Políticas do corpo: associações de pacientes e reconfigurações da cidadania

Body policies: patient associations and citizenship reconfigurations

Bruno Lucas Saliba de Paula Igor José Alves Santana Sobre os autores

Resumo

O objetivo deste artigo é analisar como sujeitos doentes engendram tipos específicos de engajamento coletivo e participação política. Para tanto, acionamos o conceito de “biossociabilidade” a fim de compreender o associativismo de indivíduos que compartilham condições corporais e biológicas semelhantes. Além disso, discutimos como a atuação de associações de pacientes reverbera nas esferas política, econômica e científica. Nossos resultados sugerem que o ativismo dos grupos biossociais, de um lado, reforça os aspectos civis, políticos e sociais constitutivos da cidadania convencional e, de outro, aponta para o surgimento de uma dimensão biológica no exercício da cidadania. Dessa forma, o trabalho contribui para repensar as noções consolidadas em torno da doença, da participação política e da cidadania.

Palavras-chave:
biossociabilidade; cidadania biológica; associações de pacientes

Abstract

This article analyzes how sick people produce specific types of collective engagement and political participation. Through the concept of "biosociality" we discuss the engagement of individuals who share similar bodily and biological conditions. In addition, we debate how patient groups influence the political, economic, and scientific spheres. Our results show that, on the one hand, biosocial groups reinforce civil, political and social dimensions of traditional citizenship; on the other, those groups add a biological aspect to the exercise of citizenship. Thus, this article contributes to rethink the conventional concepts of illness, public participation and citizenship.

Keywords:
biosociality; biological citizenship; patient groups

Introdução

Sujeitos doentes, corpos e comportamentos tidos como “anormais” e “desviantes” experimentam, pelo menos desde o final do século XIX até os dias que correm, uma condição ambivalente: ao mesmo tempo em que se encontram em uma condição de profunda precariedade, nos termos de Judith Butler (2017BUTLER, J. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.), também recebem toda sorte de tutela por parte de estratégias biopolíticas que produzem e administram incessantemente a vida. É possível identificar nessas experiências a tensão equilibrada entre biopolítica (FOUCAULT, 2015______. Microfísica do poder. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015., 2008a) e tanatopolítica11 A esse respeito, as políticas de eugenia, levadas a cabo sobretudo na primeira metade do século XX, são exemplos emblemáticos. Isso porque, ao perseguir o “melhoramento biológico humano” por meio tanto da disciplinarização dos corpos individuais e da administração de fluxos populacionais, ao mesmo tempo em que, de um lado, eram estimuladas a existência e reprodução de “tipos biológicos superiores”, de outro, eram segregados, esterilizados compulsoriamente ou exterminados sujeitos e corpos considerados “inferiores” e “indesejados”: miseráveis, homossexuais, loucos, portadores de deficiências, entre outros (ROSE, 2007, cap. 2). Portanto, trata-se de, simultaneamente, “fazer viver” e “fazer morrer”, pois para a racionalidade eugenista, cuidar da vida requer produzir a morte, aproximando a biopolítica da tanatopolítica (AGAMBEN, 2002). (AGAMBEN, 2002AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.).

Seja atrelada à anormalidade e ao perigo, em torno dos quais emergem uma série de discursos, práticas e exames médicos e jurídicos (FOUCAULT, 2001______. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 40-43), seja associada ao estigma, que acarreta especificidades na construção da identidade social de sujeitos estigmatizados frente àqueles considerados normais (GOFFMAN, 1988GOFFMAN, E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4. ed. Rio de Janeiro: LTC - Livros Técnicos e Científicos, 1988.), a experiência da doença tem sido atravessada por múltiplas dimensões. De modo geral, no entanto, comumente portadores de enfermidades são vistos como incapazes e passivos. De fato, privados de reconhecimento22 Em alguns casos, poderíamos constatar que possuidores de certas enfermidades experimentam as três formas de desrespeito identificadas por Axel Honneth (2017): a perda de autonomia sobre o próprio corpo, a impossibilidade de acessar direitos que garantam a igualdade frente a outras pessoas e a falta de estima ou valor social. e submetidos à dor decorrente de condições corporais particulares, sujeitos doentes teriam sua capacidade de ação e mobilização social reduzida. Diante desses variados aspectos das experiências de doenças, pretendemos discutir como, na contemporaneidade, a partir do desenvolvimento de inúmeros dispositivos tecno-científicos, o saber-poder da expertise médica relaciona-se a novos modos de subjetivação e de ativismo político, baseados no que tem sido conceituado tanto como individualidade somática (ROSE, 2011ROSE, N. Biopolítica molecular, ética somática e o espírito do biocapital. In: SANTOS, L. H. S. dos; RIBEIRO, P. R. C. (Orgs.). Corpo, gênero e sexualidade: instâncias e práticas de produção nas políticas da própria vida. Rio Grande: FURG, 2011.) quanto como biossociabilidade (RABINOW, 1991RABINOW, P. Artificialidade e ilustração: da sociobiologia à bio-sociabilidade. Novos Estudos CEBRAP, n. 31, 1991, p. 79-94.; NOVAS; ROSE, 2000NOVAS, C.; ROSE, N. Genetic risk and the birth of the somatic individual. Economy and society, v. 29, n. 4, p. 485-513, november 2000.; ROSE, 2007). Em outras palavras, interessa-nos investigar como, e em que medida, pacientes portadores de doenças logram engendrar modos específicos de participação política ou mesmo de exercício da cidadania.

A noção de “biossociabilidade” refere-se à articulação de atores com condições biológicas comuns que coletivamente agem a partir de e sobre determinadas redes sociotécnicas. Nas palavras de Nikolas Rose (2007ROSE, N. Politics of life itself: biomedicine, power, and subjectivity in the twenty-first century. Princeton: Princeton University Press, 2007. p. 131-155., p. 134 - tradução nossa), o conceito poderia ser definido como “[...] essas formas de coletivização organizada acerca da semelhança em compartilhar um status somático ou genético [...]”. Em alguma medida, o associativismo decorrente de grupos biossociais atinge diretamente a esfera política, por exemplo, nas reivindicações de legislações que favoreçam terapias, práticas médicas e científicas voltadas a determinadas doenças. Reverbera também sobre a economia, por exemplo, através de negociações com a indústria farmacêutica que reivindicam a obtenção e desenvolvimento de novos medicamentos e tratamentos. É manifesto, assim, o caráter multifacetado dessa sociabilidade com fortes conotações biológicas e que é exercida através “[...] de uma longa história, e um ativismo médico daqueles que rejeitam o mero status de ‘pacientes’ [...]” (ROSE, 2007ROSE, N. Politics of life itself: biomedicine, power, and subjectivity in the twenty-first century. Princeton: Princeton University Press, 2007. p. 131-155., p. 134 - tradução nossa).

Diante dessas formas não-tradicionais de subjetivação e interação social, em que a corporalidade e as condições biológicas individuais passam a ser um fator chave não só no âmbito da saúde, mas também da economia, do mercado, do Estado e da sociedade em geral, perguntamo-nos: seriam elas de tal forma relevantes a ponto de ampliar concepções convencionais de participação política e cidadania? A partir dessas experiências biossociais, indagamos sobre a possibilidade de pensar a cidadania de forma estendida, para além das três dimensões - civil, política e social - a ela tradicionalmente associadas (MARSHALL, 1967MARSHALL, T. H. Cidadania e classe social. In: ______. Cidadania, Classe Social e Status. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967, p. 57-107.). Ora, se pacientes terminais e portadores de doenças recusam os estereótipos e estigmas que os colocam no lugar de “vítima” e de “impotência” e passam a propor reformulações da prática médica, não estariam eles alargando os modos de exercício da cidadania?

