Resumo
As doenças crônico-degenerativas assumem grande predominância no perfil epidemiológico, acometendo a população idosa. Entre essas doenças, o câncer tem sido estudado, ampliando as informações e trazendo avanço científico no cuidado à doença, contudo, as publicações constantemente centram-se nos dados estatísticos, deixando de lado a história de vida dessa população. O presente artigo objetivou compreender a relação com o processo de adoecimento de mulheres idosas em seguimento para o câncer do colo do útero, por meio da aproximação com as suas histórias de vida. Trata-se de um estudo qualitativo, cujo método utilizado foi o da história de vida. A escolha metodológica visou proporcionar um encontro com a vida de diferentes mulheres, dando visibilidade às suas memórias. Participaram da pesquisa cinco mulheres idosas com idade entre 62-89 anos, resultando em diferentes histórias de vida, com suas singularidades, mas que se entremeiam diante da dura realidade enfrentada por elas ao longo de seu processo de envelhecimento. A relação delas com o processo de adoecimento é permeada pelo medo em diferentes dimensões. Conclui-se que há necessidade de um olhar diferenciado para a mulher idosa, considerando as relações sociais que interferem no curso de sua vida e determinam a sua velhice.
Palavras-chave:
idoso; mulher; neoplasias do colo do útero
Introdução
Rotineiramente, os estudos que versam acerca do processo de envelhecimento o fazem à luz dos dados epidemiológicos, associando a velhice às doenças que dominam o perfil de morbi-mortalidade. Apesar de necessários para o avanço da ciência, para o desvelamento da realidade e para dar subsídios à elaboração de políticas públicas na área, mostram-se insuficientes para a apreensão mais profunda da sociedade. Não é comum encontrar estudos que abordem quem são esses idosos para além dos dados numéricos, incapazes de traduzir um grupo extremamente heterogêneo como a população idosa do Brasil e compreendê-los inseridos dentro de uma sociedade complexa.
Do ponto de vista individual, é considerada idosa, no Brasil, a pessoa que tem 60 anos e mais. Embora a velhice seja costumeiramente compreendida como uma fase da vida, compondo seu processo “natural” de crescimento e amadurecimento, entendemos o envelhecimento como um processo biopsicossocial, em que o ritmo, duração e efeitos do envelhecimento fisiológico reportam diferenças conforme os fatores socioeconômicos, psicológicos, genético-biológicos, dentre outros (TEIXEIRA, 2008TEIXEIRA, S. M. Envelhecimento e trabalho no tempo do capital: implicações para a proteção social no Brasil. São Paulo: Cortez, 2008.a).
No país, o rápido desenvolvimento desse processo acarreta grandes desafios para os gestores e a sociedade em termos de organização para as respostas às necessidades sociais. Destacamos aqui a velhice vivenciada pelo conjunto da população que dispôs a vida inteira apenas de sua força de trabalho como meio de produção, a qual passa a ser vivenciada como um período marcado por perdas, pobreza e negação de direitos (HADDAD, 2017HADDAD, E. G. M. A ideologia da velhice. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2017.; PAIVA, 2014PAIVA, S. O. C. Envelhecimento, saúde e trabalho no tempo do capital. São Paulo: Cortez Editora, 2014.; TEIXEIRA, 2008TEIXEIRA, S. M. Envelhecimento e trabalho no tempo do capital: implicações para a proteção social no Brasil. São Paulo: Cortez, 2008.). Concordamos com Paiva (2014PAIVA, S. O. C. Envelhecimento, saúde e trabalho no tempo do capital. São Paulo: Cortez Editora, 2014.), quando defende que a “tragédia do envelhecimento” não é um dado natural desta fase, ela é resultado das condições objetivas de vida destes trabalhadores, uma vez que, no processo de envelhecimento, o sujeito não está alijado de sua história enquanto ser social.
Refletir sobre a atual realidade do envelhecimento no país é fazê-lo trazendo à frente do debate o substantivo feminino. A feminização do envelhecimento chama a atenção, uma vez que, no ano 2000, a proporção entre mulheres e homens idosos era de 100 para 81, respectivamente, enquanto as projeções para 2050 indicam que a mesma proporção de mulheres corresponderá a 76 homens (NASRI, 2008NASRI, F. O envelhecimento populacional no Brasil. Revista Einstein, São Paulo, s. 1, p. 4-6, 2008.).
É necessário destacar que esse não é um dado natural, decorrente apenas do aumento do envelhecimento populacional no país. Existem diferentes determinações sociais e culturais que interferem nesse processo. Mas, aqui queremos destacar o fato de que as mulheres idosas de hoje são resultado concreto dessa construção social, a qual mascara, principalmente dentro da discussão do envelhecimento, o necessário debate acerca das implicações sobre gênero para as suas vidas.
Gênero é definido como elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e é o primeiro campo no qual o poder se articula (GOMES et al., 2018GOMES, R. et al. Gênero, direitos sexuais e suas implicações na saúde. Ciência & Saúde Coletiva, v. 23, n. 6, p. 1997-2005, 2018., p. 1998). Embora haja grande debate em torno dessa categoria dinâmica e sócio-histórica, há um movimento voltado para uma perspectiva ideológico-conservadora de diferenciação apenas natural entre homem e mulher. É uma tentativa de desqualificar e escamotear esse debate que “relaciona-se à maneira como as sociedades lidam com a percepção dos corpos humanos e com as consequências disso; constituindo-se em arranjos que são mutáveis frente às novas situações criadas pelas práticas humanas” (GOMES et al., 2018, p. 1198).
