Resumo
Este estudo tem por objetivo analisar as representações sociais de atores estratégicos envolvidos na assistência ou gestão em saúde, sobre as questões que envolvem a mulher, o parto e o nascimento, buscando identificar e compreender barreiras à implementação das Diretrizes Nacionais de Assistência ao Parto Normal. Realizou-se estudo qualitativo descritivo, de corte transversal, baseado num teste de associação livre de palavras, com 12 atores estratégicos. As palavras - Parto; Enfermeira obstétrica; Nascimento; Médico obstetra; Mãe; Complicação; Mulher - foram selecionadas a partir de uma análise textual das contribuições da sociedade na Consulta Pública das Diretrizes, com o software IRaMuTeQ. A análise do resultado do teste de associação de palavras foi realizada na abordagem estrutural das Representações Sociais, com os softwares OpenEVOC e IRaMuTeQ. Foram identificadas como potenciais barreiras à implementação as representações sobre parto associado a dor, o médico obstetra como obstrutor e os estereótipos que marcam o papel da mulher e da mãe na sociedade. Compreender essas representações é importante para evidenciar as convenções que subjazem nas atitudes e práticas de profissionais e usuárias, possibilitando a definição de estratégias específicas para cada grupo.
Palavras-chave:
parto; protocolos clínicos; ciência da implementação; representações sociais
Abstract
This study aims to analyze the social representations of strategic actors involved in health care or management, on issues involving women, childbirth, and birth, seeking to identify and understand barriers to the implementation of the National Guidelines for Assistance to Normal Childbirth. A qualitative, descriptive, cross-sectional study was conducted, based on a word association test with 12 strategic actors. The words - Childbirth; Midwife; Birth; Obstetrician; Mother; Complication; Woman - were selected from a textual analysis of society's contributions to the Public Consultation of the Guidelines, supported by IRaMuTeQ software. The analysis of the word association test result was carried out in the structural approach of Social Representations, with the OpenEVOC and IRaMuTeQ software. Representations about childbirth associated with pain, the obstetrician as an obstructer and the stereotypes that mark the role of women and mothers in society were identified as potential barriers to implementation. Understanding these representations is important to highlight the conventions that underlie the attitudes and practices of professionals and users of services, enabling the definition of specific strategies for each group.
Keywords:
parturition; clinical protocols; implementation science; social representations
Introdução
Nas últimas décadas, a cesariana tornou-se a principal via dos nascimentos no Brasil (BRASIL, 2018). Muitos desses procedimentos cirúrgicos são eletivos, realizados sem indicação materna e fetal; todavia, podem ter consequências para a saúde das mulheres e seus bebês (SANDALL et al., 2018SANDALL, J. et al. Short-term and long-term effects of caesarean section on the health of women and children. The Lancet, v. 392, n. 10155, p. 1349-1357, out. 2018.). Ademais, tanto pelo uso de recursos para sua realização, como por suas consequências, têm impacto financeiro para os sistemas de saúde: Gibbons et al. (2010GIBBONS, L. et al. The Global Numbers and Costs of Additionally Needed and Unnecessary Caesarean Sections Performed per Year: Overuse as a Barrier to Universal Coverage. [S.l: s.n.], 2010. Disponível em: file:///C:/Users/apisp/Downloads/The_Global_Numbers_and_Costs_of_Additionally_Neede.pdf.) estimaram que, no mundo, são realizadas cerca de 6,2 milhões de cesáreas desnecessárias, sendo que o custo global do excesso de cesáreas foi estimado em 2,32 bilhões de dólares.
Diante desse cenário, várias foram as iniciativas da política pública elaboradas para reduzir essa proporção, sendo parte destas as Diretrizes Nacionais de Assistência ao Parto Normal (BRASIL, 2017), que foram elaboradas com o objetivo de apresentar recomendações sobre assistência ao parto e nascimento, baseadas nas melhores evidências disponíveis.
Ao refletir sobre a implementação dessas diretrizes, não se pode desconsiderar elementos do contexto brasileiro que contribuem para as altas taxas de cesarianas e o fato de este tema envolver importantes questões de gênero e poder. Para Bourdieu (2019BOURDIEU, P. A dominação masculina. 16a. ed. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2019.), a dominação masculina está ancorada em nossos inconscientes, nas estruturas simbólicas e nas instituições da sociedade, e consagram uma ordem patriarcal. Foucault (1988FOUCAULT, M. Historia da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988.) denunciou que essa dominação se expressa na sociedade por meio da patologização dos corpos femininos. Miles (1991MILES, A. Women, Health and Medicine. Philadelphia: Open University Press, 1991.) apresenta o conceito da medicalização da sociedade ocidental, que significa transformar aspectos da vida cotidiana em objeto da medicina, de forma a assegurar conformidade às normas sociais.