O sujeito é o corpo: individualidade somática e biossociabilidade

A acentuada transformação da medicina, sobretudo na área genética, que vem sendo cada vez mais aprimorada, pode ser associada a transformações significativas nos modos de subjetivação e nas relações sociais da contemporaneidade. A medicina genômica, os projetos científicos de mapeamento do genoma humano, as novas tecnologias de prolongamento da vida, assim como novos medicamentos e tratamentos, todo esse aparato médico-tecnológico carrega implicações para nossas relações sociais, além de tensionar a forma como concebemos o mundo, principalmente no que diz respeito a nossas noções de vida, morte, doenças, e sobre direitos e políticas relacionados a tais concepções. Nesse sentido, podemos perceber inclusive modificações ou atualizações na dinâmica daquilo que Michel Foucault entende por biopolítica, que agora passa a ter uma faceta específica em decorrência da experiência contemporânea altamente marcada pela tecnociência (PELBART, 2000PELBART, P. P. A vertigem por um fio: políticas da subjetividade contemporânea. São Paulo: Iluminuras, 2000.; RABINOW; ROSE, 2006RABINOW, P.; ROSE, N. O conceito de biopoder hoje. Política & Trabalho - Revista de Ciências Sociais, n. 24, p. 27-57, abril de 2006.).

A partir de meados do século XX, as pesquisas científicas das ciências biológicas estavam com as atenções voltadas intensamente para a genética. Com isso, inovações na área da saúde e novas formas da prática da medicina se consolidaram, como é o exemplo da medicina genômica. Na contemporaneidade, tais inovações tornaram a medicina mais preventiva e personalizada, aprimorando assim as condições tanto de planejamento familiar quanto de execução de políticas de saúde pública (PAULA, 2018PAULA, B. L. S. de. Híbridos e Mutantes: estudo comparativo entre aconselhamento genético e eugenia. Montes Claros: Editora Unimontes, 2018., p. 100). Um exemplo desses recursos é a tecnologia do mapeamento genético, que acarretou a criação e o aperfeiçoamento de práticas médicas, tais como a terapia gênica, com

[...] a possibilidade de usar o próprio gene para tratar uma doença ou melhorar alguns de seus sintomas [...] e tem potencial para o tratamento, e mesmo para a cura, de determinadas doenças genéticas ou adquiridas como câncer, AIDS, por meio do uso de genes normais para suplementar ou substituir os genes defeituosos.33 O Projeto Genoma Humano. Disponível em: <http://genoma.ib.usp.br/sites/default/files/projeto-genoma-humano.pdf>. Acesso em: 26 set. 2018.

Da mesma forma, a medicina molecular, com suas inúmeras possibilidades, tem o potencial de produzir medicamentos personalizados ao perfil genético de uma pessoa. A medicina adquire então esse aspecto preventivo, que, ao levar em conta informações genéticas que avaliam o risco de certa doença acometer uma pessoa, toma medidas no sentido de impedir esse cenário. Além de preventiva, ela se tornou preditiva, de forma que é possível traçar um perfil genético e saber de doenças iminentes àquele indivíduo antes mesmo de ele apresentar quaisquer sintomas. Daí decorre a noção de “risco genético”, desenvolvida por Castiel et al. (2006CASTIEL, L. D. et al. Os riscos genômicos e a responsabilidade pessoal em saúde. Rev Panam Salud Publica, v. 19, n. 3, p. 189-197, 2006.). Por serem corporificados, localizados nas informações genéticas de cada indivíduo, os riscos genéticos teriam supostamente um caráter de inexorabilidade ou imutabilidade: os sujeitos não escolhem se submeter a esses riscos. No entanto, com os desenvolvimentos da medicina genômica, aqueles que se submetem a testes genéticos passam a ter não só o poder de se informar sobre seus riscos genéticos, como o dever de amenizá-los (por exemplo, através de mudanças no estilo de vida ou da recorrência a tratamentos específicos). Dessa forma, os riscos genéticos entram no domínio da responsabilidade individual (CASTIEL et al., 2006CASTIEL, L. D. et al. Os riscos genômicos e a responsabilidade pessoal em saúde. Rev Panam Salud Publica, v. 19, n. 3, p. 189-197, 2006.). Surge, portanto, a possibilidade de gerenciar riscos e amenizar potenciais perigos decorrentes de corpos (possivelmente) doentes.44 Nesse cenário em que acontecimentos virtuais passam a interessar tanto quanto os reais, transforma-se aquilo que se entende por “risco”, pois essa noção passa a referir-se menos a uma condição a priori do que àquilo que resulta do cálculo de uma série de elementos de probabilidade e de correlações estatísticas (CASTEL, 1991). Trata-se, também, de um contexto alinhado à racionalidade da governamentalidade, pois, mais do que corrigir e disciplinarizar condutas desviantes, o que está em jogo é a tentativa de gerir campos de probabilidade (FOUCAULT, 2008b).

É possível, então, que a subjetividade daqueles que se submetem a testes genéticos, entre outros recursos biomédicos, esteja associada a sua corporalidade, pois suas identidades “[...] dependem, em alguma medida, de seus traços corpóreos, e [esses indivíduos] julgam, agem e experimentam sobre si próprios com base numa linguagem oriunda da medicina [...]” (PAULA, 2018PAULA, B. L. S. de. Híbridos e Mutantes: estudo comparativo entre aconselhamento genético e eugenia. Montes Claros: Editora Unimontes, 2018., p. 100-101). Essa reconstrução da identidade para além das abstrações da personalidade, dos sentimentos, desejos, que incorpora valores (políticos, sociais, culturais etc.) à corporalidade, e ainda, que possui como cerne da sua continuidade o seu diálogo com as práticas da saúde, é o que Nikolas Rose (2011ROSE, N. Biopolítica molecular, ética somática e o espírito do biocapital. In: SANTOS, L. H. S. dos; RIBEIRO, P. R. C. (Orgs.). Corpo, gênero e sexualidade: instâncias e práticas de produção nas políticas da própria vida. Rio Grande: FURG, 2011.) conceitua como “individualidade somática”.

Na medida em que o sujeito ressignifica o entendimento que tem de si mesmo ao agregar à sua identidade um forte sentido biológico, sua “bioidentidade” (ORTEGA, 2003ORTEGA, F. Práticas de ascese corporal e constituição de bioidentidades. Cadernos de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 11, n.1, p. 59-77, 2003.) será catalisadora, também, de relações sociais, isto é, ele se relacionará com outros indivíduos nas mesmas condições, de modo a fomentar relações junto a pessoas que compartilham de condições genéticas, físicas e biológicas semelhantes. As relações sociotécnicas analisadas a partir do conceito de “biossociabilidade” decorrem precisamente da ação coletiva de indivíduos somáticos, bem como de suas famílias, que articulam uma rede mais abrangente capaz de envolver especialistas como médicos, geneticistas, bioquímicos, além de laboratórios, indústrias farmacêuticas, instituições políticas etc. Indivíduos que consumam sua presença na esfera pública através de suas experiências corporais associadas às suas doenças, que não poderiam distinguir suas condições físico-biológicas das suas atuações políticas, jurídicas, econômicas e sociais. Tal ativismo se estende ainda ao âmbito das instituições de pesquisas, pois contribui para o desenvolvimento do conhecimento científico através do estímulo à participação de voluntários, seja em experimentos e amostragens genéticas, seja para o compartilhamento de informações sobre suas doenças, como acontece no Projeto Genoma.55 About the Human Genome Project. Disponível em: <http://web.ornl.gov/sci/techresources/Human_Genome/project/index.shtml>. Acesso em: 1 out. 2018. Exemplo disso são as associações criadas com o intuito específico de apoiar o tratamento de pessoas com doenças genéticas raras, além de fomentar a promoção de pesquisas sobre tais doenças.

