A reconstrução da história é uma tarefa muito difícil, porque os caminhos do passado não são simples nem são lineares, e muitas vezes envolvem lembranças e emoções pessoais. Como no caso da história da criação do Sistema Único de Saúde, o maior sistema público de assistência média universal do mundo. Ele foi criado pela Constituição de 1988, que reconheceu a “saúde” como um direito universal, e como uma obrigação do Estado brasileiro. Mas antes de 1988, houve uma longa caminhada e grande mobilização de forças e organizações sociais que participaram da luta pelo reconhecimento constitucional desse direito do povo brasileiro. Essa luta teve muitas raízes e contribuições sociais, políticas e intelectuais, mas é possível também identificar alguns passos importantes que foram sendo dados dentro da própria burocracia do Estado, e em particular, dentro do INAMPS, com a criação do Programa de Pronta Ação (PPA), em 1975, uma primeira experiência de universalização da atenção de emergência universal e gratuita, mas que não durou muito tempo; e também a criação do programa de Ações Integradas de Saúde (AIS), em 1984.
No campo das ideias, entretanto, e da luta intelectual ou ideológica propriamente dita, deve-se destacar o papel fundamental que teve nesta história o Instituto de Medicina Social, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. O IMS foi criado no início dos anos 70, por um pequeno grupo de médicos e sanitaristas progressistas que conseguiram resistir e escapar do controle e da repressão política e intelectual da ditadura militar, e criar um programa de pesquisa e pós-graduação na área da Saúde Pública, incentivados pelo humanismo cristão do médico carioca Américo Piquet Carneiro, e liderados pelo entusiasmo e pela inteligência estratégica de dois médicos mais jovens, idealistas e de esquerda, os doutores Nina Pereira Nunes e Hesio Cordeiro. E foi graças à sua energia e à dedicação deste pequeno grupo inicial, e ao apoio que tiveram da Organização Panamericana da Saúde, que conseguiram reunir em torno do programa de pós-graduação criado em 1974, um grupo expressivo de profissionais igualmente jovens e progressistas, composto por médicos, epidemiólogos, sociólogos, psicanalistas, demógrafos, cientistas políticos, filósofos e economistas. E depois disto, os próprios fundadores do IMS se “submeteram” à condição de alunos da primeira turma experimental de mestrandos que se formou em 1976, como foi o caso do próprio Hesio Cordeiro, e de vários outros médicos, como Reinaldo Guimarães, José Noronha e João Regazzi, entre muitos outros, que depois ocuparam posições de destaque na formulação e gestão da política nacional de saúde das décadas seguintes.
Com o passar dos anos, e em particular na década de 1980, o IMS transformou-se num centro de reflexão intelectual multidisciplinar e heterodoxa de alto nível, e numa verdadeira “escola de poder”, onde se formaram vários ministros e secretários estaduais de Saúde, e vários presidentes e diretores da Fundação Oswaldo Cruz, e de muitos outros centros de excelência, nacionais e internacionais. E depois disto, e durante seus cinquenta anos de vida, o IMS acabou se transformando num dos principais - senão o principal - centro de formação da “inteligenzia sanitária” brasileira. Por ali passaram Michel Foucault, Giovani Berlinguer (que inspirou a reforma sanitária italiana), Ivan Illich, Mario Testa, Cristina Laurel e inúmeros outros intelectuais e sanitaristas de nome internacional que deram uma contribuição decisiva para o amadurecimento das três grandes linhas teóricas que mais contribuíram para a formação do pensamento crítico do IMS: a “medicina social alemã” de Rudolph Virchow; a crítica da “iatrogênesis médica”, do austríaco Ivan Illich; e a “microfísica do poder”, do francês Michel Foucault.
E foi dentro do Instituto de Medicina Social que nasceu, em 1975, a primeira proposta intelectual sistemática, e de esquerda, de um sistema universal de saúde, inspirado pelo National Health Service (NHS) inglês dos anos 40, e pela Reforma Sanitária italiana dos anos 70. A originalidade do IMS, naquele momento, foi ir além do puro exercício da crítica ao regime militar, para pensar o que fazer concretamente no campo da saúde brasileira no momento em que as forças progressistas conseguissem chegar ao poder, como aconteceu, pelo menos em parte, no período da “Nova República”, entre 1986 e 1990. Para formular a primeira proposta, um pequeno grupo de professores do IMS, liderados por Hesio Cordeiro, levou à frente, a partir de 1975, um trabalho de consulta às entidades sindicais e associações médicas do Rio de Janeiro, para construir em conjunto e de forma consensual, um novo projeto sanitário para o Brasil. Este trabalho de consulta e discussão coletiva tomou aproximadamente um ano, e foi depois dessas múltiplas “audiências” com sindicatos e corporações médicas e sanitárias, que foi redigida a “seis mãos” a primeira versão deste texto/manifesto que aparece na sequência, sobre “A questão democrática na área da saúde”, que circulou entre um público restrito, no ano de 1976. E foi a partir desta plataforma inicial que ele começou a ser divulgado e reproduzido por várias revistas e instituições, muitas vezes sem o nome de seus autores originais. Em 1979, ele foi publicado pela Revista do CEBES (CEBES, 1980CEBES - CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE. A questão democrática na área da Saúde. Saúde em Debate. 9:11-13, 1980.), e acabou se transformando num verdadeiro manifesto do movimento sanitário brasileiro, nos primeiros anos da década de 80, até seu reconhecimento e oficialização como documento e decisão da 8ª Conferência Nacional de Saúde, no ano de 1986.
Mais à frente, esse mesmo texto original de 1976 transformou-se na “bússola” da gestão de Hesio Cordeiro à frente do INAMPS, a partir de 1986, quando foi criado o SUDS, que funcionou como um embrião do Sistema Único de Saúde, antes que ele fosse consagrado pela Constituição de 1988, e muito antes que ele fosse institucionalizado, já sob a égide do Ministério da Saúde.
No momento em que esse texto foi escrito, em 1976, nenhum de seus autores imaginava a importância que ele viria a ter na década seguinte, nem muito menos podia imaginar a forma que o futuro daria ao seu projeto e aos seus sonhos. Mas olhando com a perspectiva do tempo passado, posso dizer que me orgulho muitíssimo de haver participado dessa aventura intelectual e institucional, e de haver estado ao lado de Hesio Cordeiro e de Reinaldo Guimarães na hora em que escrevemos esse manifesto, como militantes da luta pela redemocratização do país, e como defensores entusiastas do direito universal à saúde (CORDEIRO, 1980CORDEIRO, H. A indústria da saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1980.) de todos os brasileiros.
Referências
- CEBES - CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE. A questão democrática na área da Saúde. Saúde em Debate. 9:11-13, 1980.
- CORDEIRO, H. A indústria da saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1980.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
20 Dez 2021 - Data do Fascículo
2021
Histórico
- Recebido
02 Nov 2020 - Aceito
03 Abr 2021 - Revisado
23 Ago 2021