A partir da segunda metade do século XX, um terreno fértil para a institucionalização do parto foi criado, num cenário de entusiasmo pelos avanços tecnológicos, aliado à inclusão da percepção de fatores de risco no campo da saúde (CASTEL, 1987CASTEL, R. A gestão dos riscos: da antipsiquiatria à pós-psicanálise. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1987.). Logo, o parto foi transformado em objeto de intervenção médica, e diversas etapas fisiológicas, como as dores inerentes ao processo, passaram a ser compreendidas como indesejáveis e “tratáveis” pelo uso das novas tecnologias desenvolvidas pela medicina (VIEIRA, 2002VIEIRA, E. M. A medicalização do corpo feminino. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2002.). Além disso, o componente técnico passou a ser privilegiado no lugar do cuidado abrangente, e uma racionalidade mecânica, industrial, focada na produtividade, foi incorporada também no âmbito da saúde (RATTNER, 2009RATTNER, D. Humanização na atenção a nascimentos e partos: ponderações sobre políticas públicas. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, v. 13, n. supl 1, p. 759-768, 2009.).
No sentido de compreender esses fenômenos que se reproduzem na sociedade, as representações sociais, compreendidas como sistemas de interpretação que regem a relação dos sujeitos com o mundo, orientam as práticas, têm efeito sobre os processos de difusão e assimilação de conhecimentos, na definição das identidades pessoais e sociais, na expressão dos grupos e nas transformações sociais (JODELET, 2014JODELET, D. Les représentations sociales. 5a. ed. Paris: PUF, 2014.), e que são transmitidas por meio de uma sequência de elaborações e mudanças que ocorreram ao longo do tempo (MOSCOVICI, 2015MOSCOVICI, S. Representações sociais: Investigações em psicologia social. Petrópolis: Editora Vozes, 2015.), podem ser utilizadas para orientar essa leitura.
Segundo Moscovici (2015MOSCOVICI, S. Representações sociais: Investigações em psicologia social. Petrópolis: Editora Vozes, 2015.), as representações sociais possuem uma natureza de convenção e de prescrição. Ao convencionalizar objetos, pessoas ou acontecimentos, acomoda-se algo a uma forma determinada, a padrões (inconscientes, em sua maioria), partilhados por um grupo de pessoas. Já no sentido prescritivo, as representações se impõem como uma “força irresistível”, que é a combinação de uma estrutura que antecede o começo do pensar e de uma tradição que determina o que deve ser pensado.
Abric (1993ABRIC, J.-C. Central System, Peripheral System: Their functions and roles in the dynamics of social representations. Papers on social representations, v. 2, n. 2, p. 75-78, 1993.) descreve a teoria estrutural das representações sociais, e reconhece nelas um núcleo central que define a essência da representação e cuja função é a geração de significados e a organização desses significados. Em torno do núcleo central estão os elementos periféricos, cuja presença, valor e função são determinados pelo núcleo; uma primeira periferia que forma parte dessas representações traz a heterogeneidade das ideias do grupo. Nela incluem-se ideias, às vezes contraditórias com o núcleo central, porém protetoras dele; a segunda periferia seria outra das partes da estrutura que estaria conformada pelas ideias que não formam parte dessas representações. Por último, uma zona de contraste onde estariam os significados de, provavelmente, futuras representações, e que pode conter elementos contranormativos (ABRIC, 2004______. Prácticas sociales y representaciones. Coyoacán, México DF: Ediciones Coyoacan S.A. de C.V., 2004., WOLTER et al. 2016WOLTER, R. P.; WACHELKE, J.; NAIFF, D. A abordagem estrutural das representações sociais e o modelo dos esquemas cognitivos de base: perspectivas teóricas e utilização empírica. Temas em Psicologia, v. 24, n. 3, p. 1139-1152, 2016.).
Para Abric (2004______. Prácticas sociales y representaciones. Coyoacán, México DF: Ediciones Coyoacan S.A. de C.V., 2004.), as representações sociais desempenham papel fundamental nas práticas e na dinâmica das relações sociais e respondem a: i) funções de saber, pois permitem entender e explicar a realidade; ii) funções identitárias, que definem a identidade e situam o indivíduo e os grupos no campo social; iii) funções de orientação, sendo um guia para a ação; e iv) funções justificadoras, após uma ação, para explicar e justificar conduta em determinada situação ou em consideração aos seus pares. Reconhecer a força dessas representações na subjetividade dos profissionais de saúde, na tentativa de compreender como influenciam suas atitudes e comportamentos, pode auxiliar a elucidar as barreiras à implementação de boas práticas de atenção ao parto e nascimento.
Tendo como referência as Diretrizes Brasileiras de Assistência ao Parto Normal (BRASIL, 2017), este estudo tem por objetivo analisar as representações sociais de atores estratégicos envolvidos na assistência ou gestão em saúde, sobre as questões que envolvem a mulher, o parto e o nascimento, buscando identificar e compreender potenciais barreiras à implementação das Diretrizes.
Método
Foi realizado estudo qualitativo descritivo, de corte transversal, baseado numa técnica associativa livre de palavras (BARDIN, 2016BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo, Edições 70, 2016.) com 12 atores estratégicos selecionados pelo envolvimento na assistência ou gestão do cuidado ao parto e nascimento, de acordo com os critérios estabelecidos pelas Ferramentas SUPPORT (Supporting Policy Relevant Reviews and Trials) para Políticas Informadas por Evidências, que incluem a organização de diálogos deliberativos (LAVIS et al., 2009LAVIS, J. N. et al. SUPPORT Tools for evidence-informed health Policymaking (STP) 14: Organising and using policy dialogues to support evidence-informed policymaking. Health Research Policy and Systems, v. 7, n. S1, p. S14, 16 dez. 2009.). A escolha dos participantes se deu a partir do mapeamento de interessados no problema e/ou no seu enfrentamento, incluindo de forma equilibrada quatro grupos: tomadores de decisão e seus apoiadores, profissionais de saúde, membros da sociedade civil organizada e pesquisadores da temática abordada. É importante salientar que buscou-se alcançar a “justa representação” dos stakeholders. Assim, pode-se considerar que se trata de uma amostra de conveniência, composta por atores/informantes-chave com alto conhecimento, interesse e envolvimento com a problemática abordada no diálogo deliberativo. Dos 12 atores estratégicos, 10 eram mulheres e dois homens; seis eram enfermeiros, quatro médicos (3 obstetras e 1 pediatra), um odontólogo e um jornalista.