O ativismo dos “grupos de pacientes”

A Cystic Fibrosis Foundation (CF Foundation) demonstra bem o cenário em que a medicina genômica desenha um terreno propício para as articulações biossociais de identidades somáticas. Em 1955, nos EUA, pais angustiados, porém determinados a cuidar da vida dos seus filhos, se associam e formam um grupo que veio a se tornar a CF Foundation.66 Our History. Disponível em: <https://www.cff.org/About-Us/About-the-Cystic-Fibrosis-Foundation/Our-History/>. Acesso em: 1 out. 2017. Na época, muito pouco se sabia sobre a doença,77 A fibrose cística é uma doença genética e progressiva, causada por uma mutação no gene CF que provoca um mau funcionamento na produção e fluxo de muco no pulmão, pâncreas e outros órgãos. Nos pulmões, o muco entope as vias aéreas e acumula bactérias e outros microrganismos que levam à infecção, inflamação, insuficiência respiratória e outras complicações. (About Cystic Fibrosis. Disponível em: < https://www.cff.org/What-is-CF/About-Cystic-Fibrosis/>. Acesso em: 26 mar. 2020). mas com o engajamento do grupo, um enorme progresso foi feito em termos de pesquisa, cuidado e tratamento dessa doença rara. Em sua trajetória desde sua fundação, a instituição foi responsável por formar redes de centros de cuidado, além de um banco de dados de pacientes. Sua influência se estende inclusive à agência federal norte-americana Food and Drug Administration (encarregada de regular, supervisionar e controlar produtos, com fins de promover e proteger a saúde pública8),88 What We Do. Disponível em: <https://www.fda.gov/AboutFDA/WhatWeDo/default.htm>. Acesso em: 1 out. 2017. que aprovou a comercialização de medicamentos voltados à doença.99 Entre os anos de 2012 e 2017, foram regulamentados três medicamentos: em 2015, o Orkambi®, destinado a pessoas maiores de 12 anos e possuidores de duas das mutações mais comuns da fibrose cística; em 2017, o Symdeco®, que além dos pacientes-alvos do Orkambi®, abarca pessoas com uma outros tipos de mutação. Ambos têm como precursor o Kalydeco®, de 2012, que inaugura a modalidade de medicamentos que atuam diretamente na síntese de uma proteína, ou seja, age sobre a raiz da doença (Our History. Disponível em: <https://www.cff.org/About-Us/About-the-Cystic-Fibrosis-Foundation/Our-History/>. Acesso em: 27 set. 2018). A fundação articulou ainda um grupo de pesquisas científicas atento à questão da fibrose cística, o projeto Therapeutics Development Network.1010 Our Research. Therapeutics Development Network. Disponível em: <https://www.cff.org/Research/Researcher-Resources/Therapeutics-Development-Network/. Acesso em: 27 set. 2018.

Semelhantemente, a DEBRA (Dystrophic Epidermolysis Bullosa Research Association) é uma associação fundada em 1978, no Reino Unido, por Phyllis Hilton, mãe de uma criança portadora de epidermólise bolhosa (EB).1111 A epidermólise bolhosa é uma doença genética resultante de mutações nos genes do grupo KRT, que impactam na produção de proteínas importantes na garantia de força e resiliência da pele (Epidermolysis Bullosa Simplex. Disponível em: <https://ghr.nlm.nih.gov/condition/epidermolysis-bullosa-simplex#>. Acesso em: 26 mar. 2020). Pela fragilidade da pele, bolhas, irritações e lesões até por leves toques e contatos físicos são comuns, e feridas abertas costumam surgir nas regiões lesionadas, em alguns casos machucando e afetando tecidos e órgãos mais internos. (What is EB? Disponível em: <https://www.debra.org.uk/what-is-eb/what-is-eb>. Acesso em: 26 mar. 2020). Na época, pouco se sabia sobre a doença, razão pela qual Phyllis foi orientada pelos serviços de saúde a apenas se ater aos cuidados paliativos de sua filha, Debra. Diante de famílias na mesma situação, Phyllis passou a escrever cartas para revistas, estações de rádio e hospitais, a fim de organizar um grupo de pais de crianças com EB.1212 Our Founder. Disponível em: <https://www.debra.org.uk/about-us/our-founder>. Acesso em: 27 set. 2018. Surgiu assim a DEBRA, cujas estratégias aos poucos se difundem internacionalmente.

Em 1980, nos EUA, emergiu um movimento semelhante a partir da mobilização de Arlene Pessar e seu filho Eric Lopez - portador de EB - e suas reivindicações: investimento em pesquisas sobre a EB, disseminação de informações sobre a doença e elaboração de políticas de conscientização do público em geral. Aos poucos, se consolida a debra of America (The Dystrophic Epidermolysis Bullosa Research Association of America), que somou várias conquistas, como contribuições para o conhecimento da doença, seus tratamentos, diagnósticos e cuidados em geral.1313 About debra of America. Disponível em: <http://www.debra.org/aboutdebra>. Acesso em: 3 out. 2018. Esse histórico não poderia ter sido feito sem uma atividade de mobilização política. Todos esses desdobramentos ocorreram porque de alguma forma as vozes de Arlene Pessar e de seu filho (e posteriormente de todo um coletivo de pessoas nas mesmas condições) reverberaram a ponto de alcançar figuras políticas regionais, até um momento em que foram ouvidas no âmbito federal norte-americano.

No Brasil, uma associação que vem ganhando bastante destaque desde sua recente fundação é a Unidos Pela Vida, voltada à assistência a pacientes possuidores de fibrose cística. Fundado em 2009 por Verônica Stasiak, uma psicóloga que depois de 23 anos de desconhecimento por parte dos serviços de saúde foi diagnosticada com fibrose cística, o projeto se iniciou enquanto um espaço virtual em forma de blog para fins de interação on-line entre pacientes e familiares em torno da fibrose cística. Em 2011, oficializou-se como o Instituto Brasileiro de Atenção à Fibrose Cística. Atualmente, a associação possui um espaço físico sede localizada na cidade de Curitiba-PR.1414 Sobre Nós. Disponível em: <http://unidospelavida.org.br/sobre-nos/>. Acesso em: 27 set. 2018.

Diferentemente dos exemplos das associações mencionadas do Reino Unido e dos EUA, a constituição da Unidos Pela Vida não envolveu um processo de mobilização política direta, e o modo mais funcional e efetivo de interação com os grupos de pacientes é via virtual, o que não significa que a associação não seja exitosa em seus objetivos. Pelo contrário: apesar de seu processo de formação não ter se dado por meio de relações com autoridades e influências políticas, sua ação se mostra compensadora desse lapso constitutivo: a Unidos Pela Vida promove e organiza por todo o país eventos de lazer, simpósios, seminários e palestras tanto com o objetivo de chamar atenção para a fibrose cística enquanto uma questão de conscientização social, quanto eventos de caráter mais científico. Além disso, dispõe de um espaço virtual composto por informações relativas a centros de cuidados, associações assistenciais, notícias, pesquisas, depoimentos etc.