Com o surgimento da propriedade privada, exigindo novas configurações nos agrupamentos familiares, nas relações de trabalho e na organização social, prevalecem novas relações sociais que incidem sobre a vida de homens e mulheres. Para as mulheres, novas tarefas, sobretudo, a de procriar, de ser mãe e esposa sob as exigências do casamento monogâmico, cabendo-lhe, como imposição sumária, o espaço do lar, enquanto, ao homem, restava o trabalho desenvolvido fora do espaço doméstico (SANTOS; OLIVEIRA, 2010SANTOS, S. M. M.; OLIVEIRA, L. Igualdade nas relações de gênero na sociedade do capital: limites, contradições e avanços. Rev. Katál. Florianópolis, v. 13, n. 1, p. 11-19 jan-jun. 2010., p. 13).
Essas relações sociais determinam a desigual forma de inserção das mulheres na sociedade. Objetivamente, às mulheres não é garantido o acesso igualitário ao trabalho e renda; a educação para esse público torna-se mais um meio de reprodução de relações pautadas no machismo e a religião torna-se um forte campo de influência de manutenção do pensamento idealizado da mulher reforçando suas funções reprodutivas e o modelo tradicional de família (SANTOS; OLIVEIRA, 2010SANTOS, S. M. M.; OLIVEIRA, L. Igualdade nas relações de gênero na sociedade do capital: limites, contradições e avanços. Rev. Katál. Florianópolis, v. 13, n. 1, p. 11-19 jan-jun. 2010. p. 13).
Essa realidade não se altera quando mudamos o foco para as mulheres idosas. Pensar na relação entre gênero e envelhecimento é se defrontar com duas formas distintas de conceber a experiência feminina e o avanço da idade (DEBERT, 1994DEBERT, G. G. Gênero e envelhecimento. Estudos Feministas, ano 2, n. 34, p. 34-51, 1994., p. 33).
O processo de construir-se mulher até enxergar-se hoje enquanto mulher idosa, projeta uma imagem que tende a esconder um longo caminho de enfrentamento às mais diferentes negações dos direitos fundamentais a um ser humano, entre eles a liberdade. Apesar das diversas lutas sociais empreendidas principalmente pelo movimento feminista, que vem ao longo do tempo pautando reflexões sobre a construção social do gênero feminino e das violações vivenciadas cotidianamente pelas mulheres, para as idosas, esta realidade ainda é muito presente e cruel. Hegemonicamente há em torno da imagem delas uma associação da identidade feminina à esfera doméstica, de reprodução da família (BELO, 2017BELO, I. Velhice de mulher. In: COSTA, J. S. et al. (Eds.). Aproximações e ensaios sobre a velhice. Franca, SP: UNESP, 2017. 210 p.). Ou seja, anula-se a sua condição feminina parecendo um
[...] despropósito perguntar se as mulheres com mais de 60 anos de idade devem ser consideradas mulheres ou apenas idosas. No entanto, no cotidiano desse coletivo, são frequentes as situações que se apresentam tendo por base esta contradição, como se elas deixassem de ser mulheres, passando apenas à condição de velhas. [...] Esta ambiguidade traz à tona o preconceito enraizado no senso comum - mas também presente em parte dos estudos sobre o envelhecimento e nas políticas públicas - de apenas considerar as demandas da mulher em sua fase reprodutiva (BELO, 2017BELO, I. Velhice de mulher. In: COSTA, J. S. et al. (Eds.). Aproximações e ensaios sobre a velhice. Franca, SP: UNESP, 2017. 210 p., p. 120).
As relações sociais que embasam a construção social das mulheres idosas produzem diferenças que se expressam nos mais diferentes âmbitos de suas vidas, destacamos aqui, a forma desigual com a qual elas são assistidas pelo Estado. No tocante à saúde, esse fato fica claro ao se perceber que a maioria das políticas e programas são voltados ainda para as mulheres em fase reprodutiva e materno-infantil.
Evidenciamos a assistência prestada ao Câncer do Colo do Útero (CCU) que, embora seja uma doença com alto poder de prevenção e cura e lento processo de instalação, mantém, no país, altos índices de morbimortalidade (BRASIL, 2013; INCA, 2011; SANTOS, 2011SANTOS, D. L. P. Análise do Sistema de Informação do Câncer do Colo Uterino em Pernambuco: 2007 a 2009. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2011.; SILVA et al., 2014SILVA, K. B. et al. Integralidade no cuidado ao câncer do colo do útero: avaliação do acesso. Revista de Saúde Pública, v. 48, n. 2, p. 240-248, 2014.).
Dados apontam que, em se tratando do carcinoma invasor, ocorre elevação na sua incidência a partir dos 30 anos, com um novo pico aos 60 anos (FLORIANO et al., 2007FLORIANO, M. I.; ARAÚJO, C. S. A.; RIBEIRO, M. A. Conhecimento sobre fatores de risco associados ao câncer do colo uterino em idosas de Umuarama-PR. Arquivos de Ciência e Saúde Unipar. Umuarama, v. 11, n. 3, p. 199-203, 2007.; INCA, 2001). Silva (2014SILVA, K. B. et al. Integralidade no cuidado ao câncer do colo do útero: avaliação do acesso. Revista de Saúde Pública, v. 48, n. 2, p. 240-248, 2014.), em estudo realizado em município do estado de São Paulo, encontrou uma cobertura para o exame de Papanicolaou insuficiente e concentrada em mulheres mais jovens, ao mesmo tempo em que os diagnósticos mais graves prevalecem em mulheres com idade mais avançada.