O diálogo foi realizado em outubro de 2019, em Brasília, em reunião cujo objetivo foi deliberar sobre estratégias de implementação das Diretrizes do Parto Normal no Brasil, tendo como subsídio uma síntese de evidências globais (BARRETO et al., 2020BARRETO, J. O. M. et al. Barreiras e estratégias para implementação de Diretrizes Nacionais do Parto Normal no Brasil. Revista Panamericana de Salud Pública, v. 44, p. 1-10, 14 dez. 2020. Pan American Health Organization. http://dx.doi.org/10.26633/rpsp.2020.120.
http://dx.doi.org/10.26633/rpsp.2020.120... ), produzida para informar o diálogo.
A coleta de dados foi realizada aplicando um teste de associação de palavras (BARDIN, 2016BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo, Edições 70, 2016.), amplamente utilizado para este tipo de análises das representações sociais (WACHELKE; CONTARELLO, 2012WACHELKE, J.; CONTARELLO, A. Italian students’ social representation on aging: an exploratory study of a representational system. Psicologia: Reflexão e Crítica, v. 24, n. 3, p. 551-560, 2012.; SHIMIZU et al., 2015SHIMIZU, H. E. et al. A estrutura das representações sociais sobre saúde e doença entre membros de movimentos sociais. Ciência & Saúde Coletiva, v. 20, n. 9, p. 2899-2910, 2015.), que serve para fazer surgir espontaneamente associações relativas às palavras vinculadas ao estereótipo que cada indivíduo cria. Logo, foram apresentadas sete palavras, uma por vez, individualmente. A cada apresentação da palavra indutora, solicitou-se ao indivíduo associar livre e espontaneamente outras três palavras - palavras induzidas. As palavras foram dispostas de maneira que uma palavra com potencial de sugestionar outra não estivessem próximas.
As palavras foram selecionadas a partir da análise das contribuições da sociedade na Consulta Pública das Diretrizes Nacionais de Assistência ao Parto Normal, que ocorreu no período de 12 de janeiro de 2016 a 29 de fevereiro de 2016, e estão disponíveis no sitio eletrônico da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias do SUS - CONITEC (2016). Uma análise textual sobre as contribuições foi realizada utilizando o software IRaMuTeQ (Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires) (CARVALHO et al., 2019CARVALHO V. K. S, et al. Relatório de análise das potenciais barreiras e facilitadores à implementação das diretrizes, do ponto de vista dos participantes da consulta pública CONITEC. Brasília: [s.n.], 2019.). As contribuições foram incluídas e organizadas em um único corpus, que foi submetido a análise lexical clássica (ANDRADE, 2016ANDRADE, E. D. O. Lexical analysis of the code of medical ethics of the Federal Council of Medicine. Revista da Associacao Medica Brasileira, v. 62, n. 2, p. 123-130, 2016.; REINERT, 1990REINERT, M. Alceste, une méthodologie d’analyse des données textuelles et une application: Aurelia de Gerard de Nerval. Bulletin de Methodologie Sociologique, v. 26, p. 24-54, 1990.) e a análise de classificação hierárquica descendente (CHD) (CAMARGO; JUSTO, 2013CAMARGO, B. V.; JUSTO, A. M. IRAMUTEQ: um software gratuito para análise de dados textuais. Temas em Psicologia, v. 21, n. 2, p. 513-518, 2013.; REINERT, 1990). O conteúdo analisado foi categorizado pelo software em classes de palavras, que representam temas de abordagem pelos contribuintes. Foram selecionadas as palavras mais frequentes em cada classe que expressavam significado para a compreensão do tema. A análise do resultado do teste de associação de palavras foi realizada com o auxílio dos softwares OpenEVOC (SANT’ANNA, 2012SANT’ANNA, H. C., "openEvoc: um programa de apoio à pesquisa em Representações Sociais". In: AVELAR, L. et al. (Org.). Psicologia Social: desafios contemporâneos. Vitória: GM Gráfica e Editora, 2012.) e IRaMuTeQ. Por meio do OpenEVOC, realizou-se uma análise na abordagem estrutural das Representações Sociais. Essa abordagem baseou-se na Teoria do Núcleo Central (ABRIC, 2004______. Prácticas sociales y representaciones. Coyoacán, México DF: Ediciones Coyoacan S.A. de C.V., 2004.).