Ainda que em distintos graus, encontramos posturas favoráveis à medicalização no caso da CF Foundation, DEBRA, debra of America e Unidos pela Vida. Isso porque as reivindicações de todas essas associações voltam-se exatamente à necessidade de que a comunidade científica reconheça e proponha possibilidades terapêuticas para aqueles acometidos por doenças. No entanto, é preciso considerar que nesses casos o processo de medicalização se dá de forma peculiar, pois os pacientes não se constituem enquanto grupos passivos em relação a especialistas, laboratórios, indústria farmacêutica e ao Estado. Pelo contrário: ao invés de uma relação verticalizada entre médicos e pacientes ou entre especialistas e leigos, o que o engajamento de determinados grupos de pacientes sinaliza é, de acordo com Steven Epstein, autor de estudo seminal sobre ativismo de pessoas soropositivas, um regime de “cooperação epistêmica” entre médicos e pacientes (EPSTEIN, 2008EPSTEIN, S. Patient groups and health movements. In: HACKETT, E. et al. (Orgs.). The Handbook of Science and Technology Studies. Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 2008, p. 499-539., p. 517).

Nesse sentido, a partir da constatação de Epstein (2008EPSTEIN, S. Patient groups and health movements. In: HACKETT, E. et al. (Orgs.). The Handbook of Science and Technology Studies. Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 2008, p. 499-539., p. 501) de que a análise acerca dos “grupos de pacientes” deve ser feita através de uma abordagem para “além do laboratório”, notamos uma tendência descentralizada e participativa na forma como se organizam e agem as associações biossociais. As práticas de pesquisa e saúde passam a ser vistas de modo mais interativo, de forma que essa “abertura do laboratório” culmina em atenuar a linha que divide o sujeito que produz o conhecimento (os especialistas) do sujeito sobre o qual se produz um conhecimento (os portadores de doenças). Na medida em que, como demonstram os casos citados, os pacientes passam a se autorrepresentar na esfera pública e nos processos de produção de conhecimento científico, é possível verificar uma dupla crise de representatividade, política e epistêmica. Assim, a participação direta de doentes e seus familiares, em cooperação com a comunidade médica, ajudam a construir políticas públicas e conhecimentos que a eles dizem respeito diretamente.

Quando os próprios portadores de certas doenças se dispõem e se esforçam em contribuir com a comunidade médico-científica - seja com relatos da contínua experiência sobre o que é possuir determinada enfermidade, seja contribuindo por meio de doação de amostras de sangue e tecidos ou submetendo seu corpo a experimentos físicos -, eles se constituem enquanto relevantes aliados. Essa relação não acontece de forma parasitária, porque se de um lado a comunidade científica obtém uma preciosa contribuição para suas pesquisas, do outro os pacientes se inteiram informativamente sobre suas próprias condições, e ainda criam, recriam ou reforçam suas convicções de identidade coletiva, já que o indivíduo possuidor de uma doença terá a oportunidade de se relacionar com outros nas mesmas condições que ele, unidos por um status somático em comum. Como constata Paul Rabinow (1991RABINOW, P. Artificialidade e ilustração: da sociobiologia à bio-sociabilidade. Novos Estudos CEBRAP, n. 31, 1991, p. 79-94., p. 88):

haverá, sim, grupos formados em torno do cromossomo 17, lócus 16.256, sítio 654.376, alelo com substituição de uma guanina. Esses grupos terão especialistas médicos, laboratórios, histórias, tradições e uma forte intervenção de agentes protetores para ajudá-los a experimentar, partilhar, intervir e “entender” seu destino.

No caso da fibrose cística, sua causa deve-se a uma mutação no gene CF que provoca um mau funcionamento na produção e fluxo de muco no pulmão, pâncreas e outros órgãos.1515 About Cystic Fibrosis. Disponível em: <https://www.cff.org/What-is-CF/About-Cystic-Fibrosis/>. Acesso em: 27 set. 2018. Podemos observar a constatação de Rabinow a respeito da união de indivíduos que compartilham um status somático através da aprovação de uma das versões do medicamento Kalydeco® em 2017. Tal medicamento é capaz de agir em 23 variedades de mutação do gene CF.1616 FDA Approves Ivacaftor for 23 additional CFTR mutations. Disponível em: <https://www.cff.org/News/News-Archive/2017/FDA-Approves-Ivacaftor-for-23-Additional-CFTR-Mutations/>. Acesso em: 27 set. 2018. Assim, além de um grupo formado em torno do gene CF, há ainda pessoas desse meio agrupadas mais especificamente em torno da mutação E56K, G1244E, R117H, D1152H, etc. Mesmo inseridos numa coletividade em que compartilham de um status somático semelhante, indivíduos se distinguem dentro dela em razão do caráter personalizado das suas condições, num complexo fluir de redes de identidade e reconhecimento.

Apesar da clara disposição para a ação e da proatividade por parte de “grupos de pacientes”, há algumas questões de ambiguidade terminológica que devem ser pontuadas. Primeiramente, “grupos de pacientes” não são compostos apenas por pacientes, mas incluem os familiares desses pacientes, seus amigos e apoiadores que também defendem os interesses daquele grupo por motivos afetivos e políticos. Depreende-se daí que existem diferentes formas de representação política dos grupos de pacientes. Desse modo, “[...] o estudo dos grupos de pacientes compartilha de uma tênue fronteira com outros tipos de fenômenos [...]” (EPSTEIN, 2008EPSTEIN, S. Patient groups and health movements. In: HACKETT, E. et al. (Orgs.). The Handbook of Science and Technology Studies. Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 2008, p. 499-539., p. 505 - tradução nossa), tais como movimentos que lutam por investimento público em pesquisas biomédicas específicas, reivindicações ecológicas e de justiça ambiental que estão fortemente atreladas à saúde pública, demandas de terapias e medicamentos alternativos, entre outros. De modo geral, são movimentos que, ao invés de se caracterizarem por pautas coletivas e abrangentes, bem como por uma institucionalidade de formato tradicional (como sindicatos e partidos políticos), estruturam-se a partir de organizações fundamentadas em interesses específicos. Por essa razão, mobilizações biossociais têm sido identificadas como autocentradas ou individualistas (ORTEGA, 2003ORTEGA, F. Práticas de ascese corporal e constituição de bioidentidades. Cadernos de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 11, n.1, p. 59-77, 2003.).