Esses resultados corroboram os estudos realizados por Albuquerque (2009ALBUQUERQUE, K. M. et al. Cobertura do teste de Papanicolau e fatores associados à não realização: um olhar sobre o Programa de Prevenção do Câncer do Colo do Útero em Pernambuco, Brasil. Caderno de Saúde Pública. Rio de Janeiro, v. 25, sup 2, p. S301-S309, 2009.) e Santos (2011SANTOS, D. L. P. Análise do Sistema de Informação do Câncer do Colo Uterino em Pernambuco: 2007 a 2009. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2011.), no estado de Pernambuco, Villa (2009VILLA, M. C. E.; PEREIRA, W. R. As políticas públicas e a atenção ao câncer do colo do útero no Estado de Mato Grosso - uma abordagem crítica. Revista Eletrônica de Enfermagem, v. 11, n. 4, p. 1037-42, 2009.), em Mato Grosso, e Vilaça et al. (2012VILAÇA, M. N. Diferenças nos padrões de tratamento e nas características epidemiológicas entre pacientes idosas e adultas portadores de câncer do colo do útero. Revista Brasileira de Cancerologia, v. 58, n. 3, p. 497-505, 2012.), em Minas Gerais, os quais constataram essa mesma tendência. Contudo, apenas em 2011 o INCA ampliou a faixa-etária prioritária para o rastreio de mulheres em risco para desenvolvimento do CCU para 64 anos, já que antes era apenas até os 59 anos.
Especificamente sobre o câncer do colo do útero em mulheres idosas, se identifica que elas não costumam ser recrutadas para a realização do exame que previne a doença. Dessa forma, muitas convivem com os fatores iniciadores durante um longo período e, quando descobrem a doença, já está em avançado estágio. De acordo com dados do Datasus (2012), só no ano de 2011 mais de duas mil mulheres idosas morreram no país em decorrência deste tipo de neoplasia.
Como visto, incontáveis pesquisas confirmam a realidade vivida por inúmeras mulheres idosas no que diz respeito ao cuidado à sua saúde e também ao CCU. Todavia, esses estudos não ultrapassam os limites epidemiológicos, escamoteando de suas discussões as determinações sociais que interferem diretamente na vida dos sujeitos. É nesse sentido que propomos a construção desse artigo voltado para a compreensão da relação do processo de adoecimento de mulheres idosas em seguimento para o câncer do colo do útero por meio da aproximação com as suas histórias de vida.
Caminho metodológico
O presente artigo se ancora na abordagem qualitativa, concordando com Minayo (2002MINAYO, M. C. S. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. In: ______. Ciência, técnica e arte: o desafio de pesquisa social. Petrópolis: Vozes, 2002.) ao se preocupar com um nível de realidade que não pode ser quantificado, trabalhando com o universo de significados, motivações, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações.
Encontramos na abordagem da História de Vida uma possibilidade de proporcionar um encontro com a vida de diferentes mulheres, dando visibilidade às suas memórias. A História de Vida se apresenta como uma possibilidade privilegiada de análise e interpretação que possibilita acesso às diversas dimensões que influem na vida de um sujeito (MARANGONI; OLIVEIRA, 2012MARANGONI, S. R.; OLIVEIRA, M. L. F. Uso de crack por multípara em vulnerabilidade social: história de vida. Revista Ciência Cuidado e Saúde, v. 11n. n. 1, p. 166-172, jan-mar, 2012.). À medida que as pessoas falam, podemos ter acesso às suas experiências, o que se dá de maneira indireta, pois, elas trazem as informações da maneira como perceberam e interpretaram para si os acontecimentos (SILVA; TRENTINI, 2002SILVA, D. M. G. V.; TRENTINI, M. Narrativas como técnica de pesquisa em Enfermagem. Revista Latino-Americana de Enfermagem, v. 10, n. 3, p. 423-432, maio-jun. 2002; ROCHA-COUTINHO, 2006ROCHA-COUTINHO, M. L. A narrativa oral, a análise de discurso e os estudos de gênero. Estudos de Psicologia, v. 11, n. 1, p. 65-69, 2006.).
O método de História de Vida é um método científico com toda força, validade e credibilidade de qualquer outro método, sobretudo porque revela que por mais individual que seja uma história, ela é sempre, ainda, coletiva (SILVA et al., 2007SILVA, A. P. et al. “Conte-me sua história”: reflexões sobre o método de História de Vida. Mosaico: estudos em psicologia. Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 25-35, 2007., p. 33-34).
O presente estudo foi realizado no Hospital do Câncer de Pernambuco, referência há mais de 70 anos no cuidado oncológico, sendo responsável por atender mais de 55% da população em tratamento para neoplasia do estado (HOSPITAL DO CÂNCER DE PERNAMBUCO, 2015). A escolha dos sujeitos participantes da pesquisa foi baseada na análise diária dos prontuários de mulheres acima de 60 anos, que residissem no estado de Pernambuco e estivessem em seguimento para o câncer do colo do útero na Instituição.
Foi priorizado que as mesmas fossem provenientes de diferentes localidades do estado, abrangendo região metropolitana, zona da mata e sertão. A partir da concordância delas, foram realizadas entrevistas em profundidade, nos dias em que elas tinham consultas agendadas, no período de janeiro a março de 2016. Ao final, participaram da pesquisa cinco mulheres idosas que tinham entre 62 a 89 anos.
Para a análise de dados foi utilizada a narrativa, a fim de ampliar a possibilidade de compreensão acerca da vida dessas mulheres. Para Castellanos (2014CASTELLANOS, M. E. P. A narrativa nas pesquisas qualitativas em saúde. Ciência & Saúde Coletiva, v. 19, n. 4, p. 1065-1076, 2014.), por meio das narrativas, o sujeito traduz uma forma de ser no mundo. Neste trabalho, o foco das narrativas foram as histórias de vida das mulheres e não a enfermidade em si. As falas das entrevistadas foram sintetizadas, realçando os aspectos das suas trajetórias de vida, resultando em narrativas individuais que, apesar de apresentarem algumas semelhanças entre elas, são vivencias singulares.