Para Abric (2004______. Prácticas sociales y representaciones. Coyoacán, México DF: Ediciones Coyoacan S.A. de C.V., 2004.), toda representação é organizada em torno de um núcleo central, elemento fundamental, que determina o significado e a organização da representação. Em torno do núcleo central estão os elementos periféricos, que possuem uma natureza hierárquica: quando próximos ao núcleo, desempenham um papel na definição de significado da representação; mais distantes do núcleo, atuam para esclarecer ou justificar o seu significado. Por meio do IRaMuTeQ foi feita a análise de matrizes, com análises de frequência e prototípica (WACHELKE; WOLTER, 2011WACHELKE, J.; WOLTER, R. Critérios de construção e relato da análise prototípica para representações sociais. Psicologia: Teoria e Pesquisa, v. 27, n. 4, p. 521-526, 2011.), que proporciona a criação de um diagrama para o estudo da centralidade das palavras evocadas, auxiliando na identificação da estrutura da representação.
Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Fiocruz Brasília (parecer no. 3.119.080, CAAE 01857418.1.0000.8027) em março de 2019. Os sujeitos de pesquisa foram informados sobre a pesquisa, assinaram e receberam uma cópia do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Resultados e Discussão
Análise lexical e análise de classificação hierárquica descendente da Consulta Pública das Diretrizes
A consulta pública contou com 386 contribuições da sociedade (pessoa física); destas, 82 foram excluídas da análise, pois contavam apenas com “sim” ou “não” como texto da sua contribuição. O corpus geral foi constituído por 296 textos, separados em 971 segmentos de texto, onde 879 foram aproveitados, correspondendo a 90,53% do total.
O conteúdo analisado foi categorizado pelo software em cinco classes de palavras: classe 1, com 262 segmentos de texto (29,81%); classe 2, com 253 (28,78%); classe 3, com 124 (14,11 %); classe 4, com 172 (19,57%); e classe 5, com 68 (7,74%). Foram observadas as palavras mais frequentes em todas as classes e selecionadas aquelas que tinham significado no contexto do estudo. Logo, foram selecionadas as seguintes palavras: 1) Parto; 2) Enfermeira obstétrica; 3) Nascimento; 4) Médico obstetra; 5) Mãe; 6) Complicação; 7) Mulher.
Análise de frequências e evocação
Ao analisar as figuras de 1 a 7, das análises prototípicas, pode-se observar que as palavras situadas abaixo da linha central e evocadas com maior frequência em baixa ordem de evocação, ou seja, que foram prontamente evocadas (representadas em azul), indicam ser os elementos do núcleo central. As palavras em vermelho, situadas no quadrante acima da linha central, são denominadas de primeira periferia, foram evocadas com maior frequência, mas como evocação de maior ordem, ou seja, que não foram prontamente evocadas. A zona de contraste, situada abaixo da linha central e ao centro (em preto), são palavras que foram evocadas prontamente (primeira ou segunda evocação), no entanto, com menos frequência, são denominadas de elementos de contraste. Por fim, as palavras em verde, situadas acima da linha central, são denominadas de segunda periferia, são àquelas com menor frequência e em maior ordem de evocação.
Parto
As palavras mais frequentes como primeira evocação foram “nascimento” (5,56%) e “alegria” (5,56%). Como segunda evocação as palavras mais frequentes foram “mulher” (8,33%), “vida” (5,56%), “realização” (5,56%) e “amor” (5,56%). Como terceira evocação a frequência entre as palavras foi semelhante (2,78%), surgindo palavras como “protagonismo”, “satisfação”, “ansiedade”, “família”, “doação”, “integração”, “lindo”, “empoderamento” e “liberdade”. Palavras como “dor” e “sofrimento” também aparecem respectivamente como primeira e segunda evocação (figura 1).
As palavras evocadas para “Parto” que indicam pertencer ao núcleo central são “nascimento”, “alegria”, “vida”, “mulher” e “realização”. Em sequência, a palavra “amor”, localizada na primeira periferia. Ao analisar as outras palavras evocadas primeiramente, observa-se que algumas mantêm coerência com a conotação das palavras supracitadas. Como palavras dos elementos periféricos distais, que justificariam os elementos do núcleo central, aparecem palavras que trazem a ideia de centralidade da mulher no parto como “protagonismo”, “empoderamento”, “liberdade”, “satisfação” e “integração”.
Essas representações estão em consonância com as políticas brasileiras elaboradas ao longo das últimas décadas, que envolvem a saúde da mulher, a humanização e a mudança do modelo de atenção ao parto e nascimento (BRASIL, 2003; 2004; 2011), o que pode estar refletindo a trajetória de alguns dos participantes do diálogo deliberativo, os quais estiveram envolvidos diretamente na construção e implementação dessas políticas.
As palavras do núcleo central, tanto “realização” quanto “mulher”, evocam concepções patriarcais onde a mulher para cumprir com o seu destino (se realizar) precisa passar por isto. As palavras “amor” e “alegria” baseiam-se na representação social da romantização da maternidade (BERNARDES et al., 2020BERNARDES, R.; LOURES, A.; ANDRADE, B. S. A romantização da maternidade e a culpabilização da mulher. Revista Mosaico, v. 10, n. 2, sup, p. 68-75, 2020.). Observam-se nas representações sobre o parto, concepções de gênero típicas da sociedade brasileira (AGUIAR, 2007AGUIAR, M. A construção das hierarquias sociais: classe, raça, gênero e etnicidade. Cadernos de Pesquisa, v. 29, n. 1, p. 83-88, 2007.). No entanto, em contraste com esses elementos, observam-se aqueles relacionados às dores do parto, como “dor”, “sofrimento”, “choro”, “incerteza”. Segundo Spink (2013SPINK, M. J. P. Psicologia social e saúde: Práticas, saberes e sentidos. 9a. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.), o medo da dor e do desconhecido são determinantes socioculturais que influenciam a representação social da mulher sobre o parto. No estudo “Nascer no Brasil” (DOMINGUES et al., 2014DOMINGUES, R. M. et al. Processo de decisão pelo tipo de parto no Brasil: da preferência inicial das mulheres à via de parto final. Cadernos de Saúde Pública, v. 30, n. supl 1, p. S101-S116, ago. 2014.), o medo da dor do parto foi relatado como o principal motivo para a escolha da cesariana (46,6%).