Outro aspecto sobre a natureza e a dinâmica de atuação das associações de pacientes diz respeito à “medicalização” ou “desmedicalização” das condições de seus membros. Casos de grupos em que as pessoas possuem condições médicas não explicadas, que não tem às suas disposições medicamentos ou tratamentos adequados para sua doença específica, normalmente têm seu discurso voltado às reivindicações de pesquisas e produção de medicamentos apropriados às suas condições, ou seja, eles demandam uma medicalização e reconhecimento científico de seus status somáticos. Em contrapartida, há os grupos de pessoas que recusam a influência médica sobre suas condições, que demonstram “[...] a formação de novas identidades coletivas que parcial ou totalmente rejeitam os julgamentos padrões da biomedicina sobre como se supõe que seres humanos devem se comportar ou parecer” (EPSTEIN, 2008EPSTEIN, S. Patient groups and health movements. In: HACKETT, E. et al. (Orgs.). The Handbook of Science and Technology Studies. Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 2008, p. 499-539., p. 510 - tradução nossa). Ou seja, demandam uma “desmedicalização” de suas condições. É o caso, por exemplo, de alguns grupos de pessoas surdas que rejeitam o uso de aparelhos auditivos por considerá-los um desrespeito à cultura surda ou de ativistas a favor da aceitação da imagem do “gordo”, os quais desafiam os discursos de uma obesidade encarada como “patológica” e “epidêmica” e questionam diretrizes epidemiológicas sobre os supostos efeitos prejudiciais de ser acima do peso (EPSTEIN, 2008, p. 510). Em suma, há casos em que indivíduos e grupos se opõem à medicalização e claramente rejeitam modos de subjetivação congruentes com o saber-poder biomédico. Por outro lado, há situações, como aquelas de pacientes que buscam pesquisas e tratamentos voltados às suas doenças, em que a medicalização é aceita estrategicamente. Ainda assim, ressaltamos que os pacientes recusam a posição de receptores passivos da expertise médica.

As mobilizações de biossociabilidade devem ser investigadas a partir da circulação de identidades entendidas em termos físico-biológicos (RABINOW, 1991RABINOW, P. Artificialidade e ilustração: da sociobiologia à bio-sociabilidade. Novos Estudos CEBRAP, n. 31, 1991, p. 79-94., p. 85). Por essa razão, suas reivindicações assumem um caráter localizado, corporalmente substanciado. As lutas desses grupos por medicamentos, tratamentos, diagnósticos e pesquisas não estão fora da lógica capitalista1717 Por exemplo, a CF Foundation, embora seja uma organização sem fins lucrativos, acabou por incentivar o crescimento da Vertex Pharmaceuticals, que se tornou responsável pela produção dos principais medicamentos contra a fibrose cística. Além disso, a fundação obteve um retorno de 3,3 bilhões de dólares pela venda dos direitos sobre os royalties de tais medicamentos. Esse episódio suscitou debates sobre as relações que associações, mesmo aquelas sem fins lucrativos, mantêm com a indústria farmacêutica. Também foi levantada a discussão sobre uma possível deturpação dos princípios das associações na medida em que elas estariam substituindo a prioridade da assistência ao paciente pelo lucro financeiro (The New York Times - Deal by Cystic Fibrosis Foundation Raises Cash and Some Concern. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2014/11/19/business/for-cystic-fibrosis-foundation-venture-yields-windfall-in-hope-and-cash.html>. Acesso em: 28 set. 2018). ou mesmo da governamentalidade neoliberal, tal como conceituada por Foucault (2015______. Microfísica do poder. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015., 2008a), pois envolvem indivíduos livres, autônomos, proativos e, ao mesmo tempo, responsáveis e autovigilantes, ou seja, que dispensam intervenções corretivas e disciplinares sobre seus comportamentos e escolhas e assumem, voluntariamente, uma conduta autocontrolada, de modo a exercer poder sobre si mesmos. Desse modo, a constituição de individualidades somáticas e de grupos de pacientes se dá de forma semelhante à dinâmica de convergência entre as maneiras de governar e de ser governado. A vasta discussão foucaultiana sobre a governamentalidade e suas afinidades com o “poder pastoral” e de “direção das almas” vai nesse sentido: governar é tutelar pessoas (e fazer com que elas se tutelem), coletiva e individualmente (FOUCAULT, 2008b______. Segurança, território, população: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008b., p. 164, 166). Tal como o poder do pastor, o governo consiste no exercício do poder para fazer o bem, para cuidar do rebanho como um todo e de cada ovelha, separadamente (p. 170). Além disso, governar exige a aplicação de técnicas de investigação voltadas ao corpo e à alma, às maneiras de agir, de exames dos outros e de si, através dos quais é possível produzir certa verdade secreta, interior, que, uma vez acessada, possibilitará a sujeição aos preceitos pastorais. Por isso a governamentalidade, como o poder pastoral, é individualizante, posto que ambos suscitam “um sujeito que é sujeitado a redes contínuas de obediência, de um sujeito que é subjetivado pela extração de verdade que lhe é imposta” (FOUCAULT, 2008b, p. 242-243). No caso da individualidade somática e da biossociabilidade, essa verdade interior estaria localizada em atributos orgânicos e em status somáticos. Assim, governar esses atores significa “impor um regime ao doente: o médico governa o doente, ou o doente que se impõe certo número de cuidados se governa” (FOUCAULT, 2008b, p. 163).

No entanto, parece-nos equivocado, ou ao menos reducionista, tratar esses sujeitos como meramente passivos diante de “redes contínuas de obediência”. Aliás, como prevê a própria teorização de Foucault, não há relações de poder que não envolvam formas de resistência, afinal, mais do que estudar o poder enquanto uma realidade possuidora de uma essência ou de uma natureza pré-definida, trata-se, para o autor, de compreender a “mecânica do poder” (FOUCAULT, 2015______. Microfísica do poder. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015., p. 42) através da sua relação com os jogos de verdade e com as formas assumidas pelos sujeitos (MACHADO, 2015MACHADO, R. Introdução: por uma genealogia do poder. In: FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015., p. 12, 17). Estes tampouco são concebidos aprioristicamente enquanto uma substância passiva, mas enquanto processos de subjetivação, que podem reafirmar ou contrariar os arranjos de saber-poder (FOUCAULT, 2004, p. 274; MACHADO, 2015, p. 24). No primeiro caso, em que as formas dos sujeitos reforçam as configurações do poder e do saber, a biopolítica se concretiza enquanto poder sobre a vida. Todavia, quando a subjetivação rompe com os arranjos de saber-poder, de modo a desencadear processos de desassujeitamento, estamos diante de contrassubjetivações, que, como lembra Pelbart, fazem da biopolítica uma biopotência, ou uma potência da vida. Essas dinâmicas estão associadas, ainda, aos gestos de “singularização” e de “reapropriação da subjetividade”, microprocessos de “devires diferenciais” e minoritários que rechaçam as subjetivações hegemônicas, conduzidas e autoconduzidas (ROLNIK; GUATTARI, 1996ROLNIK, S.; GUATTARI, F. Micropolítica: cartografias do desejo. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996., p. 47, 49).

Ora, as individualidades somáticas devem ser compreendidas em sua historicidade e imanência, e não enquanto subjetividades a priori, como reivindica Foucault. Desse modo, as dinâmicas sócio-históricas biossociais são contraditórias e ambivalentes - como revelam os exemplos empíricos mencionados. De um lado, os indivíduos somáticos, assim como a biossociabilidade, estão sujeitos à lógica pastoral e à biopolítica assentada na medicalização contemporânea. Ainda assim, essas coletividades constroem, de outro lado, uma compreensão e uma rede de saberes sobre elas próprias, bem como sobre as moléstias que as acometem, que não nos parecem, necessariamente, voltadas ao autogoverno, e que em alguns casos tensionam inclusive condução pastoral e a própria expertise médica. Em resumo, esses grupos influenciam e são influenciados pelas relações de saber-poder. É por essas características que nos inclinamos a pensar que essa forma bio de sociabilidade, de mobilização política, de associativismo, de coletividade, alarga o que se entende convencionalmente por “cidadania”.

