. De um lado, a existência de vacinas consideradas seguras e eficazes não implica, automaticamente, que elas estejam disponíveis aos governos e acessíveis às populações. De outro, as políticas necessárias à garantia de acesso às vacinas precisam ser acompanhadas de um efetivo combate às iniquidades de saúde em suas mais variadas formas; sob risco de, mesmo com vacinas disponíveis, enfrentarmos ciclos reemergentes de contágios e óbitos desigualmente distribuídos. Embora estejamos há praticamente um ano em condições pandêmicas, é preciso, ainda, insistir que “o vírus não é simplesmente uma entidade biológica, mas uma realidade biopolítica que trafega ao longo de padrões de iniquidade bem conhecidos” (BENJAMIN, 2020BENJAMIN, R. Black Skin, White Masks: Racism, Vulnerability & Refuting Black Pathology. Department of African American Studies. Princeton University. 2020. Disponível em: <https://aas.princeton.edu/news/black-skin-white-masks-racism-vulnerability-refuting-black-pathology>. Acesso em: 15 fev. 2021.
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).

Não é à toa que diversos cientistas biomédicos e sociais alertam que as vacinas, tomadas isoladamente, não darão fim à pandemia. Refiro-me não somente ao fato mais evidente de que será preciso continuar com uso de máscaras, higienização contínua das mãos e distanciamento social pelo menos por algum tempo após sermos vacinados. Além disso, o desenvolvimento de tecnologias de enfrentamento das iniquidades associadas aos processos de adoecimento e das desigualdades de acesso à saúde serão fundamentais para que cheguemos a algum tempo nos quais falemos desta pandemia como fato do passado. Junto das vacinas, o desenvolvimento de políticas públicas de moradia com acesso à água e esgoto; distribuição e garantia de renda básica; transporte público adequado e acessível; financiamento do SUS; enfrentamento do racismo ambiental e institucional; defesa dos territórios indígenas e quilombolas são algumas das frentes nas quais precisaremos avançar necessária e rapidamente como medidas de saúde pública.

As vacinas e a vacinação são fundamentais enfrentarmos esta pandemia. Seu acesso com equidade e seu papel na mudança dos tempos que vivemos, no entanto, estão menos associados ao regresso ao “normal” que nos trouxe até aqui, do que ao desafio fundamental de reinvenção radical de nosso presente e futuro, no caminho da promoção de justiça social.

Referências

  • BENJAMIN, R. Black Skin, White Masks: Racism, Vulnerability & Refuting Black Pathology. Department of African American Studies. Princeton University. 2020. Disponível em: <https://aas.princeton.edu/news/black-skin-white-masks-racism-vulnerability-refuting-black-pathology>. Acesso em: 15 fev. 2021.
    » https://aas.princeton.edu/news/black-skin-white-masks-racism-vulnerability-refuting-black-pathology
  • BIEHL, J.; PETRYNA, A. Peopling global health. Saúde Soc., v. 23, n. 2, p. 376-389, 2014.
  • FIDLER, D. Vaccine nationalism’s politics. Science, v. 369, n. 6505, p. 749, 2020.
  • THE ECONOMIST INTELLIGENCE UNIT. Coronavirus vaccines: expect delays. Q1 global forecast. Londres: The Economist Intelligence Unit, 2021. Disponível em: <https://www.eiu.com/n/campaigns/q1-global-forecast-2021/>. Acesso em: 10 fev. 2021.
    » https://www.eiu.com/n/campaigns/q1-global-forecast-2021
  • WHO chief warns against COVID-19 ‘vaccine nationalism’, urges support for fair access. UN News. 18 ago. 2020. Disponível em: <https://news.un.org/en/story/2020/08/1070422>. Acesso em: 12 fev. 2021.
    » https://news.un.org/en/story/2020/08/1070422

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    O editorial deste número de Physis versa sobre as vacinas contra Covid-19 e é assinado por Rosana Castro, doutora em Antropologia pela Universidade de Brasília e autora do livro Economias políticas da doença e da saúde: uma etnografia da experimentação farmacêutica (2020), publicado em virtude do recebimento do prêmio de melhor tese de doutorado em Ciências Sociais pela Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS) em 2019.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    2021
PHYSIS - Revista de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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