Enfermeira obstétrica
Como primeira evocação, a distribuição das frequências das palavras foi semelhante (2,78%); no entanto, ao analisar o conteúdo das palavras, observa-se que mais frequentemente estão associadas ao “cuidado”, surgindo palavras como “cuidadora”, “ajuda”, “carinho”, “amiga”, “acolhimento”, “centro do cuidado”. Como segunda evocação, a palavra mais frequente foi “cuidado” (5,56%). E como terceira evocação, a frequência entre as palavras foi semelhante (2,78%), surgindo palavras como “empoderamento”, “presente”, “consideração”, “solução”, “parceira”, “ciência”, “responsável”, “empatia”, “realidade” e “conforto” (figura 2).
Para “Enfermeira Obstétrica”, observou-se um fenômeno particular, pois todas as palavras evocadas possuíam conotação positiva e estavam relacionadas ao cuidado, independentemente da ordem de evocação. Dos 12 entrevistados, seis eram enfermeiros; no entanto, observou-se o mesmo padrão de resposta entre os médicos e outros profissionais.
Em estudo que analisou relatos de parto vaginal de mulheres após terem vivenciado cesáreas (CARVALHO, 2015CARVALHO, L. Eu não quero outra cesárea: ideologia, relações de poder e empoderamento feminino. São Paulo: Lexema, 2015.), a “enfermeira obstétrica” é relatada como: ativista da humanização, que fornece informações novas, apoia, conversa e que forma vínculo. Observa-se também nesses relatos que há diferenças na construção da identidade de “enfermeira obstétrica” e de “enfermeira”. A representação da “enfermeira obstétrica” é marcada pela afetividade, cumplicidade, incentivo e orientação durante o parto, que se aproxima das representações dos participantes aqui analisadas. No caso de “enfermeira”, surgem representações vinculadas à violência, às práticas não baseadas em evidências e preconceitos.
Nascimento
Para essa palavra, um dos entrevistados não respondeu à segunda e terceira evocação. Como primeira evocação “vida” (11,11%) e “luz” (8,33%) são as palavras mais frequentes. “Alegria” (16,67%) foi a palavra induzida mais frequente como segunda evocação, e apareceu nas três ordens de evocação. Como terceira evocação surgiram na mesma frequência (2,78%) as palavras “impotência”, “desejo”, “sensibilidade”, “cuidado”, “tudo”, “novo ser”, “renovação” e “peito” (figura 3).
As palavras nucleares para “Nascimento” foram “vida” e “luz”. Em sequência, “alegria”. Observa-se que as palavras prontamente evocadas possuem correlação com essas palavras e os elementos distais também reforçam a ideia de começo. Entretanto, observou-se uma exceção a essa tendência: a palavra “medo” como evocação de primeira ordem e “impotência”, como elemento de segunda periferia, ambas emitidas pela mesma pessoa. Neste sentido, observa-se que entre as representações hegemônicas ligadas ao momento romântico do nascimento, atrelam-se significados que dão conta da sensação de fragilidade. Conforme expressa a teoria de Abric ( 1993ABRIC, J.-C. Central System, Peripheral System: Their functions and roles in the dynamics of social representations. Papers on social representations, v. 2, n. 2, p. 75-78, 1993.), a primeira periferia abre mais um ponto de vista, às vezes contraditório, para essa representação hegemônica, porém não entra em contradição nos discursos dos entrevistados.
As representações sociais têm como uma das funções elaborar uma identidade social e pessoal, compatível com os sistemas de normas e valores socialmente e historicamente determinados (ABRIC, 2004______. Prácticas sociales y representaciones. Coyoacán, México DF: Ediciones Coyoacan S.A. de C.V., 2004.). O nascimento é como senso comum um momento desejado e festejado em nossa sociedade. As palavras que destoaram dessa representação podem sinalizar uma forte representação de experiência pessoal. Acrescenta-se a essa discussão que somente para a palavra “nascimento” ocorreu a negativa de um dos entrevistados em responder a segunda e terceira evocação, tendo sido “começo de tudo” a sua primeira evocação. Abric ( 2004______. Prácticas sociales y representaciones. Coyoacán, México DF: Ediciones Coyoacan S.A. de C.V., 2004.) diz que o sistema periférico permite uma diferenciação com base no que foi vivido, o que pode ter impedido o indivíduo de expor a sua vivência, como fator protetor da sua psique.