Ampliar a cidadania

Se entendida a partir de um enquadramento ocidental moderno e enquanto um valor ideal constituinte do estado democrático de direito, a cidadania pode ser definida, com base na a sistematização de Marshall (1967MARSHALL, T. H. Cidadania e classe social. In: ______. Cidadania, Classe Social e Status. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967, p. 57-107., p. 63), como um conjunto de direitos e deveres que perpassam as seguintes esferas: a primeira é a do direito civil, que inclui em geral os direitos intrínsecos ao exercício da liberdade individual, como a liberdade de expressão, o direito à inviolabilidade da propriedade, de locomoção, de privacidade, de organização, entre outros; a segunda é a do direito político, que pode ser sintetizada enquanto o direito de participar, seja como eleitor ou como membro, de alguma forma de organização política; por fim, o direito social, que abarca os direitos básicos da condição de humana, tais como direito à previdência, educação, saúde, moradia, emprego, etc. Em geral, podemos identificar nas mobilizações políticas das associações de biossociabilidade aspectos que agregam novos sentidos a essas três dimensões básicas da cidadania, tal como conceituada por Marshall.

Os direitos civis, fortemente assentados na ideia de liberdade individual, são requalificados no contexto de biossociabilidade se pensamos nas implicações que as tecnologias de diagnósticos preditivos de doenças genéticas carregam para reconfigurar as noções vigentes de propriedade e privacidade sobre o próprio corpo e suas condições biológicas. Como foi dito, a sofisticação das tecnologias da medicina genômica agrega um aspecto preventivo às práticas médicas, de tal forma que por meio de teste genéticos é possível identificar a propensão de certas doenças no indivíduo e assim prevenir seu tratamento.1818 Perceptível, por exemplo, na variedade de laboratórios que oferecem o serviço do teste pré-natal não invasivo (non-invasive prenatal testing - NIPT), um exame de DNA feito durante o pré-natal em que se colhe uma amostra de sangue da mãe, a partir da qual é possível rastrear possíveis doenças no feto. (What is NIPT? Disponível em: <https://www.genomicseducation.hee.nhs.uk/news/item/403-what-is-nipt/>. Acesso em: 4 out. 2018). Num cenário como esse, impregnado por inovações biotecnológicas, os princípios e protocolos jurídicos convencionais parecem sofrer certas tensões. Isso porque o conhecimento a nível molecular das condições biológicas de cada um fatidicamente impacta as atuais definições e limites do direito individual ao próprio corpo. Com as informações obtidas através desses testes genéticos é possível criar bancos de dados genéticos de uma população, os quais coletam ou mesmo expõem informações pessoais com fins biopolíticos de monitoramento da saúde pública e prevenção de doenças tais como câncer, diabetes, Down, obesidade, etc. Dessa forma, seria necessária a discussão de reformulações de direitos civis ou a extensão dos já existentes para poder lidar com essa questão delicada que é ter informações privadas sob responsabilidade do mercado através, por exemplo, de laboratórios de biotecnologia.1919 Em alguns casos, a violação da privacidade e das liberdades individuais pode ocorrer não apenas por iniciativa do mercado, mas também do Estado. A esse respeito, é relevante, por exemplo, a discussão suscitada pela Lei nº 12.654/12, que cria, a partir da coleta de amostras de criminosos condenados, um banco de dados genéticos para fins de identificação penal. No caso brasileiro, em que a população carcerária é majoritariamente composta por pessoas negras, cabe ainda a discussão sobre a possibilidade de que recursos biotecnológicos sejam utilizados para corroborar certa operatoriedade racista do sistema penal. (Lei nº 12.654, de 28 de maio de 2012. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Lei/L12654.htm>. “Com 726 mil presos, Brasil tem terceira maior população carcerária do mundo”. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2017-12/populacao-carceraria-do-brasil-sobe-de-622202-para-726712-pessoas>.

No que diz respeito aos direitos políticos, é patente que o engajamento das coletividades somáticas apresenta singularidades se comparado com o ativismo de mobilizações tradicionais. Nos casos mencionados, da CF Foundation, DEBRA, debra of America e Unidos pela Vida, é a centralidade do corpo físico que motiva a resistência e a luta através da participação política. Seja nas operações institucionais produzidas e reproduzidas formalmente junto ao mercado ou ao Legislativo, Executivo e Judiciário, seja de forma alheia à égide do Estado, levadas a cabo por associações e organizações voluntárias independentes, a participação biossocial tem como fundamento o corpo e as condições físico-biológicas. Nesse sentido, o ativismo e a participação política biossociais ocorrem não tanto por afinidades político-ideológica, mas por condições corpóreas particulares, dolorosas e urgentes. Ademais, o imperativo de informar-se sobre doenças e tratamentos é também um aspecto notável do exercício da cidadania biossocial. Se para um cidadão convencional abster-se do engajamento político ou da busca por conhecimento sobre o mundo que o rodeia é uma ocorrência comum, para o indivíduo somático essa alienação pode se apresentar como uma ameaça. Isso porque sua própria vida biológica depende das suas constantes buscas de informações, do acompanhamento de projetos científicos que de alguma forma dizem respeito às suas condições, da atenção às legislações, políticas e órgãos que controlam e influenciam a aprovação ou alterações de medicamentos referentes às suas doenças, entre outras atividades já mencionadas.

Se os direitos sociais se voltam para a garantia da igualdade, proteção e amparo dos cidadãos, essas garantias se efetivam de forma peculiar no caso dos “cidadãos biológicos” (ROSE, 2007ROSE, N. Politics of life itself: biomedicine, power, and subjectivity in the twenty-first century. Princeton: Princeton University Press, 2007. p. 131-155.) em razão da excepcionalidade de suas condições corporais. No caso dos coletivos biossociais, a reivindicação por igualdade e por acesso digno a serviços públicos básicos é acompanhada, também, por uma marcação de diferença que claramente distingue a especificidade das experiências de corpos doentes frente aos corpos considerados normais. Além disso, é possível identificar um senso particular de solidariedade e igualdade entre portadores de doenças raras, que, dadas as suas condições biológicas, comumente incorporam ao seu cotidiano a preocupação e o planejamento a longo prazo para se incluir numa agenda de testes clínicos de medicamentos. É o caso, entre outros, dos portadores de fibrose cística, que veem nesses testes uma oportunidade de otimizar seu tratamento e ajudar a comunidade científica e de seus iguais a se desenvolver.2020 Um banco de registro de testes clínicos mantido pela Biblioteca Nacional de Medicina dos EUA (National Library of Medicine - NLM), o ClinicalTrials.gov, apresentava em 2017, 81 testes clínicos realizados com pacientes de fibrose cística, cada teste variando de 3 a 1.000 participantes. (ClinicalTrails.gov. Disponível em: <https://clinicaltrials.gov/ct2/results?cond=Cystic+Fibrosis&term=&type=&rslt=&age_v=&gndr=&intr=&titles=&outc=&spons=&lead=&id=&cntry=&state=&city=&dist=&locn=&strd_s=01%2F01%2F2017&strd_e=12%2F31%2F2017&prcd_s=&prcd_e=&sfpd_s=&sfpd_e=&lupd_s=&lupd_e=&sort=> . Acesso em: 4 out. 2018). Esse tipo de experiência, que exercita a empatia por aqueles que compartilham as mesmas condições orgânicas, está também imbuída com uma ideia de igualdade e solidariedade típica das condições da biossociabilidade.