Os nomes adotados nos resultados garantem o anonimato, atendendo às exigências dos Comitês de Ética em Pesquisa (CEP) em que o trabalho foi submetido e aprovado - CEP da Universidade Federal de Pernambuco, sob o número do CAAE 50815615.0.0000.5208, e da Instituição onde o estudo foi realizado. Esta pesquisa é parte integrante de projetos financiados pela Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco (FACEPE) e CNPq.
Resultados
As histórias de vida obtidas neste estudo são caracterizadas pelo relato individual de cada uma das cinco mulheres que, embora não se conheçam, têm muito mais em comum que apenas o acometimento por CCU. A trajetória dessas mulheres por cuidados em saúde é permeada por caminhos diversos e difusos, nos quais a porta de entrada no sistema de saúde se configura, em sua maioria, já na alta complexidade.
A falta de acesso ao direito básico à informação é um fator determinante em seus processos de adoecimento, uma vez que elas desconheciam a importância da realização periódica do exame preventivo do CCU, assim como a doença em si. Além de terem muitas dúvidas e incertezas do que enfrentariam em seus tratamentos, o diagnóstico de câncer transforma-se, para algumas delas, em uma sentença de morte. O medo passa a ser um companheiro inseparável ao longo de parte do tratamento, bem como as dificuldades financeiras transformam-se em uma constante.
Essas determinações estão diretamente relacionadas com as histórias de vida dessas mulheres apresentadas a seguir.
Cora (62 anos)
Eu moro lá no sítio [...] pra cidade é duas léguas e meia [...] Pai não botou a gente na escola não, ele não deixava. Eu merma não estudei. [...] Eu tinha vontade de estudar e ele nunca botou. Só botou nós pra trabalhar de roça, plantar feijão, limpar mato. Era só na roça, trabaiano de enxada. [...]. Aí só é mermo assim: minha casa e a roça e pronto. Trabalhava na roça, meu marido também, meus filho, tudinho [...]! Eu casei de idade. Eu não tinha vontade de casar, não. Tinha vontade de ficar solteira. Porque eu via o sofrimento de minhas irmã, via elas sofrendo. Aí eu dizia “quem sabe se eu não vou sofrer também” [...]. Quando eu vi ele, me apaixonei por ele, aí casei. Eu casei com vinte nove anos, nos trinta anos foi que eu fui mãe, três filhos. [...] Eu nunca tive vida boa não, só trabaiano mermo e cuidando dos menino. [...] Minha menstruação acabou uns cinco anos atrás. Quando foi 2014, apontou uma água. Aí, dessa água, fui pra Petrolina. Quando cheguei lá, a médica fez um exame, disse que eu não tinha nada, mas era doença já: começo de câncer.. E o dia foi passando, o tempo foi passando e depois da água apareceu o sangue. Aí eu sangrei um ano. Aí de um ano eu vim pra cá, comecei o tratamento. Aí fiz o tratamento todinho. Aí agora já tô bem [...]. Eu fazia preventivo, mas encostei. Passei uns três ano mais ou meno... eu fiquei assim pensando: eu já tinha feito os três exame aí, aí depois eu fiquei pensando: “oxente, e a pessoa precisa fazer todo ano, é?”.
Dorothy (64 anos)
Eu só tinha pai. Minha mãe tinha falecido já [...] eu tava na faixa de 10 pra 11 anos. Foram 06 filhos, 05 irmãos [...]. Me sentia responsável pelos meus irmãos, porque a gente não tem mãe aí tem que fazer as coisas pra gente, tomar conta de casa pra gente. Eu fiquei tomando conta da casa, fiquei tomando conta da minha família [...] E eu não botei na cabeça pra estudar não. Eu trabalhava era na lavoura, eu limpava feijão, plantava batata, já passei muitos anos raspando mandioca. Eu gostava era de viver pelos matos trabalhando na lavoura, limpava inhame, batata, apanhava feijão verde, gostava muito [...]. Eu não casei não, eu ajuntei. A gente foi morar junto eu já tinha mais de 20 anos [...]. Ele trabalhava, eu fiquei em casa cuidando das coisas, foi aparecendo filho, fui cuidando dos filhos e depois não deu certo, separou [...]. Ele bebia muito [...]. Ele ficava violento, gostava não [...]. Eu já trabalhava, arrumava uns dinheirinho aí pagava o quarto, fazia compras, fazia comida pros meus filhos [...]. Depois arrumei outro que morreu [...]. Ele não bebia não, mas era igual ao que bebia, problemático. Cuidava dele, cuidava dos meninos e ainda tinha que cuidar dos meus filhos. Aí eu me separei e depois não quero ninguém mais não. Tive cinco filhos do primeiro e cinco do outro [...]. Não queria ter muito filho, mas não evitava, às vezes não falava e às vezes não sabia evitar não. [...]Depois que fiquei viúva ficava trabalhando em casa de família. Aí eu arrumava a casa, lavava prato, varria a casa. Eu nunca fiz os exames que as mulher faz, ai depois quando isso começou era dor, era dor, e eu acreditando que tava menstruando, menstruando, ai eu ia todo mês pro Dr, pra Dra e ninguém nunca falava nada. Quando foi numa semana, eu tava em casa só [...] deu um desmantelo n’eu, uma hemorragia”.
