Tradicionalmente pautada por diferentes vertentes de interesses, a máxima de que “todo homem tem garantidos os direitos à saúde e à vida” parece ser aceita por quase todas as sociedades modernas. Ainda que descontada alguma sobra de aforismo, a proposição marcha vívida e robusta em muitos discursos, muito embora ainda resista uma larga separação entre a retórica e a tibieza da prática cotidiana. Apesar das milhões de mortes por falta de vacinas em diferentes partes do mundo, outros tantos milhões de vidas são salvas anualmente, ao longo de décadas e de todo o globo, de doenças passíveis de prevenção vacinal (ORENSTEIN & AHMED, 2017Orenstein WA, Ahmed R. Simply put: Vaccination saves lives. Proc Natl Acad Sci USA. 2017; 114(16); 4031-4033. doi: 10.1073/pnas.1704507114
https://doi.org/10.1073/pnas.1704507114... ). Tratadas como direito basilar, as vacinas e a vacinação se misturam com o conceito mais abrangente de saúde pública.
Como que servindo de espelho, reza nossa Carta Magna, em seu artigo 6o, ser a saúde um direito de todos e um dever do Estado (BRASIL, 1988). Todavia, é pertinente o acrescer que a saúde é também uma responsabilidade coletiva, sobretudo quando evocamos nossos direitos e deveres sociais. Isto parece inequívoco enquanto aguardamos, para dentro em breve, a vacinação em massa contra a COVID-19 em ritmo mais acelerado. Ao abdicar-se da obrigatoriedade vacinal, como já acontece por força de lei e governança em certas localidades do Brasil e do mundo, surge somada da válida liberdade, o que costumamos chamar de responsabilidade. Como sedimentado pelo positivismo, influente corrente de pensamento que rege o lema escrito de nossa bandeira, assinala-se: “Liberdade é o direito de fazer o próprio dever”. De fato, ao nos protegermos pela vacinação, protegemos também o outro, que pode estar representado pelo pai, a mãe, o filho ou o vizinho nosso de cada dia.
Ante a pandemia da COVID-19, que já se arrasta em escala global para os idos de 18 meses, não há espaço para o titubear. São necessárias ações rápidas e conjuntas entre governos, autoridades técnicas e a população. Conclamado o bom senso, é muito bem-visto e bem-vindo o enorme esforço científico mundial no desenvolvimento das vacinas em tempo recorde e em meio a própria pandemia. Fomos laureados com as novas vacinas em pouco mais de um ano. Deve-se reconhecer que esta conquista emblemática se deu por força da competência acumulada ao longo de décadas, pelo apoio em novas e mais robustas metodologias biotecnológicas, alto investimento global e esforço científico coletivo, além do diálogo mais fluido entre os entes desenvolvedores e regulatórios e a própria pressa imposta pela pandemia (BALL, 2021Ball P. What the lightning-fast quest for covid vaccines means for other diseases. Nature, 2021; 589; 16-18.). Uniões e esforços globais em torno de problemas comuns costumam produzir riquezas bastante polpudas e benefícios para além de cada quintal, embelezando a dignidade e fortaleza humanas.
Neste último segmento, brindar a Ciência e aplaudir os seus feitos é um direto para aqueles que assim escolham, ainda que lhes seja incumbida a responsabilidade permanente de zelar pelas medidas atuais de contenção sanitária até que a imunização de um amplo contingente populacional seja alcançada. Por outro lado, comparar o tempo de desenvolvimento de uma vacina atual com outras de 30-50 anos atrás, somado ao cenário de pandemia e urgência, parece não ser minimamente razoável, apenas para se ter como exemplo pontual. De fato, nos últimos 10 anos produzimos mais conhecimento fino e tecnologia de ponta que durante todos os 100 anos do século passado somados daqueles do início do século atual. Ainda que sejam importantes a leveza e a descontração, é responsabilidade travestida por direito não termos melindrado, troçado ou maroteado aquilo que sempre fora tido como sério e próprio da austeridade, a saúde e a doença. Para aqueles que anseiam e, sobretudo, para aqueles que não desejam se vacinar como lhes aprouver, não parece ser muito responsável e cauteloso o disseminar proposital de informações claramente equivocadas. Este expediente muito custa aos esforços coletivos para o fim da pandemia. Para este mal, a vacina é outra, a educação como direito primordial. A escola continua e sempre será melhor que o celular. Com efeito, não façamos chegar o ouro de tolo às mãos dos justos. Não sejamos o centauro, que neste caso, tem a própria flecha mirada contra si. O respeito pela saúde alheia é um direto humano e, natural e invariavelmente, um dever.