Médico obstetra
A palavra mais frequente como primeira evocação é “desafio” (5,56%), mas palavras com conotação semelhantes, como “grande desafio da enfermeira”, “barreira”, “difícil acesso”, “pesado” também surgem como primeira evocação. Observa-se também a palavra “violência” como primeira evocação. Como segunda evocação, a distribuição das palavras é a mesma (2,78%) de cada palavra, mas observam-se dois grupos bem demarcados: um com palavras de conotação negativa, como “crenças limitantes”, “distante”, “obstrutor”, “intransigência”, “dor” e “intolerância”. E outro grupo de palavras com conotação positiva, como “parceiro”, que aparece na primeira e segunda evocação, “confiança”, “aprendizado”, “presente no momento do nascimento”, “cooperação e resolutividade”. Observa-se o mesmo comportamento na terceira evocação: as palavras com conotação positiva, como “determinante”, “potência”, “amigo”, “gestão”, “cuidador”, “integração” e as de conotação negativa “pouca assistência”, “imutabilidade”, “medroso”, “desigualdade”, “complicação” e “dificuldade” (figura 4).
“Médico obstetra” foi a única expressão na qual, como elementos nucleares, surgiram duas evocações com conotações opostas, “desafio” e “parceria”, ocorrendo o mesmo fenômeno nos elementos distais. Ressalta-se aqui que entre os médicos entrevistados as palavras “desafio”, “pesado” e “barreira” surgiram como primeira evocação. Ao analisarmos os elementos distais observam-se dois fenômenos, o da justificação e o da contradição. Justificação observada em elementos evocados sequencialmente pelos mesmos indivíduos, que mantêm coerência com o elemento central como: “parceiro”, “cooperação” e “integração”; “pesado”, “obstrutor” e “medroso”; “violência”, “dor” e “dificuldade”. E contradição observada em elementos evocados sequencialmente pelos mesmos indivíduos, como: “grande desafio” e “parceiro”; “necessário” e “distante”; “ciência” e “intransigência”; “barreira” e “resolutividade”. Abric ( 2004______. Prácticas sociales y representaciones. Coyoacán, México DF: Ediciones Coyoacan S.A. de C.V., 2004.) diz que é no sistema periférico que as contradições podem aparecer e ser sustentadas.
No estudo que analisou relatos de parto de mulheres (CARVALHO, 2015CARVALHO, L. Eu não quero outra cesárea: ideologia, relações de poder e empoderamento feminino. São Paulo: Lexema, 2015.), os médicos obstetras também são representados com dualidade, surgem nesses relatos o “médico terrorista”, que usa o discurso do medo para justificar intervenções e a cesárea, identificados por um discurso desencorajador da capacidade da mulher de parir (corpo feminino como imperfeito); na contramão desse discurso, surge o “médico humanizado”, que estabelece uma relação horizontal com as mulheres, que escuta, é confiável e estabelece vínculos. Há outros estudos em que se expressam os problemas de humanização da classe médica no Brasil e como os usuários percebem quando o modelo médico é humanizado ou não. (COMES et al., 2017COMES, Y. et al. Humanismo en la práctica de médicos cooperantes cubanos en Brasil: narrativas de equipos de atención básica. Revista Panamericana de Salud Pública, n. 2, p. 1-7, 2017.; 2020).
Essas representações dos médicos obstetras relacionam-se aos paradigmas de cuidado em saúde que influenciam a atenção ao parto, descritos por Davis-Floyd (2001). Por analogia, poder-se-ia dizer que o obstetra “obstrutor” estaria identificado ao modelo tecnocrático, que se caracteriza pela objetificação do paciente e pela supervalorização da ciência e das tecnologias e, em algumas situações, faz uso indiscriminado de intervenções desnecessariamente (RATTNER, 2009RATTNER, D. Humanização na atenção a nascimentos e partos: ponderações sobre políticas públicas. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, v. 13, n. supl 1, p. 759-768, 2009.). Em contrapartida, o obstetra “parceiro” estaria identificado ao modelo humanístico, que privilegia o bem-estar da parturiente e de seu bebê, e o uso racional de tecnologias, buscando ser o menos invasivo possível.
Mãe
“Amor” foi a palavra mais frequente (11,11%), aparecendo nas três ordens de evocação, com maior frequência na segunda evocação. A palavra “amor incondicional” também aparece e pode ser compreendida com a mesma conotação de amor. Como primeira evocação, a palavra “responsabilidade” surge com maior frequência (5,56%). Com conotação semelhante, as palavras “intrínseco da mulher” e “condição” também surgem na primeira evocação. Como terceira evocação surgiram na mesma frequência (2,78%) as palavras “renúncia”, “amiga”, “ansiosa”, “não deveria ser limitador”, “preocupação”, “cuidado”, “saudade”, “entrega”, “amamentação” e “afeto” (figura 5).
Para “Mãe”, os elementos do núcleo central são “amor” e “responsabilidade”, mas ressaltam-se também como primeira evocação as palavras que relacionam a maternidade a uma condição da mulher, que trazem à discussão a maternidade como construção histórica e social. Segundo Badinter (1985BADINTER, E. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.), o amor materno não é um sentimento inerente à condição de mulher; ele é produto da evolução social a partir do século XIX. Isso se comprova pelos registros históricos, em que se constata que nos séculos XVII e XVIII o conceito de amor materno era muito diferente do que o construído a partir do século XIX, que tem como um dos marcos sociais a mudança da concepção da infância, quando a criança passa a ocupar espaço central na família, nascendo então a família fundada no amor materno.