Simone (65 anos)
Eu perdi meu pai eu tava com 29 anos, não tenho mãe, não tenho irmão, não tenho irmã, tenho mais ninguém. Tenho só a família mesmo que eu construí, né? Marido, filho, neto. Mas primeira família não tenho mais nenhum [...]. Foi 18 irmão. Mas morreram tudinho. Só tem eu só. Sou a primeira e ainda tô aqui contando a história. Morreram de doença. Minha mãe saia muito, bebia, minha mãe era desse tipo de mulher assim, gostava de farrar, aí deixava os menino em casa tudo com aquela barrigona, os bichinho vomitando. E os menino comiam barro, comiam areia. [...] Eu metia o cacete em um, metia o cacete no outro, levava o menino pra tomar banho. Não tinha cama, os menino dormia num colchãozinho no chão. Amanhecia o dia cheio de sujeira, levava pro rio pra tomar banho, entendesse? Aí foi morrendo, foi morrendo. [...] Os bichinho era mago, amarelo, aí morreram tudinho. [...] Só escapou eu porque eu fui criada com meu pai, porque meu pai se separou dela, aí quem me criou mesmo foi minha madrasta. [...] Eu nunca estudei não. Meu pai nunca me botou num colégio não. Botava pra trabalhar. Carregava almoço pra fábrica. Carregava almoço, carregava café. Ganhava um trocadinho, dava a meu pai pra ele comprar as coisas dentro de casa. [...] Nunca estudei. Nunca. Eu tinha muita vontade de estudar. Eu ia levar os menino pro colégio, ficava na porta... Não tinha condições, né? [...]Era só trabalhando. Eu não sabia que tinha câncer. Nunca tive uma prevenção. Então fiquei perdendo sangue durante 6 meses. [...] Cheguei lá e a médica não consegue fazer a prevenção, porque tava muito sangue dentro. [...] Aí ela pegou e marcou pra vir, aí aqui é que descobriu que eu tava com câncer já avançado.
Chiquinha (77 anos)
Eu fui criada sem mãe, mãe morreu bem novinha, pai morreu com sessenta anos, aí deixou três irmão. Eu sou a mais velha de tudinho. Aí morreu meus irmãos tudo do coração, os bichinhos era “pofi”, caindo e morrendo. Quando mãe morreu foi minha vó quem me criou e quando pai morreu eu já tava grande [...] já foi eu que cuidei dele. [...] Eu não estudei porque no tempo que eu fui criada tinha os estudos quando os pais pagava. Fiquei em casa lutando, só lutando dentro de casa, pai ficou viúvo e eu sou a mais velha, eu cozinhava de comer, aprendi a cozinhar de comer pra ele na roça, trabalhando e eu cozinhando de comer e conversando mais minhas colegas [...]. Arrumei um namoradinho quando eu já tava grande. Não casei não, quando eu ia casar com ele aí eu fiquei com ele, ai tive meus filhos, [...] tinha trinta e cinco anos quando eu tive meu derradeiro fi. [...] No tempo que eu tive meus meninos nós num ia pra hospital não, tinha tudo era em casa. [...].e eu disse nunca mais eu nem faço ligação nem quero mais homem, nem que ele venha coberto de ouro. Fui trabalhando, fiquei trabalhando que meus meninos eram desse tamainho pequenininho, tudo pequenininho quem criou foi eu trabalhando, eu trabalhava pra mim, trabalhava pras mulher tudo, fazia uma coisa pra uma mulher, fazia uma coisa pra outra, lavando roupa, lavando roupa pra elas, panhando feijão na roça, quebrando milho, tudo isso eu fiz minha filha, tudo isso pra viver. [...] Quando foi com um tempo eu comecei menstruar, ai eu disse agora eu vou morrer porque velho menstruando, num instante morre. [...] aí fui pro Doutor, comecei caminhar para Araripina, que eu sou pobre não tenho dinheiro não, não tenho nada, aí comecei a caminhar pra Araripina pro Doutor e lá, ai gastei minha filha, gastei assim mesmo sem ter, aí eles fizeram uns exames véi neu tudinho ai disseram: a senhora tem um mioma, é um mioma e já está velho esse mioma, aí eu disse e agora como é? Fiz uma biópsia, essa doeu pra lascar, com 15 dias que a biópsia chegou. Aí eles disse vou mandar a senhora ir pra Recife”. Cheguei aqui já sofri, já chorei, já fiz toda bagunça[...], já passei por uns exames muito ruins mas fiquei boa, fiquei boa do negócio do incômodo que eu tava sentindo, fiquei boa.
Maria (89 anos)
Tenho oitenta e nove anos, certinho [...] A gente do interior começa cedo no trabalho pesado, com cinco ano já começa fazendo serviço de casa. Comecei a trabalhar com dez ano, trabalhei muito na enxada e ainda aprendi a costurar, que eu costurava minhas roupa. Papai comprava aquelas enxadinha pequenininha batidinha e acunhava bem [...] A vida do interior é isso. [...] Comecei a trabalhar muito cedo. Eu e todo mundo do interior. [...] Eu só estudei um ano e seis mese, porque papai me tirou da escola quando viu que eu aprendi a ler. Tinha uma boa memória. Eu aprendi a ler, a escrever, que eu escrevia até carta [...]. Me botaram na escola no meio de setembro, do mês de setembro, eu passei setembro, outubro, novembro, dezembro, fiz primeira comunhão. Eu já era moça, tinha catorze. Aí, me tiraram da escola pra fazer a colheita. Eu passei não sei quantos meses sem ir pra escola. Voltei pra escola em janeiro. Estudei em janeiro, fevereiro e março. Depois saí da escola pra fazer a planta da roça. Papai cavando e eu plantando. Quando eu terminei de plantar tudinho, voltei pra escola. Então, estudei assim, não foi nem um ano e seis mês, não. Aprendi a ler e a escrever e a contar porque eu tinha uma boa memória. Eu tinha quinze ano quando ele me tirou da escola, não voltei porque ele não deixou [...] Casei com dezessete, na casa dos dezoito. [...] Eu fui casada com ele sessenta e cinco ano e ele morreu agora [...] Eu era tão ruim no mundo que eu ficava grávida e perdia [...]. Assim mermo, eu ainda tive oito. A gente trabalhou direto na venda. Meu marido sentiu folgado com dinheiro e foi dar uma de solteirão. Mas ele não soube possuir dinheiro. Tem homem que não sabe possuir dinheiro [...]. Começou namorando, começou saindo. Os menino tomava mais conta da venda do que ele. Eu fiquei tomando conta da casa também. Mas a gente quando é casado, o marido da gente é que é dono de tudo, quem pega no dinheiro, quem faz tudo [...]. Ele deixou o instituto dele pra mim. Aí, eu tenho a renda do instituto, que ele não pagou meu instituto, mas pagou o dele.[...] Eu descobri o câncer porque eu fui fazer exame de prevenção. [...] Ai, deu câncer. Aí, só que eu aceitei a doença do câncer, né? Eu não fiquei desesperada, pensando que ia morrer, pensando que não tinha cura. Eu não. Fui cuidar e tratar da minha doença.