Nesse sentido, os cidadãos biológicos engendram uma dinâmica de luta por reconhecimento de suas excepcionalidades (HONNETH, 2017HONNETH, A. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2017.) sem deixar de cotejar o movimento de afirmação de suas diferenças com o ativismo pelo acesso igualitário a diretos e serviços de saúde, o que nos remete à tentativa de conciliação entre redistribuição e reconhecimento - ou seja, entre uma “política social da igualdade” e uma “política cultural da diferença” -, tal como identificado por Nancy Fraser (2001FRASER, N. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós-socialista. In: SOUZA, J. (Org.). Democracia hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001., p. 246) diante das concepções ampliadas de justiça presentes, entre outros, nos movimentos negros e feministas. Para além disso, mais do que um movimento identitário que reforça individualidades, acreditamos que, em alguns casos, tal como argumentamos anteriormente, o que está em jogo é a resistência aos modos de subjetivação tutelados pela governamentalidade, da mesma forma como outras iniciativas “antiautoritárias” abordadas por Foucault:

[...] são lutas que questionam o estatuto do indivíduo: por um lado, afirmam o direito de ser diferente [...]; por outro, atacam tudo aquilo que separa o indivíduo, que quebra suas relações com os outros, fragmenta a vida comunitária [...]. Essas lutas não são exatamente nem a favor nem contra o “indivíduo”; mais do que isso, são batalhas contra o “governo da individualização”. São uma oposição aos efeitos de poder relacionados ao saber, à competência e à qualificação: lutas contra os privilégios do conhecimento. Porém, são também uma oposição ao segredo, à deformação e às representações mistificadoras impostas às pessoas (FOUCAULT, 2013______. O sujeito e o poder. In: RABINOW, P.; DREYFUS, H. (Orgs.). Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013., p. 277).

Dessa forma, os coletivos biossociais procuram o reconhecimento do Estado, da medicina e mesmo do mercado - a fim de exercer seus direitos civis, políticos e sociais - sem, contudo, se sujeitarem à governamentalidade. Isso porque, por exemplo, a busca por igualdade é acompanhada da marcação da diferença, do mesmo modo como as relações desses grupos com o saber-poder médico não consistem em reproduzir a posição inerte de “pacientes”, posto que os indivíduos somáticos redirecionam o conhecimento produzido pela medicina. Assim, não nos parece que essas iniciativas podem ser tratadas puramente como uma submissão à lógica do Estado ou uma submissão aos processos de medicalização. Em suma, são esses atributos, aliados às identidades e mobilizações pautadas em características físico-biológicas, que sinalizam as especificidades da cidadania ensaiada pela biossociabilidade.

Considerações finais

Tomando como ponto de partida os avanços da tecnociência e mais especificamente as mudanças que levaram a medicina à era genômica, discutimos aspectos que apontam para tipos específicos de subjetividades e de relações sociais na contemporaneidade. Argumentamos que o ativismo de pacientes e de seus apoiadores, analisado a partir dos conceitos de individualidade somática e de biossociabilidade, carrega implicações consideráveis para a operatoriedade da biopolítica contemporânea, bem como para a compreensão das novas formas de subjetivação. Parece-nos que esses grupos operam a partir de um território ambivalente, de interseções entre biopolítica e biopotência (PELBART, 2002______. Biopolítica e Biopotência no coração do Império. Multitudes, 9, maio-junho de 2002.), pois, por um lado, as novas facetas da participação política e do exercício da cidadania, agora perpassadas também por uma dimensão biológica e corpórea, reforçam uma lógica favorável à medicalização e à tutela biopolítica dos corpos individuais e coletivos seja pela medicina, pelo Estado ou pelo mercado - o que fica evidente, por exemplo, a partir da vigilância possibilitada por bancos de dados genéticos ou pela medicalização de determinadas condições de saúde.

Nesse sentido, o engajamento e a busca por direitos por parte de sujeitos responsáveis e conscientes dos cuidados que devem ter consigo poderia ser vista como uma maneira de fomentar a permanência das configurações hegemônicas de saber-poder. No entanto, novos direcionamentos nas lutas por direitos se ensaiam neste mesmo contexto, desde os sujeitos que claramente recusam a medicalização de suas existências, passando por aqueles que ativamente se engajam nos processos de produção de conhecimento científico, até os que, ao se reconhecerem afirmativamente como portadores de condições altamente específicas, engendram processos de participação capazes de alargar a noção de cidadania, ampliando a dinâmica política interpretada por Marshall (1967MARSHALL, T. H. Cidadania e classe social. In: ______. Cidadania, Classe Social e Status. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967, p. 57-107.). Assim, os coletivos biossociais guardam afinidades com outros movimentos afirmativos e reforçam as dimensões civil, política e social da cidadania, embora a elas acrescentem uma outra faceta, “biológica”. Parece-nos, então, que os indivíduos somáticos agregados em associações biossociais recusam o estereótipo de vítimas e inválidos e passam a atuar como agentes transformadores da esfera política, econômica e social, inclusive de modo a problematizar as fronteiras entre o “normal” e o “desviante”, o “saudável” e o “patológico”.

Enfim, o caráter bio da subjetividade e da sociabilidade contemporâneas se apresenta como algo relevante para a compreensão dos corpos e sujeitos que disputam a esfera pública e que pretendem alargar os processos de reconhecimento identitário e de participação política. Mais do que uma pequena variação da sociabilidade e dos ativismos políticos convencionais, assumimos a biossociabilidade e suas implicações sobre a cidadania como elementos relevantes para a análise das dinâmicas sociais, políticas e científicas dos dias que correm. A partir daí, podemos vislumbrar tanto os novos mecanismos de normalização biopolítica dos corpos e individualidades quanto as potencialidades de experimentações singularizantes das subjetividades contemporâneas.2121 B. L. S. de Paula: concepção e execução da pesquisa, revisão bibliográfica, análise dos resultados, redação, revisão, edição final e submissão do manuscrito. I. J. A. Santana: execução da pesquisa, revisão bibliográfica, descrição dos estudos de caso, análise dos resultados, redação e formatação do manuscrito. Os autores agradecem à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) pelo financiamento desta pesquisa.