Como elementos distais, observam-se palavras que justificam os elementos do núcleo central, para responsabilidade: “renúncia”, “entrega”, “não deveria ser limitador”, “preocupação” e “ansiosa”; para amor: “amiga”, “cuidado”, “saudade” e “afeto”. Observa-se novamente que as palavras evocadas contêm um forte conteúdo de gênero e disciplinamento, ao supor que a mãe é a responsável individual de criar filhos conforme um modelo estabelecido, tanto na base da responsabilidade individual quanto da negação das condições contextuais da vida das mulheres que enfrentam essa situação (MEYER, 2004MEYER, D. Teorias e políticas de gênero : fragmentos históricos e desafios atuais. Revista Brasileira de Enfermagem - REBEN, v. 57, n. 1, p. 13-18, 2004.).
Complicação
A palavra “morte” (5,56%) é a mais frequente na primeira evocação. Como segunda evocação, “hemorragia” (8,33%) e “medo” (5,56%) são as mais frequentes. Como terceira evocação, surgiram na mesma frequência (2,78%) as palavras “falta de informação”, “evitável”, “possibilidade”, “mentira”, “equipe”, “relações interpessoais”, “risco”, “tristeza”, “ter feeling para perceber” e “Deus” (figura 6).
A evocação da palavra “Complicação” remete a “morte” e “hemorragia” como elementos do núcleo central, seguido de “medo” como elemento de primeira periferia. Importante retornar ao contexto em que a palavra “complicação” surgiu: durante a consulta pública das Diretrizes Nacionais de Assistência ao Parto Normal, essa palavra foi uma das mais frequentes, inclusive da classe de palavras - 1 - com maior percentual de segmentos de texto (29,81%). Essa palavra surgiu num contexto de alertar para o risco de se implementar as Diretrizes de Assistência ao Parto Normal - risco que pode estar associado à ideia de gravidez como doença, que emerge no século XIX, junto com a ideia da medicalização do corpo feminino e de institucionalização do parto (VIEIRA, 2002VIEIRA, E. M. A medicalização do corpo feminino. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2002.). Os elementos distais evocados reforçam essa perspectiva, ao surgirem palavras como “falta de compromisso”, “iatrogenia”, “falta de informação” e “mentira”.
Mulher
A palavra com maior frequência na primeira evocação foi “força” (11,11%), seguida de “guerreira” (5,56%). As outras palavras, em sua maioria, estão relacionadas à força, como “valente”, “protagonista”, “dona de si”, “ser único”, “focada” e “terra”. No entanto, em sentido oposto à força surge a palavra “frágil”, também como primeira evocação. A distribuição da frequência de cada palavra na segunda e terceira evocação aparece de forma semelhante (2,78%), mas pode-se observar a mesma tendência da primeira evocação, um grupo de palavras associados à força como “atitude”, “forte”, “empoderamento”, “luta”, “multicapacidades”, “imensidão”, “ser múltiplo”, “insubstituível” e “estabilidade”, e um outro grupo relacionado à fragilidade e vulnerabilidade como “solitária”, “preocupação”, “culturalmente exposta”, “não reconhecida pela sociedade”, “violência” e “cobrança” (figura 7).
Como elementos nucleares de “Mulher”, foram evocadas com maior frequência palavras relacionadas a força, assim como nos elementos distais. No entanto, observa-se uma dualidade, tanto nos elementos nucleares quanto nos distais, pois estão dispostos nos mesmos quadrantes palavras com conotação de fragilidade e vulnerabilidade. Essa dualidade pode estar expressando estereótipos sociais sobre as mulheres. Estudos sobre representações sociais sobre o conceito de mulher expressam significados semelhantes. Um deles interpreta que são guerreiras pela condição de enfrentamento cotidiano às normas do patriarcado (COMES et al., 2020______. Saúde e empoderamento das mulheres: estudo de caso do Programa Mais Médicos em municípios com presença de médicos cubanos. Revista Panamericana de Salud Pública, p. 1-7, 2020.).
Fiske (2012FISKE, S. T. Managing Ambivalent Prejudices. The Annals of the American Academy of Political and Social Science, v. 639, n. 1, p. 33-48, 15 jan. 2012.), nos estudos sobre os estereótipos de gêneros, afirma que esses tipos de estereótipos são prescritivos, ou seja, dizem o que o grupo deve fazer. Além disso, o sexismo pode ser ambivalente, podendo aparecer de forma hostil ou benevolente. Na forma hostil, está representado por mulheres que podem ameaçar a dominância masculina, que competem pelos papéis tradicionalmente associados aos homens, as “mulheres não tradicionais”, intelectualmente competentes e fortes. Na forma benevolente, está representado por mulheres que aderem aos seus papéis tradicionais, que são estereotipadas como boas, mas incapazes e frágeis.
Por fim, pode-se afirmar que foram identificadas como potenciais barreiras à implementação as representações sobre parto associado à dor, o médico obstetra como obstrutor e os estereótipos que marcam o papel da mulher e da mãe na sociedade. Adicionalmente, como facilitadores observaram-se as representações da enfermeira obstétrica como cuidado, a mulher como forte e protagonista e o médico obstetra como parceiro.