Discussão
O encontro com os relatos sobre a história de vida dessas mulheres nos leva a uma série de reflexões. São narrativas de sobreviventes de uma sociedade violenta para com elas. Essas mulheres, por inúmeras vezes, foram desconsideradas enquanto sujeitos, como se elas existissem apenas para satisfazer os mais diferentes desejos dos pais, companheiros e da sociedade que determinam o que elas podem ser, o que podem querer e até onde podem chegar.
Ao escolher o uso da modalidade violência de gênero, entende-se que as ações violentas são produzidas em contextos e espaços relacionais e, portanto, interpessoais, que têm cenários societais e históricos não uniformes. A centralidade das ações violentas incide sobre a mulher, quer sejam estas violências físicas, sexuais, psicológicas, patrimoniais ou morais, tanto no âmbito privado-familiar como nos espaços de trabalho e públicos. Não se trata de adotar uma perspectiva ou um olhar vitimizador em relação à mulher, o que já recebeu críticas importantes, mas destacar que a expressiva concentração deste tipo de violência ocorre historicamente sobre os corpos femininos e que as relações violentas existem porque as relações assimétricas de poder permeiam a vida rotineira das pessoas (BANDEIRA, 2014BANDEIRA, L. M. Violência de gênero: a construção de um campo teórico e de investigação. Revista Sociedade e Estado, v. 29, n. 2, maio-ago. 2014., p. 451).
Nessa perspectiva, a negação do acesso à educação por parte de suas famílias revela além do machismo, uma condição concreta de vida, na qual crianças precisavam contribuir com seu trabalho para possibilitar a sobrevivência da família. Confirmam também os danos que a ausência de legislações com vistas às garantias sociais pode acarretar na vida dos sujeitos.
A ausência do estudo fez com que nos dias atuais elas se somassem à estatística do conjunto de idosos analfabetos no país. Estudo etnográfico de Kullok (2012KULLOK, A. T. A força e o vigor da mulher idosa rural. Estudo Etnográfico sobre Envelhecimento em Dom Modesto, Caratinga-MG. Tese (Doutorado em Ciências) - 2012. Fundação Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro, 2012.) realizado com mulheres idosas no meio rural, aponta que o grau de escolaridade entre elas era muito baixo, nenhuma conseguiu completar o primeiro grau. Algumas sabiam escrever apenas o seu nome, pois, naquela época, aprendiam o suficiente apenas para assinar os papéis do casamento. Assim como em nosso estudo, Kullock identificou idosas que externaram a sensação de exclusão, de tristeza e até de revolta diante da impossibilidade de acesso escolar. A autora também observou que o trabalho infantil era a norma, quer nas atividades agrícolas quer dentro das casas.
Peres (2010PERES, M. A. C. Velhice e analfabetismo, uma relação paradoxal: a exclusão educacional em contextos rurais da Região Nordeste. Revista Sociedade e Estado, v. 26, n. 3, set-dez. 2010.) aponta que, embora tenhamos hoje o Programa de Educação de Jovens e Adultos (EJA), como única alternativa educacional destinada à população “fora da idade escolar”, esse não foi um Programa pensado para a população idosa, considerando suas particularidades, mas, sim, para o conjunto dos adultos, sem diferenciação.
Não obstante a família constituir um espaço importante de proteção social, principalmente após a diminuição no papel do Estado na garantia e defesa dos direitos sociais, ela é permeada por um emaranhado de complexidades e se organiza de acordo com a realidade na qual está inserida e que é determinada historicamente. Ao analisar esse aspecto, a partir dos relatos, fica claro que refletir sobre essas mediações se torna um exercício fundamental.
Todas as mulheres apresentaram uma relação com o trabalho desde a infância, tanto o doméstico quanto na agricultura e, mesmo após a passagem dos anos foi o trabalho que garantiu as suas sobrevivências, assim como a de suas famílias.
A divisão sexual do trabalho, que se revela não apenas na diferenciação entre trabalhos considerando feminismos e masculinos, mas, também, na hierarquia e na desigualdade no acesso aos meios de produção, ao trabalho e à riqueza por ele produzida. Com isso, postos de trabalho considerados masculinos são mais valorizados e mais bem remunerados, enquanto os considerados femininos são desvalorizados e alguns sequer considerados trabalho, como é o caso do doméstico (CISNE, 2015CISNE, M. Direitos humanos e violência contra as mulheres: uma luta contra a sociedade patriarcal-racista-capitalista. Serv. Soc. Rev. Londrina, v. 18, n. 1, p. 138-154, jul-dez. 2015., p. 140).
Kullock (2012) observou ainda que era por meio da pensão ou da aposentadoria que algumas famílias se sustentavam ou complementavam a renda familiar, ao mesmo tempo em que não encontrou nenhuma idosa que se autodeclarasse chefe de família. Esse dado difere de nosso estudo, o qual identificou que a maioria das mulheres idosas entrevistadas eram as responsáveis por manter as suas famílias.