Devemos ter, pelo que rege a Constituição sob o traje genérico de saúde, não só o direito de acesso a uma ou mais vacinas seguras e eficazes, mas também o direito de as acessar rápida, livre e gratuitamente. Temos o direito de acesso às informações ou orientações que sejam transparentes e objetivas quanto às vacinas e à vacinação. Rogamos para que tenhamos como garantida a vacina ou as vacinas, tão logo as logísticas de regulação, de produção, de distribuição e de aplicação sejam satisfeitas, sem que empecilhos desnecessários sobreponham a urgência. É preciso pressa nestes passos, desde que não guiada pelo despropósito. É mister fazer cobrança pela rapidez da vacinação, como um direito devido, mas também é preciso respeitar os ritos e decisões técnicas que garantam a eficácia e segurança de cada vacina, como uma responsabilidade civil.
É preciso respeito e responsabilidade, dada a limitação de disponibilidade da vacina, as populações tidas como prioritárias naquela que será uma longa e suada fila de vacinação. Os prioritários somos nós ou como nós, homens e mulheres sobrevivendo no mundo em pandemia. Esses também são o pai, a mãe, o filho e o vizinho de toda casa de cada dia. Esses têm por dever do Estado, o direito técnico de serem atendidas em primeiro plano e isso também nos oferecerá proteção caso não estejamos nesta primeira parte da fila. Dada a flutuação em ondas da pandemia, quanto mais cedo caírem as curvas de mortalidade e de transmissão da doença, mais rapidamente e com menos danos recuperaremos nossa economia, liberdade e senso de vida normal, tão plenamente mirados e de direito.
Ultrapassando o dilema individual, enfrentamos aqui um evento ou caso de sujeição coletiva, de equidade ou justiça. É direito do cidadão cobrar e valer-se por sua saúde, esta última mais importante do que nunca, inclusive para economia e bem-estar social geral. Todos podemos ser vítimas ou algozes das decorrências e consequências finais da pandemia, ora afetados na saúde, ora na economia ou ainda na política, seja esta última de sustentação ou de oposição. Em seu devido tempo, o acesso a vacina é direito de todos, o que independe de cor, etnia, gênero, língua, opção sexual, localidade geográfica, situação judicial ou civil, credo religioso, atuação econômica ou social e orientação política (UNHR, 2021). Isto é, sem distinção e sem preferências ou paixões, afinal estamos todos passageiros de um mesmo barco. Finalmente e, todavia, rogar pela lembrança dos mais desamparados é também parte do Direito Social. Que a vacinação seja nossa liberdade e venha recheada de direito, mas também de responsabilidade, pois assim tão bem caminha a liberdade.
Referências
- Ball P. What the lightning-fast quest for covid vaccines means for other diseases. Nature, 2021; 589; 16-18.
- BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1990.
- Orenstein WA, Ahmed R. Simply put: Vaccination saves lives. Proc Natl Acad Sci USA. 2017; 114(16); 4031-4033. doi: 10.1073/pnas.1704507114
» https://doi.org/10.1073/pnas.1704507114 - United Nations Human Rights, Disponível em: https://www.ohchr.org/EN/NewsEvents/Pages/DisplayNews.aspx?NewsID=26484&LangID=E (acesso em 01/02/2021).
» https://www.ohchr.org/EN/NewsEvents/Pages/DisplayNews.aspx?NewsID=26484&LangID=E
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
16 Jul 2021 - Data do Fascículo
2021
Histórico
- Recebido
14 Fev 2021 - Aceito
13 Abr 2021 - Revisado
21 Maio 2021