Ao resgatar as funções que, segundo Abric (2004______. Prácticas sociales y representaciones. Coyoacán, México DF: Ediciones Coyoacan S.A. de C.V., 2004.), as representações sociais desempenham nas práticas e na dinâmica das relações sociais, pode-se inferir que para alguns desses profissionais de saúde a dor e as complicações do parto, como risco, exercem funções que orientam e justificam as suas ações. Observa-se que ambas se apresentam como uma forte representação social, calcada em uma ideia compartilhada convencionalmente por um grupo de pessoas e transmitida culturalmente. Por sua força, podem se apresentar como uma realidade inquestionável e resistente à mudança (MOSCOVICI, 2015MOSCOVICI, S. Representações sociais: Investigações em psicologia social. Petrópolis: Editora Vozes, 2015.).
Uma das funções das representações sociais é a identitária, que segundo Abric (2004______. Prácticas sociales y representaciones. Coyoacán, México DF: Ediciones Coyoacan S.A. de C.V., 2004.), define a identidade e situa o indivíduo e os grupos no campo social. Para essas representações, há uma supervalorização do grupo ao qual se pertence e o exercício de controle social do grupo sobre os seus membros (ABRIC, 2004______. Prácticas sociales y representaciones. Coyoacán, México DF: Ediciones Coyoacan S.A. de C.V., 2004.). Essa função parece ser a observada nas representações sobre médico obstetra e enfermeira obstetra, a representação das identidades profissionais, ou seja, a forma como esse profissional se reconhece e como reproduz atitudes e comportamentos, que são reforçados pelos seus pares. Com contradições na figura do médico obstetra, o que parece sugerir a existência de grupos com sentido de identidade e valores diferentes entre eles. Nesse sentido, ressalta-se que os ambientes acadêmicos e laborais podem exercer papel importante na construção dessa identidade.
Para as representações de mãe e mulher, pode-se discutir o sistema de antecipações e expectativas (ABRIC, 2004______. Prácticas sociales y representaciones. Coyoacán, México DF: Ediciones Coyoacan S.A. de C.V., 2004.) produzidos pelas representações que assumem uma ação sobre a realidade, precedendo-a e determinando-a. Os estereótipos que marcam o papel da mulher e da mãe precedem a realidade, impondo às mulheres condições e lugar na sociedade.
Considerações finais
Este artigo buscou identificar as barreiras para a implementação das Diretrizes Nacionais de Assistência ao Parto Normal, analisando as contribuições da consulta pública para identificar termos que poderiam induzir, por associação de palavras, as representações sociais de atores estratégicos para a implementação dessas Diretrizes. Ao analisar as representações sociais desses profissionais, observa-se que estão impregnadas de conceitos e estereótipos sociais que em alguma medida podem reforçar comportamentos que se apresentem como barreiras para a implementação de políticas de incentivo ao parto normal. No entanto, observam-se também elementos que se mostram como facilitadores para a construção de caminhos possíveis para o enfrentamento dessas barreiras.
Como barreiras, observam-se as crenças relacionadas ao parto e ao medo da dor, e ao parto como um fator de risco, que reforçam o paradigma do parto como doença e a compreensão da dor como um evento indesejado, e não como um fator fisiológico que pode ser manejado, atuando como representações justificadoras de intervenções desnecessárias no corpo feminino.
Outras representações limitantes, que atuam no sentido de orientar as práticas, são as construções de gênero que este grupo de profissionais reproduz nas suas representações; o olhar sobre a mulher como frágil, que a coloca no papel de coadjuvante do seu próprio parto, e o de mãe como condição da mulher, que a limita a esse papel e impede os profissionais envolvidos no cuidado do parto e nascimento de enxergarem essa mulher como um indivíduo com vontades e autonomia. Por outro lado, essa mulher também é vista como forte e protagonista (na condição de mãe), o que são elementos potencializadores de mudança desses paradigmas estabelecidos.
O médico obstetra como obstrutor entra em contradição com o parceiro, ambos parecem expressar funções identitárias das representações, expressando um comportamento observado nas relações de trabalho e no ambiente de assistência ao parto. Por analogia, poder-se-ia dizer que o obstrutor estaria identificado ao modelo tecnocrático e o parceiro ao modelo humanístico. Neste lugar também estaria a enfermeira obstétrica, representando o cuidado e se apresentando como um potencial canal facilitador para a implementação dessas diretrizes.
Compreender essas representações é importante para evidenciar as convenções que subjazem nas atitudes e práticas de profissionais e usuárias, possibilitando a definição de estratégias específicas para cada grupo, de forma a contribuir para a mudança do paradigma de assistência na direção proposta pela política pública e expressa na diretriz.11 A. T. Vidal concebeu o projeto de pesquisa, realizou análise dos dados, redação, revisão e aprovação da versão final do artigo. Y. Comes participou do desenho do estudo e referencial teórico, redação, revisão e aprovação da versão final. J. O. Barreto orientou a análise dos dados e participou da redação, revisão e aprovação da versão final. D. Rattner concebeu e coordenou o projeto de pesquisa, orientou a análise de dados e participou da redação, revisão e aprovação da versão final.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
12 Abr 2021 - Data do Fascículo
2021
Histórico
- Recebido
31 Ago 2020 - Aceito
07 Dez 2020 - Revisado
23 Jan 2021