Embora em suas narrativas as mulheres não abordem diretamente as questões voltadas para a sexualidade, principalmente porque o tema ainda é visto comumente como um tabu, percebemos as fortes relações de gênero que marcam as vidas delas. Questões como casamento e maternidade, embora sejam alvo de questionamentos acerca do desejo para concretização por parte de algumas, ocorrem quase como um dado natural, como se não pudessem existir alternativas de escolhas para elas ao longo da vida.
A análise da sexualidade, da procriação e da maternidade foi colocado no centro da teoria feminista e da história das mulheres. Em particular, as feministas colocaram em evidência e denunciaram as estratégias e a violência por meio das quais os sistemas de exploração, centrados nos homens, tentaram disciplinar e apropriar-se do corpo feminino, destacando que os corpos das mulheres constituíram os principais objetivos - lugares privilegiados para a implementação das técnicas de poder e das relações de poder (FEDERICI, 2004FEDERICI, S. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução do coletivo Sycorax, 2004. Disponível em <https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4196118/mod_resource/content/1/Federici%2C%20S.%20%282004%29.%20Caliba%20e%20a%20bruxa_mulheres%2C%20corpo%20e%20acumula%C3%A7%C3%A3o%20primitiva.%20Cap%C3%ADtulo%20IV.pdf> Acesso em: 15 out. 2019.
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.p... , p. 22).
Observamos por meio das narrativas, a impossibilidade dessas mulheres idosas, ao longo de toda vida, realizarem escolhas que envolviam o seu próprio corpo e essa realidade permanece nessa fase da vida e agora acometida por uma morbidade.
Na sociedade capitalista, o corpo é para as mulheres o que a fábrica é para os homens trabalhadores assalariados: o principal terreno de sua exploração e resistência, na mesma medida em que o corpo feminino foi apropriado pelo Estado e pelos homens, forçado a funcionar como um meio para a reprodução e acumulação do trabalho. Nesse sentido, é bem merecida a importância que adquiriu o corpo, em todos os seus aspectos - maternidade, parto, sexualidade, tanto dentro da teoria feminista quanto na história das mulheres (FEDERICI, 2004FEDERICI, S. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução do coletivo Sycorax, 2004. Disponível em <https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4196118/mod_resource/content/1/Federici%2C%20S.%20%282004%29.%20Caliba%20e%20a%20bruxa_mulheres%2C%20corpo%20e%20acumula%C3%A7%C3%A3o%20primitiva.%20Cap%C3%ADtulo%20IV.pdf> Acesso em: 15 out. 2019.
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.p... , p. 25).
Não por menos, é um verdadeiro tabu discutir envelhecimento e sexualidade. Debert e Brigeiro (2012DEBERT, G.; BRIGEIRO, M. Fronteiras de gênero e a sexualidade na velhice. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 27, n. 80, out. 2012.) relatam que o ideário em torno da sexualidade surgiu enquanto consenso nas últimas três décadas. Mas visualiza-se no final do século XX, maior destaque ao debate em torno da sexualidade na velhice. Uma das hipóteses é a de que com o aumento do número de pessoas idosas no conjunto da população, há um maior interesse do mercado de bens e consumo em transformar a experiência nessa fase da vida (PASSAMANI, 2017PASSAMANI, G. “É ajuda, não é prostituição”. Sexualidade, envelhecimento e afeto entre pessoas com condutas homossexuais no Pantanal de Mato Grosso do Sul. Cadernos Pagu, v. 51, p. e175109, 2017.).
No entanto, mesmo na velhice, as experiências em torno da sexualidade se dão de maneiras diferentes entre homens e mulheres. As relações de gênero estão intimamente relacionadas à forma como o exercício da sexualidade se dá em determinado contexto. Em nossa sociedade, homens e mulheres são construídos socialmente de maneiras muito distintas. As representações sociais construídas nesse processo são advindas do modo de conceber a sociedade (HEILBORN, 2006HEILBORN, M. L. Entre as tramas da sexualidade brasileira. Estudos Feministas. Florianópolis, v. 14, n. 1, p. 336, jan-abr. 2006.). Os estudos apontam que a construção social dessas mulheres foi marcada por um maior controle, o que torna mais difícil o pleno desenvolvimento da sexualidade nessa fase da vida (DEBERT; BRIGEIRO, 2012DEBERT, G.; BRIGEIRO, M. Fronteiras de gênero e a sexualidade na velhice. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 27, n. 80, out. 2012.). Ao mesmo tempo, os autores defendem que a velhice seria o momento ideal para essa libertação da mulher uma vez que não há mais a forte cobrança pela responsabilidade com os filhos, maridos e casa, além da longa experiência de vida acumulada.
Há uma relação direta entre a vida sexual dos indivíduos ao contexto sociocultural no qual estão inseridos, em consequência, as práticas sexuais se diferenciam a depender dos referenciais que norteiam esse grupo social (HEILBORN, 2006HEILBORN, M. L. Entre as tramas da sexualidade brasileira. Estudos Feministas. Florianópolis, v. 14, n. 1, p. 336, jan-abr. 2006.). Embora a vivência da sexualidade para as mulheres seja repleta de desafios, principalmente para as mulheres idosas, essa é uma dimensão da vida que é experenciada por muitas delas. Esse também tem sido um esforço praticado por especialistas da área que entendem hoje a sexualidade como uma questão fundamental para o envelhecimento ativo (HENNING; DEBERT, 2015HENNING, C. E.; DEBERT, G. G. Velhice, gênero e sexualidade: revisando debates e apresentando tendências contemporâneas. Estudos sobre Envelhecimento, v. 26, n. 63, dez. 2015.; DEBERT; BRIGEIRO, 2012). Gênero e sexualidade constituem-se enquanto determinantes sociais da saúde em articulação aos demais (Gomes et al., 2018GOMES, R. et al. Gênero, direitos sexuais e suas implicações na saúde. Ciência & Saúde Coletiva, v. 23, n. 6, p. 1997-2005, 2018.).