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  • 1
    A esse respeito, as políticas de eugenia, levadas a cabo sobretudo na primeira metade do século XX, são exemplos emblemáticos. Isso porque, ao perseguir o “melhoramento biológico humano” por meio tanto da disciplinarização dos corpos individuais e da administração de fluxos populacionais, ao mesmo tempo em que, de um lado, eram estimuladas a existência e reprodução de “tipos biológicos superiores”, de outro, eram segregados, esterilizados compulsoriamente ou exterminados sujeitos e corpos considerados “inferiores” e “indesejados”: miseráveis, homossexuais, loucos, portadores de deficiências, entre outros (ROSE, 2007, cap. 2). Portanto, trata-se de, simultaneamente, “fazer viver” e “fazer morrer”, pois para a racionalidade eugenista, cuidar da vida requer produzir a morte, aproximando a biopolítica da tanatopolítica (AGAMBEN, 2002).
  • 2
    Em alguns casos, poderíamos constatar que possuidores de certas enfermidades experimentam as três formas de desrespeito identificadas por Axel Honneth (2017): a perda de autonomia sobre o próprio corpo, a impossibilidade de acessar direitos que garantam a igualdade frente a outras pessoas e a falta de estima ou valor social.
  • 3
    O Projeto Genoma Humano. Disponível em: <http://genoma.ib.usp.br/sites/default/files/projeto-genoma-humano.pdf>. Acesso em: 26 set. 2018.
  • 4
    Nesse cenário em que acontecimentos virtuais passam a interessar tanto quanto os reais, transforma-se aquilo que se entende por “risco”, pois essa noção passa a referir-se menos a uma condição a priori do que àquilo que resulta do cálculo de uma série de elementos de probabilidade e de correlações estatísticas (CASTEL, 1991). Trata-se, também, de um contexto alinhado à racionalidade da governamentalidade, pois, mais do que corrigir e disciplinarizar condutas desviantes, o que está em jogo é a tentativa de gerir campos de probabilidade (FOUCAULT, 2008b).
  • 5
    About the Human Genome Project. Disponível em: <http://web.ornl.gov/sci/techresources/Human_Genome/project/index.shtml>. Acesso em: 1 out. 2018.
  • 6
    Our History. Disponível em: <https://www.cff.org/About-Us/About-the-Cystic-Fibrosis-Foundation/Our-History/>. Acesso em: 1 out. 2017.
  • 7
    A fibrose cística é uma doença genética e progressiva, causada por uma mutação no gene CF que provoca um mau funcionamento na produção e fluxo de muco no pulmão, pâncreas e outros órgãos. Nos pulmões, o muco entope as vias aéreas e acumula bactérias e outros microrganismos que levam à infecção, inflamação, insuficiência respiratória e outras complicações. (About Cystic Fibrosis. Disponível em: < https://www.cff.org/What-is-CF/About-Cystic-Fibrosis/>. Acesso em: 26 mar. 2020).
  • 8
    What We Do. Disponível em: <https://www.fda.gov/AboutFDA/WhatWeDo/default.htm>. Acesso em: 1 out. 2017.
  • 9
    Entre os anos de 2012 e 2017, foram regulamentados três medicamentos: em 2015, o Orkambi®, destinado a pessoas maiores de 12 anos e possuidores de duas das mutações mais comuns da fibrose cística; em 2017, o Symdeco®, que além dos pacientes-alvos do Orkambi®, abarca pessoas com uma outros tipos de mutação. Ambos têm como precursor o Kalydeco®, de 2012, que inaugura a modalidade de medicamentos que atuam diretamente na síntese de uma proteína, ou seja, age sobre a raiz da doença (Our History. Disponível em: <https://www.cff.org/About-Us/About-the-Cystic-Fibrosis-Foundation/Our-History/>. Acesso em: 27 set. 2018).
  • 10
    Our Research. Therapeutics Development Network. Disponível em: <https://www.cff.org/Research/Researcher-Resources/Therapeutics-Development-Network/. Acesso em: 27 set. 2018.
  • 11
    A epidermólise bolhosa é uma doença genética resultante de mutações nos genes do grupo KRT, que impactam na produção de proteínas importantes na garantia de força e resiliência da pele (Epidermolysis Bullosa Simplex. Disponível em: <https://ghr.nlm.nih.gov/condition/epidermolysis-bullosa-simplex#>. Acesso em: 26 mar. 2020). Pela fragilidade da pele, bolhas, irritações e lesões até por leves toques e contatos físicos são comuns, e feridas abertas costumam surgir nas regiões lesionadas, em alguns casos machucando e afetando tecidos e órgãos mais internos. (What is EB? Disponível em: <https://www.debra.org.uk/what-is-eb/what-is-eb>. Acesso em: 26 mar. 2020).
  • 12
    Our Founder. Disponível em: <https://www.debra.org.uk/about-us/our-founder>. Acesso em: 27 set. 2018.
  • 13
    About debra of America. Disponível em: <http://www.debra.org/aboutdebra>. Acesso em: 3 out. 2018.
  • 14
    Sobre Nós. Disponível em: <http://unidospelavida.org.br/sobre-nos/>. Acesso em: 27 set. 2018.
  • 15
    About Cystic Fibrosis. Disponível em: <https://www.cff.org/What-is-CF/About-Cystic-Fibrosis/>. Acesso em: 27 set. 2018.
  • 16
    FDA Approves Ivacaftor for 23 additional CFTR mutations. Disponível em: <https://www.cff.org/News/News-Archive/2017/FDA-Approves-Ivacaftor-for-23-Additional-CFTR-Mutations/>. Acesso em: 27 set. 2018.
  • 17
    Por exemplo, a CF Foundation, embora seja uma organização sem fins lucrativos, acabou por incentivar o crescimento da Vertex Pharmaceuticals, que se tornou responsável pela produção dos principais medicamentos contra a fibrose cística. Além disso, a fundação obteve um retorno de 3,3 bilhões de dólares pela venda dos direitos sobre os royalties de tais medicamentos. Esse episódio suscitou debates sobre as relações que associações, mesmo aquelas sem fins lucrativos, mantêm com a indústria farmacêutica. Também foi levantada a discussão sobre uma possível deturpação dos princípios das associações na medida em que elas estariam substituindo a prioridade da assistência ao paciente pelo lucro financeiro (The New York Times - Deal by Cystic Fibrosis Foundation Raises Cash and Some Concern. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2014/11/19/business/for-cystic-fibrosis-foundation-venture-yields-windfall-in-hope-and-cash.html>. Acesso em: 28 set. 2018).
  • 18
    Perceptível, por exemplo, na variedade de laboratórios que oferecem o serviço do teste pré-natal não invasivo (non-invasive prenatal testing - NIPT), um exame de DNA feito durante o pré-natal em que se colhe uma amostra de sangue da mãe, a partir da qual é possível rastrear possíveis doenças no feto. (What is NIPT? Disponível em: <https://www.genomicseducation.hee.nhs.uk/news/item/403-what-is-nipt/>. Acesso em: 4 out. 2018).
  • 19
    Em alguns casos, a violação da privacidade e das liberdades individuais pode ocorrer não apenas por iniciativa do mercado, mas também do Estado. A esse respeito, é relevante, por exemplo, a discussão suscitada pela Lei nº 12.654/12, que cria, a partir da coleta de amostras de criminosos condenados, um banco de dados genéticos para fins de identificação penal. No caso brasileiro, em que a população carcerária é majoritariamente composta por pessoas negras, cabe ainda a discussão sobre a possibilidade de que recursos biotecnológicos sejam utilizados para corroborar certa operatoriedade racista do sistema penal. (Lei nº 12.654, de 28 de maio de 2012. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Lei/L12654.htm>. “Com 726 mil presos, Brasil tem terceira maior população carcerária do mundo”. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2017-12/populacao-carceraria-do-brasil-sobe-de-622202-para-726712-pessoas>.
  • 20
    Um banco de registro de testes clínicos mantido pela Biblioteca Nacional de Medicina dos EUA (National Library of Medicine - NLM), o ClinicalTrials.gov, apresentava em 2017, 81 testes clínicos realizados com pacientes de fibrose cística, cada teste variando de 3 a 1.000 participantes. (ClinicalTrails.gov. Disponível em: <https://clinicaltrials.gov/ct2/results?cond=Cystic+Fibrosis&term=&type=&rslt=&age_v=&gndr=&intr=&titles=&outc=&spons=&lead=&id=&cntry=&state=&city=&dist=&locn=&strd_s=01%2F01%2F2017&strd_e=12%2F31%2F2017&prcd_s=&prcd_e=&sfpd_s=&sfpd_e=&lupd_s=&lupd_e=&sort=> . Acesso em: 4 out. 2018).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    31 Mar 2020
  • Aceito
    09 Jun 2020
  • Revisado
    25 Mar 2021
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