A sexualidade também possui relação direta com o CCU, assim, atribui-se ao preconceito, à falta de informação e à sua visualização como um ser assexuado, o fato de esse público não ser comumente rastreado para a realização das ações preventivas (COSTA et al., 2010COSTA, C. C. et al. Realização de exames de prevenção do câncer cérvico-uterino: promovendo saúde em instituição asilar. Revista Rene. Fortaleza, v. 11, n. 3, p. 27-35, 2010.).
As narrativas apontam para um desconhecimento sobre a doença e também os diferentes meios para sua prevenção. Pesquisa realizada por Santos et al. (2011SANTOS, D. L. P. Análise do Sistema de Informação do Câncer do Colo Uterino em Pernambuco: 2007 a 2009. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2011.), com cinquenta mulheres idosas que procuraram atendimento espontâneo em uma Unidade de Saúde da Família - USF no estado do Piauí, constatou que as entrevistadas conheciam o câncer do colo do útero e quase sempre esse saber estava relacionado ao acometimento da patologia por alguém próximo, ou mesmo por terem lido ou ouvido falar sobre o assunto.
Sobre a relação delas com o Papanicolaou percebemos que apresentam anseios e medos diante do exame. Costa et al. (2010COSTA, C. C. et al. Realização de exames de prevenção do câncer cérvico-uterino: promovendo saúde em instituição asilar. Revista Rene. Fortaleza, v. 11, n. 3, p. 27-35, 2010.) realizaram um estudo com mulheres idosas que revelou que, quando indagadas sobre o exame de Papanicolaou, 21,7% das mulheres revelaram nunca o ter realizado. Elas alegaram o não interesse em fazê-lo por diversos motivos: não estar com vida sexual ativa; o medo e a vergonha; não achavam o exame importante diante da proximidade da morte. A pesquisa ainda encontrou que, das mulheres entrevistadas, 63,9% não tinham regularidade na realização dos exames.
Outra pesquisa realizada por Fernandes et al. (2009FERNANDES, J. V. Conhecimentos, atitudes e prática do exame de Papanicolaou por mulheres, Nordeste do Brasil. Revista de Saúde Pública, v. 43, n. 5, p. 851-858, 2009.) com mulheres com idades entre 15 e 69 anos constatou que 46,1% das entrevistadas mostraram conhecimento adequado em relação ao exame, sendo que o maior grau de escolaridade apresentou associação com o maior número de conhecimento. Entre as principais barreiras para a não realização do exame foi citada a vergonha.
Santos et al. (2015SANTOS, A. M. R. et al. Câncer de colo uterino: conhecimento e comportamento de mulheres para prevenção. Revista Brasileira de Promoção da Saúde. Fortaleza, v. 28, n. 2, p. 153-159, abr-jun., 2015.), em estudo com mulheres entre 25 e 64 anos atendidas em uma Unidade de Saúde na cidade de Maceió (AL), concluíram que, apesar do alto número de mulheres encontradas que faziam o exame preventivo, muitas desconheciam sua verdadeira finalidade, outras se sentiam envergonhadas e constrangidas durante sua realização.
As narrativas apresentadas revelam falhas do sistema público de saúde diante do não rastreio dessas mulheres para a realização das ações preventivas da doença, não apenas na velhice, mas ao longo de suas vidas. Ao mesmo tempo, é importante destacar que suas histórias mostram o acesso ao serviço terciário e ao tratamento de saúde ainda em tempo oportuno, possibilitando que agora essas mulheres, já em seguimento para o câncer de colo do útero, possam continuar vivendo as suas vidas.
Considerações finais
As histórias de vida retratadas nos transportam para a realidade de vida de mulheres idosas e revelam que não diferem da realidade para este público no país. O processo de adoecimento ocorre diante das inúmeras ausências do Estado ao longo de todas as suas vidas.
Faz-se necessário dialogar mais, construir ações coletivas que compreendam quem são essas mulheres, assim como seus medos e receios. Destacamos, ainda, a necessidade de um olhar diferenciado para a mulher idosa. Porque, além das questões biológicas e fisiológicas ocasionadas pelo processo de envelhecimento, essas mulheres são resultado de um constructo de diversas determinações sociais, históricas, culturais, que interferem diretamente no modo de entender e enfrentar a vida, perpassando por sua relação com a saúde. O cuidado integral a essas mulheres deve considerar a relação delas com seu corpo e seus sentimentos diante dos significados do adoecimento e seus rebatimentos para a vida delas.
O método de pesquisa escolhido possibilita ao entrevistador e, arriscamos dizer, ao leitor, uma inserção no lugar do entrevistado, oportunizando a aproximação a uma realidade hegemonicamente discutida apenas a partir de números, mas, que nessa perspectiva, revela a possibilidade de aproximação a uma riqueza de sentidos e significados, ultrapassando a ideia tradicional e restrita acerca do conceito de saúde, apreendendo-a em sua relação com os diversos determinantes sociais.11 N. M. Costa: concepção e delineamento do estudo, coleta e análise de dados, redação do artigo. A. F. B. Bezerra e K. S. de B. e Silva: concepção e delineamento do estudo, análise de dados, revisão crítica do artigo.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
15 Nov 2021 - Data do Fascículo
2021
Histórico
- Recebido
27 Dez 2019 - Aceito
13 Mar 2020 - Revisado
23 Mar 2021